TRIBUNA CULTURAL FEVEREIRO 2020

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ANO V - Nº 204

FEIRA DE SANTANA-BAHIA, FEVEREIRO DE 2020

“Uma terra sem memória é como um corpo sem cabeça”; diz o escritor Antonio do Lajedinho Ísis Moraes

“O que a memória ama/ fica eterno...” (Adélia Prado) O passado de um povo também é feito de silêncios. No tecer e entretecer das narrativas históricas, muitos fatos se perdem, muitos personagens acabam esquecidos, muitas verdades são apagadas. Sem embrenhar-me muito na espinhosa senda entre oficialidade e verdade, é preciso dizer que a História, muitas vezes, impôs um atroz silenciamento a tudo aquilo que divergia dos saberes e poderes dominantes. Esquecer, no fazer histórico, portanto, é, quase sempre, um movimento voluntário, seja por ideologia, seja porque recortes são necessários, afinal não é possível a um historiador abarcar absolutamente tudo o que constitui o tempo sobre o qual se debruça. Nesse exercício, sobram os que são “inadequados” ou “desimportantes” demais para constar. E, vale lembrar: quando não pode silenciar e apagar, através da História, a mão do domínio demoniza. Muitos são os personagens entregues à sanha do julgamento humano sem isenta reflexão. Por tudo isso, a História está repleta de personagens e lugares olvidados. Feira de Santana é, nesse sentido, uma cidade fantasma. Aqui, o passado sucumbiu ao descaso dos poderes públicos, à voracidade comercial e à cegueira dos habitantes. Fato que deveria entristecer e en-

vergonhar a todos. Mas a maioria sequer se dá conta da falta que faz não ter um passado preservado. Movendo-se ao ritmo de uma cidade, agora, meramente maquinal, os feirenses perderam suas raízes. E o reflexo disso está no que vivenciamos diariamente: tradições e valores culturais agonizando em meio à boiada de latas que estoura nas ruas convulsas; a feiura dos galpões pré-moldados dominando a paisagem; pessoas enxotadas das calçadas, pelo comércio informal; omissão na zeladoria do espaço urbano e na destruição do patrimônio arquitetônico. Caminhamos, apáticos, entre espectros ancestrais, os quais somente a memória é capaz de resgatar. Mas poucos são os que se lembram da Feira de Santana antiga, tão aprazível ao olhar, com seus jardins, praças e casario de estilo eclético enfeitando ruas e avenidas. Menos ainda são os que se recordam dos personagens que marcaram a rotina da cidade, nos remotos tempos em que todos se conheciam pelas alcunhas, mais até do que pelos próprios nomes. Quase ninguém sabe localizar os becos nomeados de acordo com as funções práticas, mas nem sempre nobres, do cotidiano. Passado é mesmo coisa de quem ama com a memória.

MEMORIALISTA

Feirense de nasci-

mento, Antonio Moreira Ferreira é uma dessas raras pessoas que sabem bem que lembrar é tornar imperecível aquilo que somos, não apenas individualmente, mas também coletivamente. Aos 94 anos, o escritor tem 11 livros publicados, entre poesia e prosa, muitos deles de crônicas sobre a Feira de Santana que ele vivenciou na juventude. Testemunha ocular de muitos acontecimentos históricos que marcaram a cidade e o país, a partir da década de 30, Antonio do Lajedinho, como também ficou conhecido, por causa do nome de uma antiga fazenda de sua propriedade, diz que nunca teve a pretensão de fazer História. “Não sou estudioso ou pesquisador dos assuntos, apenas conto aquilo que vi. Minhas lembranças de mocidade. Sou um memorialista”, explica.

