Tribuna Cultural Novembro 2018

Page 1

www.tribunafeirense.com.br

ANO V - Nº 192

FEIRA DE SANTANA-BAHIA, SEXTA-FEIRA, 30 DE NOVEMBRO DE 2018

Amélio Amorim e a fantasia concreta que remodelou o sertão Fotos: Reprodução

Ísis Moraes

Meados da década de 1950. Um jovem e talentoso arquiteto começa a remodelar o perfil arquitetônico da terra que escolheu para viver. Homem à frente de seu tempo, Amélio Amorim desafiou as correntes de pensamento de sua época e inseriu Feira de Santana, até então provinciana, dona de uma paisagem que unia, harmonicamente, o cenário rural a um imponente casario de estilo eclético, na atmosfera moderna vivenciada nacionalmente, reflexo das convulsivas mudanças iniciadas, dois séculos antes, em terras europeias. “Amélio é um dos arquitetos mais importantes de Feira de Santana. Influenciou todas as gerações que o sucederam. Criativo e sempre em sintonia com as novas tendências nacionais e mundiais, foi o pioneiro do modernismo na cidade. E é justamente essa visão modernista que marca a sua obra. Mas ele nunca deixou de lado o regionalismo, sempre procurando criar projetos adequados à realidade da região, introduzindo em construções materiais característicos do cenário sertanejo. Daí ter se tornado um referencial para a categoria”, avalia o arquiteto e artista plástico Juraci Dórea. Filho do casal João Amorim e Maria Otília Teixeira de Amorim, Amélio nasceu em 21 de abril de 1929, na cidade de Coração de Maria. Desde a infância, revelou-se um desenhista talentoso. Das mãos hábeis e visionárias do jovem ar-

Um dos projetos mais arrojados de Amélio Amorim, o Complexo Carro de Boi, do qual faz parte a Boate Jerimum, está em ruínas e segue abandonado, mesmo sob a tutela do Estado quiteto, nasceram projetos inusitados, revolucionários, como a casa suspensa, localizada na Avenida Getúlio Vargas, construída em plano elevado, sobre pilares que a mantém distante do solo. Símbolo de arrojo e genialidade, o nome de Amélio Amorim ficou conhecido em todo o país. O arquiteto realizou importantes projetos em várias cidades brasileiras, como é o caso das 400 casas que planejou para a cidade de Ilha bela, no litoral paulista. Também é de sua autoria uma imponente residência situada em Londrina, no Paraná, famosa pelo belo painel que ornamenta a sua fachada. Em Feira de Santana, trabalhando com os cal-

culistas Alberto Santana e Renée Otávio Dantas, que o acompanharam durante toda a sua vida profissional, Amélio executou uma série de projetos brilhantes e inovadores, que revolucionaram os conceitos de cidade e moradia. Um novo modelo de construção começa a se delinear a partir do momento em que o arquiteto começa a atuar no município. Em 1956, o arquiteto inicia a sua carreira com a concepção da Galeria Caribé, localizada na Praça da Bandeira, e com a residência de Francisco Fraga Maia, primeira casa que projeta na cidade. Posteriormente, executa o projeto da Casa das Lâmpadas, do empresário Lício Silva, na esquina da Rua Direita,

atual Conselheiro Franco. O edifício, bastante moderno para a época, ainda existe, embora descaracterizado, como tantos outros prédios feirenses desrespeitados pela voracidade imobiliária. De espírito inquieto e imaginação fértil, Amélio buscava inovar constantemente. Altamente criativo, muitas vezes excêntrico, imaginava projetos grandiosos e transformava em arte tudo o que chegava às suas mãos. Em 1965, o arquiteto deu vida ao Clube de Campo Cajueiro, construção arrojada, que tem como destaque um grande salão circular, cujo teto não apresenta pilares de sustentação ao longo de seu vão. Além de moderno, o projeto se destacava pela plasticidade ímpar.

