TRIBUNA CULTURAL

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ANO V - Nº 182

FEIRA DE SANTANA, QUINTA-FEIRA 30 DE NOVEMBRO DE 2017

Cultura em tempos de crise Foto: Alessandra Lori

Ísis Moraes

Não é de hoje que intelectuais, artistas, educadores apontam a desvalorização da cultura como fator preponderante da falência do signo humano e da fratura social. Acossados pelas forças reificadoras do mercado, que nulifica e bane tudo o que não pode ser transformado em bem de consumo ou aliciado para gerar lucro, “escrevemos cada vez mais/ para um mundo cada vez menos”. A acidez dos célebres versos do poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo expõe a ossatura da sociedade de consumo e nos posiciona diante da imagem distorcida que o capital forjou para nos enquadrar: “uns joões batistas a pregar/ para as dobras de suas túnicas/ seu deserto particular”. Ainda que “para esse público de ermos”, repetimos: tudo vai mal se não há cultura. Esse não encolhimento frente à avidez dos poderes que organizam o mundo, imensa arena de desigualdades e discursos gastos e dispersos, nos impele a lutar para que tudo aquilo que nos humaniza e define enquanto grupo, comunidade, nação não seja a primeira “coisa” a padecer em tempos de crise. Tratada como suplementar no conjunto das políticas públicas e reduzida quase sempre à noção de lazer e diversão, a cultura não é entendida como gênero de primeira necessidade. E essa “tragédia de base” costuma se agravar ainda mais quando a falta nos setores erroneamente considerados produtivos ruge. O arrocho financeiro não hesita em matar de inanição o setor criativo. Frequentemente vista como enfeite, penduricalho, acessório – supérflua, portanto –, a cultura é sempre a vítima preferencial do mal crônico que atende pelo nome de crise monetária. Em Feira de Santana não é diferente. Cada dia mais fria, despersonalizada, maquinal, a cidade perdeu para a “ordem” e para o “progresso” os seus mais valiosos símbolos identitários, sem se dar conta de que algumas perdas culturais são irreparáveis. É o caso do patrimônio arquitetônico. As leis do mercado, em nome do

desenvolvimento, da emergência modernista e dos direitos patrimoniais particulares, botaram abaixo paredes repletas de história. As que ainda resistem estão deformadas, a maioria delas com os dias contados, e já não sabem entoar aboios, nem contar como os tropeiros, conduzindo as boiadas, fundaram a cidade. Mal se lembram da feira de gado e da feira livre que enchia as ruas de cores, perfumes, sabores e versos, dando sentido ao termo que nos enraíza a essa cidade que abre as portas do sertão para o resto do mundo. As novas gerações quase não reconhecem os signos que nos faz feirenses. E vêm perdendo para a recessão econômica e para o desinteresse político as últimas representações da nossa identidade. Em 2015, período em que a crise financeira se agrava no país, a Feira de Santana viu sucumbir dois importantes eventos do seu já pouco robusto calendário cultural: a Caminhada do Folclore e o Festival de Sanfoneiros. Realizada anualmente, como parte das atividades comemorativas da semana do Folclore, a Caminhada foi concebida e saiu às ruas pela primeira vez em agosto do ano 2000. O principal objetivo do evento, de acordo com o Centro Universitário de Cultura e Arte (Cuca), entidade gestora, era “valorizar e preservar as di-

versas manifestações da cultura popular nordestina, sertaneja e feirense, aproximando-as da sociedade contemporânea, no intuito de garantir sua continuidade e significado junto à comunidade”. Organizada em forma de desfile, transformava a principal avenida da cidade em palco para grupos de repentistas, aboiadores, capoeiristas, vaqueiros encourados, burrinhas, maculelê, samba de roda, bumba meu boi, nêgo fugido, cavaleiros, reisados e bandinhas típicas. O formato do evento podia não encher os olhos de todos, mas, pelo menos, mantinha as manifestações folclóricas da cidade e da região sob os holofotes. O apagar das luzes da cultura feirense rareou ainda mais o pouco espaço concedido aos músicos populares. O Festival de Sanfoneiros, criado em 2008, tinha por objetivo “manter viva a tradição do sanfoneiro na cultura nordestina”, além de dar oportunidade e visibilidade aos mestres da sanfona e aos novos talentos que despontavam. Realizado regularmente no mês de maio, com entrada franca para o público, o evento se agigantou nas últimas edições, lotando o Auditório Central da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), entidade promotora, que tem capacidade para cerca de 1.000 pessoas. O sucesso de público, que chegou a 1.500 pessoas na 7ª e última edição,