Ao longo dos anos, a prodigiosa memória do escritor e sua imensa habilidade como cronista deram tantos frutos bons, que seus textos são (ainda que não seja essa a sua ambição) fontes de pesquisa histórica (muito prazerosas, por sinal) para todo aquele que quiser saber mais sobre a cidade antiga, tamanha é a riqueza de detalhes, na descrição dos fatos, costumes, modos de vida, localizações, personalidades, tradições e festejos populares e religiosos. No livro A Feira na década de 30, por exemplo, o autor conduz o leitor a uma deleitosa viagem pelo tempo dos coronéis, chefes políticos com “patente” e poder de mandar e desmandar na cidadezinha de pouquíssimas ruas centrais, dentre elas a fa-

Foto: Reprodução

Autor de inúmeras crônicas sobre a Feira de Santana antiga, Antonio Moreira Ferreira, também conhecido como Antonio do Lajedinho, afirma que a cidade “vem se notabilizando pela maneira cruel e perversa com que destrói a memória da sua história” mosa Rua do Meio (atual Marechal Deodoro) e o seu prolongamento (hoje, Sales Barbosa), antigamente dividido em Rua de Cima (zona de baixo meretrício, onde estava situado o Beco do Bom e Barato, local de entretenimento masculino a preços módicos) e Rua de Baixo (área habitada por famílias feirenses). A Feira de Santana do início do século passado ressurge tão vívida e familiar, nas páginas escritas pelo memorialista, que mesmo quem não viveu essa época áurea sente que pertence a ela. “É como encontrar um velho ancestral, que refaz o elo da nossa memória. Todo leitor que tenha afeição por Feira há de encontrar, nesse livro, não só as delimitações

geográficas urbanas, mas também os costumes e comportamentos que forjam e constituem o diário do nosso povo. Há de viver um tempo que não alcançou, mas que é recuperado pelas palavras do autor. É um canto de saudação e saudade aos becos, ao povo feirense, às ruas ainda encobertas de poeira e apinhadas de tropeiros e vaqueiros, que compõem, desde sempre, nossa identidade. É uma forma de nos perpetuar, através de uma longa viagem sentimental pela história e pelas recordações de nossa cidade”, observa o médico e jornalista César Oliveira. Muitos são os personagens ilustres que revivem através das narrativas de Antonio do Lajedinho, mas

os tipos populares pinçados do esquecimento protagonizam as histórias mais divertidas, roubando a atenção do leitor. É o caso do bêbado Arthur Bostoque, a malhar, impiedosamente, os integralistas, apelidados de “Galinhas Verdes”, pelos adversários políticos, quando presos, por ordem do presidente Getúlio Vargas, a quem, inicialmente, apoiavam. Outra figura hilária relembrada pelo cronista é Benzinho Cadê a Ema, apelido do pintor de parede Zeferino, amigo de infância do Coronel Agostinho Fróes da Motta. Nascido em 1871, viveu sua juventude em Feira, sempre pregando peças nos amigos. Ficou conhecido assim depois de rifar uma ema, prêmio


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que jamais entregou. No dia do sorteio, apareceu embriagado e quando lhe perguntavam pelo animal, dizia: “olhe eu nela!”. Também foi dele a façanha de ter vivido anos sem pagar aluguel, em uma casa de propriedade do Cel. Agostinho, localizada na Praça 2 de Julho. Muitas foram as peripécias de Benzinho para não deixar o imóvel, inclusive ameaçar explodir uma barrica de bacalhau cheia de carvão, mas que ele dizia ser pólvora. Tanto aprontou que acabou ficando.

MARIA QUITÉRIA

Mas, nas lembranças de Antonio do Lajedinho, nem tudo é riso. Em vários de seus livros, especialmente em A Feira na década de 30, A Feira no Século XX e Memórias de um feirense (aos 91 anos), o escritor também lamenta o parco reconhecimento aos que lutaram, bravamente, pelo país. Com vasto conhecimento histórico, relata a trajetória de vida da heroína feirense Maria Quitéria, que, vestida de homem, ingressou no Exército Brasileiro, alistada como Soldado Medeiros, com a finalidade de lutar contra os colonizadores portugueses, na Guerra de Independência. Inconformado com a pouca importância dada a tão admirável personalidade local, foi dele a iniciativa de solicitar ao Governo Municipal que festejasse, oficialmente, o 2 de Julho (data que marca a expulsão dos dominadores da Bahia) no distrito de Maria Quitéria, antiga Vila de São José das Itapororocas, onde nasceu a oficial do Batalhão dos Voluntários do Príncipe (popularmente apelidado de Batalhão dos Periquitos), posteriormente condecorada, pelo próprio imperador Dom Pedro I, como Cavaleiro da Imperial Ordem do Cruzeiro e elevada a Patrono do Quadro Complementar de Oficiais do Exército, por Decreto expedido em 1996. O pedido de Antonio Moreira foi atendido em 2015 e, desde então, a celebração é realizada na localidade, com a presença de autoridades políticas e militares, em homenagem à heroína, que, para ele, veio ao mundo no dia 22 de maio de 1792, já que, naquela época, “era costume católico batizar os filhos com os nomes dos santos dos dias em que nasciam”.