Vanguardista, determinado, ávido por conhecimento, Amélio Amorim percorreu o mundo, absorvendo novos conceitos e buscando inspirações para construir o que ninguém ainda havia edificado. Fez vários cursos fora do país. Em Lima, capital do Peru, cursou jardinagem e decoração. Queria oferecer, aos clientes, mais que meros jardins. Fazia questão de elaborar e de acompanhar de perto todo o processo de construção. Tinha, em torno de si, uma equipe numerosa, composta por profissionais extremamente reconhecidos e valorizados por ele. Empreendedor destemido, Amélio recorria a todo tipo de técnica e de material para concre-

tizar uma ideia. Sonhava executar, integralmente, o projeto do Hotel e Restaurante Carro de Boi, grande obra de sua vida, que imortalizou seu nome e sua história. Projetado para abrigar um importante polo turístico, o Complexo Carro de Boi não chegou a ser concluído. A morte precoce, aos 53 anos, provocada por um acidente automobilístico, ocorrido em 15 de maio de 1982, impediu o arquiteto de levar o empreendimento adiante. Em vida, ao lado de sua amada Irma Amorim, escritora e produtora cultural, Amélio viu parte de seu projeto ser reconhecido. O Restaurante Carro de Boi e a Boate Jerimum, trabalhos que marcam uma das fases mais excêntricas do


2 arquiteto, saem da prancheta para se tornarem as principais áreas de lazer da cidade, bastante frequentadas pela sociedade baiana. Nos dois prédios, hoje pertencentes ao Governo do Estado e agonizando em ruínas, Amélio Amorim empregou técnicas altamente modernas, aliadas ao uso de materiais rústicos, característicos do Sertão. O arquiteto utilizou madeira, para forrar o chão, e piaçava, para cobrir o teto e as passarelas do Carro de Boi, no qual realizou a I Feira de Arte Total, em parceria com o cordelista Franklin Maxado. A mostra, que foi um sucesso de público, reuniu, durante dez dias, todas as modalidades artísticas existentes em Feira de Santana, vindo a se tornar um referencial da cultura local. Na boate, arquitetura e escultura se entrelaçavam. Projetada em formato de abóbora, modelada em cimento, ganhou também uma magnífica pista de vidro colorido. E, pela primeira vez, Amélio experimentou a bucha natural, muito comum na região de Feira, como isolante acústico. Arquiteto por vocação, ele chegou a passar no vestibular de Direito, como queria o pai, mas não se matriculou. Queria projetar casas e edifícios. Insistiu e acabou passando no vestibular para o tão almejado curso de Arquitetura. Poucos meses depois, tornou-se empreiteiro de Odebrecht, cargo que conseguiu de maneira incomum. Impetuoso, Amélio foi até o empresário e disse que queria trabalhar em sua construtora. Diante da recusa, que veio sob a alegação de que não havia emprego para lhe ofertar, Amélio foi incisivo. Ao afirmar que estava pedindo um trabalho e não um emprego, porque queria, unicamente, aprender, Odebrecht o aceitou como estagiário.

Feira de Santana-Bahia, sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Por opção, o jovem estudante de arquitetura foi trabalhar no canteiro de obras, como ajudante de pedreiro. Queria vivenciar a prática que a faculdade não lhe dava. Ao saber do fato, Odebrecht o contratou. Antes mesmo de se formar, montou um escritório na famosa Rua Chile, em Salvador. A clientela foi conseguida com a ajuda de Soledade, mestre de obras que veio com ele para Feira de Santana, com o objetivo de montar a Casa São Cosme, loja de materiais de construção criada para fornecer tudo o que fosse necessário aos seus projetos. A atuação de Amélio Amorim qualificou a profissão de arquiteto no município. A partir dele, é que as consultas arquitetônicas começaram a surgir. Antes, a maior parte dos projetos era feita pelo engenheiro J. J. Lopes de Brito, que delineou o traçado de rua que Feira de Santana tem até hoje. Pela genialidade, coragem e pioneirismo, a cadeira de Amélio Amorim na Arquitetura continuará vazia, inabitada, como a cadeira do velho álbum de fotografias de sua família, reservada para ele, em todas as ocasiões, como símbolo de sua importância e eternidade. Feira de Santana, ao contrário, segue sendo ingrata com o dono daquele “olhar de Tempo Azul” (cristalizado em um belíssimo poema de sua saudosa Irma), que, através de sua fantasia concreta, remodelou e reinventou o sertão. Mais que um antigo projeto, mais que uma exótica construção em ruínas, é o seu sonho (espelho de nossa identidade cultural) que se esboroa nas dependências do Centro de Cultura que leva o seu nome, esperando que o Estado o resgate da vala do esquecimento institucional. Cultura é memória. E, mais do que nunca, essa cidade precisa mantê-la viva.

