TRIBUNA CULTURAL

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ANO V - Nº 186

FEIRA DE SANTANA, SÁBADO 31 DE MARÇO DE 2 018

Nanja e suas máscaras

Artista plástica há 35 anos, Nanja Brasileiro começou a pintar por influência dos artistas Juraci Dórea, Ana Rosário e Antonio Brasileiro, que, na década de 1980, criaram o grupo Chocalho de Cabra, realizando intervenções artísticas nos muros da cidade. Da oportunidade inesperada de realizar um mural, Nanja, que, até então, auxiliava os pintores com as tintas, decidiu seguir carreira. Autodidata, participou de várias exposições coletivas e individuais e obteve premiação e menções honrosas em diversas bienais e salões regionais. A artista dedicou metade de sua vida artística à pintura sobre suportes tradicionais, especialmente telas, mas, há 16 anos, pela necessidade de experimentar técnicas novas, passou a dedicar-se ao mosaico. Com trabalhos instalados em vários pontos da cidade e também em Salvador, Nanja vem confeccionando mandalas, painéis, calçadas, fachadas e muros, sobretudo em parceria com renomados arquitetos. No entanto, conforme enfatiza, o mercado baiano, especialmente o feirense, impõe muitas dificuldades aos artistas, tornando árdua a tarefa de sobreviver de arte. Levando a cabo a inquietação natural de todo artista, Nanja também vem desenvolvendo uma inusitada série de pinturas em rostos humanos. E essa tentativa de eternizar a efemeridade sempre acaba resultando em belíssimas composições, que surpreendem não apenas os espectadores, mas também aqueles que se permitem transformar em obras de arte. Essas máscaras, capturadas e imortalizadas pelas lentes do fotógrafo Leo Brasileiro, compõem a série Eu e minha máscara, que a artista pretende retomar em breve. Nessa entrevista, concedida à editoria do Tribuna Cultural, a artista fala de sua trajetória, inquietações, influências, impressões sobre a arte contemporânea e sobre Feira de Santana, que, segundo ela, já foi uma cidade artisticamente mais vívida. Quando você começa a se interessar por pintura? O que a influenciou? Minha iniciação na pintura foi, mais ou menos, no ano de 1983. Acompanhava sempre o grupo Chocalho de Cabra, criado por Ana Rosário, Juraci Dórea e Antonio Brasileiro. Nessa época, somente ajudava os pintores com as tintas, até o momento em que me cansei daquele trabalho de ajudante e resolvi pegar no pincel. Eles me deram um espaço no muro do Instituto de Educação Gastão Guimarães e, cheia de receio, fiz uma pintura. Lembro-me que comentaram positivamente e eu fiquei entusiasmada. Antes, sentia-me isolada, fora do contexto, mas, a partir daí, deixei de lado meus estudos em Letras e mergulhei na pintura. Já são 35 anos dedicados às artes plásticas, que passaram num piscar de olhos. Se pudesse, teria outra vida para aprimorar tudo o que fiz. Quais são as referên-

cias do seu trabalho? Minha percepção de arte se desenvolveu, ao longo dos anos, baseada em obras de artistas renomados. Não frequentei academia nem cursos de arte. Fui tateando, observando e praticando como autodidata mesmo. Mas tive como referenciais artistas de várias épocas, como Vermeer, Miró, Paul Klee, William Turner, Manabu Mabe... Quando começou a trabalhar com mosaicos? O que a fez dedicar-se a essa técnica? Creio que há 16 anos. O mosaico surgiu quando a pintura começou a não preencher minhas inquietações. Tenho uma grande tendência a estar sempre mudando de foco, experimentando. E o mosaico me tranquiliza, assim como a pintura em cerâmica e a reciclagem de objetos. Quando estou numa dessas atividades, deixo o improvi-

Fotos: Leo Brasileiro

A artista vem desenvolvendo pinturas em rostos humanos. Intitulada Eu e minha máscara, a série é uma forma de capturar a fluidez do instante so me levar. São trabalhos mais despretensiosos. É como cuidar de um jardim. O tempo passa sem você sentir. Mas é uma é uma técnica muito árdua. Todo o trabalho é artesanal. Não uso ferramentas industriais. Além disso, há a dificuldade de encontrar cores, que são muito limitadas. Mas o resultado é sempre gratificante. Em geral, uma peça leva em torno de cinco a oito dias para ficar pronta. Muita gente tem questionado o que é arte na atualidade. O que pensa sobre a arte contemporânea? Como em todos os setores da vida, tudo tem o seu tempo de permanência. A arte, como a vida, está sempre mudando. Se acompanharmos a história da arte, desde as primeiras manifestações do ser humano, vamos observar uma constante mudança. O artista quase sempre reflete o seu tempo, mas também lhe é peculiar o desejo de romper com tradições, expressando sua visão de mundo de maneiras variadas. É muito difícil definir, hoje, o que é arte, em função da complexidade e proporções que o termo alcançou. A arte, como habilidade de