SEGUNDA GUERRA

Do mesmo modo, o autor condena a desonrosa sentença de esquecimento imposta ao oficial do Exército Filemon Ferreira Cruz,

feirense nascido no dia 8 de março de 1923, que, em 1942, abandonou os estudos para “atender o chamamento da Pátria” ultrajada pelo ataque nazifascista que, em 1941, vitimou mais de 500 brasileiros, entre homens, mulheres e crianças, nas águas de Salvador e Aracaju. O episódio determinou a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Na crônica intitulada Filemon morreu, Lajedinho desabafa, por ocasião do óbito do oficial, no dia 9 de julho de 2001, e do seu sepultamento, no dia seguinte: “Não fosse a presença do Exército, Filemon teria morrido como viveu: esquecido. Mas, um dia, as futuras gerações irão cobrar da sociedade e, principalmente, dos políticos, os nomes daqueles que não foram cantores, nem jogadores de futebol, mas resgataram a nossa liberdade e a nossa soberania, merecendo o desgastado nome de herói. Feira tem este débito para com os seus Filemons”, critica. A dívida histórica de Feira de Santana para com seus ex-combatentes é, de fato, imensa. A cidade pouco fez para honrar a memória dos muitos homens que morreram em batalha e dos que sobreviveram aos horrores da Segunda Guerra. Antonio Moreira é um destes homens. Em janeiro de 1942, seguindo o exemplo do irmão, Eurícles Moreira Ferreira, que, um ano antes, ingressou na Marinha Brasileira, com o firme propósito de defender o país, decidiu prestar concurso, tendo sido habilitado a entrar na Escola de Aprendizes Marinheiros, onde concluiu os estudos se preparou, por dez meses, para o combate. O escritor, que, aliás, é o único ex-combatente ainda vivo, em toda a região Nordeste, conta que, depois de passar pelo Comando Naval do Leste, finalmente embarcou no Cruzador Bahia, com destino à Base Naval do Nordeste, onde serviu no Encouraçado São Paulo, então em Recife, tendo participado de inúmeras operações, em toda a costa brasileira e também em território italiano, até o fim da guerra, em 1945. No livro Um marinheiro do Brasil na 2ª Guerra Mundial: verdades que a História ainda omite, lançado em 2012, ele relata, nos mínimos detalhes, diversos aspectos da decisiva participação do Brasil no conflito. O país que lutou ao lado dos Estados Unidos, França, Grã-Bretanha e ex-União Soviética (Aliados) contra

Foto: Washington Nery/ Secom

O ex-combatente recebendo homenagem, em 2019, durante a celebração do 2 de Julho, no distrito de Maria Quitéria os países que formavam o Eixo (Alemanha, Itália e Japão) ainda não teve reconhecido o seu devido valor na vitória sobre o projeto totalitarista de Adolf Hitler. De acordo com o historiador Rodrigo Osório Pereira, autor do prefácio, a obra é de fundamental importância, por apresentar problemáticas ainda em aberto e pouco analisadas; por rever o papel do Brasil a partir da história de seus combatentes, que desempenharam funções militares na Itália e, sobretudo, no Atlântico Sul, infestado de submarinos alemães; e por trazer uma leitura individualizada do processo, por um ângulo diferente do habitual, isto é, do mar. “Chama a atenção uma narrativa que nos dá pistas sobre o importante papel desempenhado por nossos marinheiros, seja escoltando embarcações que movimentavam nossa vida mercantil ou enfrentando submarinos inimigos, numa guerra silenciosa, traiçoeira, surpreendente e perigosa, travada em águas profundas, que, embora na periferia do conflito, longe do front nazista, possibilitou toda a dinâmica náutica necessária para que, num trabalho conjunto, o assombroso projeto de Hitler para o mundo fosse completamente enterrado”, observa. Antonio Moreira Ferreira diz que o livro é o único que une memória e pesquisa histórica. Ele salienta que buscou, em inúmeros arquivos militares, Brasil afora, informações e documentos para compor a obra. Nela, faz uma extensa contextualização, começando a série de narrativas pela Primeira Guerra Mundial. Em seguida, detalha episódios da Segunda Guerra, sendo o mais famoso deles o que diz respeito às Batalhas de Monte Castelo.

