TRIBUNA FEIRENSE - CULTURAL DEZEMBRO

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ANO V - Nº 203

FEIRA DE SANTANA-BAHIA, DEZEMBRO DE 2019

“A humanidade é feita de poucas pessoas”, diz o poeta Antonio Brasileiro

Foto: Arquivo Pessoal

Ísis Moraes

o alheamento. É quase ínfima a consciência. “A humanidade é feita de “Enfileirados ao longo da avenida,/ porcos para o abatedoupoucas pessoas”. E quaro./ A avenida é a principal./ Carros engarrafam./ Ao volante, de soslaio,/ freia-se um pouco, observa-se./ O grunhir dos se nada nos pode salvar. suínos e os freios dos carros/ compõem uma musiquinha Mas a poesia pode, diz muito chata.// Anúncio de supermercado? perguntam-nos./ Vinicius de Moraes. EsNão, só mil porcos grunhindo./ Vão morrer./ A polícia (ou crever é resistir. os bombeiros?) é avisada,/ mas não chega. Um jornalista/ Não falo de engajasorri e fotografa. Turistas/ julgam ser festa (da padroeira?),/ crianças assustadas, homens sérios./ E soam subitamente mento, essa palavra que, quatro horas./ Hípica é a tarde.// É quando de um furgão volta e meia, entra e sai descem soldados/ a metralhar os bichos/ e os homens e as de moda. Falo de algo crianças e os turistas/ e os jornalistas e os motoristas e as vidraças./ Desta janela o mundo é confortável;/ não ponho que está fora do alcance a cara de fora,/ só relato.” da maioria. Falo do olhar (Antonio Brasileiro) tocado por essa lucidez incomum que espelha, Um mundo cada vez tempo”. Vivemos todos cruamente, o que somos. mais conturbado, hostil, sob a mão brutal e reifi- Da força que não nos atroz fecha o cerco em cadora do mercado, mas entrega, como porcos, torno daquilo que apenas a consciência da maioria à miserável condição de existe e daquilo que ain- está embotada demais mortais. Falo da poesia da é humano. Tem razão para enxergar ou reagir. mesmo. Da poesia inútil. o poeta. “Não podemos É escassa a lucidez. São Da que não fecha pacfugir demais do nosso poucas as armas contra tos, a não ser com a sua

própria essência. Da que, brotando do humano, vê os homens “de banda”. Da que não pretende coisa alguma e que, por isso mesmo, tem o poder de redimir, ainda que não o faça deliberadamente. Falo da poesia dos que não se dobram ao mando. Falo da poesia de Antonio Brasileiro:

vem os astros. //Eles, meus versos, são pura/ floração de irresponsáveis// flores nascidas nos mangues,/ por nascer — mas multicores,// lindas, não importa que os homens// as conheçam ou não conheçam.”

Humana, essencialmente humana. Ríspida, quase sempre. Irônica, talvez em sua totalida“Meus versos são da de. Terna, mais vezes do pura essência/ dos poe- que pode supor o leitor mas inessenciais.// Nada desatento. Esconsa. De dizem de verídico/ não uma beleza invisível a querem nada explicar.// olhos embrutecidos. DisNão narram o clamor dos sonante. Capaz de ferir peitos/ não encaram a dor e afagar, com um golpe do mundo.// Se por vezes só. Inservível às engrenafalam alto/ é por puro gozo, gens que movem o munjúbilo.// humor que brota do. A poesia de Brasileiro de dentro/ como se mo- carrega assombros, ras-

gos existencialistas, todo o sentimento do mundo. E uma composição do humano que, de tão profunda e autêntica, impactou ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade: “Está comigo sua pequena, mas seleta coleção de ‘Estudos’, que tão bem representa sua poesia, definindo uma visão própria de existência, e uma conceituação estética e moral do ser humano. Em vários desses poemas encontrei algo que me causou funda admiração, e que bastaria, a meu ver, para qualificar uma obra poética.”


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Feira de Santana-Bahia, dezembro de 2019 Foto: Fabrício Ramos/ reprodução

