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FEIRA DE SANTANA, SEGUNDA-FEIRA 18 DE SETEMBRO DE 2017

ANO V - Nº 180

Juraci Dórea: vida, obra, sertão

Os Brasileiros 10. Juraci Dórea.Carvão e PÇA, 2002.Acervo pessoal César Oliveira/Foto: Ísis Moraes

Aproveitando as comemorações pela passagem dos 184 anos de emancipação política de Feira de Santana, a Tribuna Cultural não se permite repetir a ingratidão da cidade para com os artistas que mais lhe querem. Por isso, o caderno de hoje dedica todas as páginas a um feirense que podia estar tocando a sua carreira de qualquer ponto do planeta, dada a dimensão e importância de sua obra, mas que optou por não se afastar materialmente do imaginário que povoa a sua memória afetiva. Verdade que pouco resta da cidade antiga que enfeita as lembranças de sua infância. Quase nada de suas raízes rurais subsiste. E muito embora o portal que aqui começa a desvelar o místico universo sertanejo esteja repleto de signos, símbolos e ícones esquecidos por sua gente, Juraci Dórea escolheu resistir. Artista plástico e visual, poeta,

cineasta, fotógrafo, arquiteto, ele transportou para todos os suportes, materiais e imateriais, que usou ao longo de mais de 50 anos de carreira os elementos constitutivos da alma do povo sertanejo. É um exercício quase impossível dissociar seu nome desse imaginário que também nos engloba. Nas suas telas, esculturas, objetos, fotografias, projetos, filmes, poemas, está impressa a nossa memória ancestral, devidamente universalizada, como solicita a arte contemporânea. As cancelas, os gibões, as selas, os estandartes, as indumentárias dos vaqueiros, os gravetos estalados em lanças, o couro cru, os currais, o esterco, as bandeirolas, os candeeiros de lata, as serpentes – lépidas ou repousadas nos fundos das garrafas de cachaça –, os vestidos coloridos das moças, a valentia dos cabras, as dores da tragédia de Canudos, a dureza da terra e da vida sem chuva, as frutas,

as festas, os perfumes e cores da feira livre assassinada pela ignorância progressista, os aboios e sons guturais do sertão mais profundo – que ele ainda persegue e deseja descobrir – povoam as suas narrativas plásticas, poéticas, sensoriais. Às vezes, aparecem com um toque do seu azul favorito, como nas peças que integram a mostra Crônica Sertaneja, atualmente em cartaz no Museu de Arte da Bahia (MAB), em Salvador, evidenciando a sua vivacidade e sintonia com o mundo. Mais palavras são desnecessárias. Deixamos você na companhia do artista, que, na entrevista que concedeu à nossa reportagem, falou sobre a sua trajetória, produção artística, impressões, conquistas e tristeza pela perda dos referenciais da nossa cultura, que um dia, talvez, só estejam vivos nas suas obras, já que o risco de desaparecerem completamente do nosso cotidiano é iminente.

Nós e o artista desejamos que não. Que as suas e as nossas palavras ganhem corpo, força e ecoem naqueles que vão nos ler, para que o fim seja outro! São mais de 50 anos dedicados à arte. Como sua carreira começou? Minha primeira exposição foi em 1962, embora eu tenha começado a pintar um pouco antes. E Isso coincidiu com a inauguração da Biblioteca Municipal de Feira de Santana. Os feirenses sonhavam em ter uma biblioteca em um prédio bonito, modernista. E foi dentro da programação do evento que expus meus trabalhos. A curadoria da mostra foi de Dival Pitombo, grande incentivador do início da minha carreira. Na época, minha produção ainda era primária, mas eu já tinha uma noção de estilo. E meus trabalhos tinham uma influência do Cubismo, do Fauvismo. Naquela época, Feira era mais

rica culturalmente? Tinha uma cena cultural de mais fácil inserção para os artistas? Não era mais fácil. O que ocorria é que Dival, por ter uma formação abrangente e por viajar muito aos grandes centros, tornou-se um grande admirador das artes, especialmente da música e da pintura, então acabava ficando à frente dos eventos culturais. Quando o conheci, ainda era estudante secundarista. Ele foi fazer uma palestra no Colégio Estadual e a diretora nos apresentou. Depois, ele quis ver meus trabalhos. Eu já fazia uns desenhos, mas era coisa de adolescente ainda. Como a arte era muito rara aqui, uma pessoa que pintava e desenhava sistematicamente podia, na visão dele, ter um caminho. A gente ouvia falar em Raimundo de Oliveira, que era o artista feirense consagrado, mas não morava em Feira.