O ex-combatente dá uma versão que diz ser mais realista, já que a vitória na região italiana só foi conseguida após quatro derrotas, por um erro de estratégia. De acordo com o autor, corrigidas as táticas, os últimos confrontos não só foram vitoriosos, como marcaram a rendição da tropa nazista que ali combatia. E, segundo ele, o Brasil teve uma participação fundamental nesses eventos. Para Lajedinho, a História do Brasil deve muito aos milhares de oficiais que perderam suas vidas nos fronts das duas guerras mundiais. Diferentemente de outros países, diz ele, o Brasil sequer comemora o fim dos conflitos. Homenagear seus militares, então, nem modestamente. O escritor enfatiza que o esquecimento institucional é tão grande que até mesmo livros didáticos chegam a ignorar a participação do Brasil, especialmente na Primeira Guerra. “Os soldados das Três Armas lavaram a honra da Pátria, que, então, fora agredida e ultrajada. Pena que o brasileiro sofre do mal de Alzheimer cultural”, lamenta, em uma crônica de 2017 sobre os 72 nos do fim da Segunda Guerra.

SOBREVIVENTE

Sobreviver a um conflito bélico deixa marcas profundas. Uma delas está descrita na crônica A minha simplória participação (trocando o Nós pelo Eu), na qual o autor relata o torpedeamento do navio Vital de Oliveira, do qual estava a bordo, pelo submarino alemão U 861, quando a embarcação navegava de Vitória em direção ao Rio de Janeiro. Náufrago, passou toda a noite no mar, à espera do resgate. Nesse meio tempo, perdeu o grande amigo apelidado

de Bola Sete, que morreu nos seus braços, com uma perna destroçada, sem chance de socorro. Sem dúvida, esta é a narrativa mais tocante do livro, que deixa claro o valor de todos os oficiais que defenderam o país com suas próprias vidas. O episódio é sempre contado com muita emoção, pelo ex-combatente, em palestras realizadas nas escolas da cidade. Primeiro cidadão feirense a entrar em combate contra os nazifascistas (ao todo, dez se alistaram), durante toda a sua trajetória, Antonio Moreira lutou para manter viva a memória da participação da cidade na Segunda Guerra. Presidente da Associação dos Ex-Combatentes, foi entusiasta da doação do prédio da entidade à Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), transmissão de posse que se concretizou em 2012, bem como da concessão do acervo ao 35º Batalhão de Infantaria, que o mantém salvaguardado e aberto à visitação pública. Após muitos anos, com o auxílio do 35º BI e do Governo Municipal, conseguiu ver concretizado o sonho de equipar a Praça dos Ex-combatentes com peças originais da Segunda Guerra (um canhão e dois flutuadores do Avião Catalina), além de um monumento representando o Exército, a Marinha e a Aeronáutica.

SAUDADE

Como membro fundador do Instituto Histórico e Geográfico de Feira de Santana (IHGFS), inúmeras foram as ações em prol do resgate e da valorização da memória da cidade. O escritor, que foi jornalista profissional, tendo atuado também como rábula (advogado que, não possuindo formação acadêmica em Direito, obtinha autorização

