TRIBUNA CULTURAL

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ANO V - Nº 201

FEIRA DE SANTANA-BAHIA, OUTUBRO DE 2019

Livro de Juraci Dórea sobre arquitetura eclética é um documento monumental de preservação da memória feirense Foto: Divulgação

Ísis Moraes Quem conhece a Feira de Santana dos dias de hoje não pode imaginar o quão majestosa e aprazível ela já foi. Imponentes casarões de estilo Eclético formavam o seu traçado antigo, adornando as ruas, seduzindo os olhares dos passantes e despertando uma familiar sensação de acolhimento, nos seus habitantes. É do signo humano a constante necessidade de enraizamento. E esse processo de construção identitária passa, também, pela maneira como cada grupo de seres humanos transforma o espaço onde vive. Reflexos de determinados modos de vida, crenças e práticas culturais, esses lugares únicos no mundo, primordialmente, surgem como ofertas de pertencimento, assimilação, comodidade. Por isso cidades não devem ser pensadas como organismos estéreis, servindo, apenas, ao ritmo, agora frenético, da vida prática. Cidades devem dar prazer aos sentidos e garantir não somente o conforto, mas também o reavivamento da crença subjetiva numa origem comum, elo que une indivíduos distintos. Sem pertencer, não é possível se identificar. Sem identidade, laços afetivos se rompem. Sem afeto, não é possível zelar. O processo que culminou nessa ruptura afetiva entre o homem e o espaço habitado por ele tem raízes fincadas no século XVIII, nas convulsivas mudanças sociais provocadas pela Revolução Industrial, pelo Iluminismo e pela Revolução Francesa. Esses três acontecimentos históricos não apenas marcaram a quebra da estrutura feudal, mas também desencadearam uma série de transformações que, no século XIX e, especialmente, no século XX, acirraram ainda mais antigos conflitos e crises. Idealizadas como maquinários da modernidade, as cidades perderam o vínculo com seus habitantes, agora vistos como peças da engrenagem capitalista, que passou a reger, vorazmente, o mundo, sobretudo, a partir da segunda metade do Século XX. As novas leis do mercado determinaram o total esgarçamento das relações humanas. E essa fratura social culminou em um violento processo de desumanização, também refletido nos corpos das cidades, mutiladas para dar lugar ao “novo”, ao

O livro será lançado no próximo dia 25, às 19 horas, no Museu de Arte Contemporânea

“moderno”, à frieza das novas práticas de consumo subservientes ao capital. No Brasil, se, por um lado, a modernidade trouxe melhorias essenciais, por outro, trouxe consequências desastrosas. Em Feira de Santana, a maior delas, sem dúvida, foi o desfiguramento de seu perfil arquitetônico. “Sob o impacto dos novos tempos, o patrimônio eclético feirense começou a vir abaixo de repente, cedendo lugar a novos empreendimentos voltados para o comércio e para a prestação de serviços. Sobraram uns poucos prédios públicos e edificações de função privada”, diz o arquiteto e artista plástico Juraci Dórea, no livro Feira de Santana: memória e remanescentes da arquitetura eclética, a ser lançado, no dia 25 de outubro, a partir das 19 horas, no Museu de Arte Contemporânea Raimundo de Oliveira (MAC). Percebendo que o Ecletismo, mesmo tendo se arraigado em vários pontos do país, ainda não tinha recebido a devida atenção dos estudiosos, em função dos preconceitos oriundos da ideologia modernista, que não via valor em nada que a precedia, em termos de arte e arquitetura, Juraci Dória passou, a partir da década de 1970, a documentar, através de registros

fotográficos, os diversos casarões feirenses que sobreviveram ao tempo e ao progresso predatório. Segundo o autor, “salvo raras exceções, a arquitetura eclética não contou com mecanismos de proteção que, mesmo de forma precária, salvaram inúmeros exemplares de outras fases da arquitetura brasileira”. Por isso mesmo o livro “é um mapeamento visual do Ecletismo que se desenvolveu em Feira de Santana e detém-se, mais especificamente, na memória fotográfica de algumas edificações e na catalogação dos prédios remanescentes”. Além disso, também apresenta um rápido histórico da cidade e a contextualização do acervo arquitetônico eclético local, tanto em relação à época quanto aos valores que o produziram. Escrita em 2003, Juraci Dórea conta que a obra precisou ser atualizada, a fim de registrar as transformações ocorridas, na cidade, nos últimos anos, já que vários prédios documentados, à época, foram, posteriormente, demolidos. O livro está dividido em três capítulos. No primeiro, Encenações da modernidade no Brasil, o autor aborda os significados da presença do Ecletismo, no país, e seu conflituoso diálogo com o ideário