Bernardo Bezerra

exigiu da instituição a fixação de aparatos de projeção do lado de fora, para atender às pessoas que não encontravam lugar dentro da sala de apresentação. Um dos mais bem sucedidos eventos abertos organizados pelo Cuca, o Festival de Sanfoneiros ganhou projeção e interesse nacionais, com a participação de músicos de diferentes estados, que disputavam em duas categorias: sanfonas de até oito baixos e de mais de oito baixos. Nas últimas edições, o valor das premiações foi ampliado, para estimular a inscrição de mais artistas. A essa altura, o Festival já contava com a participação de músicos renomados, como Targino Godim, Celo Costa e Carlos Capinan, no corpo de jurados, e Xangai, que fez o show de encerramento da edição de 2014. Transmitido ao vivo pela

TV Educativa da Bahia (TVE), em 2013 e em 2014, ação resultante da parceria firmada com a TV Olhos D’Água, da Uefs, o evento dava mostras da grande força agregadora que criou em torno da música popular e sinais de que tinha fôlego suficiente para crescer ainda mais. No entanto, em 2015, não foi realizado. Uma nota pública, emitida pela Uefs, comunicava que o motivo era “a situação orçamentária da Instituição”, que enfrentava “dificuldades financeiras” para o exercício daquele ano. No documento, a diretora do Cuca, professora Rosa Eugênia Vilas Boas, informava que “a realização do Festival de Sanfoneiros e da Caminhada do Folclore demandaria um custo estimado de R$ 171 mil”, valor que, segundo ela, “a Administração Central da Uefs não teria como disponibilizar”

naquele momento, “já que teve seu orçamento reduzido”, pelo Governo do Estado. E arrematou sua fala com o compromisso de rever as despesas para a realização dos eventos nos próximos anos. O que se seguiu a isso, no entanto, foi um enorme silêncio. Por telefone, o assessor cultural do Centro Universitário de Cultura e Arte, Dênio José de Cerqueira, informou à nossa reportagem que “a direção do Cuca não fala sobre o assunto” e que “qualquer dado sobre a suspensão dos eventos deve ser buscado na nota emitida em 2015”. Tentamos também, por telefone e por e-mail, agendar uma entrevista com a Administração Central da Uefs, mas não obtivemos resposta. Como formadores de opinião, porta-vozes da comunidade feirense e veículos de salvaguarda e defesa da memória, da identidade e dos valores culturais da cidade e de sua região, o caderno Tribuna Cultural e o Jornal Tribuna Feirense entendem que o silêncio não pode ser aceito como resposta por tanto tempo. Os artistas e o público se ressentem da falta desses eventos, sobretudo porque o espaço destinado à arte e à cultura é escasso na cidade. E os gestores públicos não hesitam em repetir o que a mão do capital determina. São muitas as perguntas sem respostas. E é de conhecimento público que tanto a Caminhada do Folclore quanto o Festival de Sanfoneiros contavam com o apoio da iniciativa privada e da Prefeitura Municipal de Feira de Santana, investimentos que ajudavam a cobrir boa parte dos custos. Levando isso em consideração, artistas, escritores, jornalistas, músicos questionam: até que ponto o corte de eventos culturais dessa envergadura e importância é um problema de orçamento? Não seria fruto da apatia, do desinteresse, do descaso? Ou quem, por princípio, deveria fomentar a cultura também a vê como algo dispensável? E apontam as falhas e os caminhos para a viabilização dos eventos, considerados, por eles e por nós, como imprescindíveis para a manutenção e valorização da memória e da identidade feirenses:


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Feira de Santana-Bahia, quinta-feira, 30 de novembro de 2017 Bernardo Bezerra

“A cultura Feirense sofre com a falta de apoio. A Caminhada do Folclore e o Festival de Sanfoneiros foram extintos não por falta de dinheiro, mas por descompromisso cultural com a nossa gente. A importância desses eventos é identitária, porque eles representam o povo que faz a cultura de Feira acontecer. Tirar isso da nossa gente é não valorizar o esforço e a dedicação de quem tanto espera de seus gestores. Acredito que a Uefs deveria ter uma visão para além da Feira do Livro, porque parece querer que os holofotes brilhem sobre ela apenas por essa iniciativa. Através de sólidas parcerias, poderia estar contribuindo muito mais para o engrandecimento da cultura feirense. Os ministérios da Educação e da Cultura poderiam ser um desses parceiros, mas, para isso, a Universidade precisa dar o passo inicial, até mesmo para desafogar o Governo do Estado, que, segundo se comenta, não está em uma situação tão confortável. A comunidade artística precisa se mobilizar, para que algo seja feito em caráter de urgência.”