Myriam Fraga, outra grande voz lírica, me impede de deixar escapar “a inquietação de estar no mundo” que também permeia a poesia de Antonio Brasileiro: “uma poesia metafísica, no sentido mesmo de perplexidade frente ao mistério da existência, da inutilidade de todas as coisas diante do tempo que passa, inexorável, em seu eterno fluir. A ironia como que a mascarar a angústia de saber que o canto é tão inútil e tão necessário e que, nesta festa de dançarinos entediados, somos grãos de areia na ampulheta, sozinhos, frente à eternidade das coisas tão perenes, quando a vida é apenas um susto”. Herdeira da lírica moderna, incomodamente assentada sobre as bases destroçadas de um mundo caótico e em constante dissolução, a poesia de Brasileiro não é pacífica. Como lembra a pesquisadora Vera Márcia Lopes Santos, na coletânea de ensaios Cantos & recantos da cidade: vozes do lirismo urbano (Via Litterarum, 2009), “não conforta nem conduz seu leitor ao lugar do sonho. Ela engrandece a dimensão dual e conflitante da existência humana, revelada no embate que o homem travou consigo mesmo, ao integrar a materialidade do mundo moderno”. Isto porque “o anseio em adquirir, através da racionalidade, o domínio do indevassável, instaurou no homem, desde a modernidade até os dias atuais, o vazio existencial”. O mundo moderno despedaça a razão de tal modo que não pode

ser outra coisa senão farsa. Não pode alcançar o insondável. “A verdade é uma só: são muitas. E estamos todos certos. E sem rumo”, como alerta o próprio poeta. Não há certezas. E a realidade abre, diante de olhos atônitos, um sem-fim de possibilidades. O signo humano não se dá a conhecer, em sua totalidade. Essa é a trágica condição do homem, para a qual o eu lírico de Antonio Brasileiro não busca dar nem obter respostas. De acordo com Vera Lopes, “dessa dialética obtusa o poeta se isenta, pois ele não passou pelo mundo sem tocá-lo, nem se exultou com a bela dama. A sua dimensão artística, sensitiva, o resgata da grande mediocridade do mundo. Não, ele não aponta caminho algum, apenas diz que sente; porque sente, sabe; e o que sabe não se esgota na palavra, é intraduzível. Há, no poema, o vigor da angústia humana e da desolação do poeta ante a imensidão de um mundo inteiro que jaz dentro de si”. A obscuridade, na poesia moderna, está longe de significar desordem. É, antes, um movimento de resistência. O poeta que recolhe os estilhaços da urbe devassada pela modernidade exibe o caos que o circunda para causar um estranhamento ostensivo em quem o lê. É como se, pelo horror, a poesia pudesse fazer o homem divisar o infortúnio de sua própria existência. Daí, muitas vezes, a linguagem cifrada, a austeridade, o sarcasmo e a sensação de anormalidade também

ganharem corpo na poesia de Antonio Brasileiro: “Contra moinhos de aço na metrópole de aço,/ o cavaleiro em sua carne e osso. Em/ sua pequena e grande glória, o cavaleiro/ e seu cavalo tosco/ E eis que chegam/ helicópteros maiores que uma praça. E chegam/ sons tão altos que nem ouço. E não os relato. O/ cavaleiro agradece-me, reverente. E investe./Pois é dos cavaleiros pegar monstros./ Acompanho-o.// Ao flanco do inimigo,/ com um dístico. À virilha,/ com uma redondilha. No occipital do monstro,/ um cravo branco. E/ no umbigo o/ Canto Terceiro do Inferno/ Dá gosto ver a ação do cavaleiro. Do/ Cavaleiro, agora aos nossos olhos tão bonito. E o/ helicóptero, coleóptero, desmilinguindo-se/ Mas chegam outras pragas mais temíveis:/ agora, o Tanque. Um monstro Adamastor/

de cem mil rodas. E eis que/ o Cavaleiro apenas tange a mosca/ do elmo, baixa a viseira, arrosta./ Acompanho-o.”

Sabe o poeta que ninguém desperta do estado de semicegueira com afagos. Se sua poesia deseja acordar a humanidade? Na entrevista que concedeu à nossa editoria e que apresento a seguir, ele diz que sua poesia “é apenas poesia”. A afirmação ratifica o que já foi dito: a intenção, em poesia, pouco importa. A força liberadora da verdadeira poesia pode fazer isso muito bem, em apenas um insight, sem que o poeta necessite forçar esse desígnio. E é exatamente por saber disso que o seu eu lírico pode predizer: “No fim dos tempos,/

vou estar numa casinha de palha,/ uns livros, um lápis,/ papel almaço, a alma pura/ e uns rabiscos pra ninguém ler,/ só/ me confessar.// Ao deus dentro de mim, primeiramente./ E a quem não interessar possa”.