expressar o real e que está relacionada à estética e à beleza, é passível de questionamentos. Na verdade, não arrisco uma definição. A arte contemporânea passa por conceitos bem abrangentes e, para mim, muitos deles, confusos. Não concordo, por exemplo, que qualquer manifestação dirigida ao campo artístico seja arte. Para mim, existe muito lixo, que os críticos nos empurram como arte. A boa arte contemporânea existe, claro, mas nem tudo que aparece, hoje, é arte. Outra visão de contemporaneidade na arte é a da liberdade de expressão como fator determinante nas criações artísticas. O conceito de valor é totalmente diferenciado do conceito clássico. De repente, qualquer pessoa pode se tornar artista. Qualquer atividade bem fundamentada pode ser arte. Dessa forma, arte é liberdade de expressão. Como vê a questão da originalidade nas artes plásticas? “Não existe nada de novo na face da Terra”. Nem originalidade em arte. Cada artista coloca seus sentimentos em tudo aquilo que cria. Existe seu toque

pessoal, sua abordagem diferenciada, mas nada é absolutamente novo. A arte é uma soma de experiências e ninguém é único no que faz. Como vê a relação do espectador com o seu trabalho? Em geral, os espectadores se manifestam de maneira favorável ao meu trabalho. Creio que passo certa tranquilidade ao olhar de cada um, muito embora isso não signifique que consiga viver da minha arte e, muitas vezes, fico sem estímulo. Todo artista almeja um púbico sensível, que veja em seu trabalho algo de importante. Mas pinto porque não consigo verbalizar minhas impressões de mundo, meus sentimentos. “Faço arte porque a vida não me completa”.

cando de salão de beleza e, depois de maquiá-la, resolvi produzi-la para um desfile. O resultado saiu muito bom. Então, Leo Brasileiro, meu filho, fotografou. Gostei muito e parti para outros rostos, iniciando essa série que resultou numa exposição na Galeria de Arte Carlos Barbosa. Buscava fazer com que cada rosto pintado expressasse algo da personalidade de cada modelo. É como se o personagem mascarado surgisse com algo mais, que não aparecia no seu rosto sem pintura. De repente a câmera captava semblantes multifacetários, tanto que o próprio modelo se estranhava quando via as fotos. Sinto muito não ter conseguido continuar aperfeiçoando esse trabalho. O custo era muito alto. Mas quero retomá-lo.

Há alguns anos, você vem desenvolvendo pintura em rostos humanos. Como surgiu essa ideia? Tenho uma característica forte, que é deixar as ideias surgirem sem planejamento prévio. As coisas acontecem por acaso e me levam numa direção. A pintura em rostos surgiu de um momento lúdico com uma sobrinha. Estávamos brin-

Que sensação trabalhar com essa vertente efêmera da arte produz em você e no outro que é transformado em obra de arte? Pintar rostos, para mim, é descobrir-me na máscara de cada um. É um momento efêmero, mas registrado pela máquina fotográfica. Fica a memória, como nossa vida. Como diz Antonio Brasileiro, em um


2 poema, “Um dia tudo será memória”. Já a sensação do modelo, a princípio um pouco acanhado, é de soltura, de doação, de momentos lúdicos. A partir do segundo ou terceiro clique da câmera, surge um personagem, que representa para uma pequena plateia. A partir daí, sentimos uma confiança mútua. De que maneira os materiais influenciam no conceito de sua obra? O artista, de um modo geral, vê possibilidades de fazer arte em tudo. No meu caso, é meu olhar que define se um objeto qualquer pode se transformar em objeto de arte. O objeto me influencia e eu influencio o objeto. O meu fazer artístico é muito intuitivo. As ideias, as cores, o desenho surgem e se modificam no decorrer da ação. Existe, claro, um impulso interior que determina o meu estilo e o que desejo como resultado final. Como é o seu processo criativo? Em que se inspira para criar suas obras? Na vida, estamos sempre buscando a perfeição. Estamos sempre querendo mudanças. Eu encaro a transitoriedade da vida ocupando-me com a arte, cuidando do meu jardim, compartilhando momentos com os amigos e com a família. Busco na arte o que na vida me falta. Meus momentos de solidão estão sempre ligados ao momento de criação. É quando me afasto da realidade que dialogo comigo mesma e não vejo o tempo passar. Faço arte porque a vida não me fez completa. E se o resultado do que faço for positivo, me alegro. É difícil ser artista plástico em Feira de Santana? Hoje, em qualquer lugar do mundo, ser artista plástico não é fácil. Vivemos em uma época em que se consome de tudo, menos arte. O artista plástico tem mais dificuldades do que os artistas de outras áreas, talvez porque boas reproduções, determinadas fotografias, objetos seriados são mais acessíveis e, aos olhos dos menos entendidos, passam facilmente por arte. Ou porque, diante