(Carlos Silva, poeta, cantador e membro do Conselheiro Estadual de Cultura da Bahia)

“A extinção da Caminhada do Folclore e do Festival de Sanfoneiros gerou um prejuízo incalculável para Feira de Santana. Todos nós perdemos. A cidade, por ter o seu perfil cultural enfraquecido; e a cultura, por seus agentes perderem importantes vias de exibição e perpetuação do imaginário popular. Feira é comércio e é cultura. Ambos estão no DNA da cidade e de seu povo. Fechar qualquer porta para uma dessas vertentes é negar a vocação que essa terra tem. Claro que é preciso ponderar e procurar entender que a situação administrativa da Uefs não é fácil, mas vejo uma nuvem de comodidade pairando sobre o assunto. Já vi situações semelhantes e é sempre muito cômodo cortar a verba dos eventos culturais. Isso figura sempre como solução imediata. E é o que me preocupa no posicionamento da Universidade. Nossa luta é justamente contra isso, porque é necessário mostrar que cultura não é algo secundário. Precisamos tirar a arte da lista dos supérfluos, porque ela é justamente o contrário. Cultura é essencial para a riqueza, para o esclarecimento e para o fortalecimento da história e da identidade de um povo. E esses dois eventos são fontes inesgotáveis de valores e tradições.”

(Kitute Coelho - cordelista e jornalista)

“Vivemos em um estado e em uma região que são referências em cultura. Feira de Santana deveria ser também, mas há, aqui, uma supervalorização de pautas não locais, por parte de quem está à frente da criação dos calendários para os seguimentos culturais. Cortam as manifestações locais usando como desculpa uma falta de recursos interminável, mas quando a proposta vem de fora, não negam a possibilidade de uma parceria. É óbvio que há um processo de enfraquecimento institucional bem arquitetado pelo sistema político, mas a Uefs não deve repassar à comunidade a sua agonia, e sim buscar possibilidades na sua capacidade de diálogo com o comércio local e com os artistas da terra, saindo um pouco da inércia discursiva acadêmica e colocando os pés no solo ao qual pertence. É preciso valer-se de outro capital, muito mais valioso, e que a instituição tem em maior quantidade do que aquele que ela reclama não ser suficiente para realizar seus eventos. Não é o dinheiro que decreta ou não a realização dos eventos, mas a força da gente que se manifesta. O caminho da Uefs talvez seja uma abertura maior para o povo. Precisa afinar seus ideais com as ideias do povo. Revisitar seus projetos de extensão e buscar parcerias mais efetivas. Há vários caminhos para a realização desses e de outros eventos, desde que quebrem paradigmas institucionais criados para justificar seus sins e seus nãos.”

