TRIBUNA CULTURAL JUNHO DE 2019

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ANO V - Nº 199

FEIRA DE SANTANA-BAHIA, 30 DE JUNHO A 31 JULHO DE 2019

Graça Ramos: “Nunca me conformei com a obra de arte estagnada, inútil” Ísis Moraes

Dona de uma significativa, vigorosa e extensa obra figurativa, a artista plástica feirense Graça Ramos também transita, com total desenvoltura, pelo abstracionismo. Para ela, na arte, tudo é matéria e tem dimensão própria, ainda que as formas se apresentem insondáveis. A artista entende os quadros que produz como organismos vivos. São como extensões do seu ser, materializadas com o propósito de provocar, em quem as vislumbra, as mais profundas sensações. Doutora em Belas Artes pela Universidade de Sevilha, onde, em 1997, defendeu a tese Descontextualização do suporte pictórico: a tela, aprovada, com louvor, por unanimidade, Graça Ramos, hoje aposentada, foi Professora Titular e diretora da Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Pesquisadora contumaz, além de uma vasta produção no campo da Arte-Educação, a artista desenvolveu uma série de estudos sobre Arte Contemporânea, dentre eles a Teoria do Objeto Perdido, que transforma a matéria, o expurgo das sociedades de consumo e o olhar em protagonistas da obra de arte atual. Nessa entrevista, a artista, dentre outros assuntos, fala sobre seu processo de criação e sobre as investigações acadêmicas que culminaram na criação de suportes tridimensionais e na utilização da luz elétrica na obra pictórica, trabalho que subverte a antiga concepção de arte plana, estática, intocável. O pintor e escultor argentino-italiano Lucio Fontana, o artista plástico espanhol Manuel Millares e o pintor catalão Antoni Tàpies serviram de inspiração e reflexão artística, sendo decisivos no direcionamento da pesquisa da artista, que, a partir do contato impactante com suas obras, revolucionárias para as primeiras décadas do turbulento século XX, passa a elaborar um relevante estudo sobre o cubo convertido em obra de arte lumínica. Incessantes experimentações levaram Graça Ramos a construir suas belas e instigantes Caixas de Luz, dando volume, corpo e vida interior ao que, antes, era bidimensional e inerte. Híbridos de carga matérica e de uma luminosidade ora vazada em cortes, ora filtrada por tecidos transparentes e tramas, como frestas, janelas a estabelecer conexões entre o exterior e o interior e a revelar o mistério por trás das coisas aparentes, seus quadros seduzem os espectadores e os conduzem a experiências únicas, das quais também são participantes ativos, porque, além de poder manipular as obras, são impelidos a atuar como seus cocriadores. Em meio século de produção artística constante, Graça Ramos, que, atualmente, está com uma exposição em cartaz em Salvador, participou de diversas mostras nacionais e internacionais, numa trajetória que inclui Bienais, Feiras, Exposições Individuais e Coletivas, com premiações em importantes Salões de Arte. A todos os cantos do mundo, ela garante levar Feira de Santana consigo. De fato, os elementos que constituem a identidade cultural da região na qual a cidade está inserida são presenças marcantes nas telas da artista, sempre rendilhadas de crochês e calhamaços, bordados de luz de sua terra sertaneja.

Fotos: Ísis Moraes

presente de fim de ano das lojas do comércio de Feira. Ainda conservo dois desses primeiros trabalhos, emoldurados na vidraçaria Torres, por meu amigo Agnaldo.

Em que momento da vida soube que a pintura era a sua vocação? Desde que dei o primeiro grito! (risos) Desde sempre, preciso da arte como o corpo precisa da água para sobreviver. Eu me descobri artista nos primeiros anos da infância, quando brincava com o barro amarelo que forrava o chão da Kalilândia, em Feira de Santana, minha terra natal. Desenhava nos cadernos de sala de aula. Era um (ou mais) por semana. Minha mãe se queixava dos gastos, as professoras diziam que eu não queria nada... (risos) No terceiro ano primário, fui reprovada, em matemática, mas meu caderno estava todo de-

senhado! Que maravilha! Viva minha mãe, professora Maura Ramos, que não deu importância ao que a colega dela fez, ao me reprovar, por um ponto! E contestou a convocatória em bom tom: “minha filha é uma artista!” Ainda menina, meu irmão Arnóbio (já no descanso) preparava, lixando muito bem, pequenos pedaços de compensado, que me serviam de suporte para pintar com tinta a óleo (esmalte sintético), de várias cores, que minha mãe comprava. E a copa lá de casa, depois do almoço, convertia-se em meu primeiro ateliê. Aos 13 anos, comecei a estudar pintura em tecido, com a professora Estelita e, depois, pintura em tela. Copiava as paisagens das folhinhas de calendário,