modernista, além de conceituar esse período de transição arquitetônica, que floresceu a partir de meados do século XIX e que se caracteriza pela mistura de estilos, exibindo combinações de elementos que poderiam vir da arquitetura clássica, medieval, renascentista, barroca e neoclássica, mas ressignificada em uma nova linguagem. No segundo capítulo, O Ecletismo em Feira de Santana, ele trata da transição da Bahia para a modernidade, evidenciando as mudanças ocorridas em Salvador, cidade predominantemente marcada por um passado barroco e colonial, sobretudo a partir do final do século XIX. Analisa, ainda, a presença do Ecletismo na cidade e as reformas urbanas implementadas por José Joaquim Seabra, entre 1912 e 1916, primeiro período em que o político e jurista ocupou o governo da Bahia. Juraci Dórea também situa Feira de Santana no cenário estadual, partindo de suas origens sertanejas e rurais. E investiga questões relativas ao desenvolvimento da cidade e à sua afirmação como grande entreposto comercial. Ainda nessa seção, o autor também registra as transformações ocorridas, em Feira, no início do século XX, período em que o Ecletismo passou a dominar

a paisagem local. Intitulada Registros visuais da arquitetura eclética em Feira de Santana, a última parte dedica-se ao desenvolvimento de três tópicos: Paisagem em preto & branco, onde o autor fala sobre o início do processo de apagamento do patrimônio eclético feirense, analisando o diálogo entre memória e registro fotográfico; A velha cidade (in memoriam), onde situa a perda do patrimônio arquitetônico feirense no âmbito do ciclo desenvolvimentista da segunda metade do século XX, reunindo vasta documentação visual de prédios já desaparecidos do cenário urbano local; e Edificações remanescentes, onde mapeia os prédios de estilo eclético que restaram. A discussão engendrada, por Juraci Dórea, nesse livro fundamental sobre a destruição do patrimônio arquitetônico feirense, aponta em que medida o pensamento modernista impactou as políticas de preservação patrimonial, no estado e na cidade. Vistos como obstáculos ao desenvolvimento, os prédios históricos foram demolidos velozmente. Em poucas décadas, quase tudo veio abaixo, em nome de uma noção equivocada de modernidade e da insaciável voracidade imobiliária. O descaso dos poderes públicos e

a falta de mecanismos legais para a proteção do nosso patrimônio cultural foram fatores preponderantes, nesse processo. A demolição desses monumentos tem sido profundamente dolorosa para os feirenses que se preocupam com a história da cidade e reconhecem o sentido e o valor de se preservar a memória. Daí a importância da pesquisa realizada por Juraci Dórea, que resultou na elaboração desse livro magistral, que ainda traz uma planta com a indicação da posição dos imóveis citados por ele. Tal fato permite que o leitor tenha uma ideia mais precisa do desenho eclético predominante na arquitetura da cidade antiga. A partir do livro, também nos damos conta de que perdemos verdadeiras joias da arquitetura eclética, a exemplo da casa do ex-prefeito João Marinho Falcão; da casa do ex-prefeito Francisco Pinto; da Casa da Torre, de Oscar Tabaréu (como o empresário e político Oscar Marques ficou conhecido); da casa do escritor Fernando Ramos; e do Solar Santana, todas demolidas para dar lugar a estacionamentos ou a galpões pré-moldados, que nada têm a contar sobre o passado ou a legar ao futuro. Outros poucos imóveis ainda estão de pé, mas totalmente descaracterizados, como é o caso do Palácio do Menor, atualmente tutelado pelo Serviço Social do Comércio (Sesc), sob promessa de restauração; do coreto da Praça Bernardino Bahia; e do casarão da Praça João Pedreira, onde já funcionou a sede do governo local. Diante de um quadro tão desanimador, o trabalho de Juraci Dórea surge como um verdadeiro alento, já que as futuras gerações terão a oportunidade de, pelo menos, vislumbrar a cidade de seus antepassados, por meio das fotografias do artista. O lançamento do livro é aberto ao público e acontece junto com vernissage da exposição coletiva Muncab & MAC: Arte em Movimento, realizada em parceria com o Museu Nacional de Cultura Afro-Brasileira (Muncab/ Salvador), da qual o artista também faz parte, juntamente com César Romero, Guache Marques, Antonio Brasileiro, Chico Liberato, Juarez Paraiso, J. Cunha, Washington Falcão, Caetano Dias e Yedamaria (in memoriam).


