TRIBUNA CULTURAL

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ANO V - Nº 184

FEIRA DE SANTANA-BAHIA, QUARTA-FEIRA, 31 DE JANEIRO DE 2018

As paisagens interiores de Jorge Galeano

“Imaculado”. Jorge Galeano. Acrílico sobre tela

Ísis Moraes

Radicado em Feira de Santana há 32 anos, o artista plástico argentino Jorge Galeano construiu aqui, nas cercanias do bairro Pampalona, o seu pequeno refúgio tropical, fonte inesgotável de inspiração para a composição de telas que chamam a atenção pela exuberância. A partir de seu jardim, o artista criou um mundo pictórico povoado por figuras míticas e paisagens envolventes. Inicialmente retratada com cores quentes e vibrantes, a natureza surge, na obra de Galeano, não para representar o que era, mas o que deveria ser o “subúrbio perdido debaixo da linha do Equador” que escolheu para viver e criar seu universo. Com o passar do tempo, a magia cromática e imagética que aparece, com total vigor, na Suíte Pampalona vai encolhendo gradativamente, refugiando-se em pequenos nichos tropicais, acuada pelas cores sóbrias e pesadas do progresso. Na série intitulada Trópico Utópico, o artista cria quadros que são como ilhas, para denunciar, de forma mais incisiva, a progressiva e sistemática destruição da natureza. Sem perder a vivacidade, a obra de Galeano passa, pouco a pouco, às cores frias, azuis e lilases grávidos de mistério e fantasia, até perderem completamente a cor, em 2010, na série de trabalhos que produziu em preto e branco. A natureza, como em todas as outras fases, surge imponente. Por isso a paleta escolhida pelo artista parece, apenas, querer lembrar que, ainda que o mundo acinzente ao nosso redor, a utopia sempre resiste. Pintor, ceramista, escultor, Galeano diz estar sempre tentando inovar, para não cair nas armadilhas do mercado, que tendem a acomodar o artista no modelo que mais lhe é rentável. Por isso, não se limita apenas à pintura sobre tela, suporte convencional, realizada normalmente em acrílico. O trabalho como artesão, quando ainda estudante de Belas Artes, na Argentina, possibilitou ao artista desenvolver diversas técnicas e manusear vários tipos de materiais, o que acabou por diferenciar e singularizar a sua produção artística. Galeano vem trabalhando, há algum tempo, com terracota. Em 2009, criou a série de esculturas Pássaros furiosos, em que, uma vez mais, denuncia a destruição da flora e da fauna sertanejas. O artista também já confeccionou mosaicos suntuosos, como o que reveste a fachada e parte do interior da Capela de Nossa Senhora do Carmo, localizada no bairro Serraria Brasil, em Feira de Santana. E, nos últimos anos, tem se dedicado, especialmente, à confecção de azulejos para aplicação em projetos arquitetônicos. Inspirado pela tradicional azulejaria portuguesa, o artista vem produzindo peças primorosas, pintadas, artesanalmente, com aquarela, e totalmente em azul, como os originais. Em entrevista ao caderno Tribuna Cultural, Jorge Galeano rememora sua trajetória artística; revela como a construção de seu jardim deu origem à sua obra; fala sobre a nova fase de sua pintura, sobre a diversidade de técnicas que desenvolve e sobre a parceria com arquitetos e decoradores. Galeano aborda ainda questões caras ao seu estilo de vida e ao seu cotidiano, como a preservação ambiental, a sustentabilidade, a mobilidade urbana e a destruição do patrimônio arquitetônico. Diz sentir-se um artista absolutamente feirense, já que começou a pintar quando se mudou para a cidade, acompanhado de sua única filha, a produtora cultural Aloma Galeano; e faz um balanço de sua carreira, laureada por quatro exposições internacionais. Nessa conversa repleta de passagens bem humoradas, o artista convida o leitor a vislumbrar as luminosas paisagens de seu mundo interior, plasmadas no charmoso espaço de seu ateliê, localizado em um dos porões do Centro Universitário de Cultura e Arte (Cuca).

