Kalango19 Segundo Clichê

Page 1

Kalango #19 - abril de 2014

1964 - 2014 50 anos do Golpe Militar

2º Clichê

Kalango#18 •

1


2 • Kalango#18


Kalango#18 •

3


GPS (( LOCALIZE-SE ))

Revista Kalango. Edição #19. Abril de 2014. Editor: Osni Dias MTb21.511. A Kalango trabalha de forma colaborativa com profissionais liberais, da academia e do jornalismo. Independente, a publicação não tem vínculos políticos, econômicos, nem religiosos. A Kalango está no ar desde 2010. Quer anunciar? Seja um patrocinador e ajude uma mídia independente. Escreva para osni@revistakalango.com.br ou redação@revistakalango.com.br

4 • Kalango#18


Editorial

NESTOR LAMPROS

Kalango #19 • Abril de 2014

A

Kalango traz uma série de artigos sobre os 50 anos do Golpe Militar – apesar das inúmeras edições de revistas e suplementos especiais lançados por diversas editoras e documentários exibidos à exaustão pela televisão. Antecipando a edição #19, que sairia em maio, acreditamos que o tema é oportuno e nos faz honrar o compromisso de levar informação sempre quentinha ao leitor. Com o deadline bem apertado (prazo que os escribas têm para entregar o material), ainda assim conseguimos finalizar a presente edição a tempo. A data do 1º de abril carrega um simbolismo bastante apropriado para o lançamento da revista, visto que há exatos 50 anos o povo brasileiro foi surpreendido pelas mudanças que iriam afetar os anos vindouros. Foi Golpe? Revolução? Contragolpe? Queremos provocar os leitores e promover uma discussão sobre mais esse acontecimento histórico. Veja mais no endereço www. revistakalango.com.br Lá você encontra as edições anteriores e descobre um pouco mais sobre a nossa história, que em 2014 completará 4 anos de vida. Obrigado pela companhia e boa leitura!

Kalango#18 •

5


PALAVRA

Cuidar da Mãe Terra e amar todos os seres Por Leonardo Boff*

O

amor é a força maior existente no universo, nos seres vivos e nos humanos. Porque o amor é uma força de atração, de união e de transformação. Já o antigo mito grego o formulava com elegância: “Eros, o deus do amor, ergueu-se para criar a Terra. Antes, tudo era silêncio, desprovido e imóvel. Agora tudo é vida, alegria, movimento”. O amor é a expressão mais alta da vida que sempre irradia e pede cuidado, porque sem cuidado ela definha, adoece e morre.

surge a primeira manifestação do amor como fenômeno cósmico e biológico. Na medida em que o universo se inflaciona e se complexifica, essa conexão espontânea e amorosa tende a incrementar-se. No nivel humano, ganha força e se torna o móvel principal das ações humanas.O amor se orienta sempre pelo outro. Significa uma aventura abraâmica, a de deixar a sua própria realidade e ir ao encontro do diferente e estabelecer uma relação de aliança, de amizade e de amor com ele.

Humberto Maturana, chileno, um dos expoentas maiores da biologia contemporânea, mostrou em seus estudos sobre a autopoiesis, vale dizer, sobre a auto-orgnização da matéria da qual resulta a vida, como o amor surge de dentro do processo evolucionário. Na natureza, afirma Maturana, se verificam dois tipos de conexões (ele chama de acoplamentos) dos seres com o meio e entre si: uma necessária, ligado à própria subsistência e outro espontânea, vinculado a relações gratuitas, por afinidades eletivas e por puro prazer, no fluir do próprio viver.

O limite mais desastroso do paradigma ocidental tem a ver com o outro, pois o vê antes como obstáculo do que oportunidade de encontro. A estratégia foi e é esta: ou incorporá-lo, ou submete-lo ou eliminá-lo como fez com as culturas da África e da América Latina. Isso se aplica também para com a natureza. A relação não é de mútua pertença e de inclusão mas de exploração e de submetimento. Negando o outro, perde-se a chance da aliança, do diálogo e do mútuo aprendizado. Na cultura ocidental triunfou o paradigma da identidade com exclusão da diferença. Isso gerou arrogância e muita violência. O outro goza de um privilégio: permite surgir o ethos que ama.