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Feira de Santana-Bahia, outubro de 2019

Ir ao cinema

Reprodução

Valdomiro Santana Sabem? O cinema, única arte de massa, vai, agora, fazer 124 anos. Nasceu em 28 de dezembro de 1895, quando houve a primeira apresentação pública do cinematógrafo, o invento dos irmãos Lumière — Auguste (1862-1954) e Louis (1864-1948). Foi a primeira sessão de cinema, em que, com a câmera fixa e em posição frontal, os planos eram abertos: dez filmezinhos em preto e branco, sem som, cada um com menos de um minuto de duração — entre os quais, “A saída dos operários da fábrica Lumière em Lyon”; “A chegada de um trem à estação de La Ciotat”; e “O regador regado” —, projetados a 16 fotogramas por segundo, numa tela de um metro de largura, numa sala do porão do Salon Indien du Grand Café, no Boulevard des Capucines, em Paris, com capacidade para 126 lugares. Mas a plateia teve apenas 33 espectadores; cada um pagou 1,00 franco. O que viram naquela sessão histórica? O mundo mesmo, tal qual é, ou uma alucinação, em que eles próprios eram parte do que se mostrava com impressionante realismo? Desde aquele dia até hoje, esse misto de sensações permanece: puro real, puro sonho (acordado). No segundo filme dos Lumière, a plateia teve tanto medo porque viu e sentiu que a locomotiva parecia “sair da tela”. Houve quem fugisse, precipitadamente, da sala e quem procurasse se esconder debaixo das cadeiras. Ambas as reações lembram cenas de comédia pastelão, gênero mudo criado em 1905, por Max Linder, que mui-

Fotograma de “A chegada de um trem à estação de La Ciotat”, filme que apavorou a plateia, no dia de inauguração do cinematógrafo to influenciou Chaplin, Buster Keaton e Harold Lloyd. Os jornais franceses disseram que os filmes dos Lumière eram como se fossem a própria vida, “c’est la vie même”. Contou Auguste que foi Louis quem inventou o cinematógrafo, numa noite de insônia. E ambos o desenvolveram: uma máquina a manivela, portátil (peso: menos de cinco quilos), sem eletricidade, para captar as imagens, revelar o filme e, depois, também projetá-lo em uma tela. Uma máquina que faz sonhar, ter pesadelos, delirar? O pai, Antoine Lumière (1840-1911), fotógrafo e fabricante de películas fotográficas, ao apresentar essa máquina, disse que o cinema era uma invenção sem futuro. Desde aquele dia, o cinema passou a ser o olho de nosso olho, ao nos mostrar o que a câmera registra. Ou vemos “efeitos do real”, em vez de “reprodução do real”? Foi um delírio ver cores e tamanhos naturais, em imagens em preto e branco, numa tela de um metro de largura? Ou, ao contrário, expressou com perfeição o que se estabelece entre o

cinema e o espectador, que, a partir da sugestão do filme, elabora uma nova imagem? Foi o que Hitchcock explorou, ao criar a “imagem mental”, que se convencionou chamar de “suspense”: fez da relação do espectador com o filme o objeto de uma imagem, que não só se acrescenta à imagem-percepção, à imagem-afecção e à imagem-ação, como as transforma, o que constitui a trama perfeita, uma espécie de tapeçaria. Daí as “figuras de pensamen-

tria, especialmente a de Hollywood, mundialmente hegemônica, que criou e consolidou o Star system, a fim de transformar atores e diretores em mitos adorados pelo público, donde os gêneros cinematográficos intimamente ligados a esses mitos (faroeste, policial, comédia, musical, drama, ficção científica), pergunto-lhes: Vocês vão ao cinema com frequência ou raramente? Se não mais cultivam esse hábito, por quê? Preferem ver filmes Reprodução