Como começou nas artes plásticas? Com 17 ou 18 anos, época do movimento hippie, eu tinha uma moto e viajava pela Argentina vendendo artesanato. Esse foi meu primeiro contato com a arte. Eu sou um artista que, por ter sido artesão e por ter trabalhado com vários materiais, como madeira, couro e metais, aprendeu a dominar as próprias mãos. Se eu tiver que utilizar o ferro para realizar um trabalho, não preciso mandar fazer, porque sei como se faz. Sei trabalhar com solda, assim como sei esculpir uma madeira. Então, isso deu uma versatilidade maior à minha obra. Atualmente, estou trabalhando com azulejaria e sei como funciona um forno, sei qual é a temperatura, o material que preciso usar, porque já trabalhei com o esmalte de alta temperatura quando ainda era artesão. Isso é uma grande vantagem, porque é difícil

“Era doloroso não ser incluído no rol dos pintores feirenses. Comecei a pintar aqui. Eu me sinto feirense!” (Jorge Galeano) encontrar um artista que domine os materiais, que saiba qual é a ferramenta própria para moldar cada um deles. Muitas vezes, os artistas apenas fazem os projetos e mandam executar tudo. De que forma o conhecimento adquirido enquanto artesão contribuiu com a sua formação acadêmica em Belas Artes? Entrei na Escola de Belas Artes com 19 anos e lá descobri realmente o meu mundo, porque encontrei uma centena de pessoas

parecidas comigo. Foi um período muito bom e bastante produtivo. Como era artesão, os professores me requisitavam como ajudante. Foi aí que aprendi a esculpir e a fazer afrescos. E, a partir disso, comecei a trabalhar restaurando pinturas em igrejas, para pagar meus estudos. Ao longo do tempo, fui adquirindo conhecimento prático em todas as técnicas, sobretudo na aquarela, mais utilizada por mim atualmente. Quando me formei, em 1978, a Argentina estava sob o domínio militar. Foi a

época mais dura vivenciada pelos argentinos (entre 1976 e 1983 os militares assassinaram cerca de 30 mil civis, entre eles, crianças e idosos, segundo estimativas de ONGs argentinas e organismos internacionais de defesa dos Direitos Humanos). Muita gente acabou saindo do país. Eu não saí por causa da Ditadura, mas o clima estava muito pesado, então decidi viajar pelo mundo. Muitos amigos meus foram para a Europa. Como também sou músico, optei por sair com um quinteto de música


2 latino-americana. Viajamos pela costa do Brasil, passamos pela Amazônia e entramos no Peru, onde o pessoal começou a se dispersar. Uns foram para o México, outros para a Europa e eu voltei, sozinho, para o Brasil, mais especificamente para a Bahia, porque tinha gostado muito daqui. Em Salvador, trabalhava mais com música, mas fiz também a minha primeira exposição, junto com a artista plástica Lígia Aguiar. Ainda não me considerava um pintor. Não tinha uma linguagem própria. Minha pintura tinha muitas influências... Apenas em Feira de Santana, aonde vim morar com minha filha, então com um ano, é que considero que realmente comecei a pintar. Por isso digo que sou um pintor feirense. Era doloroso não ser incluído no rol dos pintores feirenses. Eu ficava grilado com isso. Faziam anuários com artistas locais e não me colocavam. Eu sou feirense! Eu me sinto feirense mesmo. Comecei a pintar aqui, como Carybé começou a pintar em Salvador. E ninguém diria que Carybé é argentino. Carybé é um artista baiano. Apesar de a arte ser completamente cosmopolita, internacional e globalizada, faço questão de dizer que comecei a pintar em Feira de Santana. Hoje, acho que as pessoas já me reconhecem como artista feirense. Além de realizar pintura tradicional, você trabalha com muitos outros suportes. É um desafio? Gosto de diversificar minha produção artística. Por isso, me autodesafio constantemente. Atualmente, vejo que a maioria dos artistas não sabe desenhar. Antigamente, saber desenhar era obrigatório. E, além disso, era preciso entender de carpintaria, de construção, saber fazer molde, dominar técnicas de gravura, aprender sobre cópia, gráfica, composição, letras... Hoje, não é preciso nada disso. Está tudo no computador. Olhando por esse lado, tudo é muito mais fácil. Simplificou bastante. Mas saber lidar com diversas técnicas e materiais é, justamente, o que me instiga a criar coisas novas. E isso diferencia o meu trabalho. Então, além de realizar pintura sobre tela e sobre azulejo, que é minha outra grande paixão, gosto muito

Feira de Santana-Bahia, quarta-feira, 31 de janeiro de 2018 Série “Pássaros furiosos”. Jorge Galeano. Terracota