Língua brasileira Kleidir Ramil “Outro dia eu vinha pela rua e encontrei um mandinho comendo bergamota, um guri desses que andam sem carpim, de bragueta aberta, soltando pandorga. Eu vinha de bici, descendo a lomba pra ir na lancheria...” Se você não é gaúcho, provavelmente não entendeu nada do que eu estava contando. No Rio Grande do Sul, a gente chama tangerina de bergamota e carne moída de guisado. Bidê, que a maioria usa no banheiro, é o nome que nós demos pra mesinha de cabeceira, que em alguns lugares chamam de criado-mudo. E por aí vai. A privada nós chamamos de patente. Dizem que começou com a chegada dos primeiros vasos sanitários de louça, vindos da Inglaterra, que traziam impresso: “Patent” número tal. E pegou. Ir aos pés, no Rio Grande do Sul, é fazer cocô. Eu acho tri elegante, poético. “Com licença, vou aos pés e já volto.” O Brasil tem dessas coisas; é um país maravilhoso, com o português como língua oficial, mas cheio de dialetos diferentes. No Rio de Janeiro, é “e aí merrmão! CB, sangue bom!” Até eu entender que merrmão era “meu irmão” levou um tempo. Pra conseguir se comunicar, além de arranhar a garganta com o erre, você precisa aprender a chiar que nem chaleira velha: “Vai rolá umasch paradasch ischperrtasch.” Em São Paulo, capital, eles botam um “i” a mais na frente do “n”: “Ôrra meu! Tô por deintro, mas não tô inteindeindo o que eu tô veindo.” E no interiorrr falam um erre todo enrolado: “A Ferrrnanda marrrcô a porrrteira.” Dá um nó na língua. A vantagem é que a pronúncia deles no inglês é ótima.

Foto: Divulgação

Cantor e compositor, Kledir Ramil forma, com seu irmão, desde 1980, a dupla Kleiton & Kledir. Como escritor, estreou em 2004, com o livro Tipo Assim. Posteriormente, lançou O Pai Invisível, Crônicas para ler na escola e Viagem a Par ou Ímpar (Editora Objetiva). Escreve crônicas para importantes jornais do país. Desde o início de 2018, colabora com o caderno Tribuna Cultural Em Mins, quer dizer, em Minas, eles engolem letras e falam Belzonte, Nossenhora, doidemais da conta, sô! O mineiro quando se perde, já tem uma frase pronta: “Eu não sei quemcossô, oncotô, doncovim e proncovô.” Qualquer objeto eles chamam de trem, como naquela história do mineirinho na plataforma da estação. Quando ouviu um apito, falou apontando as malas: “Muié, pega os trem que o bicho tá vindo.” No Nordeste, é tudo “meu rei, bichinho, óxente”. Pai é painho, mãe é mainha, vó é vóinha. E pra você conseguir falar com o acento típico da região, é só cantar a primeira sílaba de qualquer palavra numa nota mais aguda que as seguintes. As frases são sempre em escala descendente, ao contrário do sotaque gaúcho. Mas o lugar mais interessante de todos é

Florianópolis, um paraíso sobre a terra, abençoado por Nossa Senhora do Desterro. Os nativos tradicionais, conhecidos como manezinhos da Ilha, têm o linguajar mais simpático da nossa língua brasileira. Lagartixa, eles chamam de crocodilinho de parede. Helicóptero é avião de rosca (que deve ser lido rôschca). Carne moída é boi ralado. Se você quiser um pastel de carne precisa pedir um envelope de boi ralado. Telefone público, o popular orelhão, é conhecido como poste de prosa. Ovo eles chamam de semente de galinha e motel é lugar de instantinho. Dizem que isso tudo vem da colonização açoriana, inclusive a pronúncia deliciosa de algumas expressões, como “si quéisch quéisch, se não quéisch, disch.” Se você estiver por lá,