Os irmãos Lumière, Auguste (à esquerda) e Louis, considerados pais do cinema to” de seus filmes. Mas já que seria longo considerar, aqui, outros aspectos históricos, teóricos, técnicos e estéticos do cinema e analisar sua indús-

em casa, nos diferentes formatos de vídeo? Consideram-se cinéfilos ou apenas, desde a infância, aprenderam a “gostar” de cinema? O “juízo do gosto” é o único que lhes

importa, por ser prático e rápido, e, nessa medida, logo responde ao que afinal interessa à grande indústria de cinema, porque determinante do sucesso ou fracasso de bilheteria? Desde meados dos anos 1980, não há mais crítica cinematográfica. cineclubismo desapareceu faz quase duas décadas. Triste é a situação das poucas cinematecas brasileiras existentes, o que torna muito preocupante a preservação de nossa memória audiovisual. Com a decadência, por vários motivos, dos cinemas de rua, a partir de 1975, surgiram os cinemas de shopping. Nestes, o hall encolheu e metade de seu espaço é ocupada por uma lanchonete — algumas ficam em área externa, com mesas e cadeiras, lojas de todo tipo em volta. O fascínio dos cinemas de rua era sua decoração suntuosa. Tão rápida foi a transformação social e cultural dos grandes centros urbanos, que, instaladas nos shoppings, as salas de cinema incorporaram tanto as condições de segurança ambiente quanto de comodidade e conforto,

para criar mais uma — e especial, porque altamente mitologizante — relação de consumo. Num contexto assim, pouco importa que a atenção do espectador, em vez de se concentrar unicamente na tela, seja simultânea e mecanicamente ocupada pela moda americana reproduzida em toda parte: comer pipoca e beber refrigerante. A sala de cinema tornou-se, então, um prolongamento da sala de casa, onde as pessoas veem televisão enquanto fazem outra coisa (jantam, conversam, atendem ao telefone...), pois o que bate na tela não exige nenhum envolvimento: os temas pouco variam, as histórias se parecem, o estilo de narração é fragmentado e repetitivo, tão ruins são os roteiros. Por isso, a relação com um filme, em particular, não pressupõe pensar o cinema como um todo. Esvazia-se, tanto quanto um saco de pipoca e uma lata de refrigerante. Não por acaso, o mercado exibidor, que privilegia esse filão de maus filmes, quase nunca se interessa pelo cinema autoral, produzido não segundo o modelo da grande indústria. Reprodução

*Valdomiro Santana é psicólogo, jornalista, escritor, mestre em Literatua e Diversidade Cultural pela Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs) e editor da Uefs Editora.


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Um olhar furtivo sobre As meninas

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(Revisitando Velázquez)

Lúcio Autran São raros, muito raros os momentos em que o gênio une a razão e os sentidos aos domínios da técnica e alcança a altitude de Velázquez, em As Meninas. Ou, no inverso da razão, contudo sem nenhum improviso, muito ao contrário, de Goya, e falo do Goya fora da Corte, o da fase negra. Será interessante comparar um e outro, antes de entrar no que me interessa: o mencionado As Meninas. Mas serei breve nessa comparação. Ela seria, e talvez o seja, motivo para outro devaneio. Ambos têm alguns pontos de contato, dentre eles a genialidade e a família real, que, embora em diferentes gerações, pelo fato de sustentá-los, a ambos devia provocar alguns conflitos interiores. Mas, além de 150 anos, é justo em relação a essa família, ou melhor, como cada uma reagia à sua influência, que eles notoriamente se separam. Velázquez dela se salva pela ironia, no limite (e como gosto disso, o andar nos limites) do sarcasmo, tornando mais feia a já excessivamente feia real família; enquanto Goya salva-se do e pelo desespero, pela liberação dos demônios e da loucura, embora, nesses casos, escondido em seu atelier. O primeiro racionaliza e, sem que a feia família perceba – a altivez e a real vaidade, mesmo diante do mais cruel espelho, nunca se veria tão feia –, a retrata com particular e corrosiva feiura; enquanto o segundo, refugiado no atelier, deixa escapar dessa solidão voluntária o desespero, realizando um dos mais altos momentos do Homem: a Fase Negra (além da Tauromaquia e outras afirmações dos mais vitais desespero e intensidade), identificada, irremediavelmente, com seu trabalho, libertando-o do jugo retratista comportado que a família real parecia obrigá-lo e que, ainda que genialmente realizado, devia atormentá-lo ou fantasmas tão intensos não buscariam o exterior. Mas há sutis proximidades entre eles. Velázquez, com sutileza, é claro, espelha a tão incontornável quanto nobre feiura real; Goya, por sua feita, em seu atelier, pinta uma figura de mulher, que muitos dizem ser sua companheira ou uma prostituta, mas que a mim é impossível não remeter à soberana, pois é patente, ao menos num espelho sombrio, a presença do retrato que fizera ou faria da “Reina María Luisa”. Afastando-me desta breve comparação, que ela não é o motivo deste pequeno devaneio, servindo apenas como introdução, chega-se ao ponto a que visava: poucas vezes a técnica e a razão estiveram a serviço de um artista quanto na tela As Meninas, de