Quando comecei, existia a revista Sertão, onde, às vezes, víamos ilustrações de artistas de fora e isso chamava a nossa atenção, mas não tinha artista na cidade. Tinha Dival, que criou a Associação Feirense de Arte (AFA), em 1960, promovendo eventos e mobilizando as pessoas. Em função disso, saiu a minha exposição. Quando o sertão começa a aparecer na sua obra? Fui estudar Arquitetura em Salvador. Continuava pintando e, em 1965, fiz uma exposição. Nesse período, já tinha um estilo mais voltado para o sertão.


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Feira de Santana-Bahia, segunda-feira, 18 de setembro de 2017

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Foto: Juraci Dórea

Escultura do Projeto Terra para documentário de Tuna Espinheira, Canudos - Ba, 2013

Surgiam, na minha obra, os vaqueiros, as boiadas. Pela primeira vez, defini um estilo, ao retratar figuras estilizadas e coloridas. Era uma pintura figurativa, mas que deformava as figuras. E tentava vincular isso às coisas da História da Arte. Em 1968, estou em Salvador ainda quando minha obra começa a ter uma ligação com o tema cidade. O ambiente urbano da capital, porém, não influenciou muito o meu trabalho. Eu estava lá estudando, mas meu olhar estava voltado para o interior, para Feira. Mas não era a Feira de hoje. Era a Feira porta de entrada do sertão, com seus vaqueiros, com o Campo do Gado, com a feira livre, com todo esse imaginário que eu carrego. Estava vendo uns trabalhos de 1968, inclusive um que está no Museu Regional, e percebi que já tinham influência da cidade, talvez uma influência Pop, daí aparecerem multidões, engrenagens... Mas não se afastam do regional. Empreguei uma técnica de fazer malas. Utilizei pregos, umas figurinhas típicas desse tipo de artefato, forrei o suporte com papel de cimento, que era como se fazia malas na Feira. A figuração, no entanto, era urbana. Essa fase não demorou muito. Logo veio uma outra, mais abstrata, ou quase abstrata, que coincidiu com minha volta a Feira. Período de arrumação de escritório, de assentamento da profissão de arquiteto. São poucos anos de um certo vazio na minha produção artística. Que impacto a Arquitetura teve na sua obra plástica? Acho que a Arquitetura influencia a composição. Muitas vezes eu usava espaços, o branco do papel, a estética, a noção de construção. Isso, sem dúvida, tem a influência do olhar do arquiteto. Não diretamente, nas formas, mas na estruturação do quadro, na sensibilidade e gosto estéticos. Sua obra passa por muitas fases até o surgimento do Projeto Terra? Sim, muitas fases. Algumas ficaram pelo caminho. Na década de 60, surgiram os trabalhos em preto e branco, que também têm influência da Pop Art. Na década de 70, mais precisamente entre 1972

e 1973, retomo a fase das boiadas, dos vaqueiros. Nesse período, muito por conta do ofício de arquiteto, nasce uma inquietação muito grande, um desejo de descobrir um caminho novo. É a partir daí que começo a trabalhar com o couro. Nasce, então, a fase que chamo de Estandarte do Jacuípe, em que recrio os símbolos dos vaqueiros. E toda a figuração está nas selas, na indumentária, nos gibões, nos estandartes. Posteriormente, vem a série das cancelas, onde passo a utilizar não só o couro, mas a madeira também, até chegar à série Terra, que deriva das cancelas, mas é um trabalho em que uso materiais brutos. Nessa época, apareceu a oportunidade de participar de um concurso para projetos em artes plásticas, promovido pelo Museu de Arte Moderna (MAM), em Salvador. Foi aí que comecei a desenvolver o Projeto Terra. Montei o projeto a partir da série Terra, com madeira e couro, mas partindo para o tridimensional. Assim nasceram as esculturas. Como surgiu a ideia de plantar esculturas em lugares remotos do sertão? Nesse período, eu viajava muito para Monte Santo e outras cidades sertanejas. E, em uma dessas viagens, ocorreu-me a ideia de devolver ao sertão aquilo que ele me inspirava a criar. O diferencial do Projeto Terra é justamente esse: as obras não seriam mostradas nos museus. Então faço as esculturas nesses rincões mais longínquos do sertão. Na verdade, não sei precisar exatamente os limites do Projeto Terra. Às vezes, não sei se são esculturas, se são objetos, se são instalações, porque agrega tudo isso. As obras nascem como esculturas, mas elas integram o ambiente e só têm sentido nos espaços em que são construídas. É algo que tem a ver com arte ambiental, com Land Art (modalidade artística em que o terreno natural, em vez de prover o ambiente para uma obra de arte, é, ele próprio, trabalhado de modo a integrar-se à obra) e com arte efêmera também, porque não fica para sempre. No entanto, apesar de efêmeras, essas obras acabaram se perpetuando como um dos