Feira de Santana, sábado 31 de março de 2018

de tantas informações e novidades descartáveis, a arte perdeu seu espaço. E, em Feira de Santana, essa desvalorização é bem mais acentuada. Feira é uma cidade para comerciantes. E comerciantes valorizam dinheiro, carros possantes, roupas de grife, mansões... Viver de arte em um cenário assim é impossível. Você trabalha em parceria com arquitetos, sobretudo em projetos que incluem mosaicos. É uma boa alternativa para expandir as possibilidades de comercialização de obras de arte? O valor de um mosaico é cobrado por metro quadrado, mas ainda é muito aquém do que realmente uma obra como essa vale. Se fosse vender um trabalho pelo que ele realmente vale, seria inacessível. Dependendo do tamanho, muitas vezes chego a reduzir o valor do metro quadrado, mas, mesmo assim, o mercado em Feira é difícil. Há uma tendência em se valorizar o que vem de fora. Lamento que seja assim, porque temos artistas magníficos atuando na cidade, inclusive trabalhando com azulejaria. Então, como disse anteriormente, não está fácil vender arte, mesmo com alguns arquitetos indicando. Houve uma época melhor. E os clientes dos arquitetos, na sua grande maioria, não se ligam em arte. Como vê a cidade atualmente, sobretudo em relação ao passado? Cada vez mais, os cidadãos feirenses necessitam de mais espaços culturais de boa qualidade e mais belas praças. Sem falar na segurança. Nossos filhos não brincam mais nas ruas, existe perigo em toda parte. Na época dos meus filhos pequenos, ainda se podia brincar e andar nas ruas com os amigos. Você participou ativamente do Grupo Hera, conhecido como uma das principais confrarias literárias do país. Como foi essa experiência? Participar do Grupo Hera foi determinante na minha formação e na de alguns outros membros.

Costumávamos nos reunir todas as segundas-feiras e seguíamos lendo, discutindo literatura, ouvindo musica clássica até de madrugada. Respirávamos arte e filosofia. Foi através dos nossos encontros que fiquei conhecendo nomes como Sócrates, Platão, Aristóteles, Dante, Shakespeare, Tolstói, Guimarães Rosa, Drummond, Machado de Assis e tantos outros. Éramos jovens e sedentos de conhecimento. Líamos muito. E agradeço, principalmente, ao nosso mestre Antonio Brasileiro por ter me encaminhado nas artes. Nessa época, Feira respirava mais arte e cultura? Se Feira respirava mais, não sei dizer com certeza, mas nós respirávamos arte e nos movimentávamos bastante. Foi quando surgiram frequentes movimentos de rua, como o Chocalho de Cabra e o Movimento Cultural Alternativo (MCA), que envolvia dança, música, artes plásticas e teatro. Logo em seguida, surgiu o Amélio Amorim (dirigido por Antonio Brasileiro) e muitas outras coisas ligadas à arte. O que espera para a cidade, no futuro? Vejo Feira de Santana muito árida, em todos os sentidos. Digo que ela não tem alma. Fico indignada com a forma de planejamento urbano, com o descaso para com o lixo, com as ruas sem sombra, para dar conforto a quem quer andar. Os motoristas não respeitam os pedestres, os velhos não têm espaços de lazer. Feira é uma cidade que tinha tudo para dar certo. Isso se os nossos dirigentes se preocupassem com o bem estar da população. Os artistas feirenses da nossa época ou mudaram para outros lugares ou estão reclusos em suas casas, sem esperanças de ver Feira de Santana melhorar. Aqui, nada que se planeja, no campo da arte, tem durabilidade. Os eventos culturais são cada vez mais raros e sem apoio da Prefeitura. Cultura, para a cidade, é Micareta, trio elétrico ou shows de péssima música. No futuro, quem sabe, o panorama mude, apareçam políticos mais sensíveis, que lutem e prezem pela qualidade.