Para você, o que é a pintura ou arte, se quiser ser mais abrangente? A arte é uma expressão da alma, inerente ao ser humano, que dá, ao artista, a liberdade para comunicar-se de forma inusitada, utilizando signos, símbolos do consciente ou do subconsciente, do mundo fantasmagórico. É um alimento para a nossa alma. Um meio de comunicação, um rastro que vem contando a História da humanidade. Absolutamente, não é fácil conviver com tantas percepções. A arte é necessária para não se morrer de tédio! Não importa a matéria de expressão, tudo capturado pela mirada é passível de ser transformado em elementos de composições insólitas, mesmo para o artista, veículo manipulador de criações absurdas! A obra de arte é um organismo vivo, extensão do nosso ser. Nasce do desejo da alma. Circula, em ebulição, na nossa corrente sanguínea, por isso visceral e anímica. A arte

é intrínseca ao DNA do homem. Não é para ser compreendida, mas tangida pelos sentidos. Não importa se fotográfica, real ou representativa: vive do que é inerente à vida humana. Mas cria sua própria realidade, deixando-se penetrar por outrem. Por ser linguagem, a arte é meio de comunicação. Por ser poesia, não pode ser mentira. Para mim, pintar, ou melhor, fazer arte é sina, obrigação, dever, necessidade vital ! Não pinto para enriquecer galeristas nem decorar casas de novos ricos e burgueses ávidos de mais poder. Sou compelida, quase diariamente, por uma força interior, a expressar formas e cores que carrego no DNA. É destino, desígnio, dom de Deus. Não posso evitar ou controlar. Todo artista plástico percorre um longo caminho até encontrar sua identidade pictórica, aquilo que marca a sua obra e que faz com que as pessoas a reconheçam, pelos traços, à primeira vista. Como chegou a isso? A identidade da obra nasce de um processo


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Feira de Santana-Bahia, 30 de junho a 31 julho de 2019 Fotos: Ísis Moraes

Detalhes do interior das Caixas de Luz criadas por Graça Ramos; artista também pinta e ilumina o avesso das obras, atos que surpreendem e fascinam o espectador constante. Vi, na TV, uma entrevista de um ceramista e pintor conhecido como Antônio Poteiro, na qual deu um depoimento muito verdadeiro. Ele disse: “um quadro ensina ao outro”. Isso é fantástico! Também o artista alemão, naturalizado brasileiro, Hansen Bahia, meu professor de xilogravura, dizia, sempre, em sala de aula, que, para ser artista, de verdade, era preciso trabalhar todos os dias, das 6 horas da manhã às 18 horas da tarde! Aprendi com ele. E, em meio século de arte, de trabalho constante, é natural que meu trabalho seja marcado por características que o definem, ainda que seja tão diversificado. Há um interesse maior pelo figurativo, na sua obra. Por quê? Convivo com imagens, muitas vezes, desconhecidas, que surgem de dentro de mim. As figuras, representações da forma (que pode ser real ou abstrata), são concebidas pelo impulso (desejo da alma) e pela força motriz do corpo. Ainda que não houvesse mãos ou pés, alguma outra parte do meu corpo desempenharia essa função inevitável. Mesmo as formas abstratas têm vida própria, também são representações, possuem um corpo, uma força própria e são matéria. Como pesquisadora de

arte, desenvolveu muitas teorias sobre Arte Contemporânea. Uma delas é o que chama de Teoria do Objeto Perdido. Em que consiste? Pode-se classificar a palavra objeto como algo fora de nós. Algo coisificado, aparentemente sem vida própria, inerte. Abranhan Moles (1974) diz que “O objeto se converteu em elemento essencial de nosso entorno”. Diria mais: algo material ou mesmo virtual, coisificado, mas que faz parte da natureza, da vida do homem, incorporando-se, algumas vezes, ao próprio organismo, como as próteses. Como bem disse Bergson (1974), as coisas existem independentemente do olhar. O objeto existe por si mesmo. No entanto, na imagem virtual, quando a coisa ou objeto é mero produto da visão do observador, as luzes, as sombras, os reflexos, elementos do mundo fantasmagórico, ainda que reais, em seus conteúdos, são impalpáveis, intangíveis. São imagens que, apesar de mostrarem uma realidade efêmera, pertencem ao mundo da tecnologia, mas são intocáveis. Na vida cotidiana, deparamo-nos, a todo instante, com as coisas que despertam ou não nosso interesse ou anseio de tocá-las, adquiri-las ou mesmo rejeitá-las. São os objetos de desejo, muitas vezes descartáveis, que nos cercam, formando parte de nossas vidas. O simbolismo