Jorge Galeano. Aquarela sobre azulejos

Jorge Galeano. Aquarela sobre azulejos

de trabalhar com terracota. Tanto que estou querendo fazer minha próxima exposição mesclando pintura e escultura. A terracota me fascina muito, embora tenha feito poucas obras com esse material. É algo mais recente . Produzi minhas primeiras peças em 2009, como forma de manter em funcionamento um forno para cerâmica que há no Centro Universitário de Cultura e Arte, onde fica o meu ateliê. Esse forno era de um curso de cerâmica que deixou de ser ofertado, por isso não era mais usado. É um equipamento que precisa ser aceso, pelo menos, uma vez por mês, porque acaba estragando, se ficar muito tempo parado. Então resolvi utilizá-lo. Comecei a retirar alguns elementos da minha obra pictórica e transformá-los em esculturas. Assim nasceu o conjunto de peças intitulado Pássaros furiosos. São pássaros com expressões de preocupação, histeria e fúria, porque são bichos que já não têm mais árvores, que já não têm onde morar. É uma série muito legal, uma espécie de Movimento dos Pássaros Sem-teto (risos). São peças com uma clara influência da arte andina. Essa incursão foi proposital? Não. Isso foi bem inconsciente. Quando se começa a produzir um trabalho, não se pensa na origem, mas, de alguma

forma, ela vem à tona. São ícones, arquétipos, raízes culturais, com os quais voltei a me reencontrar em 2014, quando realizei uma exposição em Cuenca, no Equador. Jung, em O homem e seus símbolos, trabalha a questão dos arquétipos. É uma leitura interessante para se perceber como essas figuras surgem quando se faz arte. Ele acreditava que arquétipos de míticos personagens universais residiam no interior do inconsciente coletivo das pessoas. E isso não pode fluir de outra forma senão naturalmente. Às vezes, faço o exercício de não pensar, porque, na arte, o mais difícil é não pensar. Muitas pessoas me perguntam o que pensei ao fazer esse ou aquele quadro. O verdadeiro artista não pensa o que está pintando, executando, produzindo. Chegar a esse estágio de não pensamento é o maior desafio de um artista. Se você vir Paco de Lucía ou João Gilberto tocando, vai perceber que não é possível diferenciar o que é instrumento e o que é pessoa. Eles não pensam nas notas que estão tocando. Eles simplesmente são a música. Nas artes plásticas, também é assim. A arte é isso. O artista precisa alcançar o estágio de não pensar em nada para começar a fazer arte, caso contrário ele faz artesanato. Tive alunos que diziam: “professor, aqui vou colocar azul; aqui vou colocar uma pessoa; aqui

vou colocar uma árvore”. Isso não é arte. Pode ser um cartaz, uma peça de decoração, mas não é arte. Muito menos arquétipo. Arquétipo nasce do não pensar e de você voltar a um período muito remoto, ancestral até. A magia se mistura muito com a arte, com a alquimia. Pintura tem que ser isso. É algo mais profundo que simplesmente retratar. É difícil ensinar isso. Na verdade, não se pode ensinar isso. É possível ensinar a misturar cores, técnicas diversas, mas o sentir não se ensina. Por isso, parei de lecionar. E porque foram mais de 20 anos em sala de aula. Acho que cansei um pouco. A natureza é uma temática constante na sua obra. Como ela surgiu no seu trabalho artístico? Sim, sempre. Tudo começou com o meu jardim. Quando cheguei à Pampalona, bairro onde moro, não havia nada. Era uma terra completamente pelada. Tive, então, a ideia de cavar um poço artesiano e replantar as espécies da mata nativa, para proteger minha casa dos brutais raios do sol tropical. Comecei a criar o meu mundo. Quando as árvores e plantas cresceram, sariguês, micos, pássaros, aranhas e outros animais típicos da fauna autóctone do sertão voltaram, naturalmente, ao lugar de origem. Hoje, meu jardim é um espaço vivo. É a minha utopia, minha

trincheira. E é nele que me inspiro para criar meus quadros. Foi assim que nasceu a série Suíte Pampalona, em que a natureza surge mais vívida e exuberante, para representar não o que era, mas o que deveria ser esse bairro suburbano, perdido debaixo da linha do Equador, que escolhi para viver e construir o meu refúgio tropical. É uma homenagem à Pampalona, que, como todo bairro periférico das grandes cidades, enfrenta graves problemas sociais. Por isso mesmo, não criei esse jardim só para mim. Eu o criei para os idosos sentarem, para os jovens namorarem, para as crianças brincarem. Em frente à minha casa, fiz também uma pequena praça. Pensei que isso inspiraria os vizinhos a copiarem a ideia, a plantarem mais árvores, mas ninguém fez isso. Ao contrário, cortaram as outras árvores que existiam nas proximidades, de modo que o meu jardim ficou como uma espécie de ilha. Impactado por esse constante e brutal desmatamento, criei, posteriormente, a série Trópico Utópico, na qual denuncio, de forma mais incisiva, a progressiva e sistemática destruição da natureza. Esses quadros são como pequenos nichos tropicais, onde a flora, a fauna e o próprio homem aparecem encolhidos, acuados, cercados pela aridez citadina.