Natural de Matas do Orobó, sertão da Bahia, Antonio Brasileiro, além de poeta, é ficcionista, ensaísta, editor e artista plástico. Na década de 60, em Salvador, fundou as Edições Cordel, editora responsável pela veiculação de importantes revistas literárias, como Serial e Cordel. Radicado em Feira de Santana desde 1971, é membro fundador do Grupo Hera, uma das mais longevas confrarias literárias do país. Idealizou e dirigiu, juntamente com outros poetas do grupo, a Revista Hera, periódico especializado em poesia, que circulou entre 1972 e 2005, projetando o nome da cidade no cenário literário nacional. Na década de 1980, ajudou a fundar, junto com Juraci Dórea e Ana Rosário, o Projeto Chocalho de Cabra, de artes plásticas, que realizou uma série de intervenções artísticas nas ruas de Feira de Santana e região. Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), atuou como professor de Literatura Brasileira e Teoria da Literatura no Departamento de Letras e Artes (DLA) da Universidade Estadual de Feira de

Santana (Uefs). Foi eleito membro da Academia de Letras da Bahia (ALB), em 2009. Tem mais de 20 livros publicados, dentre poesia, prosa e ensaios. Intitulada O anjo no bar, sua mais recente obra de poesia foi lançada em novembro, pela editora Mondrongo. O livro marca a celebração de seus 50 anos de produção literária. Um dos maiores nomes da poesia brasileira contemporânea, o escritor reúne, neste volume, a essência do que publicou em 20 livros. Trata-se de uma antologia pessoal e ímpar em sua trajetória, que é uma das mais singulares do país. Ao Tribuna Cultural, Antonio Brasileiro revelou que escreve mais de 400 poemas por ano. “Há quarenta anos venho registrando essas cifras”, diz, sem deixar de ressaltar que pouquíssimos deles são aproveitados, o que demonstra o rigor com o qual exerce o seu ofício de poeta. Brasileiro falou, ainda, sobre crítica literária, mercado editorial, poesia e redes sociais, sobre a finalidade da arte, no contexto contemporâneo, dos projetos que desenvolveu, ao longo da vida, e do que o move a escrever. Você é muito conhecido como poeta, mas também como um exímio ficcionista e ensaísta. O que mais gosta de escrever? Durante muito tempo, gostava de escrever prosa e poesia. Ensaiei dezenas de romances, Foto: Reprodução

Antonio Brasileiro, ao centro, com poetas do Grupo Hera, dentre eles Juraci Dórea, Roberval Pereyr e Rubens Pereira


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Feira de Santana-Bahia, dezembro de 2019 “Os ciclistas”. Antonio Brasileiro. Óleo sobre tela

Sua poesia gravita em uma atmosfera, marcadamente, existencialista. Como a define? Você diz certo. Minha obra tem esse quê de existencial. Às vezes dizem que minha poesia é filosófica. Não sei se “filosófica” é a palavra certa. Diria apenas que é “poesia”. Há saídas nesse mundo maquinal e voraz que nos rege? A poesia é uma delas? Creio, sim, que vamos sair dessa. Falo pensando no mundo todo. É o que me move a escrever.

poucos vingaram. Ultimamente, concentro-me muito na poesia. Escrevo mais de 400 poemas por ano. Há quarenta anos venho registrando essas cifras. Para aproveitar cerca de 20 poemas, apenas.

escrevo. Um pouco mais faça uma nova edição, no compreensivo, quem ano seguinte. O mesmo sabe. deve ocorrer com O anjo no bar... O anjo no bar, seu mais recente livro, reNo livro Da Inutilidaúne a essência do que de da Poesia, você levanpublicou em 20 obras. ta um tema visto, muitas Que avaliação faz de sua carreira e do mercado vezes, como polêmico... literários, ao longo de Para que serve mesmo a poesia? todo esse tempo? Da inutilidade da O anjo no bar, uma breve antologia. Ora, poesia faz, realmente, não são tempos para a essa pergunta: Para que poesia, como sabemos. serve, hoje, a poesia? Mas sei compreender Para salvar o mundo, isso. Confio na vinda de respondo. A zorra toda tempos melhores, essas aí parece que anda descoisas são cíclicas. O anjo trambelhada, não é mesno bar terá sua vez. É um mo? Falta poesia. A verbom livro. O que há de dadeira poesia. A maioria mais bem realizado em dos poetas (é meio temetoda minha produção, creio eu. Como o avalio rário afirmar isso) não em minha “carreira”? sabe nem mesmo o que Veja: em 1980, saíram é a poesia. É fácil se pu4 mil exemplares (pela blicar. Há muita pressa.