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e a poesia se associam para dar nova vida ao que não mais existe. Assim, o que era objeto desprezado, lixo do cotidiano, coisa imprestável e deixada de lado é transformada em ready-made, passando à categoria de obra de arte, recebendo todo o triunfo e chegando, dessa forma, à independização do objeto estudada por André Breton. Desde o surrealismo e o dadaísmo, até nossos dias, o objeto vem tomando novos significados. Através da arte, o impossível e o sonho tornam-se realidade. O dadaísmo revolucionou o mundo da percepção, com intuito de desarticular o público e, principalmente, a crítica, provocando o choque na mente das massas, acostumadas ao hábito e à tradição. Também queriam provar “a importância intrínseca dos objetos, à margem de sua utilidade e dos valores reconhecidos habitualmente” (RICHTER, 1984). Entre 1916 e 1918, os artistas dadaístas começaram a se libertar do objeto tradicional, encetando o caminho da forma pura. Em verdade, o que o francês Marcel Duchamp (1887-1968) queria era valorizar o objeto em relação ao homem. Segundo ele, o objeto tem seu próprio encanto, fala por si mesmo. Para Duchamp, não vale a pena criar uma obra que não cause impacto ao observador. Uma obra de arte deve comunicar algo que está implícito em

seu conteúdo. Por si mesma, ela é um discurso ou um poema mudo. Por tudo isso, o objeto vem tomando novos significados. Como diria Henri Focillon, a arte de hoje, mais do que nunca, busca reencontrar com o objeto perdido. E o objeto reencontrado, desde o momento em que é visto, passa a pertencer ao artista, sendo transportado a outro lugar, para exercer outra função: a de obra de arte. Na Arte Contemporânea, muitos artistas utilizam materiais e objetos abandonados. Seja qual for a origem do objeto, o vínculo estabelecido com o capturador de imagem legitima o ato criador. E a arte deixa de ser uma mera representação das coisas. O objeto passa a ser a própria arte. Ele sai do estado de abandono para o universo dos museus, galerias de arte ou coleções particulares. Do mundo industrial, do lixo ou do acaso, reencontrar com o objeto perdido é como materializar uma ilusão interior, onde o tempo perdido é refeito, pelo prazer de uma poética do olhar. É do olhar que todas as coisas nascem. As formas saltam aos nossos olhos, quando as contemplamos. O olhar é o primeiro denunciador da obra. A matéria informe, o espaço vazio, os gestos e o olhar são os principais protagonistas da obra de arte, hoje. Ao longo de sua car-

reira, também inovou em termos de técnicas e suportes, dando ao quadro outras dimensões e carga matérica, jogando por terra os conceitos de bidimensionalidade e de obra de arte enquanto objeto estático. Como descobriu essas possibilidades? A busca infinita de reelaborar a matéria pictórica e seu suporte, para criar uma obra mais fresca, mais instigante e “indagativa”, coincidentemente por ser esse um dos sentidos da Arte Contemporânea, foi o que me deixou com a percepção aguçada e o olhar de fera em busca de presas, para saciar a fome, em luta pela sobrevivência. Ao confeccionar as telas, de maneira acadêmica, sobravam-me muitos retalhos de tecido. Então, por volta de 1980, comecei a cortar e a costurar minhas telas, aproveitando esses pedaços de pano para fazer diversas experimentações, dando volume ao que antes era plano e estático. Dessa forma, consegui as primeiras telas volumétricas, tridimensionais e utilitárias. Surgiram as primeiras obras remendadas à máquina. Basicamente, trabalhei com impulsos empíricos. Inicialmente, as emendas eram tímidas e limitavam-se aos planos com pequenos relevos. Pouco a pouco, foram invadindo o espaço, tornando-se compartimentos utilitários e passando a ter uma dupla função: de ser objeto contemplativo e,