maiores referenciais de sua produção artística, não? Mas isso porque estão em sintonia com a História da Arte. A efemeridade, o viés antropológico, o caráter sociológico são componentes da arte contemporânea. E o Projeto Terra engloba tudo isso, tanto que chamou a atenção das bienais. Não foi por acaso, mas porque estava em sintonia com o que se fazia no resto do mundo. É importante dizer que o fato de ser ou de não ser efêmera não é o que interessa, porque a arte contemporânea não quer ser eterna. Ela é e não é. Muitas vezes o que fica dela é o registro. É assim com o Projeto Terra. Como eu também tinha a preocupação de documentar o que estava produzindo, fiz tudo o que pude em termos de registro: fotografias, slides, filmes. A ideia que apresentei às bienais foi justamente essa: não fazer peças no âmbito das exposições, e sim levar a documentação do que foi feito no sertão, porque essas obras só têm sentido nesse espaço. E as curadorias, de um modo geral, acataram. Só fiz uma peça do Projeto Terra na Bienal de Veneza, porque chegamos ao consenso de que, além da documentação, deveria apresentar também uma obra, em tamanho real, para que as pessoas pudessem entender melhor o propósito do trabalho. Além das esculturas de grandes dimensões, cheguei a fazer pequenas peças, que funcionam como objetos. O registro sociológico do Projeto Terra é muito importante também, principalmente porque alguns lugares já não existem mais. No documentário O Imaginário de Juraci Dórea no Sertão: Veredas, dirigido por Tuna Espinheira, há uma polêmica entre alguns personagens, porque eles não chegam a um acordo sobre o lugar onde, no passado, uma escultura foi feita. Quase sai uma “briga” para identificar o local exato da Casa do Acaru, que era uma referência importante para a população, mas que ninguém sabia mais onde era. Lembro-me que fiz questão de construir mais de uma escultura nesse local só para ter o registro da casa, porque ela me emocionava muito. Era antiga, já estava em ruínas, mas me comovia bastante passar por ali e ver aquela casa, com toda aquela

história. Então o Projeto Terra também agrega esse valor. Quando, exatamente, você iniciou a execução das esculturas do Projeto Terra no sertão? Eu idealizei o projeto em 1981 e comecei a percorrer o sertão, montando as esculturas, em 1982. A primeira foi na Tapera e, na verdade, nunca parei. O Projeto Terra continua vivo até hoje. De vez em quando, ainda faço algumas peças. Em 2014, fiz algumas na 3ª Bienal da Bahia, durante a Expedição Terra, em que voltei a percorrer as cidades sertanejas onde, no passado, montei as primeiras esculturas, mapeando e instalando novas obras. O Projeto Terra ocupa, então, a maior parte de sua trajetória artística? Não tenho esse controle. Fiz a primeira etapa em função de um concurso de projetos. Posteriormente, ganhei ou-