Os belos mosaicos de Nanja compõem diversos projetos arquitetônicos em Feira e em Salvador

Menas laranjas Kledir Ramil

Considero a nossa língua brasileira uma das mais fascinantes do planeta. Bem, talvez tenha que se levar em conta que é uma das poucas que conheço, mas, independente da minha limitada capacidade de avaliação, posso garantir que é uma língua bonita, cheia de palavras interessantes e com uma sonoridade especial. O que talvez explique por que tantas canções em português viraram sucesso mundo afora. Tanta beleza, é claro, só pode ser apreciada se ela for usada corretamente. O que é discutível, pois o “correto” é sempre uma avaliação de gosto pessoal, como essa que estou fazendo aqui e pode trazer embutido um preconceito linguístico. Enfim, seguem meus comentários sobre coisas que me incomodam. Você não deve dizer “seje”, por exemplo. Nem que seja num bate-papo de botequim. Tampouco deve usar “esteje”. Mesmo que você já esteja na quarta cerveja e todo mundo “esteje” falando assim. Se você for do sexo feminino e trabalhou o dia inteiro, não pode falar pro namorado que não quer sair porque está “meia” cansada. Meia é aquilo que se usa no pé. Você provavelmente está “meio” cansada e, cá entre nós, deve estar cansa-

da mesmo é do namorado. Porque quando a gente gosta de verdade, sempre encontra forças para um jantar a dois. Se alguém falar “menas” laranjas, pode rir à vontade. A não ser que você esteja numa recepção mais formal e o equívoco tenha sido cometido pelo dono da casa. O que não é impossível de acontecer. O R é uma letra traiçoeira, é preciso tomar cuidado. Anote aí: fustrado, cocrodilo, ededron, largartixa, estrupo, cardarço. Tá tudo errado. Confira no dicionário. Nunca diga “haviam muitas pessoas no local”. O correto é usar o singular: “havia muitas pessoas”. Mesmo que fosse uma multidão. “Para mim gostar” é coisa de índio. Quem conjuga o verbo é o pronome pessoal reto: “Para eu gostar, para tu gostares, para ele gostar…” Se você escutar alguma secretária falar “vou estar anotando o seu recado” não se irrite. Use o bom humor e diga que vai “estar perdendo a paciência” se ela continuar falando assim. O gerundismo virou uma praga. Vem de traduções malfeitas do inglês e contaminou algumas áreas, principalmente o telemarketing. A língua brasileira é mesmo fascinante. Produziu poemas e romances da melhor qualidade, mas, como tudo na vida, também tem as suas estranhezas. Por exemplo:

Fundado em 10.04.1999 www.tribunafeirense.com.br / cultural.tribunafeirense@gmail.com Fundadores: Valdomiro Silva - Batista Cruz - Denivaldo Santos - Gildarte Ramos Editora - ísis Moraes Diretor - César Oliveira Editoração eletrônica - Maria da Prosperidade dos Santos

por que “embaixo” é uma palavra só e “em cima” são duas? Por que a gente bota a calça e calça a bota? Por que as pessoas embarcam no avião, no carro, no trem e não apenas no barco? Por que “pois não” quer dizer sim e “pois sim” quer dizer não? E a pergunta que não quer calar e me tira noites de sono: por que “tudo junto” é separado e “separado” é tudo junto?

Divulgação

*Kledir Ramil forma com seu irmão, desde 1980, a dupla Kleiton & Kledir. Compositor de sucessos como Deu Pra Ti, Paixão, Tô que Tô e Nem Pensar, foi gravado por importantes intérpretes brasileiros e estrangeiros. Como escritor, estreou em 2004, com o livro Tipo Assim e, desde então, tem conquistado cada vez mais leitores. Considerado uma “revelação da literatura brasileira”, lançou O Pai Invisível, Crônicas para ler na escola e Viagem a Par ou Ímpar (Editora Objetiva).