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Em sua opinião, Feira de Santana ainda trabalha mal a questão ambiental? Não trabalha. Sinceramente? Não trabalha. Uma vez, não lembro quando, vi um secretário de meio ambiente afirmar que “quando alguém planta uma árvore, está plantando um problema”. Se um gestor responsável pelo meio ambiente diz isso, o que se pode esperar da população? Se há apenas uma árvore, todas as pessoas ficam embaixo, como se ela fosse um guarda-sol. Ninguém pensa em plantar outras. Aqui, as árvores são podadas no verão. Se as árvores nos protegem do sol, como se pode podá-las no verão? Essa mentalidade é absurda. Não consigo entender isso. É inconcebível a relação que população feirense tem com a natureza. Na cultura andina, as pessoas têm um respeito muito grande pelo solo, pela Pachamama, como os povos daquela região chamam a mãe terra. São incapazes de cortar uma árvore, a não ser que seja estritamente necessário. E essa conscientização é uma luta constante para mim, de modo que, no futuro, gostaria de transformar a minha casa em uma espécie de fundação para as crianças e os adolescentes que vivem nas redondezas e nos bairros mais afastados da cidade. Com isso, eles poderiam ter acesso a uma biblioteca, a aulas de pintura e a outras atividades artísticas. Não sei se daria certo, outras fundações instaladas aqui não deram, infelizmente, mas é um desejo que tenho. Não apenas a sua obra, mas também seu estilo de vida demonstra uma grande preocupação com o meio ambiente e com o ordenamento do espaço urbano. A adoção de práticas sustentáveis e de outros modais de transporte é o caminho para tornar Feira de Santana mais acessível e humanizada? Seria perfeito se todo mundo andasse de bicicleta, mas as pessoas daqui ainda acham que é perigoso. Eu uso a minha bicicleta como meio de transporte há anos e jamais tive problemas. Nos países de primeiro mundo, como Holanda, Bélgica e Dinamarca, a bicicleta é maioria. Aqui, um indivíduo chega ao absurdo de comprar três carros. Ouço reclamações

OS TEXTOS ASSINADOS NESTE JORNAL SÃO DE RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES. Registro de Publicação 2002 a 2006 - 01 a 174 2009 - 175 a 177 2015 - 178


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Feira de Santana-Bahia, quarta-feira, 31 de janeiro de 2018 Jorge Galeano. Acrílico sobre tela

constantes sobre o trânsito, mas, em geral, quem reclama tem três ou mais carros em casa. Então, como podem falar mal, se não dão o exemplo? Quem pode falar mal são as pessoas que andam de bicicleta diariamente. Eu sei que é difícil se locomover de bicicleta em uma cidade não adequada a esse modal, mas se mais pessoas utilizassem bicicletas, o poder público seria forçado a construir ciclovias. Mas quem anda de bicicleta? Eu e os pedreiros! (risos) As pessoas não associam bicicleta a meio de transporte, e sim a lazer. É preciso reverter esse pensamento. Como sou uma pessoa pública, espero dar o exemplo, mas é uma questão ainda muito complicada. A mudança do tratamento dado aos transportes coletivos também seria uma solução? Esse é um tema ainda mais polêmico, porque existe no Brasil uma espécie de apartheid violento, mas velado. A classe média não anda em transporte coletivo e não o faz para não se misturar aos pobres. Prefere pegar táxi ou sair de carro. Isso é claro e notório. Se a classe média pegasse ônibus, o transporte seria muito melhor. Em outras cidades, fora do Brasil, pessoas de todas as classes pegam ônibus e exigem o respeito aos seus direitos. Aqui, o transporte coletivo é um dos piores do mundo e as pessoas não reclamam. Se as classes média e alta pegassem ônibus, o serviço seria melhor; se estudassem em colégios públicos, o ensino público seria melhor; se andassem a pé, a cidade não estaria esse caos. As classes mais abastadas simplesmente abandonaram a cidade, por isso ela está tão degradada, violenta, suja e ocupada irregularmente por milhares de camelôs. Atualmente, a que tem se dedicado mais? Estou sempre pintando e produzindo azulejos. Sou