do órgão competente do Poder Judiciário ou da entidade de classe para exercer, em primeira instância, a postulação em juízo), é imortal pela Academia Feirense de Letras (AFL). Antonio do Lajedinho publicou diversas crônicas, nos jornais locais, criticando, incisivamente, a destruição do patrimônio arquitetônico, que ele diz considerar um crime. “Não sei o que leva as pessoas ao descaso pela memória de uma cidade, mesmo que não seja a sua terra natal. A repercussão desse descaso reflete a cultura do seu povo. E Feira de Santana vem se notabilizando pela maneira cruel e perversa com que destrói a memória da sua história”, lastima o autor, para quem “uma terra sem memória é como um corpo sem cabeça”. Casado, há mais de 70 anos, com a professora Célia Lima Ferreira, partilha com ela a mesma saudade dos edifícios imponentes; das vendedoras de cuscuz e beiju de coco; das viagens a Salvador a bordo das marinetes; das brincadeiras da infância, nas ruas feirenses ainda livres da violência. “São muitas as lembranças e grande é a saudade das festas de Santana, com suas lavagens e tocatas; saudade dos festejos juninos, dos velhos carnavais e da primeira micareta; saudade do footing, nas proximidades do ‘Sueto’; dos estudos na Escola Normal Rural e das normalistas; dos passeios de trem, aos domingos, promovidos pelas filarmônicas locais; e saudade da minha infância e mocidade, que ficaram, há muitos e muitos anos, naquele maravilhoso baú de lembranças guardado no saudoso recanto do passado. Ah! Quanta saudade daquela cidadezinha antiga – Paraíso com Nome de Feira!”, recorda.


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Os “Galinhas Verdes”

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O Tranca-cu de Pedro Miséria

Foto: Reprodução Foto: Acervo Fundação Casa de Rui Barbosa/ Reprodução/ www.feirenses.com

Rua Conselheiro Franco, antiga Rua Direita, em 1919

“Galinhas Verdes” foi o apelido dado, pelos adversários políticos, aos adeptos da Ação Integralista Brasileira, criada, na década de 1930, por Plínio Salgado

Antonio Moreira Ferreira Já tive a oportunidade de dizer que escrevo crônicas sobre acontecimentos em Feira, na década de 30, sem qualquer pretensão de fazer História. Não sou estudioso ou pesquisador dos assuntos. Apenas testemunha ocular do que conto e quase sempre estou esquecendo nomes, o que me obriga a recorrer às privilegiadas memórias de amigos como Niá Guimarães, Renato Motta e José Motta. Hoje, estive recordando os idos de 32 a 37, quando Plínio Salgado e outros políticos criaram a Ação Integralista Brasileira, uma versão do Nazismo alemão e do Fascismo italiano, com o apoio do Presidente Vargas, que não era muito chegado aos Comunistas, no outro extremo político. Aqui, em Feira, o Dr. Joventino Pitombo, Sílio Soledade e outras pessoas de destaque assumiram a liderança e começaram a organizar o partido: inscrição dos adeptos, com ficha completa; aquisição de farda (sapato e gravata pretos, calça branca e camisa verde, com uma insígnia – um E ao contrário – no braço, a exemplo dos nazistas). Durante os fins de semana, havia treinamento de “ordem unida”, onde aprendiam a marchar, fazer manobras e, principalmente, a fazer a saudação – braço direito na horizontal, para frente, mão espalmada, voltada para baixo, e a saudação (em voz alta): “ANAUÊ PELO BRASIL!!!” Aos domingos, promoviam festas, que acabavam com desfiles e “anauês”. Nos feriados, era grande a disputa por melhor colocação e destaque no cortejo. Deles, havia os que usavam farda durante todos os dias da semana, pelo simples orgulho de ser Integralista.

Mas os adversários políticos logo lhes deram o famoso apelido de “Galinhas Verdes”. Os mais ignorantes estavam sempre dispostos a responder com impropérios, quando provocados pelo apelido. Em 1937, Getúlio Vargas, que os tinha como aliados, passou-lhes uma “rasteira”. De posse de todos os fichários com nomes e endereços de todos os Integralistas do Brasil, com uma ação de longo alcance e extrema rapidez, em uma só noite, mandou fechar todas as sedes e prender, em suas residências, todos os Integralistas fichados. Aqui, em Feira, muitos carros ocuparam a Cidade, silenciosamente, a partir das 22 horas e, às 4 da manhã, estavam todos presos. À medida que efetuavam as prisões, a Cidade ia acordando e, às 4 horas, as ruas estavam tão movimentadas como se fosse dia de festa, com uma tragicomédia pública: famílias em desespero, muita incerteza do destino dos presos, muitos boatos e o bêbado inveterado Arthur Bostoque, que fora rejeitado pelos Integralistas, gritando, na frente da cadeia: “Venham ver! As galinhas verdes, agora, estão no poleiro! Viraram periquitos verdes e estão na gaiola...” Ao meio dia, meu pai deu-nos as explicações daquele movimento político, que ia da “Intentona Comunista” aos partidos da Alemanha e Itália. A uma pergunta, de um dos filhos, ele respondeu: “Integralismo, Fascismo, Nazismo, Comunismo, tudo que termina em ISMO é mesma porcaria”. A minha irmã, que se preparava para Primeira Comunhão, inocentemente, perguntou: Catecismo também?