As Meninas. Diego Velázquez. Óleo sobre tela, 1656

Velázquez. Foucault, em ensaio homônimo, no livro As Palavras e as Coisas – Uma arqueologia das ciências humanas, analisa a obra, ao menos me parece, a partir de uma Teoria da Representação, e o faz com muito sucesso. Modestamente, entretanto, penso que faltou, ali, uma análise subjetiva do que pretendia Velázquez naquela cena, sua relação com a família real e com a realidade – sem trocadilho –, sua solidão interior, enfim, a sua tensa relação com o centro do poder, necessariamente conflituosa, um desconforto, contudo, que ele não podia, por inoportuno, claramente manifestar. Ousadamente, senti falta de uma análise dentro da perspectiva subjetiva do criador (Unamuno). O artista, ao apresentar-nos o quadro – e Velázquez o faz formalmente –, convida-nos e conduz nosso olhar com firmeza, num espaço cênico tão ao gosto do Barroco, mas deste se afastando um pouco, pela racionalidade, pela ausência ou, ao menos, pelo escasso drama trágico. Esse cenário é composto por uma multiplicidade de espelhos, que revelam toda sua “tragédia” ao espectador – que, como pretendo demonstrar, nada tem de mero espectador –, “tragédia” que sua mão firme não permite desandar, graças ao domínio da técnica a serviço da razão, contendo a explosão dramática em favor de uma ironia fina e racional, demonstrando que, embora pintor da corte, detinha o controle da situação, fazendo de seu pincel uma arma avassaladora, determinando caprichosamente o comportamento da família real, reduzindo-a, sem realeza alguma, ao seu real tamanho. Explico: aquilo que aparenta ser o objeto de uma tela, Filipe IV e sua mulher, Mariana, naquele momento retratados numa tela invisível, é relegado quase ao ponto do esquecimento. Só sabemos que estavam sendo pintados. Logo, eram ou deveriam ser

a razão daquela reunião familiar, por uma tênue sombra num espelho ao fundo do atelier. Espelho esse, por sua vez, refletido em outro espelho, maior, o que Velázquez usava para pintar, invisível aos nossos olhos – ao menos aparentemente invisível, pois logo, espectadores, estaremos diante dele. Esse primeiro e obscuro espelho, o que reflete o casal real, é destacado apenas pela luz que lhe empresta o artista, num, aqui sim, barroquíssimo jogo de luz e sombras, que conduz o olhar do espectador, realçando a figura dos soberanos, que, embora num ponto quase central da tela, é apenas percebida (e destacada) pelo brilho do espelho que a reflete. E que a nossa imaginação (porque, na verdade, nada identificamos) empresta toda a pompa de uma solene seção de pintura. O que importa é que as figuras dos soberanos são reduzidas – e eis a primeira ironia – a dois borrões ininteligíveis, mas de claridade solar da real (sem trocadilho) intenção do artista. E apenas ganham importância – segunda ironia – na exata medida que ele assim o queira. Embora aparentemente estática, a maestria do pintor “dirige” e movimenta a cena. Tal solenidade, sutilmente narrada num tom levemente irônico, contrasta com a informalidade da família Bourbon, que a tudo assiste, representada pela infanta Margarida e pelo cachorro, “rodeada de aias, de damas de honor, de cortesãos e de anões”, aos quais se pode “muito precisamente atribuir nomes: a tradição reconhece aqui dona Maria Agustina Sarmiente, ali, Nieto, no primeiro plano, Nicolaso Pertusato, bufão italiano” (Foucault, pág. 25), além de um casal sem qualquer importância, o que acentua sua vacuidade de personagens secundárias. Poderíamos concluir ser a Infanta o objeto, a personagem principal da tela, até pelo nome dado ao quadro, As