uma das poucas pessoas que fazem azulejos na cidade. E é um recurso rentável, talvez por ser único. Estou tranquilo nesse momento. Estou vendendo tudo o que pinto. Parei de andar de porta em porta, pedindo que me comprem um quadro. (risos) Deve ser o ocaso do artista... Estou na descida franca! (risos) Mas consegui alcançar certa estabilidade financeira, o que me permite trabalhar mais tranquilamente, desenvolvendo mais as técnicas e temáticas que realmente gosto. Já não tenho tanta necessidade de atender exclusivamente ao mercado. Por isso, venho tentando mudar um pouco o que vinha fazendo, evitando entrar na armadilha de repetir sempre a mesma fórmula que faz sucesso e vende bem, porque o trabalho começa a ficar um pouco mecânico. E não podemos nos resignar. O que marca essa mudança na sua obra? O que faço agora não se afasta completamente do que venho fazendo há dez anos e que começou com a construção do meu jardim pictórico, como dis-

Série “Trópico Utópico”. Jorge Galeano. Acrílico sobre tela

se anteriormente. Apenas sofistiquei mais a ideia, aprofundando-me, cada dia mais, na poesia da natureza. A denúncia do corte indiscriminado das árvores, que resulta na desertificação, me levou a outro estágio, mais poético, que mudou o meu olhar e me instigou a refletir mais sobre o que representa a natureza e sobre mim mesmo, como pessoa que faz parte desse processo. Estou começando a colher os frutos dessa invenção que comecei há dez anos. Com esse trabalho, já fiz cinco exposições internacionais, em quatro países: Equador, Suíça, Espanha e Argentina. Estou cheio de ideias novas. E tenho trabalhado mais com quadros de grandes dimensões. Para isso, não compro telas prontas. Encomendo a madeira, monto, estico o pano, faço meus próprios suportes. Como essa nova concepção da natureza aparece nos seus trabalhos? Atualmente, trabalho o que se vê além da natureza: a sensação que me produz determinados ambientes e espaços. Isso é difícil em pintura, porque não se trata de retratar a paisagem, e sim a sensação que a paisagem produz. É outra atmosfera, que se aproxima mais do que realmente é a pintura. Não é mais a estética da pintura, mas a poesia da pintura. Esse é o meu desafio atual. Mas, de qualquer maneira, sempre fiz um pouco isso. Você conhece o ateliê onde trabalho lá no Cuca... É um espaço pequeno, um porão sem janelas. Não tenho para onde olhar. No entanto, pinto coisas luminosíssimas ali. Porque tudo sai de dentro de mim. São

todas imagens minhas, que eu transformo interiormente e plasmo. Não teria a mínima condição de pintar se não fosse assim. Por isso dei à última exposição que fiz o nome de A paisagem interior. Seu ateliê está localizado em um dos poucos prédios históricos da cidade. Como se sente trabalhando nesse espaço? Mesmo não sendo muito bom para a pintura, em função da pouca iluminação, gosto muito de trabalhar lá, porque é um espaço muito legal. Tento compensar a pouca luminosidade instalando refletores. Não é o ideal, porque as condições de luminosidade mudam muito as cores, mas tem um clima que me agrada, um clima criativo, de mosteiro, de silêncio. Esse porão passou muitos anos aterrado (do outro lado, há outro, idêntico, que ainda não foi escavado). E, depois de reaberto e restaurado, ninguém quis utilizar, por causa do mofo e dos ácaros. Mas eu gosto. Atualmente, o Cuca realiza nele oficinas de pintura, desenho, escultura e fotografia para crianças. Tenho muita vontade de implantar também um projeto de cinema, para exibir filmes de arte, uma vez por semana, além de sessões de Jazz e lançamentos de livros. Apresentei a ideia à direção do Cuca uma vez. Ficaram de avaliar. Como vê a relação de Feira de Santana com o patrimônio arquitetônico? Não há mais patrimônio arquitetônico, praticamente. O prédio onde o Cuca está instalado, por exemplo, quase foi demolido. Na época, funcionava nele apenas o Seminário de Jorge Galeano. Acrílico sobre tela