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ao mesmo tempo, manipulável e utilizável. Lembro que, no começo da primavera de 1984, quatro meses após o nascimento do meu filho, Genaro, depois de uma tradicional sesta, levantei da cama com um pensamento conjecturado há tempos, pois vinha juntando sacos de retalhos dessas telas, com um propósito ainda não estabelecido. Então, como um vulcão, “vomitei”, com todo desejo do meu ser, toda criatividade que estava esperando o bote certo. Comecei a costurar, na minha velha máquina Singer, aqueles pedaços em todas as direções, sem obedecer às tramas e urdiduras que formam o tecido, contrariando totalmente a Teoria do Suporte Tela, que aprendi com o professor João José Rescala. As investidas sobre esse tipo de suporte prosseguiram ao longo de, aproximadamente, sete anos, enquanto ainda estava no Brasil. Outra característica marcante de sua pintura é a utilização da luz elétrica, na maioria das vezes vazada em cortes ou filtrada por rendas, crochês e outras tramas delicadas ou rústicas. De onde veio a inspiração para criar o que chama de “Caixas de luz”? Na Espanha, onde fiz meu doutorado em Belas Artes, na Universidade de Sevilha, em busca de soluções que permitissem dar continuidade a novos campos

OS TEXTOS ASSINADOS NESTE JORNAL SÃO DE RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES. Registro de Publicação 2002 a 2006 - 01 a 174 2009 - 175 a 177 2015 - 178


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Feira de Santana-Bahia, 30 de junho a 31 julho de 2019 Caixa de Luz. Graça Ramos. Técnica mista sobre tela, 2015/ Foto Ísis Moraes

de investigação visual, o suporte tela foi enfaticamente estudado, na tentativa de dar-lhe outros significados, porque, na arte, a matéria tem dimensão própria. A maior preocupação proposta foi desmistificar a tela como suporte artístico, dando-lhe novo espírito, desarticulando a velha estrutura, no sentido de instaurar novos resultados ou efeitos plásticos. O importante não era realizar um quadro, mas buscar soluções, encontrar respostas, porque já não me satisfazia executar uma pintura de forma tradicional. No entanto, não se tratava de destruir, negar ou desconhecer tudo o que foi feito anteriormente. A pretensão era observar outras possibilidades, desenvolver outro capítulo sobre a história do quadro, proporcionando ao suporte outra função, além de receptáculo de camadas pictóricas. Queria fugir à tradicional estética e fazer com que o espectador se sentisse estimulado a manipular o trabalho, a ser cúmplice da obra, a tocá-la. Continuei minha pesquisa e, num insight, caminhando pelas ruas de Madri, percebi a luz através das janelas dos edifícios. Naquele momento, eu me dei conta de que os prédios eram caixas iluminadas. E passei a pintar também com a luz. Assim surgiram as Caixas de Luz. Minha obra se tornou lumínica, híbrida de carga matérica e luz, por efeito dos diversos tipos de tecidos e tramas, agregados com o propósito de tirar partido tanto da pintura tridimensional quanto das transparências. A translucidez refletida por esses espaços abertos, às vezes furtados das “ventanas” da Espanha

ou dos vitrais góticos da Europa, representam o volume e a fluidez das cores lumínicas, que têm caráter efêmero, transmitindo a dimensão da capacidade evocadora dos reflexos, brilhos e sombras, com a finalidade de despertar sensações profundas no ser. A utilização dessas tramas, muitas delas características do sertão baiano, é, também, uma forma de evocar os elementos que constituem a identidade cultural de seu torrão natal? Como Feira de Santana aparece na sua obra? A feira livre; as cortinas de chitão e renda das barraquinhas de todas as iguarias do sertão; os sacos de calhamaço; as roupas de cama, mesa e banho; as redes; as Casas Pernambucanas; os bordados, feitos à mão, dos enxovais de noivas... Tudo isso (e muito mais) me deixava (e continua me deixando) louca, ávida por criar e recriar. Feira de Santana é raiz, base, sustentáculo, fonte primeira, de onde jorra, permanentemente, a inspiração poética que transborda na minha obra, no meu modus vivendi. A Kalilândia era, para todos nós, seus habitantes, um condomínio, uma vila, ou melhor, uma república independente. E eu, particularmente, continuarei fazendo com que esse lugar, minha “aldeia”, permaneça indelével, tanto em nosso país quanto no estrangeiro. Onde pisar, deixarei as marcas de