Quando esta última ocorre, mesmo em estágios primitivos da evolução há bilhões de anos, ai

6 • Kalango#18

Foi vivido pelo Jesus histórico e pelo paleocristianismo antes de se constituir em instituição com doutrinas e ritos. A ética cristã foi mais influenciada pelos mestres gregos do que pelo sermão da montanha e prática de Jesus. O paleocristianismo, ao contrário, dá absoluta centralidade ao amor ao outro que para Jesus, é idêntico ao amor a Deus. O amor é tão central que quem tem o amor tem tudo. Ele testemunha esta sagrada convicção de que Deus é amor(1 Jo 4,8), o amor vem de Deus (1 Jo 4,7) e o amor não morrerá jamais (1Cor 13,8). E esse amor incondicional e universal inclui também o inimigo (Lc 6,35). O ethos que ama se expressa na lei áurea, presente em todas as tradições da humanidade: “ame o próximo como a ti mesmo”; “não faça ao outro o que não queres que te façam a ti”. O Papa Francisco resgatou o Jesus histórico: para ele é mais importante o amor e a misericórdia do que a doutrina e a disciplina. Para o cristianismo, Deus mesmo se fez outro pela encarnação. Sem passar pelo outro, sem o outro mais outro que é o faminto, o pobre, o peregrino e o nu, não se pode encontrar Deus nem alcançar a plenitude da vida (Mt 25,31-46). Essa saída de si para o outro a fim


de amá-lo nele mesmo, amá-lo sem retorno, de forma incondicional, funda o ethos o mais inclusivo possível, o mais humanizador que se possa imaginar. Esse amor é um movimento só, vai ao outro, a todas as coisas e a Deus. No Ocidente foi Francisco de Assis quem melhor expressou essa ética amorosa e cordial. Ele unia as duas ecologias, a interior, integrando suas emoções e os desejos, e a exterior, se irmanando com todos os seres. Comenta Eloi Leclerc, um dos melhores pensadores franciscanos de nosso tempo, sobrevivente dos campos de extermínio nazista de Buchenwald: ”Em vez de enrijercer-se e fechar-se num soberbo isolamento, Francisco deixou-se despojar de tudo, fez-se pequenino, colocou-se, com grande humildade, no meio das criaturas. Próximo e irmão das mais humildes dentre elas. Confraternizou-se com a própria Terra, como seu húmus

original, com suas raízes obscuras. E eis que a “nossa irmã e Mãe-Terra” abriu diante de seus olhos maravilhados um caminho de uma irmandade sem limites, sem fronteiras. Uma irmandade que abrangia toda a criação. O humilde Francisco tornou-se o irmão do Sol, das estrelas, do vento, das nuvens, da água, do fogo e de tudo o que vive e até da morte”. Esse é o resultado de um amor essencial que abraça todos os seres, vivos e inertes, com carinho, enternecimento e amor. O ethos que ama funda um novo sentido de viver. Amar o outro, seja o ser humano, seja cada representante da comunidade de vida, é dar-lhe razão de existir. Não há razão para existir. O existir é pura gratuidade. Amar o outro é querer que ele exista porque o amor torna o outro importante.”Amar uma pessoa é dizer-lhe: tu não poderás morrer jamais” (G.Marcel); “tu deves existir, tu não podes ir embora”.

Quando alguém ou alguma coisa se fazem importantes para o outro, nasce um valor que mobiliza todas as energias vitais. É por isso que quando alguém ama, rejuvenesce e tem a sensação de começar a vida de novo. O amor é fonte de suprema alegria. Somente esse ethos que ama está à altura dos desafios face à Mãe Terra devastada e ameaçada em seu futuro. Esse amor nos poderá salvar a todos, porque abraça-os e faz dos distantes, próximos e dos próximos, irmãos e irmãs. Leonardo Boff é autor de O cuidado necessáro, Vozes 2013 e Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz: Vozes, Petrópolis 2009. * Leonardo Boff é teólogo, escritor e autor de Saber cuidar. Ética do humano, compaixão pela Terrra, Editora Vozes. www.leonardoboff.wordpress.com

Kalango#18 •

7


BRISA

Receita Caseira Por Delta9*

* Delta9 é extraterrestre, publicitário e atua no Judiciário. www.undiverso.blogspot.com/


PALAVRA

1964 e 2014: semelhanças Por Orivaldo Leme Biagi* No cinquentenário da proclamação da República (em 1939) aconteceram poucas discussões sobre o acerto ou erro deste fato histórico, o mesmo acontecendo com o cinquentenário da Revolução de 30 (em 1980). Curiosamente o mesmo não acontece com o cinquentenário do “movimento” (golpe ou revolução, de acordo com o posicionamento político de quem está discutindo o tema) militar de 1964: as atuais discussões parecem não estar acontecendo em 2014, mas sim ainda em 1964! Por que tal diferença de resgate histórico, já que a proclamação da República e a Revolução de 30 foram momentos igualmente expressivos na história brasileira, quando não mais decisivos (e com episódios também não resolvidos),