Música de Feira de Santana, mas de modo precário, já que não havia luz e a estrutura estava se despedaçando. Foi então que o professor Josué Mello, ex-reitor da Uefs, teve a iniciativa de implantar ali um centro de artes, uma ideia realmente brilhante, que muito contribui para impulsionar a cultura na cidade. Além desse prédio, há o Casarão Fróes da Motta, que também foi restaurado, e mais duas ou três edificações antigas, que não sei até quando permanecerão de pé. Nos anos 90, li, em um famoso jornal da cidade, um artigo em que um jornalista defendia a ideia de que “lugar de velharia é no museu”. Sob esse argumento desprezível, ele afirmava a necessidade de todos os prédios antigos serem demolidos, para darem lugar ao “progresso”. Eu tento dar a minha contribuição, mas fico realmente horrorizado. Ao lado do Cuca, havia casas belíssimas, todas demolidas para nada, para darem lugar a prediozinhos quadrados, que não são nada, que se transformaram em lojas chinesas, estacionamentos. Isso é absurdo! A cidade não tem memória mais. Feira tinha tudo para ser uma cidade única, com mananciais de água pura, com casarios antigos. Se os comerciantes fossem minimamente inteligentes, teriam aproveitado as fachadas de todas as casas. Isso atrairia clientes e turistas, que viriam ver a cidade. Essa ideia de modernização é equivocada. Não é moderno destruir o patrimônio arquitetônico. É moderno mantê-lo e harmonizá-lo com o tempo presente. De certa forma, arte e decoração sempre andaram juntas. Como você vê essa relação? Eu gosto muito de arte popular, de coisas bonitas que tenham uma aplicação prática. Empreguei algumas técnicas na minha casa. Hoje, trabalho muito com arquitetos e decoradores,

fazendo fontes, mosaicos e painéis de azulejos para residências. A azulejaria está em evidência no mercado atual. Há muitas edificações em Feira e é um momento muito bom para nós, artistas, porque as pessoas estão investindo cada vez mais em arte aplicada, como, por exemplo, azulejos personalizados para espaços gourmet e mosaicos para fundos de piscinas. São coisas que antigamente eu não fazia, porque não havia mercado. Agora, faço muitas parcerias com as arquitetas Josete Garcez e Ana Cristina Monteiro. Isso é ótimo, porque os arquitetos e decoradores são os novos marchands. Nunca mais trabalhei com galerias, por exemplo. Não vale mais a pena, para mim. A não ser que seja uma galeria que se preocupe com o artista, que se empenhe em mandá-lo para fora. Atualmente, os galeristas não fazem isso . Apenas recebem a obra, em consignação, e a deixam lá até alguém chegar e se interessar. Esse não é o papel de um marchand. Um marchand tem que promover o artista, até porque, normalmente, ganham 40%. Então, é uma perda de tempo. Prefiro pagar a um decorador ou a um arquiteto, porque, pelo menos, se empenham em divulgar e vender o nosso trabalho. É a melhor forma de se trabalhar, hoje. Até porque já recebemos o projeto pronto, o que nos permite uma melhor acepção da obra que vamos executar. Quais temas costuma trabalhar em azulejaria? Como os projetos são, geralmente, para áreas gourmet, desenvolvo temas gastronômicos. Faço desenhos de comidas, principalmente. Uma vez recebi uma encomenda de um painel para uma varanda gourmet e tive a ideia de ilustrar os azulejos com receitas. Desenhei letrinha por letrinha. Um trabalho imenso, mas muito gratificante. Ultimamente, estou


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Feira de Santana-Bahia, quarta-feira, 31 de janeiro de 2018 “Día de sol en Pampalona”. Jorge Galeano. Acrílico sobre tela

inovando bem mais, para sair um pouco do lugar comum. Tenho me dedicado aos zoomorfos. Crio animais metade bicho, metade planta. Então, de repente, surge um porco com cabeça de girassol, um peixe com pernas e mãos humanas. Tem saído coisas interessantes. E estão sendo bem aceitas. Sempre tentei fazer coisas que outras pessoas não faziam. Busco criar peças totalmente personalizadas e exclusivas. Nenhuma igual à outra. Trabalhar com azulejos é realmente fascinante, embora muito difícil, sobretudo porque a aquarela não permite erros. Se errar, tenho que limpar tudo e começar de novo. A confecção de azulejos, em si, é uma técnica muito complexa, não? Sim. Complexa e muito delicada. O ideal seria trabalhar com azulejos de terracota branca sem vitrificação, porque teria uma liberdade de criação absoluta em termos de pintura com aquarela. Seria necessário vitrificar somente após a peça pintada, mas como não consigo essas pastilhas aqui, compro azulejos já vitrificados, diluo a tinta com açúcar impalpável, o que vai facilitar a fixação e a secagem, pinto e levo ao forno para queimar a uma temperatura de 900 graus, por cinco horas. Quando o forno atinge a temperatura de 800 graus, o vidro derrete, permitindo que o desenho penetre e se fixe no azulejo. Depois de seco, fica parecendo que tem um vidro por cima. Tenho feito coisas notáveis. Sempre gostei do azulejo. A azulejaria portuguesa é muito interessante, embora não goste muito dos temas, que são mais religiosos. Também gosto muito do azulejo holandês, que é menos sacro e tem mais formas, e do árabe. Como são proibidos de representar figuras humanas, os árabes viajam nas formas geométricas. Produziram e seguem produzindo trabalhos belíssimos. Aqui, havia muitas construções com azulejos, a exemplo do casarão da família Portugal. Essa casa, localizada próximo ao Marajó, tinha um front de azulejos espanhóis maravilhoso, de uns 20 metros de comprimento. É realmente uma pena que esses prédios antigos tenham sido demolidos. Aqui, qualquer pessoa demole uma construção antiga e ninguém diz nada. Não entendo essa mentalidade. As pessoas só admiram o concreto, o blindex. É lamentável. Com algumas soluções simples, você construiu