“Ao longo do tempo, a Caminhada do Folclore e o Festival de Sanfoneiros se firmaram como propulsores de uma cultura que tem suas raízes fincadas nas manifestações populares, onde o povo é a principal peça do tabuleiro. Nesse sentido, o sanfoneiro não pode ficar à margem de um processo de maior amplitude, como é o caso do Festival, porque este é o momento de reencontro daquele artista com o seu público. A Caminhada do Folclore, percorrendo as vias da cidade, apresenta as diversas tradições e costumes populares ainda vivos. Mesmo com dificuldades, os grupos levam conteúdos, materiais, coreografias, numa insistência de quem quer (e deve) continuar visível aos olhares citadinos. Entretanto, para que tais empreendimentos sobrevivam, contribuição e apoio não podem faltar. Não somente por parte dos poderes públicos, mas também da iniciativa privada. Não esqueçamos os ‘mecenas! Ah, mas, existem mecenas na Princesa do Sertão? Sabe-se que, há dois anos, os dois eventos não são apresentados aos feirenses. A justificativa dos responsáveis por eles é a falta de recursos oficiais. Mas quanto é necessário para que não sumam do mapa? Isso, claro, depende de estudos, de previsão, de planilhas bem detalhadas e que devem ser feitas previamente, num espaço de tempo que não seja em cima da hora, como, ao que parece, vem ocorrendo. Faltando um mês ou dois, comunicar que não vai acontecer isso ou aquilo, devido ao parco recurso, não é justo. Nada se pode fazer diante de comunicações de última hora. Mais: se o recurso obtido, por exemplo, foi R$ 100 mil e os custos são mais altos, por que recusá-lo? Aceitando-o, parte-se para conseguir o que falta, não é? E, para isso, é preciso sair em busca de outros organismos, inclusive privados. Qual a razão do afastamento da Uefs dos órgãos de fora da área pública? Acredito que a Câmara de Vereadores, a Prefeitura Municipal, o Sesi, o Sesc, o CIFS, o Senai e tantas outras instituições públicas e privadas não se furtariam a atender um pedido da Universidade. Outra ação necessária seria visitar os locais onde se estabelecem os participantes daqueles eventos. Manter contato com os que podem contribuir para não deixar morrer as significativas festas é algo que já deveria ter acontecido. Organizadores e gestores devem estar abertos às críticas em torno das questões aqui explicitadas. Não se trata de atitudes pessoais contra fulano ou sicrano, e sim de uma posição consciente diante dos problemas da Uefs. Entende-se que não é somente de ordem orçamentária o sofrimento da Academia. Então, está na hora de se refletir e de se discutir, seriamente, a gestão “Mais Uefs”, não somente no campus, mas, além de seus muros. A Uefs sempre foi uma REFERÊNCIA!”

(Raymundo Luiz Lopes - professor e poeta) Reginaldo Pereira

(Romildo Alves - cordelista e estudante de Letras)

“A identidade cultural de um povo não deve se perder no tempo, pois um povo é marcado pelo que faz, pelo que cultiva e pelos valores que atribui às suas raízes. Ao Festival de Sanfoneiros, eu dou mais importância, já que não é só um evento local, e sim um evento que se ramifica por todo o Território de influência da cidade. Um encontro de sanfoneiros não é apenas um encontro de tocadores de um instrumento, é um encontro de gerações e fomenta também a formação de plateia para a música nordestina. O Festival se calendarizou não por ser apenas uma festa, mas também por ser um estímulo ao apreço pelo forró (incluindo aí o baião, o xote, o xaxado e o arrasta pé) e à formação de novos nomes da sanfona. Quanto à Caminha do Folclore, sou totalmente avesso à nomenclatura, mas louvo o cortejo. Contudo, a realização dele depende mais da organização das comunidades e dos agrupamentos do que da instituição. A título de exemplo, temos os blocos de rua, que se insurgiram e decidiram desfilar suas “caras”, seus valores e raízes. O Bando Anunciador de Sant’Ana e os Filhos de Gandhi nasceram de revoluções culturais e, com o passar dos anos, foram apropriados por instituições. Assim, creio que está na hora de o povo tomar as ruas e fazer valer suas identidades. A cidade é carente de eventos culturais e de formação por uma questão de política pública e gestão. As instituições educacionais passam por situação de contingenciamento de recursos. As verbas de custeio estão baixas e a previsão é de que encolham ainda mais nos próximos anos. A indústria de massa, de desqualificação e de aberrações obedece à ordem do capital, que não tem interesse na formação de bons ouvintes e apreciadores de cultura, e sim de consumidores de supérfluos. A alternativa mais viável para combater isso é o fortalecimento de Conselhos Representativos. É preciso exigir (e votar, principalmente) propostas governamentais que primem pela ampliação de recursos voltados à produção artística. Esse entendimento de valorização da cultura passa por uma noção de pertencimento social. Apenas assim as desigualdades e amarras podem ser quebradas. Acesso a conhecimento e entretenimento são formas de inclusão. Se pudesse dar um conselho à Uefs, seria o de expor as condições de promoção de eventos naqueles formatos, apresentar os cortes de verbas e desqualificar totalmente as posturas políticas que se opõem à promoção e produção artísticas. A comunidade precisa saber que o desmantelo proposital da educação começa pela cultura.”