nossas raízes, traduzidas em formas e cores! A tudo isso se soma a experiência vivida na Espanha, com suas cortinas de renda coando a luz que passava pelas “ventanas”... Meu Deus, a luz de Castilha! As capas dos toureiros! Vermelha Espanha de Saura, que explode em fogo! Tudo tão entremeado de sonhos e ilusões que também determinam minha obra. O Brasil é minha pátria, pela qual sou apaixonada. Toda nossa cultura miscigenada, naturalmente, está impregnada em mim, mas a Espanha é minha segunda casa, lugar a que fui destinada a viver, aproximadamente, sete anos. As figuras e paisagens que você cria povoam não somente o exterior de seus quadros. A maioria deles também tem vida interior.

Caixa de Luz. Série Intestino da Cidade. Graca Ramos. Técnica mista sobre tela, 2003/ Foto: Ísis Moraes

Olhando através das frestas abertas nas telas, o espectador é quase sempre surpreendido por rostos e símbolos que compõem narrativas pictóricas secretas, gravadas em seus avessos. Parecem grávidas ou dotadas de ossatura e alma. Por que pintar o que está fora do alcance do olhar desatento? Como a gente, a obra de arte tem corpo, alma e espírito. A ideia nasceu dessa premissa, pensando no Criador e na criatura, na formação do homem segundo a Bíblia. Na verdade, queria ver minhas personagens em movimento, animadas, como no cinema, interagindo com o espaço. E comecei a elucubrar possibilidades de expandir essas figuras, não somente na superfície tradicional externa, mas também em suas laterais e interior, como num

ventre, de fato. Porque me dava pena ver o esperdício do vazio, no interior. Nunca me conformei com a obra de arte estagnada, inútil. Por isso criei as telas em forma de caixas, onde a luz pudesse explodir do âmago da obra, invadindo o lugar, desenhando formas efêmeras e coloridas, fazendo festa no espaço! Como os espectadores reagem a isso? As reações do público consumidor visual são de espanto, surpresa e prazer. Amo ver as pessoas interagindo com os trabalhos, penetrando seus interiores, fazendo Selfies, dialogando com outras pessoas e com as próprias telas, pois esse é um dos objetivos previstos na concepção da minha obra. Sua obra está inserida

Graça Ramos. Técnica Mista sobre tela, 2010/ Foto: Ísis Moraes

no que se denomina Arte Contemporânea? Quais elementos a posicionam nesse recorte? Sim, minha obra está inserida no fazer arte atual, porque ela está impregnada de elementos e signos do nosso tempo: os objetos descartáveis, aproveitados do lixo industrial e doméstico; dispositivos das novas tecnologias; dentre outras propostas, que possibilitam leituras e questionamentos relacionados aos aspectos social, econômico e político. Considera que tudo o que chamam arte, atualmente, é arte mesmo? Não. Nem tudo é arte. Há, em nossos dias, uma banalização, de fato, no fazer artístico, uma confusão entre os que se denominam, sem nenhum critério, artista. No entanto, o mais importante, no fazer arte atual, é a expressão, a comunicação sígnica. Em que fase está a sua obra, hoje? A que tem se dedicado? Meu trabalho, hoje, é reflexo de um processo constante, da maturidade e das experiências da própria vida. Um constante esboço que flui do âmago. Uma procura por algo que se acomode dentro de mim. Já participou de várias mostras internacionais. Quais marcaram a sua carreira? Uma grande individual, em 1980, na Penn State University, nos Estados Unidos, com desenhos e gravuras, foi um enorme êxito. No Círculo de Belas Artes, em Madri, uma enorme coletiva, resultado de um “Taller” de


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Feira de Santana-Bahia, 30 de junho a 31 julho de 2019 Feira livre de Feira de Santana. Graça Ramos. Técnica mista sobre tela, 2002/ Foto: Ísis Moraes