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Antonio Moreira Ferreira Alguém já disse que recordar é viver. Como os velhos têm mínima expectativa de vida, o futuro pouco lhes atrai; preferem mesmo é reviver o passado. Daí porque sermos os eternos saudosistas. Jamais vou esquecer, enquanto vivo, daquela Feira de Santana de três ruas centrais: Av. Senhor dos Passos, Rua Marechal Deodoro (ou Rua do Meio, porque ficava entre as duas principais) e Rua Conselheiro Franco, também chamada Rua Direita, porque ficava à direita, considerando-se o norte como entrada da Cidade). Da Rua Felinto Bastos, anteriormente Rua da Aurora, então era conhecida mais como estrada por onde passava o gado, depois de beber no “tanque da nação”. E de apenas dois bairros, que não eram chamados de bairros (o Alto do Cruzeiro e os Olhos D’Água), e sim de subúrbio, o primeiro, e de “ponta de rua”, o segundo. Onde está, hoje, o abrigo Nordestino começava o grande e primeiro Campo do Gado, sem currais, só com uma balança e uma “seringa” para pesar o gado. A balança sempre foi uma atração para quem visitava Feira. Próximo ao abrigo Nordestino estavam as centenárias gameleiras e uma cruz, que marcava o local onde Lucas fora enforcado. No Centro, além das ruas citadas, tinham os becos: do Tanoeiro, da Esteira, de Manoel Mathias, do Jenipapo, do Coronel Pedra, do Mocó, do Recreio, do França, do Amor, do Asilo, do Fiado, dos Velhacos, do Bom e Barato, do Saco do Bode, etc. É importante destacar que a Rua do Meio era dividida em duas partes: a “Rua de Cima” (hoje, Sales Barbosa), onde se localizava o baixo meretrício, e a “Rua de Baixo”, onde só residiam famílias. Havia também alguns locais especiais, como uma linha de dez quartos, construídos nas proximidades do Cemitério Piedade, pelo velho sovina conhecido pela alcunha de Pedro Miséria, com a finalidade de alugar para a classe mais pobre da época, que era constituída de carroceiros e carregadores. Como era uma classe instável e de pouca bagagem, o Pedro resolveu fazer os quartos com uma única porta de frente, para evitar que os inquilinos saíssem sem ser vistos por ele, que morava em frente. Como não havia sanitários, os inquilinos tinham que rodear até chegar aos fundos, para suas necessidades fisiológicas. Os estudantes não perderam a oportunidade e batizaram o local como o “Tranca-cu de Pedro Miséria”.

Fundado em 10.04.1999 www.tribunafeirense.com.br / cultural.tribunafeirense@gmail.com Fundadores: Valdomiro Silva - Batista Cruz - Denivaldo Santos - Gildarte Ramos Editora - ísis Moraes Diretor - César Oliveira Editoração eletrônica - Maria da Prosperidade dos Santos

OS TEXTOS ASSINADOS NESTE JORNAL SÃO DE RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES. Registro de Publicação 2002 a 2006 - 01 a 174 2009 - 175 a 177 2015 - 178


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De pressão em pressão

“Pensamentos I”. Graça Ramos. Acrílico sobre tela, 50 x 70 cm, 2015.