(Gabriel Ferreira - artista plástico, músico e produtor cultural)

“O Festival de Sanfoneiros foi uma iniciativa brilhante e vibrante da Uefs! Acompanhei, incentivei e colaborei desde o primeiro, mas a Uefs, como quase todas as universidades, sofre de 'paralisia criativa mundana'. É, digamos, teológica, eclesiástica, voltada para o 'espírito acadêmico', internalizada. E as alternativas vislumbradas não passam dos limites dos campus. A Uefs não soltou o Festival, ficou agarrada a ele como se fosse um bem inalienável, burocratizado nas elucubrações acadêmicas, quando deveria tê-lo jogado no (detesto essa palavra, mas não tenho outra no momento) mercado! Então, orçamentariamente, ficou inviável. Não teve dinheiro para bancar e nem criatividade para buscar os recursos. Foi vergonhoso! Principalmente porque, enquanto isso, em Juazeiro, um festival inspirado no de Feira alçou voos e se tornou internacional. Nossa Universidade continua com o mesmo ranço provinciano da formação, dos 'doze intelectuais fundadores'... Aquele orgulho de província que Eça de Queiroz mostrou, magistralmente, em obras literárias inesquecíveis. A Caminhada do Folclore nasceu engessada, tanto pelo conceito quanto pelo formato 'cívico'. Era outro 7 de Setembro. Todos os anos a mesmíssima coisa, um ‘xaropão’. Nem podia (nem devia) continuar. Vibrei com o seu fim. Morria de vergonha daquele povo fazendo de conta que mantém tradições populares. Isso sem contar o corre-corre ridículo, pela avenida, do corpo docente e administrativo da Uefs. Não perdemos nada com o seu fim.”

Fundado em 10.04.1999 www.tribunafeirense.com.br / cultural.tribunafeirense@gmail.com Fundadores: Valdomiro Silva - Batista Cruz - Denivaldo Santos - Gildarte Ramos Editora - ísis Moraes Diretor - César Oliveira Editoração eletrônica - Maria da Prosperidade dos Santos

(Jânio Rego - jornalista)

OS TEXTOS ASSINADOS NESTE JORNAL SÃO DE RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES. Registro de Publicação 2002 a 2006 - 01 a 174 2009 - 175 a 177 2015 - 178


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Feira de Santana-Bahia, quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Anaí

Despedaço

Clóvis Ramaiana

Emmanuel Mirdad

“Elcy e sua boneca”. Graça Ramos. Óleo sobre tela, 1982 / Foto: Ísis Moraes

Tarde fria. Gosto dela. Tardes assim quase sempre me levam para passear pelos ontens e sentir a alegria das saudades na pele. Gosto de ter saudades. Sinto-me feliz com elas. Tê-las significa que vivi, malunguei, amei e, como não mudei, vivo, malungo, amo. O choro saudoso é confissão de vida e amor, impossível não o fazer também de maneira feliz. Hoje, tive uma saudade profunda. Na verdade, uma saudade que me acompanha desde os quatro anos. Na transição de 1968 para 1969, mainha ficou grávida. Lembro-me que Mãe Cirila, do alto de sua autoridade de parteira, asseverou que se tratava de uma menina. O parecer daquela velha bondosa era mais seguro que uma ultrassonografia: eu ia ter uma irmãzinha, a primeira. Escolhi o nome: Anaí. Recordo de mainha na varanda da Floresta, crochetando, tricotando, costurando, fazendo os sapatinhos. Entre uma brincadeira e outra, me quedava a espiar aquela mulher linda tecendo a chegada da filha, a minha irmãzinha. Tentei ajudar algumas vezes, abusava da paciência de mainha e de Cacá para fazer alguma coisa para Anaí. Vô, sempre ele, me salvou. Com a ajuda da sua habilidade, fiz uma bonequinha de pano. Era verde.

1969 foi chovido, teve roça. Eu gostava de acompanhar os mais velhos na labuta, de tapar as covas de milho e feijão com os pés enlameados. Mas bastava uma folguinha e eu corria, queria ver mainha e o barrigão; mainha e minha irmãzinha. Na boca da noite, a sururina cantando. E eu ficava no colo de Cacá, cuidado para nada acontecer a minha irmãzinha. Chegou o dia. Era maio. Vô me levou para o Jaguari. Fui na garupa. Maio friento, meu Nininho estava de capa Coqueiro e eu adorava a segurança do cheiro que saía daquela capa. Fiz uma boa viagem. No Guarani, dona Nê (como era bonita!) perguntou por “Vanilda”. Falei da gravidez e de minha irmãzinha que estava chegando. Por lá, as brincadeiras com João e o olho seco na estrada, queria saber de notícias da Floresta. Nada. Vô ia para Tanquinho. Chorei para ir com ele, não teve razão que me demovesse. Fomos. Fui montado no jegue Tarzan. Chegamos na Floresta pelas Ave Marias. Deixei o jegue desamarrado, subi as escadas da Floresta aos pulos. Na mesona da sala de jantar, à luz do Aladim, mainha fazia palavras cruzadas. “Cadê minha irmãzinha?” – “Ela nasceu morta filho”. No meu berço, que seria dela,