casa, uma piscininha ótima, mas não extrapolei, não virei transcendental (risos). Mas, de qualquer forma, sou reconhecido pelo meu trabalho. Recentemente, levei à Argentina a mostra Histórias mínimas, composta por 20 telas de pequeno formato, e foi surpreendente para mim, porque até sou conhecido na minha cidade natal, Villaguay, mas não sou nenhum herói. No entanto, fui recebido com se fosse uma estrela de rock (risos). Fui convidado para dar um curso de dois dias, para 20 pessoas, e para realizar uma exposição. O curso lotou. Dei aula para 36 pessoas e dez ficaram de fora, porque não cabia mais gente no espaço. E olha que a inscrição era cara. A exposição também lotou. Foi muito legal. Nem pensava que daria tanta gente. E ainda vendi metade das telas em exposição. uma casa confortável, sustentável e também estilizada, já que aplicou nela diversas técnicas artísticas, como mosaico, pintura, escultura e azulejaria. Qual a sua concepção de moradia? Para mim, uma casa é como uma escultura. É preciso ser modelada. A minha casa é um exemplo disso, porque está em constante mudança. É uma casa viva. Recentemente, fiz uma piscina e brinco dizendo que muitas peças que decoram o jardim pertencem à civilização Pampalônica e que foram encontradas durante a escavação. (risos). Idealizei um espaço humano, onde fosse agradável morar. Casa é isso! Cada animal faz seu ninho à sua maneira. O ser humano deveria fazer a mesma coisa. Cada pessoa deveria fazer sua casa de acordo com a sua personalidade. Seria maravilhoso se todos pudessem realizar isso. Meu sonho é ter uma casa redonda. Uma casa redonda é maravilhosa! Não há ângulos, a vista não esbarra em nada. Vi uma casa assim no Vale do Capão e adorei a ideia. Quero comprar um terreno lá para fazer uma casinha assim. E não sai cara. Fica em torno de R$ 11 mil. Quando as pessoas pensam numa casa, desejam logo colocar porcelanato, fazer laje. Aí o orçamento vai para R$ 200 mil. Mas se a ideia é fazer uma casa confortável, isso pode ser feito de maneira mais simples. E nem por isso deixa de ser um espaço vital. Casa é para ser habitada! Tem gente que constrói um palácio e não está em casa nunca. Não entendo isso. Não me vejo em uma casa convencional, nos moldes

das casas que fazem aqui. Jamais viveria em uma casa com laje! Isso é uma incoerência, sobretudo quando os termômetros marcam 40 graus. Minha casa não tem nenhuma sofisticação e, ainda assim, é um oásis no deserto. Fiz espaços com grama e com terra, para a água penetrar. Canalizo a água da chuva para um poço e a devolvo à natureza molhando o jardim. Plantei árvores na parte da frente e na parte de trás. E alguns arbustos nas laterais. Não preciso de ar-condicionado, porque tenho uma casa que favorece a circulação do ar e, desse modo, consigo uma temperatura mais agradável que em qualquer outra casa. Sei que teve que percorrer um trajeto árduo para firmar seu nome e alcançar essa estabilidade que diz ter conseguido. Em um mercado tão competitivo, em que a arte costuma não ser valorizada, como alcançar isso? Se, durante dez anos, você dedicar sua vida a fazer, diariamente, a mes-