tros dois concursos: mais um na Bahia, pelo MAM; e outro pela Fundação Nacional de Artes (Funarte). E aí o Projeto ganhou mais fôlego. No início, eu fazia uma ou duas peças por ano, mas vai ficando difícil, o tempo vai passando e a gente vai ficando mais lento. Entretanto, quando penso que parou, surge a oportunidade de fazer novas esculturas. E o Projeto Terra continua. Em ritmo mais desacelerado, mas sempre renascendo. Em 2013, fiz algumas para o filme de Tuna. A última foi esse ano, numa fazenda perto de Ipirá. Como você via as reações das pessoas naquela época e como as vê hoje? Variava muito. Acho que, na primeira fase, o sertão ainda era mais inocente, as informações não chegavam com tanta rapidez, como agora. Então é diferente, até porque, hoje, o sertão está mais “urbanizado”. Mas, naquela época, era muito interessante, porque as pessoas tinham mais pureza, nunca tinham visto aquilo, o contato era mais espontâneo, a gente não ia com medo aos lugares. Andava tranquilo por ali, ficava até de noite fazendo as esculturas, sem nenhum problema. Tinha muitas amizades em Monte Santo. Uma delas era Edwirges, uma velha moradora, que conhecia todo mundo. Era uma figura que abria todas as portas para mim. Fiz um mural na casa dela, algumas esculturas. Ela chamava as pessoas para ver. As últimas peças que montei no sertão foram após a gravação de uma série da Rede Globo. Aí, quando entra a mídia, as pessoas passam a achar que eu estava ganhando dinheiro com as obras. E também começam a perder a pureza nos depoimentos. Fica aquela coisa estereotipada. Agora, as reações são estranhas. Recentemente, após a montagem da última escultura que criei, no Garajal, o proprietário da fazenda

me disse que um morador da região fotografou a peça e colocou a foto no perfil do WhatsApp. As reações são as mais imprevisíveis do mundo. Mas, para mim, os depoimentos antigos são mais interessantes. Eu gravava as impressões verdadeiramente espontâneas das pessoas que se acercavam para ver as esculturas. Quanto mais puras, quanto menos contato tivessem com a cidade, mais genuínas eram as suas opiniões. Os depoimentos de Edwirges são fantásticos. Os dela e os de alguns moradores de Monte Santo e de Canudos. Tem alguns que eu ainda não consegui resgatar, que estão gravados. Espero um dia ter tempo para transcrevê-los. Você acha que o Projeto Terra foi o que melhor cumpriu o que se denomina “função social da arte”? É possível. A gente nunca sabe exatamente o alcance daquilo que produzimos. Acho que o Projeto Terra realmente tem algo mais abrangente. Envolve mais elementos, permite uma maior aproximação com a população, não se limita apenas ao olhar contemplativo. E possibilita a participação do espectador também, ao captar as suas impressões e sentimentos diante daquilo que vê. Então, sim, acho que cumpriu mais essa função. Tudo é permitido na arte contemporânea? A gente precisa olhar a questão sob dois aspectos: o primeiro, da arte em si, onde tudo é permitido. Há uma abertura total, porque o fato é que não há limites para arte. Daí, por exemplo, surgirem exposições polêmicas, que são, indiscutivelmente, arte, ainda que criem questões subjetivas. Na arte contemporânea, o artista pode fazer tudo, obviamente assumindo as consequências. Aliás, depois de Duchamp, tudo é permitido e tudo é normal. A questão é:


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Feira de Santana-Bahia, segunda-feira, 18 de setembro de 2017 o artista pode fazer qualquer coisa, mas é necessário que ele esteja antenado com o que está acontecendo no mundo. Caso contrário, apenas repetirá fórmulas do passado. Ele precisa ter essa preocupação. Não dá mais para ficar numa “torre de marfim”, isolado do mundo e pensando que é um gênio. Ele pode até optar por isso, mas a meia informação não é mais permitida para o artista. Ou ele se isola mesmo e permanece no seu universo pessoal, esperando que dali saia alguma coisa, ou ele capta o que está acontecendo, com o cuidado de preservar a sua autenticidade. Vargas Llosa, na crônica O pau de vassoura, diz que, ao ver uma professora tecer, para seus alunos, um elaborado discurso acerca do objeto, só conseguiu ver um “cabo de vassoura com as cores do arco-íris”. Então caímos na infindável e insistente discussão: não há mesmo nenhum limite para a arte conceitual? Vargas Llosa é muito radical. Gosto de alguns pontos de vista dele no livro A Civilização do Espetáculo, em que critica duramente a arte contemporânea. Ele tem razão em algumas coisas, porque o grande problema é a mistificação. Como tudo é válido, muita mistificação está sendo feita. Mas existem artistas sérios, que podem produzir uma obra nesse nível com total fundamento. O próprio Duchamp fez isso, ao transformar um urinol em objeto de arte, com o propósito de desconstruir os antigos e rígidos preceitos de uma arte que tinha toda uma trajetória histórica. Então a arte contemporânea se presta a isso, mas claro que estamos falando, aqui, de artistas sérios, que produzem com profundidade, com projeto. No entanto, sempre se está sujeito a cair na mistificação. A gente sabe que é um risco, porque não se exige mais o artesanato.