só a boneca verde lembrava Anaí. Guardei a boneca por tempos, também por tempos conversei com Anaí, brinquei de capitão, sonhei sonhos com ela. Pela minha vida, ela foi a primeira irmã. Uma saudade feliz daqueles meses de mainha barriguda e eu cheio de sonhos com a chegada da mana. Ela foi a minha primeira perda, mas foi perda por ter se constituído no amor e no sonhar. Amo-a por todos aqueles dias de 1968/69 em que pude deixar livre a imaginação e experimentar o sonho bom de fraternidades.

*Clóvis Ramaiana Moraes de Oliveira é graduado em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs). Doutor em História pela Universidade de Brasília (UnB). Defendida em 2011, sua tese, intitulada Canções da cidade amanhecente: urbanização, memória e silenciamentos, ganhou o prêmio de melhor do ano, em História da Bahia, no concurso promovido pela Fundação Pedro Calmon, em 2012. É professor do Programa de Pós-Graduação em História, da Uefs. Tem diversos ensaios e artigos publicados. Recentemente, lançou o livro de crônicas Cestas de Retalhos, pela Via Litterarum Editora.

“Auto-retratos”. Leonel Mattos/ Reprodução

Equilíbrio. O horizonte e o final da tarde, essa composição harmônica do poente, são lastreados de cores em dissolução. Um preparo inebriante, conforto gratuito ao descanso dos fardos; basta parar e assistir. Caso alguém aguce a vista para além do olhar, sentirá a interferência arruinadora das inutilidades. O que você venha a interpretar da visão, nesse caso, será falho. Simples: é apenas o ciclo solar. O ópio gerado pelas informações visuais, captadas pelo nervo óptico, é uma bobagem de símbolos inventados que não deveriam ser traduzidos e interpretados — dispensável projeção dos seres que querem escapar de algo, mesmo que a eficácia da fuga, há tempos, comprovou-se nula, pois não há alternativa, só a existência a cravar a mediocridade do que há de ser feito, comprimido pela gravidade, necessitado de oxigênio e vitaminas. Um homem chegou do interior. Instalado na cidade grande, com mar, locomovia-se de ônibus por avenidas engarrafadas. Logo na primeira semana, ficou a rondar uma faculdade particular, fábrica de diploma, a espreitar um estudante de Administração, herdeiro de uma tradicional loja que vende tintas. Todo dia, ele acordava cedo, a olhar para um vale de concreto e favela, e dormia quase nu, a pescar os pingos de luz povoadores de gente, no mosaico noturno. Um dia, o acaso provocou o turbilhão. Com fome e suado, vindo do serviço, ele comprou um acarajé e um refrigerante, a pausa que o fez perder o ônibus do hábito; o jeito foi seguir em outro, de outra empresa, cor e rota. Em anos, foi a primeira vez que o homem descumpriu a sua rotina previamente estabelecida. Quebrou o rito e o maldito do