Meninas. Engano, na verdade, a personagem principal ainda não surgiu em cena, e, seguramente, não é a infanta, muito menos o conjunto de figuras, e nem é o cotidiano da família real, que pouco se distingue de uma família qualquer, o que lhe empresta algum destaque no cenário. Poder? Nobreza? Estando num ponto central da tela, tendo sua figura realçada pela luz mais intensa, a infanta Margarida, ou antes, o grupo familiar, incluídos aí os serviçais (e uma anã bem feiosa – Margarida?), nos dá a impressão de que, finalmente, estamos diante do tema principal da tela, o que até seria interessante, embora vazia de gentileza com os soberanos. Todavia, embora aparentemente seja isso, ainda estamos num plano secundário. A infanta, a nosso ver – terceira ironia – é personagem sem maior importância, salvo servir de veículo para a ironia de Velázquez, ainda não fomos apresentados ao verdadeiro protagonista. Quem seria ele? Novamente, a mão do artista nos conduz, nos apresentando, como acima enunciei, a tela da forma por ele desejada. O próprio pintor desloca-se, sutilmente, detrás da tela “principal”, da qual vemos apenas o cavalete, uma tela que não podemos ver, pois estamos diante de um espelho. Reclina-se o artista para seu lado esquerdo (ou seria o direito? Não estamos diante de um jogo de espelhos?). Foucault (pg. 19) indaga-se se estaria começando a tela ou dando o necessário afastamento para a última pincelada, dúvida que nos sugere o jogo de espelhos. Seria ele o objeto da tela? A personagem que tanto procuramos, num autorretrato ironicamente oculto? Prefiro, para o que pretendo, a primeira hipótese, que Velázquez estaria diante de uma tela em branco, pois interessava ao plano ilusório do artista que a cena se montasse para ele e de acordo com as suas pretensões: que toda nobre família, e sua disponibilidade, estivesse ali a seu serviço, aguardando, ociosa e ansiosa, o que prometia a tela em branco (viria? Quarta ironia). É, enfim, o retrato de uma tela não somente oculta, mas ainda inexistente. O pintor, como sujeito que é, ganha o merecido destaque, enquanto o pintado, o casal real, reduz-se ao que é: um falso objeto, ainda que detentor de nobreza e poder, mas despossuído do gênio, privado de uma nobreza e um poder mais altos: o dom da criação. O fazer criador ganha, ali, um destaque que raramente viria a ser alcançado até a modernidade, quase quatro séculos depois. Note-se que não falo dos, em regra, formais e anódinos autorretratos, que são coisas muito diversas, mas

de revelação de processos criativos. Então seria ele, Velázquez, o protagonista? Velázquez escapa ao perigoso espelho de Narciso, já havia espelhos suficientes naquela cena. Não, não era ele o tema principal. Nossos olhos são, finalmente, conduzidos ao tema central da obra. Quem é aquela misteriosa personagem que, de uma porta aberta, cada pé apoiado num degrau, observa aquela cena? Estaria descendo ou subindo a escada; acaba de chegar, ou retira-se, satisfeito com o que já viu? Prefiro outra vez a primeira hipótese, pois acabamos de entrar em cena. Sim, acabamos, pois somos nós aquela figura, é o espectador o protagonista. E, mais interessante, embora no mesmo plano do casal real, e lado a lado, pois, fisicamente separados, o jogo de espelhos nos coloca lado a lado, ganhamos um destaque intencional proporcionado, ainda uma vez, pela luz precisa e diversa, a acentuar nossa importância diante do diminuto casal. Protagonista e figurantes, lado a lado, nos conduzem ao contraste (barroco). Esta é a ordem de importância da cena, de forma descendente: leitor, criador, o cotidiano familiar e a infanta e, finalmente, quase sem importância alguma, o casal real, em tese, o objeto sendo pintado. Foucault, na conclusão de sua análise, ao sugerir, nesse quadro, uma “representação pura” (pg. 32), livre de sujeito e objeto, literalmente nos expulsa, espectador, junto com o pintor, do quadro. Discordo. Ao contrário, se olharmos atentamente o quadro, veremos que nossos olhares, pintor e espectador, (verdadeiro) anfitrião e convidado, cruzam-se em silenciosa cumplicidade. Olhares que se arrebatam e densificam a cena, perguntando-se que é aquele intruso, fazendo desaparecer, quase que por magia, o todo circundante. Expulsos do quadro estão os soberanos e a infanta e, embora esta esteja fisicamente no centro da tela, aparentemente destacada, não passa, como vimos, de uma personagem de pequena estatura na composição, a demonstrar a desimportância da pompa familiar. Assim, mais do que uma “representação pura”, o que temos aqui é a representação, na mais pura metalinguagem; mais do que um poema, o que temos é uma poética. Indubitavelmente, estamos diante de uma ruptura, dessas que, num dado momento da história e da arte, indicam uma mudança de paradigma. Há um visível corte, quando o artista, falando de seu próprio processo criativo, numa metalinguagem silenciosa, nos indica que, afastado o