OS TEXTOS ASSINADOS NESTE JORNAL SÃO DE RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES. Registro de Publicação 2002 a 2006 - 01 a 174 2009 - 175 a 177 2015 - 178


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Feira de Santana, sábado 31 de março de 2 018

AMADO ECO

Porque Jorge Amado não quis conhecer Umberto Eco Foto: Reprodução

Cid Seixas Em meados do ano de 1979, quando concluía o mestrado na área de estudos linguísticos, tivemos, em Salvador, uma série de conferências de importantes intelectuais de várias partes do mundo. Desde Michel Foucault a Umberto Eco. A professora Maria Luigia Magnavita foi a responsável pela vinda do italiano. Na véspera da conferência, Dona Gina, como a chamávamos, disse que Eco perguntou se ela me conhecia. Eu havia escrito duas cartas ao filósofo, propondo minha inscrição, como seu orientando de doutorado, na Universidade de Bolonha. Por isso me dispus a buscá-lo no hotel, no dia da conferência no Instituto de Letras, e, depois, a acompanhá-lo nas suas andanças por Salvador. Vieram com ele Renate, a esposa; e os filhos, Stephen e Charlotte. Como sou incapaz de compreender os sons de toda e qualquer língua, inclusive a portuguesa do Brasil, quando falada de forma rápida, a confusão começou quando o pintor Sante Scaldaferri, amigo de ambos, nos encontrou rapidamente e perguntou (acho que, mais ou menos, isso): – Allora, Eco, conosci Cid, questo grande pederasta? Leader del movimento gay all’università. Fingindo participar do diálogo, assenti, rindo, sem saber direito o que acabara de ouvir: – Ãhan! No mesmo ritmo de fala veloz e gesticulada, o semioticista respondeu, considerando-me, de fato, um representante baiano do ainda invisível movimento. Sem nenhum hábito de ouvir a língua italiana, não entendi patavinas. Apenas sorri, como quem participa da conversa, e assumi, involuntariamente, a liderança proposta pelo pintor e mordaz humorista nas horas vagas. Desde o primeiro contato com Umberto Eco, pedi para conversarmos em francês, pois, não sendo ele falante nativo dessa língua, empregaria a velocidade ideal para meus ouvidos moucos. Além disso, os

Umberto Eco ainda não era mundialmente conhecido quando veio à Bahia, em 1979. Somente um ano depois, com a publicação de O nome da rosa, o escritor italiano se tornou um fenômeno literário

constantes tropeços seriam menos incômodos. Em 1979, Eco ainda não era o romancista de sucesso internacional que se tornou, de repente, com a publicação de O nome da rosa, no ano seguinte. Lembro que, durante o dia, ele me pediu para conhecer monumentos religiosos da cidade. Fomos ao tradicional terreiro da Casa Branca e percorremos algumas igrejas do Terreiro de Jesus e adjacências. Estranhei quando ele começou a falar coisas, para mim confusas, enquanto percorríamos os

corredores do convento de São Francisco. Ali, ele principiou a monologar em italiano, como se estivesse em transe mediúnico, diante dos mistérios do convento. Aturdido, respondia, ou ousava dizer algo, apenas quando ele me olhava e mostrava alguns detalhes arquitetônicos. Fora disso, assumia o meu costumeiro tom patético e abestalhado, murmurando: – Ãhan! Ãhan! Como Umberto Eco nada havia revelado a respeito do monumental romance que estava escre-

vendo, somente entendi o que acontecera quando li, em 1983, a edição brasileira de O nome da rosa. Lembrei-me do inusitado monólogo associado a algumas passagens do livro. E o que Jorge Amado tem a ver com toda essa história fiada? É que Sante Scaldaferri contou a Eco, não sei a que propósito, um episódio engraçado, do qual participamos, ao lado do gravador Calazans Neto, na casa de Jorge. Sabendo do meu contato com o romancista baiano, Umberto Eco disFoto: Reprodução

Reprodução: Admirado por Eco, o escritor baiano Jorge Amado aparece no romance O Pêndulo de Foucault, publicado, pelo italiano, em 1988