Fundado em 10.04.1999 www.tribunafeirense.com.br / cultural.tribunafeirense@gmail.com Fundadores: Valdomiro Silva - Batista Cruz - Denivaldo Santos - Gildarte Ramos Editora - ísis Moraes Diretor - César Oliveira Editoração eletrônica - Maria da Prosperidade dos Santos

viajando de carro e precisar de alguma informação sobre a estrada pra voltar pra casa, deve perguntar pela “Briói ”, como é conhecida a BR 101. Tudo isso é muito engraçado, mas, às vezes, dá problema sério. A primeira vez que minha mãe, gaúcha do interior, foi ao Rio de Janeiro, entrou numa padaria e pediu: “Tchê, me dá um cacete!!!” Cacete pra nós é pão francês. O padeiro caiu na risada, chamou-a n u m ca nto e te nto u contornar a situação. Ela, ingenuamente, emendou: “Mas o senhor não tem pelo menos um cacetinho?” * N. do T. — mandinho é garoto; carpim é meia; b r a g u e t a é b ra g u i l h a ; pandorga é pipa; bici é bicicleta; lomba é ladeira; lancheria é lanchonete.

OS TEXTOS ASSINADOS NESTE JORNAL SÃO DE RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES. Registro de Publicação 2002 a 2006 - 01 a 174 2009 - 175 a 177 2015 - 178


3

Feira de Santana-Bahia, sexta-feira, 30 de novembro de 2018

A Crítica e a crítica Foto: Divulgação

Lúcio Autran Pretendia escrever sobre um assunto que sempre me interessou, mas que agora resolvi aprofundar para um capítulo do livro que estou escrevendo, Museu de Cinzas: o Brasil perdeu uma (dentre outras) oportunidade, e talvez essa tenha sido a inaugural, na sua formação política e social, com o fracasso da Inconfidência Mineira, e de como que, paralelamente, no Barroco, começamos a construir uma linguagem própria e uma identidade cultural, numa releitura de um barroco tardio, feita em grande parte por mulatos (sim, o barroco brasileiro, especialmente a música), mas que deixamos escapar entre os dedos. Embora prometa voltar a esse tema, se assim me permitir a editoria deste jornal e o “engenho e arte”, prefiro, antes, tratar de outro assunto, por esclarecedor do que ando fazendo por aqui. Nota-se, no meio cultural, um fenômeno da nossa contemporaneidade que se não é exclusividade nossa, aqui ganhou cores acentuadas: a mal disfarçada – quando não escancarada – irritação, por parte da crítica, com romancistas e poetas que se põem a escrever ensaios, mesmo que sobre sua própria literatura. Vi isso de tão perto... um dia talvez eu conte. É com se houvesse um “nicho” a ser protegido, isso num país de analfabetos, onde ninguém lê, aqui incluindo boa parte dos já alfabetizados, pois nestes tristes trópicos são poucos os que cultivam o bom hábito da leitura. Há, por parte desses acadêmicos, até uma maneira de se referir a essa crítica, por assim dizer, “não especializada”, embora tanta vez muito bem preparada: eles se referem, pejorativamente, a uma crítica “impressionista”. Não que desconheça o termo e não concorde com ele em alguns casos, muito ao contrário, mas esse definitivamente não é o fator de distinção entre a crítica e esses escritores, pois se é inegável que há, sim, diferenças consideráveis, como veremos, temos aqueles que se pretendem acadêmicos, críticos ou resenhistas, e que, por falta de preparo, fazem uma crítica acertadamente dita “impressionista”, com também há criadores excepcionalmente bem preparados, que constroem uma leitura crítica sólida, como Jorge Guillén, Unamuno, Schiller, Hölderlin, Rilke, Octávio Paz, Mário de Andrade, este com suas lindas hipérboles sobre a nossa arte, entre muitos ou-

Para o poeta e ensaísta carioca, “por trás de toda a construção de uma estética, está apenas, e essencialmente, o drama humano” tros. Entretanto, o fazem com uma abordagem distinta. Mas, afinal, o que une entre si esses escritores tão díspares e o que os distingue da crítica especializada? E se são tão diferentes entre si e entre os críticos profissionais, porque a reserva e o preconceito? Me perguntará um já impaciente leitor. A segunda pergunta, o porquê do preconceito, não sei responder, talvez arriscasse ciúmes, vaidades, mas seria leviano de minha parte, afinal estão seguros em suas cátedras, nada os ameaça, muito menos poetas que jamais pensaram em desalojá-los de lá. Jamais. Além disso, vaidade é um sentimento muito feio, que, claro, nesse meio ninguém tem. A primeira parte, o que os distingue, é o objeto deste despretensioso artigo. Mas, ora, porque essa gente, ficcionistas e poetas, não fica satisfeita em escrever poemas, romances e resolve meter-se em seara alheia? O que os leva – e aqui me incluo – a escrever ensaios? Já não lhes basta o dom da criação?! A resposta – libertadora – eu tive lendo “Museo de la Novela de La Eterna”, de Macedonio Fernandez, o origina-