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O artista, inclusive, pode não fazer nada. Ele pode trabalhar com ideias ou mandar alguém produzir o que ele pensou ou, simplesmente, não criar uma obra física. Tudo é válido. Nessa perspectiva, acho que o Vargas Llosa tem razão. De fato, é difícil comparar certas obras contemporâneas com, por exemplo, As meninas, de Velázquez. Não é que a gente esteja se rendendo à pintura, é apenas um exemplo. Como você se sente no universo artístico atual, considerando o início de sua carreira e sua trajetória até aqui? Para responder a essa pergunta, eu preciso voltar às questões que levantei, completando a resposta anterior. Então, o segundo aspecto é o mercado. Como se situar no mundo atual? Essa é uma questão muito complicada. Hoje, é muito mais difícil. Todas essas conquistas que tive – participações em bienais e salões de arte – aconteceram porque aquele era outro tempo, onde se realizavam concursos. Então eu podia me inscrever, mandar minhas obras e concorrer. Era possível se arriscar a competir e ter uma oportunidade de entrar nesse universo. Hoje, não. O artista é convidado. E, cada vez mais, muitas galerias manipulam essa participação, sobretudo no eixo Rio-São Paulo. Quando abrem para artistas de fora, é necessário ter mecanismos para ser convidado. Raramente você pode mandar um trabalho e competir pela participação em um evento importante, sobretudo nos circuitos internacionais. Não existe mais isso. É um mercado mais fechado. Atualmente, quase não há salões de arte. E quando há, não motivam mais ninguém, porque já não existe repercussão, visibilidade. No passado, um salão nacional mobilizava o Brasil todo. Depois, quando saía o resultado, era uma polêmica, discutia-se sobre quem entrou, quem Foto: Alfredo Mascarenhas

Juraci Dórea gravando sequência em Super 8, em Monte Santo - BA, 1976

foi cortado. Era uma coisa viva. Hoje, até as próprias exposições estão esvaziadas. O público é sempre muito pequeno. Muita coisa mudou nesse percurso. Agora, para um artista conseguir vincular a sua obra, é necessário que a mesma tenha algo mais, que chame a atenção. Quando surgiu o mercado de marchands e galeristas, a arte passou a ser, de certa forma, dirigida, implicando na perda de criações autênticas? O risco realmente existe, porque há um direcionamento do que está se fazendo. Há mais restrições em relação ao mercado. As curadorias são mais selecionadas. Então o artista acaba sendo influenciado a criar segundo o modelo que ele sabe ter mais chances de ser “aceito”? Sim, também. Mas alguns artistas estão fora desse circuito e produzem pela sua própria consciência. Atentos ao que está acontecendo no mundo, mas querendo estar fora desse sistema. No passado, também existiam artistas que produziam para os salões, porque sabiam as coisas que seriam aceitas. O perigo de se deixar influenciar pela visão dos marchands e dos críticos de arte sempre existiu. Que visão você tem do conjunto de sua obra? Queria ter tempo para produzir mais. A 3ª Bienal da Bahia me deu uma certa tranquilidade, porque a gente fica sempre naquela angústia em relação ao que está fazendo. A minha participação no evento, com a Expedição Terra, foi algo espontâneo. O curador, Marcelo Rezende, descobriu a minha obra sem que eu estivesse participando de nenhum circuito. Ele resgatou a minha produção com um vigor que me surpreendeu. E me deu fôlego para produzir mais, porque, pensando bem, é uma pessoa que vem de fora e demonstra conhecer o meu trabalho mais do que qualquer pessoa na Bahia. Por isso fiquei muito feliz com o convite. Quase paralelamente, a crítica de arte inglesa Lucy Steeds soube que participei de três

bienais, com o Projeto Terra, em anos seguidos – a de São Paulo, em 1987; a de Veneza, em 1988; e a de Havana, em 1989. E passou a estudar as formas como eu apresentei o trabalho, já que, em cada exposição, ele foi mostrado de uma maneira diferente. Também é uma pessoa com a qual eu não tinha nenhuma relação. Não a conhecia. Ela descobriu minha obra através de uma crítica escrita por um artista uruguaio para o catálogo da Bienal de Havana. E apresentou o resultado de sua pesquisa na penúltima Bienal São Paulo. Fez uma palestra também na Bienal de Veneza. Quando criamos, não temos muita noção do que pode vir a acontecer, porque nunca sabemos o real alcance de nossa obra. De repente, vem alguém de fora e descobre a nossa produção, mesmo a gente estando isolado, no interior, sem participar dos grandes circuitos. Na Bahia, meu trabalho veio ter uma maior visibilidade com a 3ª Bienal. Foi a primeira vez que minha obra teve uma grande repercussão em Salvador. E graças a uma pessoa de fora. Isso é muito complicado. Minha obra circulava no Brasil todo