Alana Freitas “Vi ainda outro mal debaixo do sol, que pesa bastante sobre a humanidade” (Eclesiastes 6.1) sensíveis (só os sensíveis porque é uma doença de almas igualmente sensíveis) percebem algo de errado, mas é muito difícil falar sobre o que nem o dono sabe descrever. Afinal não é um braço quebrado, uma queimadura, uma cirurgia, uma topada ou outras dores visíveis. Andrew Solomon, um estudioso do tema, diz que só é possível falar sobre ela através de metáforas e alegorias. Assim, ele a batizou de “O demônio do Meio-dia”. E ninguém gosta de ficar ouvindo gente poliqueixosa. Cansa os outros que têm seus problemas concretos os incomodando. Há momentos que se consegue esconder bem. Ninguém que vê seu sorriso imaginaria o seu tumulto interior e desordem de pensamentos. Olhando para os outros ocupados, firmes e felizes você se sente separado de todos, deslocado do mundo, à deriva, solto no vácuo. Por isso, o esforço grande em fingir por muito tempo que está tudo bem. Inevitavelmente, alguém vai te dizer que sua vida é tão boa, que você não tem motivos para sofrer, vão te dar exemplos de pessoas passando por graves doenças ou necessidades materiais, que é para você se comparar a elas. Cada palavra dessas é uma pedrada, porque você sabe disso tudo. Aliás, tem certeza disso tudo. O check list de suas benesses é diário, você passa e repassa sua vida a limpo incontáveis vezes ao dia, buscando uma razão palpável, identificando alguma

falta que se fosse suprida te salvaria daquela angústia constante, mas você não controla o que sente e é um turbilhão de medos infinitos. Vão te dizer também que só você pode se ajudar, mas tudo parece uma operação de guerra. As Reprodução

Primeiro uns estranhamentos. Uns cansaços súbitos. Uma vontade de chorar que surge sem aparente motivo. Uma porta que bate te assusta como um estrondo de um tiro. Parece que alguma notícia ruim vai chegar a qualquer momento. As cores, os sabores, o entusiasmo pelo que se gosta começam a se alterar. Um gosto metálico na boca. Uma vontade louca de se livrar das obrigações e voltar correndo para a cama. O cobertor parece uma capa protetora contra todos os males. Não se sabe se é melhor amanhecer logo ou que a noite não acabe. Aliás, tudo vira um grande “tanto faz”. Gente demais e conversa demais começa a incomodar, incomodar muito. Aquele cansaço passa a ser um cansaço Íssimo como nos versos de Álvaro de Campos, poeta que devia entender bem disso, pois não foi ele quem disse: “Não me venha com conclusões, a única conclusão é morrer”? Sim, pensa-se nessa saída com frequência. O mundo parece ficar todo acinzentado. Há um frio que vem de dentro inesperadamente, é um inverno contínuo. Sobre os olhos uma espécie de nevoeiro pesado que reforça o desejo de ficar de olhos fechados e braços cruzados. Os braços cruzados te perseguem, um gesto de defesa constante. O brilho do olhar vai sumindo e os olhos parecem que vão perdendo a luz e começam a vaguear, sem foco, distantes, muito distantes. Alguns amigos

ações mais simples se parecem com um dos 12 trabalhos de Hércules. É do rol do indizível, mas é um abstrato que pesa toneladas e há, sim, uma força te empurrando para baixo, até mesmo seus ombros arreiam. Sem mais delongas,

receita azul e mãos dadas com a terapia, há uma dificuldade em aceitar que você precisa delas. Porra, você? Você tão normal, tão equilibrado, tão bem humorado. Esse azul parece ser a única situação em que a conotação de anil não é positiva, mas

se é para deixar o cinza se dissipar, vamos lá. No divã, a cura pela palavra. E na farmácia, com algum constrangimento, se compra uma fração de felicidade química que lentamente vai fazer você topar com você de novo...

*Alana de Oliveira Freitas El Fahl é professora de Literatura Brasileira e Literatura Portuguesa da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs). Graduada em Letras Vernáculas (Uefs), Especialista em Metodologia e Ensino da Língua Portuguesa (Uefs), Mestre em Literatura e Diversidade Cultural (Uefs) e Doutora em Teorias e Críticas da Literatura e da Cultura (Ufba). Coordenadora do grupo de pesquisa Janela de Tomar, que se dedica aos estudos sobre intertextualidade. A crônica aqui reproduzida integra o volume Nós que apagamos a lua, no qual a autora reúne 21 textos que também passeiam, com desenvoltura, pelo cotidiano de Feira de Santana, sua cidade natal. Leitora apaixonada por narrativas diversas, mantém, ainda, o blog Entretelas, em que posta textos analíticos sobre produções audiovisuais brasileiras que dialogam com a Literatura.


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