líssimo e um tanto injustiçado escritor argentino: não, não há veleidades acadêmicas, escrevem para ajudá-los a pensar a própria obra, pelo fato de serem apenas leitores de si mesmos – e certamente não os melhores – e a obra alheia. E o que os une é muito fácil dizer: a veia criadora, o olhar peculiar sobre as coisas, o olhar com que veem a literatura universal, e como a abordam, o olhar que possuem aqueles que receberam o que os antigos chamavam, poeticamente, o beijo das musas, que nunca abandonam; não sobreviveriam. Em resumo, há, neles, a impossibilidade (e quase disse “irresponsabilidade”) do distanciamento emocional que a crítica pretende e se obriga a ter. Quão diferentes – jamais melhores; apenas diferentes – do olhar de um crítico como Carpeaux, Antônio Cândido, Barthes. Entretanto não é desses que quero falar, leituras imprescindíveis, o que interessa aqui é a leitura crítica feita com o olhar criador. Afinal, o que há de peculiar no olhar desses homens? Fiquemos, por ora, com alguns dos autores acima mencionados, o espaço me

impede de citá-los todos, muito menos os inúmeros outros que omiti. Para não cansar o leitor, e ele próprio tirar suas conclusões, melhor limitá-los a três exemplos. Poderia, também, falar de Schiller e de sua “jurisdição do palco”, mas o fiz no meu último artigo, nos limitemos a Guillén, Unamuno e ao próprio Macedonio. Jorge Guillén, o poeta espanhol (Nicolas, o cubano, ouço mal), autor de um dos mais belos versos que li: “Despejado a este retiro / Fresquísimo que respiro / Com mi Adán más inocente” (“com meu Adão mais inocente”, que verso invejável), era homem de vasta cultura, como demonstrou em “Lenguaje y Poesia”, livro que nos traz a acertada noção de que não existe progresso em Arte, e que os pintores rupestres dos Bisontes de Altamira não os pintaram visando apenas à caça, cumprindo um ritual social ou religioso, ou ao menos não somente, uma visão utilitária (que abomino em arte), mas, antes, como forma de, desde a remota pré-história, escaparem, pela abstração, à inexorável condição humana. Representação, enfim, forma de arte inaugural, nem por

isso menos arte. Uma Capela Sistina de pedra. Símbolo, signo. Tentar dar àqueles pintores uma visão utilitarista é reduzir aqueles artistas especiais à condição, somente, de partes daquela comunidade, que também não deixavam de ser, como, de resto, qualquer artista, empobrecendo-os. “Vejam se esse olhar de Guillén não é um olhar que foge às ‘ciências particulares’”, posso ouvir dizer-nos Dom Miguel de Unamuno, filósofo digno do título, poeta de primeiríssima. Homem corajoso, que expulsou da universidade de Salamanca, da qual era reitor, as falanges franquistas aos gritos desafiadores. Mas, então, contradigo-me? Afinal, reitor, tinha vida acadêmica! Nada contraditório, não falo de cátedras, mas de olhares, mesmo em sua filosofia Unamuno era essencialmente poeta, como em “O Sentimento Trágico da Vida”, basta ler este trecho do livro para entender o que digo: “(...) A filosofia se aproxima mais da poesia que da ciência. Todos os sistemas filosóficos que se forjaram como supremo amálgama dos resultados últimos das ciências particulares, num período qualquer, tiveram muito menos consistência e menos vida do que outros que representavam a aspiração integral do espírito do seu autor” (grifei). Mais claro impossível. E chegamos a Macedonio Fernandez, o culpado de também este modesto poeta (des)ocupar-se com a ensaística, pois foi lendo um de seus livros que me encorajei a escrever alguns ensaios, ali, para minhas alegria e libertação, ele resumiu: escrevia para ajudá-lo a pensar, simples assim. Amigo do pai de Borges, que o cultuava – e não conheço melhor elogio – foi um poeta que jamais se preocupou com sua obra, de rara originalidade, ou, muito melhor, com a imagem que dela pudessem fazer, Narciso não era deus que frequentasse seu altar, principalmente após a morte de sua mulher, Elena, morte que lhe condenou ao abandono e a estes desabridos versos: “No eres, Muerte, quien / por nombre de mistério / pueda a mi mente hacer pálida / cual a los cuerpos haces.” Vejam se o seu olhar sobre a narrativa proustiana não é o de alguém mais preocupado (e deliciado) com a construção da obra, com a metalinguagem, do que com suas lateralidades e inserções: “o comentário (proustiano) está