e aqui não. Recentemente, também participei da Bienal do Mercosul. E, essa semana, cinco trabalhos meus estão na exposição coletiva Memórias do Subdesenvolvimento, em San Diego, Califórnia. Para você ver como as coisas vão ganhando uma dimensão que foge ao nosso controle. Nesse tempo de valores tão líquidos, como disse Bauman, você acha que sua obra se mantém forte em função da autenticidade, integridade, pureza e até resistência frente às forças do mercado? Sim. Esses são os fatores principais. Mas também eu não saberia fazer de outra forma. E isso, inclusive, foi o que me manteve em Feira de Santana. Mesmo isolado da cidade de hoje, o universo e o imaginário de Feira, que eu cultivo desde a minha infância, me mantiveram vivendo aqui. Acho, realmente, que a força do meu trabalho está na fidelidade a esses valores. Entretanto não é uma coisa intencional. É algo que está enraizado em mim de tal modo que só entendo o mundo, a vida, a realidade a partir disso. Os valores antigos do universo sertanejo me emocionam. É o que consigo

traduzir na minha pintura, na minha escultura, nos objetos que crio. Essa era minha grande angústia: tentar fazer uma obra contemporânea, mas com os meus valores, com as minhas raízes. E teve momentos em que realmente eu ficava pirado. Durante a primeira fase da minha produção, eu me policiava o tempo todo, para não correr o risco de cair no folclore, no artesanato. Tinha muito medo disso, porque estava lidando com coisas que já existiam e que eram muito fortes; coisas que eu buscava como referenciais, mas para fazer peças contemporâneas. Essa era a minha grande briga interna. E nem tudo o que eu mandava para os salões de arte era aceito. Algumas obras eram cortadas e eu ficava “retado” da vida. (risos) Não gostava muito não, mas persisti. E o engraçado é que essas obras, hoje, é que estão chamando a atenção, porque elas falam de um tempo, de uma memória. Os materiais também. Tudo estava em sintonia com o mundo, na época. Em que fase ou em que modalidade artística você acha que conseguiu resolver esse conflito?

Teréns 03. Juraci Dórea. Couro, pigmento, metal e jornais, 2014/ Foto: Juraci Dórea


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Acho que na pintura, sobretudo na série Histórias do Sertão. E também nos trabalhos em couro. São momentos em que consigo sintetizar bem o universo sertanejo. Essas fases nascem praticamente juntas, tanto que os primeiros trabalhos de Histórias do Sertão eram pintados em couro, mas com carvão. Posteriormente, passei a utilizar placas de eucatex, desenhando também com carvão. É quando resgato o universo da cultura popular, presente, principalmente, nas ilustrações dos folhetos de cordel. Daí em diante a obra vai mudando. Vem a série Fantasia Sertaneja, vem Ecce Homo, vem Os Brasileiros e outras variantes com cor, sem cor... Atualmente, trabalho a série Cenas Brasileiras. Não há a preocupação de modificar o meu trabalho. Ele muda sozinho, quando quer. Meu processo é de repetição, como se quisesse aprimorar, entende? Até que chega o momento em que muda por conta própria. E o caminho passa a ser naturalmente outro. Hoje, alguma coisa, além do imaginário sertanejo, te influencia? Não posso fugir do universo sertanejo. Gostaria de achar o sertão mais profundo. Às vezes, viajo, mas sem querer me afastar disso. Na verdade, tenho viajado mais nas fotografias antigas do sertão do que na realidade. O sertão profundo, que a gente identifica ainda em alguns lugares, me interessa muito, assim como certos valores, como material bruto, para eu trabalhar. No entanto, eu não posso ficar alheio ao mundo. O que me angustia muito, hoje, é querer explicar o mundo atual. Isso tem que estar na obra também, porque estou vivo ainda. A exposição comemorativa dos 100 anos do Museu de Arte da Bahia tem um pouco disso. Em algumas peças, aparecem essas inquietações do mundo atual. Minha obra não está pronta. Sempre há a possibilidade de criar coisas novas. Estou em Feira de Santana, mas não estou pensando só em Feira de Santana, estou pensando no mundo também. Leio muito.