se que gostaria muito de conhecer o autor de Tenda dos Milagres. Liguei para o Rio Vermelho e soube que Jorge Amado estava, há alguns dias, fora de casa, escrevendo, no seu recolhimento em Itapuã. Não sabia onde era a casa, nem nunca estive lá. Tinha, apenas, o telefone, que ele havia colocado num dos seus bilhetes, para um eventual contato. Liguei todo entusiasmado e disse: – Jorge, Umberto Eco está aqui em Salvador e gostaria muito de lhe conhecer. Falei um pouco da obra do pensador italiano. Aí veio o balde de água fria na minha santa ingenuidade. Umberto Eco ainda não representava nada para Jorge Amado, que, provavelmente, nem sabia quem era aquele italiano de nome repetitivo: eco, eco, a ecoar. – Você disse a ele onde eu estou? – Não. Estou ligando para lhe falar do interesse dele em lhe conhecer. – Veja, Cid, se eu deixar de escrever para encontrar com os estrangeiros que vêm à Bahia, eu não faço mais nada. Você mora perto e sabe que não tenho paz na nossa rua. Até ônibus de turismo já apareceu por lá, quando a novela da Globo estava no ar. Como o mundo dá voltas, por volta de 1993, enquanto lia Navegação de cabotagem, falei com Jorge sobre meu telefonema para lhe dizer que Umberto Eco queria conhecê-lo. Ele, naturalmente, não mais se lembrava de nada disso. Cerca de dez anos se passaram. Estranhou meu comentário, como se fosse uma fantasia ou um delírio. Deveria ter pensado: como um professor da província poderia conhecer o romancista mais discutido do mundo inteiro naquele fim de século; e ter intermediado o fantasioso contato? Um ano antes de O nome da rosa ter colocado o seu autor no rol dos maiores romancistas de século XX, o nome do outro nada dissera ao grande Jorge Amado. Daí o olvido. O fato é que, ao ler Navegação de cabotagem, onde ficava evidente a admiração do nosso romancista pelo best seller que impressionara o mundo pela inesperada mistura de

qualidade com recursos da cultura de massa, capazes de empurrar, goela a dentro do leitor, momentos de requinte e alta especulação intelectual. Somente um erudito de tal porte poderia levar para o território da ficção as mais avançadas descobertas da filosofia da cultura. Jorge Amado conta, no seu livro de memórias, que, em 1988, em visita à União Soviética, recebeu a notícia, transmitida por um brasileiro, que ele aparecia no novo romance de Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault. Assim o fato foi registrado em Navegação de cabotagem: “Vaidade patriótica a do patrício, que dizer da que me invade? A vaidade não é o meu defeito, sentimento pouco habitual, no entanto a notícia envolve-me de vanglória, sorrio para Zélia.”

Reprodução

*Cid Seixas Fraga Filho é jornalista e escritor. Atuou na imprensa como repórter, copy desk e editor, trabalhando em rádio, jornal e televisão. Fundou e dirigiu um dos mais qualificados suplementos literários do país, o Jornal de Cultura, publicado, na Bahia, pelos Diários Associados. Professor Titular aposentado da Universidade Federal da Bahia (Ufba), também leciona, como Professor Adjunto, na Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), onde foi responsável pelos projetos de criação do Mestrado em Literatura e Diversidade Cultural (PPGLDC) e da UEFS Editora. É co-editor de Légua & meia: revista de literatura e diversidade cultural (PPGLDC). Criou a E-Book.Br, Editora Universitária do Livro Digital. Doutor pela Universidade de São PauloUSP, publicou dezenas de livros e e-books, entre obras de criação, teoria e crítica, a exemplo de O Espelho de Narciso (Civilização Brasileira), Triste Bahia (Coleção Letras da Bahia), O lugar da linguagem da teoria freudiana (Casa de Jorge Amado), O espelho infiel (Diadorim), O trovadorismo galaico-português (Uefs), Os riscos da cabra cega: recortes de crítica ligeira (PPGLDC). Atualmente, reúne livros, artigos e outras publicações no site www.linguagens. ufba.br. Contato: cidseixas@ yahoo.com.br.


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Feira de Santana, sábado 31 de março de 2018

Breve História da Queda Adão e Eva e o fruto proibido. Marc Chagall. Litografia a cores. 35,5 x 26 cm, 1958-60

A paz é tão somente A face oculta da guerra. O Cordeiro com Olhos em Brasa Dissipou toda a Treva. A Virgem vestida de Sol Reescreveu o Mito de Eva. Mas como as cobras, escolhemos Errar por entre a relva. Não somos leves como as aves: Eis a nossa tragédia.

(Bernardo Souto)

*Bernardo Valois Souto é natural de Recife (PE). Bacharel em Crítica Literária, pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e mestre em Literatura e Cultura: Estudos Comparados, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Leciona Literatura Brasileira na Faculdade de Formação de Professores de Araripina, sertão de Pernambuco. Publicou poemas e ensaios em revistas literárias, como Zunái, Germina, Tom, Eutomia, Cronópios e Vila Nova. É autor dos livros Elogio do silêncio (2010), Teatro de Sombras (2011) e O corvo e o colibri (2012).


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