Segundo Ferreira Gullar, “a poesia nasce do espanto”. O que o exercício da poesia exige de você? A frase de Gullar vem de Platão/Aristóteles: a filosofia nasce do espanto. Mas dá no mesmo. Não sou daqueles que falam em sacrifícios acarretados pelo exercício da poesia. Escrevo poesia desde os 11 anos, e sempre com muito prazer. Sempre foi assim. E creio que todos os verdadeiEditora Civilização Braros poetas amam o que sileira, uma das mais fazem. importantes do país) de Os três movimentos da São 50 anos de pro- sonata. Em 1985, foram dução literária. Sente 2 mil exemplares de A que houve alguma trans- pura mentira. Em 1989, o formação na sua obra nacionalmente premiado poética? Licornes no quintal teve 54 anos desde que mil exemplares. À mepubliquei meu primeiro dida que eu ia ficando livro, Arupemba. Fases melhor como poeta, as variadas, de lá pra cá, edições iam minguando. mas sempre focadas no Verdade que Dedal de viver da gente. Nos últi- areia teve 2 mil exemplamos dez ou 20 anos, te- res. Mas meus livros mais nho percebido um maior recentes saem com 200 “cuidado” com o que exemplares, embora se

nar mais o que publicam. A ânsia de se mostrar é má conselheira. A geração mais nova tem bons poetas. A Bahia, em especial. Muitos deles são meus amigos – e sempre estou divulgando isso. Quando digo que precisam selecionar mais seus poemas, penso naquele desejo de durar, que está lá no fundo de todos nós. O que pensa sobre a crítica literária, na atualidade? Não há mais crítica literária. O mundo virou dinheiro. Não se diz mais: “este é um bom poeta”; diz-se: “é um nome muito conhecido”.

O que pensa sobre as festas literárias, que, nos últimos anos, vêm se espalhando pelo país? Há festas literárias às pencas, como sabemos. É o espetáculo. No frigir dos ovos, alguma coisa deverá ficar. Bem, não sei. Não podemos fugir demais do nosso tempo. Cabe aos poetas, neste espetáculo, não se deixarem levar pelas (tão fáceis) palmas. Hoje, é membro da Academia de Letras da Bahia (ALB). O que isso significa, para você? Sinto-me feliz por fazer parte da Academia

de Letras da Bahia. O Grupo e a Revista Hera projetaram Feira de Santana no cenário nacional. Como é ter iniciado um projeto tão grandioso? O Grupo Hera é um dos capítulos mais bonitos de minha vida. Quando ele “surgiu” (anos 70), eu já vinha, há anos, realizando um trabalho editorial, em Salvador (a criação da editora Cordel, da revista Serial, de poesia) e outras coisas mais. Criar (em Feira, a partir de 1972) a revista Hera e conviver com todo aquele grupo de jovens talentosos, foi só um passo. Além de escritor, é artista plástico. O que é a pintura, para você? Comecei a pintar quase ao mesmo tempo que a escrever. Os dois artistas são um só, em mim. Espero vir a ser lembrado duas vezes! Escolheu Feira de Santana para viver. O que deseja para a cidade? Já sou um cidadão feirense. Aqui, me casei. Aqui, trabalhei e nasceram meus filhos. Ainda quero ver minha cidade bem bonita, e isso não vai demorar.

Nos últimos anos, você tem publicado muito nas redes sociais. Até O homem precisa da que ponto a internet, com toda a carga de imearte, para viver? Mais que nunca, o diatismo que tem, ajuda homem precisa da arte. na difusão da literatura? A internet é mais um Para se achar. Não digo “todos os homens”; a instrumento. Como foi, humanidade é feita de em seu tempo, a imprensa de Gutenberg. poucas pessoas. Sabendo-se “selecionar”, Que visão tem da na medida do possível, os literatura contemporâ- “amigos”, a coisa pode transcorrer melhor. Uso nea? Acompanho menos o Facebook, ainda não o que se faz na prosa, me decepcionei... Na verno Brasil, mas leio quase dade, tenho descoberto, toda a poesia. Repito: os com alegria, muita gente poetas precisam selecio- legal mesmo.

Fundado em 10.04.1999 www.tribunafeirense.com.br / cultural.tribunafeirense@gmail.com Fundadores: Valdomiro Silva - Batista Cruz - Denivaldo Santos - Gildarte Ramos Editora - ísis Moraes Diretor - César Oliveira Editoração eletrônica - Maria da Prosperidade dos Santos

OS TEXTOS ASSINADOS NESTE JORNAL SÃO DE RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES. Registro de Publicação 2002 a 2006 - 01 a 174 2009 - 175 a 177 2015 - 178


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Feira de Santana-Bahia, dezembro de 2019 “Anjos de fogo”. Jorge Galeano Acrílica sobre tela, 40 x 40 cm, 2019.

Um homem deve ser feito de pensamento.

Jorge Galeano. Azulejo, 2019

Jorge Galeano. Azulejo, 2019

Como são feitos os pássaros e as estrelas. /Todos os homens são pactos com as estrelas. Os pássaros são para dar o encantamento. (Antonio Brasileiro)

Jorge Galeano. Azulejo, 2019


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