Foto: Selma Oliveira

Não sou viciado em internet, a ponto de ficar catando novidades. No entanto, a essência das mudanças me atrai. Estou sempre buscando o diálogo entre passado, presente e futuro. Isso está presente no meu trabalho o tempo todo. Às vezes, consigo traduzir isso na pintura. Às vezes, na escultura. Outras, só na poesia. Cada coisa que faço só pode ser dita com determinada linguagem. Ou é a palavra ou é a tinta ou é o objeto. Você também trabalhou o sertão na fotografia e no cinema. Que peso essas artes têm na sua produção? A fotografia e o cinema começam a surgir na minha trajetória pelo desejo de registrar certas coisas. É a ideia do arquivista, do cara que gosta da memória... Então começa com pequenos documentários. Em dado momento, a fotografia já não dava conta. Foi então que tive acesso ao Super 8 e foi uma grande descoberta. Comecei a produzir alguns filmes, mas era muito difícil, porque tinha que mandar as cópias para fora, esperar voltar, achar quem editasse, quem colocasse trilha sonora. Tenho muita coisa rodada em Super 8, inclusive o documentário Terra, que é um registro do projeto, cuja parte de fotografia foi feita por Robinson Roberto. E estou tentando transformar outros em CD. Também tem muita coisa bruta, sem finalizar, porque exige um processo complementar muito trabalhoso e eu nunca tive tempo. Ficou esse sonho de voltar a produzir cinema. Gostaria de dedicar mais tempo a ele. A arte tem mais público, hoje? Se você pensar na internet, poderia dizer que sim. Mas acho que não. A arte está cada vez mais restrita. Se você pensar no universo da nossa cidade, por exemplo, quem se interessa por arte, atualmente? Pouca gente. Os jovens não estão discutindo arte. Poucos estão. Por isso acho que o público da arte está cada vez mais restrito. Você enxerga algum caminho

Exposição Crônicas Sertanejas, em cartaz no Museu de Arte da Bahia até 10 de outubro

para mudar essa lenta agonia da perda de público? A resistência. Acho que os artistas têm que continuar a produzir sem se preocuparem com público, sem aquela angústia de encher exposições. Uma mostra pode ser feita para poucas pessoas. Até porque, no fundo, o artista produz por uma necessidade interior e para se comunicar com o outro. Mas a gente sabe que são poucos os que leem poesia, vão a uma exposição. Então não se pode desanimar porque o público está reduzido, até porque, de vez em quando, a gente tem uma surpresa. De repente, uma pessoa que você nem imagina vê seu trabalho e passa a admirá-lo. Os estudantes também nos surpreendem quando se lembram de nós. Há uma dificuldade da arte em lidar com o mundo virtual ou de se mostrar através dele? Não. Acho, inclusive, que o mundo virtual pode ajudar. Alguns artistas já usam muito essas novas ferramentas tecnológicas. No meu caso, não, porque não sei lidar bem com essas coisas. Não quero perder tempo diante de um celular, mas reconheço que a tecnologia, a mídia, a internet são ferramentas fantásticas. Se o artista tiver tempo disponível, a tecnologia pode contribuir muito. Para a liFoto: Juraci Dórea

Mural da Casa de Edwirges, Projeto Terra, Monte Santo - BA, 1984

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teratura, funciona de forma extraordinária. Para a própria pintura, para a escultura, ela abre boas oportunidades de divulgação. Se você mostra o seu trabalho, claro que a repercussão vai ser grande. Basta uma notícia de poucos minutos na televisão para um artista ter um público multiplicado. Então é claro que as novas tecnologias podem ajudar a arte. O problema é você ter acesso e tempo. Sua obra acabou criando um imaginário de Feira e se transformou numa marca identitária da cidade. Como você enxerga o atual cenário cultural feirense? Hoje, quando penso em Feira, sinto uma grande angústia. Passei a vida toda pensando em cultura, pensando na cidade e, às vezes, tenho a sensação de que não contribuí com nada, porque vejo a cidade desorganizada, caótica, com essa desvalorização dos museus, dos espaços culturais, dos próprios artistas. Se bem que esse não é um fenômeno específico de Feira, mas moramos aqui e trabalhamos para que a cidade seja melhor e isso não acontece. De modo geral, há um descaso muito grande com a cultura. Os governantes mantêm ainda certos espaços como se fossem um faz de conta. E isso me angustia. Parece que cansei de falar dessas coisas e de me preocupar com isso. A essa altura, me resta continuar trabalhando, produzindo, fazendo o melhor possível, mas sem estar preocupado em tentar salvar o mundo. Creio que não vou salvar Feira de Santana mais.