Escultura, cujo orientador e curador foi o escultor inglês Richard Dacon, também me marcou muito. Outra exposição notável, com o artista espanhol Carlos Franco, aconteceu também no Círculo de Belas Artes. Na verdade, uma decoração de carnaval. Atualmente, está com uma exposição em Salvador? Do que trata a mostra? A matéria é bela em sua essência é o nome da exposição que está instalada no Espaço Cultural DNA, localizado na Rua Território do Acre, 65, Pituba. Com curadoria de Luiz Cláudio Campos, permanecerá em cartaz até o dia 31 de agosto. A mostra é composta por uma série produzida durante a Primavera de 2014. Para realizá-la, criei quadros a partir da utilização de materiais diversos, como cordões, latas fragmentos de trapos, rendas e outros objetos, combinando elementos pregados, cravados, colados, ensamblados, costurados, sobre suporte de papel feito à mão. É a continuação de uma participação minha no número 72 da revista de arte francesa Plages, que teve tiragem de 1.000 exemplares, na época em que fazia meu doutorado na Espanha. Pude construir 1.000 páginas com minhas próprias mãos. Apesar de cansativo e desafiador, foi um verdadeiro gozo diante da matéria, principal substância da obra artística. Na mão do criador de arte, a matéria disforme, bruta ou descartável recebe sopro de vida. A matéria é bela em sua essência é, então, um resgate dessa concepção. Ressurgiu da busca incessante de reconstruir um universo interior já existente, da libertação

arte seja um veículo libertador, no meio de todo esse caos. É imprescindível estar atento ao nosso papel social e à nossa função dentro desse processo. A Arte Contemporânea ou Pós-moderna prioriza a ideia, o conceito. Costumo dizer que a arte liberta o homem, quebrando amarras, angústias e medos. Um mundo sem arte seria... O caos total. A respeito disso, a artista plástica Denise Pitágoras, uma grande amiga minha, declarou: “Se fizessem uma greve intergaláctica, tirando a arte do mundo, a humanidade morreria sufocada, porque a arte é o oxigênio da alma, assim como o ar é oxigênio da vida”. Definitivamente, eu não poderia viver em um planeta disforme e acromático!

de uma infinidade de coisas observadas e deglutidas. Também é educadora. Foi professora e diretora da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (Ufba) muitos anos. Fale um pouco sobre a relação que a arte mantém com o processo de formação humana. Na percepção individual ou coletiva da identidade do ser humano, tanto a arte quanto a cultura, de maneira geral, exercem um papel

importante para delimitar as diversas personalidades, os padrões de conduta e, ainda, as características próprias de cada um. A arte, na Educação, deve ser considerada MATÉRIA BÁSICA, porque ela ultrapassa a esfera profissional e é tão importante quanto o próprio idioma ou outras matérias. A arte pode ser mais uma Ferramenta Educacional facilitadora do aprendizado, capaz de deixar aflorar a compreensão das características e peculiaridades

Outubro Rosa. Graça Ramos. Técnica mista sobre tela, 2016/ Foto: Ísis Moraes

inerentes aos seres humanos. A arte é uma saída para o caos contemporâneo? Formamos parte de um processo de mudanças, que vem caminhando com o tempo. O mundo contemporâneo, apesar de ser repleto de informações e facilidades, cria, ao mesmo tempo, uma desordem e uma confusão de entendimento. Muitas vezes, existe incompreensão de significância, ao nosso derredor. As ciências avançam sem

limites. E o homem, cada vez mais, está sendo atropelado por informações que o deixam atordoado e apreensivo. A própria arte não tem uma direção. Todos fazem tudo! A liberdade de expressão é total. A ideia sobrepuja a poiése da forma, a técnica. O homem é a representação de seu tempo. Ele se apoia e se representa nesse caos. A criação do artista não pode estar distanciada de sua realidade. Ainda que pareça contraditório, creio que a

Como você se define? Vou responder com trechos do meu Autorretrato: (...) Quem é essa, senão aquela de outrora, que nascera na Princesa do Sertão e que, hoje, percorrendo estradas, procura identidade em pátria distante?/ Quem é essa, senão aquela que, vagueando nas margens dos oceanos, vive apalpando um barco, para navegar?/ Que, lendo Fernando, para tornar-se Pessoa, desenhou o destino de ser poeta?/ (...) Quem é essa desconcertante mulher, que surpreende a si mesma tateando a matéria inerte, para dar-lhe vida?/ (...) Quem é essa de tantos projetos por realizar, de tantos sonhos deglutidos?/ Nessa senhora, ainda menina, habitam tantas outras!/ Incontáveis outras que ainda não conheço!/ (...) Talvez essas caras que tanto desenho e pinto sejam eu mesma!!!

Caixa de Luz. Graça Ramos. Técnica mista sobre tela, 2005/ Foto: Ísis Moraes


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