falso objeto, surge o verdadeiro: a relação do artista com o mundo, suas angústias e conflitos, arquetípica, pois, e que, cúmplice, é a mesma ou semelhante à do espectador, sujeito e objeto (o verdadeiro, não o falso, a real família), enfim, o exato objetivo da Arte: a relação do homem com seus medos, inadaptações e seus arquétipos com os outro(s) homem(ns). A comunicação entre os homens, no plano do simbólico, a única possível. Desconfio, que, ironicamente, a tela do casal real sequer tenha sido pintada, prefiro gostosamente pensar que não. Mas, então, como teria feito o pintor para escapar à desconfiança e à provável ira do soberano? Simples, desta vez a destreza não se deu com pincel e tintas, mas com a palavra. E, mais uma vez, com a razão e a inteligência: Velázquez justificou o, digamos assim, “desvio temático”, fazendo uma “surpresa” aos reis: denominou a tela de... As Meninas, numa singela homenagem à “linda” filhinha, a infanta, em mais um jogo de espelhos e ilusões que, além de enganar seus patrocinadores – papá e mamá devem ter adorado – vem enganando, até hoje, ao longo de quatro séculos, muita gente boa e muito olhar supostamente acurado.

Foto:Divulgação

*Natural do Rio de Janeiro, Lúcio Autran é formado em Arquitetura e em Direito. Poeta, escritor e ensaísta, tem diversos livros publicados, dentre eles: O Piloto Anônimo (Global Editora, 1985); Um Nome (Editora Taurus/Timbre, 1987); Centro (Livraria Editora Francisco Alves, 1999); Fragmentos do Sonho e Outros Ciclos Menores (Editora Bookess, 2012); Fragmentos de um Exílio Voluntário (Editora Bookess, 2016); e A árvore Polegata, Poesias (Editora Bookess, 2013). Este ensaio é parte de um estudo que o autor tem feito sobre alguns criadores seminais – ou pela emoção dramática, como Bosch e Goya; ou pela Razão, como Velázquez e Rafael, a eterna disputa entre Dioniso e Apolo – e integra um livro, ainda no prelo, que se chamará Museu de Cinzas.


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Feira de Santana-Bahia, outubro de 2019

Água Viva

Sereias do Jacuípe. Jorge Galeano. Acrílico sobre tela. 40 cm x 40 cm, 2016

Translúcida bailarina quase flor, feita de água a flutuar, qual sereia por mares de hoje e de outrora. Graciosa e lúdica, dança no balé dos oceanos, e ao sol se revela plácida, estranha medusa. Uma face aveludada não engana, por ser plena; a outra face não fere: defende-se, apenas. (Outran Borges) *Outran Sampaio Borges é médico pediatra, poeta, compositor e escritor. Natural de Baixa Grande, Bahia, está radicado em Feira de Santana desde 1953, onde também atuou como professor de Química, exercendo, ainda, cargos diretórios em diversas unidades de saúde, a exemplo do Hospital Especializado Lopes Rodrigues. Foi Provedor da Santa Casa de Misericórdia, reeleito por três gestões, entidade na qual, atualmente, ocupa o cargo de Primeiro Procurador. Membro da Academia Feirense de Letras e do Grupo Hera, tem diversos livros publicados, dentre eles: O protonauta (contos); A verdade, o tempo e outras mentiras (poesia); e As velas do meu navio e outros poemas ao vento (poesia).

Fundado em 10.04.1999 www.tribunafeirense.com.br / cultural.tribunafeirense@gmail.com Fundadores: Valdomiro Silva - Batista Cruz - Denivaldo Santos - Gildarte Ramos Editora - ísis Moraes Diretor - César Oliveira Editoração eletrônica - Maria da Prosperidade dos Santos

OS TEXTOS ASSINADOS NESTE JORNAL SÃO DE RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES. Registro de Publicação 2002 a 2006 - 01 a 174 2009 - 175 a 177 2015 - 178


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