Às vezes, perdemos horário de lazer, dormimos tarde, sacrificamos família, principalmente quando precisamos batalhar pela sobrevivência. Trabalhamos o dia todo e fazemos arte nos momentos de descanso e diversão. O principal para um artista é a vontade de criar. Se ele realmente não pode deixar de fazer arte, se é vital para ele, é continuar fazendo, independente do que ocorrer, dos incentivos, dos prêmios, dos reconhecimentos. Você fotografou muitos casarões antigos antes de serem demolidos, na tentativa de preservar a memória afetiva que tem de Feira. Vendo que quase nada restou do perfil arquitetônico da cidade, como você se sente? Esse material está para ser publicado em forma de livro, inclusive, e será interessante para quem for pesquisar sobre a cidade, porque registrei várias fases dessas demolições. Não ficou quase nada e perdemos a oportunidade de viver em uma bela cidade. Era uma arquitetura agradável. Se você pegar fotos antigas de Feira, vai ver que era uma cidade bonita, humana. Hoje, você olha a cidade e sente tristeza. Fora poucas construções contemporâneas, a Feira de Santana atual, de modo geral, é feia. No início do século XX, o centro, principalmente, era muito bonito. Quando percebi que

tudo ia desaparecer, comecei a fazer as fotografias, como forma de preservar a memória do perfil arquitetônico. Fotografei alguns prédios ainda originais, após as primeiras descaracterizações e depois das demolições. Isso vai ficar para que as pessoas pesquisem o que foi a arquitetura eclética em Feira. Não tinha como impedir essa destruição, então o que pude fazer foi manter a memória da arquitetura antiga. A perda do perfil arquitetônico é fruto de uma grande insensibilidade. Havia casarões belíssimos em Feira, que podiam estar aí cumprindo outras funções. Atualmente, só há dois ou três prédios, entre eles o da prefeitura, que está de pé por força mesmo de ser um prédio público, o que impede a sua demolição. Mas o feirense nunca teve sensibilidade para preservar a memória da cidade. Hoje, Feira é uma cidade sem personalidade, sem identidade, sem alma, porque todos os valores e referenciais foram destruídos. A perda da feira livre teve um grande impacto na destruição da nossa memória também. Eu tento não ser saudosista, mas o que me chateia é a burrice. Se você pegar os jornais antigos, vai ver que Jorge Amado foi um grande embaixador da Bahia, de um modo geral. E quando trazia as personalidades para Salvador, queria mostrar também o sertão. Então as trazia para conhecer Feira. Ele trouxe Di Cavalcanti, na ocasião da inauguração do Museu Regional de Arte; trouxe Sartre, que visitou a feira livre junto com Simone de Beauvoir. Quem viria aqui hoje? Se Jorge Amado estivesse vivo, ele traria alguém aqui? Para ver o que mais em Feira de Santana? Antes, não. Ele trazia as pessoas para ver a feira livre. O filme Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, começa no Campo do Gado. E Glauber não escolhia qualquer lugar como locação de seus filmes. A gente perdeu tudo isso. Era uma cidade que tinha um imaginário do sertão. Hoje, tem uma caricatura. Tudo está pasteurizado. Não há mais identidade. Cada dia mais, Feira de Santana perde suas raízes.

Série Ecce Homo. Juraci Dórea, década1990/ Foto: Juraci Dórea

É o que diria a um artista que está começando aqui? Acho que os artistas têm que ser fieis aos seus valores pessoais, às suas consciências, permanecendo um pouco alheios ao exterior, porque se depender do incentivo da cidade, ninguém vai para lugar nenhum. Um artista não tem futuro se esperar por isso. A gente vê que muitos começam e desistem no meio do caminho. Creio que muito por conta disso. O verdadeiro artista faz arte por uma voz interior.

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