ônibus perdeu o controle numa curva da orla, e bateu no poste. Milagre não ter capotado. Dos vinte passageiros, nenhum se feriu com gravidade, só arranhões e pequenos hematomas. A orelha do motorista que ficou inchada de esporros. A paciência profissional do homem o fez sair do acidente sem emitir um gemido sequer. Um pouco tonto, por ter batido a cabeça, afastou-se do burburinho, quis evitar curiosos e as autoridades, e foi andando pela calçada, paralela ao mar, aborrecido pelo transtorno que não previra. Entretanto, o acaso pôs para funcionar a sua armadilha, o seu turbilhão: a beleza. O sol, no processo de se despedaçar ao final da tarde, aos poucos forjara uma miríade de cores, que deixou o homem fragmentado pela revelação: nunca avistara o mar de tão perto, quiçá o estonteante pôr do sol salino, no horizonte da baía. Abandonou-se na apreciação do espetáculo, na corrosão da carapaça imbecil de operário do hábito. Sentou-se na balaustrada e ficou até anoitecer o impacto, a permitir a contemplação de tal deleite desconhecido. Passou a frequentar o pôr do sol. Deveria ter deixado a cidade grande, havia novas requisições no interior, mas ficou a descansar os seus fardos por uns dias a mais. Houve uma partida de futebol na praia, uma pelada de meio de semana, final da tarde. Normal, numa capital afetada pelo mar. Porém, o anormal surgiu: alheio aos palavrões, caneladas e areia, um homem de terno caminhava, desolado, atravessando o jogo, pelo meio de todos. Palavrões, ameaças e quase violência; e ele continuou o seu percurso esquizofrênico, degradado ambulante. Passos depois, o homem de terno arremessou a sua pasta para o mar, e desabou na areia, de lado, derrotado. Basta distorcer um pouco o formato para que os grupos de

Sarah Fernandes

*Baiano de Salvador (1980), Emmanuel Mirdad é escritor, compositor e produtor, formado em jornalismo. Autor, dentre outros, do livro de contos Olhos abertos no escuro (Via Litterarum, 2016), de onde o conto Despedaço foi extraído. Blog: www.elmirdad.blogspot.com

curiosos se formem, aglomerados num bloco compacto, tribunal e plateia. Na balaustrada desse final de tarde incomum, com risadas contidas e palavras soltas, chegaram a um consenso: bêbado, demitido e traído. O martelo confortável do coletivo — ou a ausência da responsabilidade do indivíduo — fora batido, para celebrar a catástrofe alheia. O deboche malicioso e a saída impune e cúmplice dos curiosos alimentariam o escárnio, a render e ilustrar o movimento das conversas inúteis pelo resto do dia. O homem do interior nada cogitou. Estava sentado, apenas a descansar o olho na beleza em que passou a acreditar. E o choque do inusitado não lhe causou repulsa; era só uma atrapalhação do alheio. Desceu à areia, com uma expressão de Tommy Lee Jones. Há algo que o aproximava do caído. Sem palavras delicadas, alertas, anúncios, o homem do interior se senta ao lado do homem de terno, largado na areia. A poucos metros do seu calcanhar, a cabeça do caído balbucia: “Eu matei um homem”. — Eu também. — respondeu.


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Feira de Santana-Bahia, quinta-feira, 30 de novembro de 2017 “Cavaleiro vermelho”. Jorge Galeano. Acrílico sobre tela. 40 x 40 cm, 2016

Potro Quando o fogo atávico

Apeguei-me a esta seita

implodir tuas saias

Remota

de vento,

em que o próprio

e tua carne

coração é o profeta

adubar minha lança

Agora serei incontido

de pedra,

como a fome dos potros,

será doce morrer,

e meu desejo é um lobo

será como arder

em teu rastro.

entre flores de sândalo (Salgado Maranhão)

* José Salgado Maranhão é natural de Caxias (MA). Radicado no Rio de Janeiro desde 1972, é poeta, compositor e jornalista. Várias de suas composições foram imortalizadas nas vozes de Amelinha, Ney Matogrosso, Zizi Possi, Elba Ramalho, Zé Renato, Ivan Lins, Rita Ribeiro, Vital Farias, Paulinho da Viola, dentre outros. Tem um álbum, Amorágio (SESCRIO.SOM, 2005), e diversos livros publicados, alguns deles laureados com as mais importantes premiações literárias nacionais, a exemplo de Aboio (1984); Punhos da serpente (1989); Palávora (1995); O beijo da fera (1996; Prêmio Ribeiro Couto 1998); Mural de Ventos (1998; Prêmio Jabuti 1999); Sol sanguíneo (2002); A pelagem da tigra (2009); A cor da palavra (2009; Prêmio Machado de Assis 2011); O mapa da tribo (2013) e Ópera de nãos (2015; Prêmio Jabuti 2016). Traduzido para o Inglês, Espanhol, Francês, Italiano, Alemão, Holandês e Sueco, em breve, uma de suas obras também será traduzida para o Japonês. Ministra palestras no Brasil e no exterior. Já esteve, a convite, em quase 80 universidades norte-americanas, como Harvard e Yale, onde sua poesia virou objeto de estudo. Recentemente, recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Piauí (UFPI).


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