de tal modo entrelaçado na ação que a distinção entre ambos desaparece, o narrador está atacando um componente fundamental de sua relação com o leitor: a distância estética. No romance tradicional, essa distância é fixa. Agora ela varia como as posições de câmara no cinema: o leitor ora é deixado do lado de fora, ora é guiado pelo comentário até o palco, os bastidores e a casa de máquinas” (grifei). Um olhar lúdico que a tudo ilumina e traduz. Poderia seguir indefinidamente com exemplos de criadores que se aventuraram, não a ser ensaístas, no sentido acadêmico da atividade, mas na tentativa de comunicar a si e aos seus leitores, como eles – também essencialmente leitores de si próprios, e talvez os menos abalizados – como criadores perceberam suas obras e as obras alheias. Apenas e humildemente isso, “ajuda-los a pensar”, nada mais. Numa palavra: o poeta jamais deixará de sê-lo, pelo justo e assustador motivo de que, se o fizesse, se tentasse, não sobreviveria, abandonado pelas ciumentas musas, afinal, por trás do trabalhoso esforço que faz para alcançar altitudes maiores em sua criação, objetivo de qualquer artista, por trás de toda a construção de uma estética, uma linguagem (cuja percepção deixam aos críticos), está apenas, e essencialmente, o drama humano e a busca de tentar traduzir esse mesmo drama, os eternos daemons que nos perseguem. O trágico enigma da nossa existência.

* Natural do Rio de Janeiro, Lúcio Autran é formado em Arquitetura e em Direito. Poeta, escritor e ensaísta, tem diversos livros publicados, dentre eles: O Piloto Anônimo (Global Editora, 1985); Um Nome (Editora Taurus/ Timbre, 1987); Centro (Livraria Editora Francisco Alves, 1999); Fragmentos do Sonho e Outros Ciclos Menores (Editora Bookess, 2012); Fragmentos de um Exílio Voluntário (Editora Bookess, 2016); e A árvore Polegata, Poesias (Editora Bookess, 2013).


4

Feira de Santana-Bahia, sexta-feira, 30 de novembro de 2018

As Cartas

“Yo me lavo las manos”. Joaquín González. Óleo sobre placa de madeira, 2009

Jogo as cartas, saem as torres. Todas as torres ruindo. Para onde estamos indo? Ao esdrúxulo campo alastrado. Jogo os dados, caem quinas. Todas as quinas de lado. Jogo os símbolos do céu no pano branco da mesa: duas senas sob o véu, quatro caiadas paredes. E o grande mundo mundéu seguindo sobre seus eixos. A vida é feita de atos que somados valem uns nadas. E as mãos ensaboadas daquele Pôncio Pilatos! (Antonio Brasileiro) *Natural de Matas do Orobó, sertão da Bahia, Antonio Brasileiro é poeta, ficcionista, ensaísta e artista plástico. Na década de 60, em Salvador, fundou as Edições Cordel, editora responsável pela veiculação de importantes revistas literárias, como Serial e Cordel. Radicado em Feira de Santana desde 1971, é membro fundador do Grupo Hera, uma das mais longevas confrarias literárias do país; idealizou, juntamente com outros poetas, a Revista Hera, periódico especializado em poesia, que circulou entre 1972 e 2005. Na década de 1980, ajudou a fundar, junto com Juraci Dórea e Ana Rosário, o Projeto Chocalho de Cabra, de artes plásticas, que realizou uma série de intervenções artísticas nas ruas de Feira de Santana e região. Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), atuou como professor de Literatura no Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs). Foi eleito membro da Academia de Letras da Bahia (ALB) em 2009. Tem dezenas de livros publicados, dentre poesia, ficção e ensaios. Intitulada Como aquela montanha sossegada, sua mais recente obra de poesia foi lançada em outubro, pela editora Mondrongo.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.