ma coisa, seja pintar, tocar ou desenvolver qualquer outra atividade artística, forçosamente, tem que dar certo. Ou, então, é melhor mudar de profissão. Arte é trabalho. Tem gente que pinta um quadro por ano e ainda se queixa de que não consegue êxito. Mas como é possível ser bem sucedido quando não se trabalha? Para dar certo, você tem que colocar o máximo de esforço. Além disso, como diz Djavan, é preciso ter sorte. Tem muita gente talentosa que não dá sorte. Eu não posso dizer que dei sorte agora. Minha vida sempre foi uma pré-tempestade (risos). Mas não me lembro de ter feito outra coisa na vida além de música, pintura, decoração e de dar aulas, mas sempre dentro do fazer artístico. Então, acho que minha sorte foi ter me mantido sempre na minha profissão. Sou consciente de que não fui além disso. Era para ter estourado, mas não aconteceu comigo. Talvez daqui a 500 anos, mas não agora (risos). O que consegui foi isso, mas já é massa! Tenho uma boa

“Cantando a la luna”. Jorge Galeano. Acrílico sobre tela

Como você vê o espaço destinado à arte em Feira de Santana? Está pior ou melhor do que antes? O que posso dizer é que tem espaço. O que não tem é artista que coloque a cara e trabalhe. Os artistas precisam se empenhar mais na realização de bons trabalhos. Dizer que não há espaço, que não tem material e que o governo não ajuda é pretexto. Governos nunca vão ajudar artistas. Governos existem para construir casas populares, proporcionar saúde e educação de qualidade para a população. Nunca fui reacionário, mas sempre fui contra essa história de que o governo tem que ajudar. Quanto menos o governo ajudar um artista, melhor. Os verdadeiros artistas sempre se posicionaram contrários a governos. Um dos melhores períodos da música brasileira, por exemplo, foi gestado durante a Ditadura Militar, quando muitos artistas se opuseram ao regime. Se derem comida e bebida aos artistas, ficam preguiçosos. Eu mesmo não faria nada (risos). Vendi muito bem esse mês... Olha como sou: de repente, por dois ou três meses, não tenho com o que me preocupar, mas quando minha grana começa a descer, volto a me preocupar de novo. Já passei períodos terríveis, quando minha filha era pequena. Quando vendia um quadro, soltava foguetes (risos). Hoje, tudo é mais fácil. O governo, inclusive, disponibiliza alguns editais e a distribuição deles melhorou muito, sobretudo por causa da atuação de Gilberto Gil quando Ministro da Cultura. Agora, é preciso correr atrás. É necessário concorrer com

outros artistas, mas há possibilidades reais de se conseguir ganhar um desses editais. Então, tem espaço e tem dinheiro. Entretanto é preciso mostrar um trabalho consistente, que já tenha uma assinatura, uma personalidade. Não se pode começar hoje e querer expor em um grande museu no dia seguinte. Requerer um museu quando se está começando é incoerente. Experimentos devem ficar no laboratório ou serem mostrados em espaços adequados, mais populares. Uma boa alternativa para os jovens artistas que estão iniciando a carreira é participar de coletivos. Você diz que, hoje, tudo está mais fácil para o artista. Atribui isso também aos coletivos? Sim. Os artistas novos, como os grafiteiros, por exemplo, começaram muito melhor do que eu. Chegaram agora no mercado e já estão expondo, inclusive internacionalmente. Isso é maravilhoso! Eu só consegui expor na Europa com 60 anos. Tudo graças à internet e aos coletivos. Essa palavra é massa! Não passava pela minha cabeça um coletivo. Não existia um coletivo de artistas. O artista é um ser completamente individualista. Então, a ideia de se ter um coletivo de artistas fazendo um mesmo trabalho é inconcebível para mim até hoje. O máximo que conseguimos, aqui em Feira, foi o Chocalho de Cabra, projeto criado e dirigido por Juraci Dórea, Ana Rosário e Antonio Brasileiro, na década de 1980. Mas cada um fazia a sua parte. Não tinha uma união. Cada um fazia o seu trabalho. Isso não era um coletivo, era uma reunião de artista. Não digo isso para desmerecer, apenas para ilustrar que, naquela época, não havia a ideia de coletivo com essa acepção atual. E acho massa o que esses grupos estão fazendo hoje. Tem coletivo de tudo, de arte, de música, de teatro. Sobretudo em função disso, parece que, agora, está mais fácil para o artista. Que balanço você faz de sua carreira? É difícil, porque minha carreira nem decolou ainda. Mas não posso me queixar. Em Feira, nunca me faltou trabalho. Sempre tive uma sobrevivência mais ou menos e agora melhorou consideravelmente, depois dos 60 anos. A vida é o que ela nos dá. Então só tenho a agradecer, sinceramente. Gracias! Gracias! Gracias! (risos)


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