do que o que aconteceu em 1964? Uma das respostas é que as questões políticas que levaram à derrubada do presidente João Goulart em 1964 e a instauração do regime militar ainda estão na ordem do dia: as ideias políticas das chamadas “direita” e “esquerda” ainda dominam a pauta brasileira. Apesar das duas linhas políticas serem antagônicas, existe um ponto comum entre elas: ambas não acreditam na capacidade

do povo brasileiro de tomar os rumos da sua vida. Sendo incapaz de governar-se, o povo precisa de condutores (quer pelo paternalismo religioso e moral, ditado pelos caminhos do mercado defendidos pela “direita”; quer pelo protecionismo social e cultural, impostos pelo “politicamente correto” defendidos pela “esquerda”). Assim, a democracia representativa (“populista” para a “direita”; “burguesa” para a “esquerda”) é mais um risco político do que um canal de expressão – ditaduras de “direita” ou de “esquerda” podem ser justificadas assim. Em 1964 ambos os lados desprezavam a democracia representativa e o resultado foi uma ditadura de “direita”. Qual é o atual problema? O desprezo continua o mesmo em 2014. * Orivaldo Leme Biagi é pósdoutor pela Universidade de SP

No dia 31 de março de 2014 (50 anos do golpe de 64) irei: Por Mario Sérgio de Moraes* 1. Contar aos meus alunos o que significa viver numa Ditadura. 2. O que significa constatar que foi uma Ditadura dos empresários. 3. O que significa verificar que poucos tinham a coragem de denunciar o que era a exploração patronal. E a tortura militar. 4. O que significa perceber que as TVs --- principalmente a Globo – mentia descaradamente. 5. O que significa conviver com muitos “amigos” que estavam mais preocupados em ter seu carrinho novo. * Mario Sérgio de Moraes é Doutor em História pela USP e Conselheiro do Instituto Vladimir Herzog


Olhares... Por Sonia Mara Ruiz Brown*

H

á algum tempo escrevi um artigo sobre a capacidade humana admirável de ter um olhar perscrutador, curioso, encontrando mágica num cenário de desesperança. Hoje, volto a abordar o olhar, porém com menos otimismo, pois me deparo tristemente com olhares embaçados, indiferentes diante de atrocidades. Hemingway achava que se devia olhar as coisas como se fosse pela última vez, olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, mas o olhar que encontramos no nosso meio não é nem curioso nem deprimente, é aquele que está sujo pelo hábito. Parece que o homem não mais se repulsa diante de uma cena chocante como a que ocorreu no Rio de Janeiro, onde um jovem negro e nu foi encontrado preso a um poste, pelo pescoço, por uma trava de bicicleta,

supostamente em represália a seu histórico no crime. As atrocidades se repetem, mas, ao invés da indignação aumentar sobre a opinião pública, ela decresce, o impacto torna-se desprezível porque, como bem colocou Otto Lara Rezende, “o hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem”. Cenas de execução primária estão presentes nas ruas sem que sejam suficientes para mudar a rotina do lugar onde ocorreu, pois a visão está acomodada, acostumada ao que é feio, ultrajante. É assustador termos nossos olhos insensíveis, baço, turvos diante do que deveria indignar, assustar e revoltar. Citando novamente Otto Lara Rezende, “é por aí que se instala o monstro da indiferença”. * Sonia Mara Ruiz Brown é doutora em Língua Portuguesa/USP.

O Bergman que vi com Heidegger O cineasta sueco Ingmar Bergman é um mestre em suspender o palavrório cotidiano. Nisso dialoga com o pensador alemão Martin Heidegger, para quem “a angústia nos corta a palavra”. Bergman e Heidegger querem mostrar que a angústia é uma estrutura ontológica fundamental, inerente ao ser humano e anterior a qualquer manifestação afetiva. No entanto, na sociedade contemporânea, o fenômeno da angústia é praticamente vedado pela indústria cultural de massa, que comercializa a cultura e o entretenimento visando o lucro. Por meio de profunda análise do filme “Saraband”, dirigido por Ingmar Bergman e lançado em 2004, José Luiz Branco procura compreender o fenômeno da angústia na contemporaneidade, através de uma perspectiva fenomenológica existencial, propondo um resgate desta dimensão humana tão velada nos tempos atuais. Temas: angústia, cinema, contemporaneidade, fenomenologia, psicologia Sobre o autor: José Luiz de Campos Castejón Branco é graduado em Psicologia pela Universidade Paulista - UNIP, em 1985. Mestre em Comunicação pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, no curso ‘Educação, Arte e História da Cultura’. Psicólogo e supervisor clínico, na abordagem Fenomenológica Existencial. Atualmente, docente de Psicologia no Centro Universitário Adventista de São Paulo - UNASP.

Acima, cena do filme Saraband, de Bergman. Abaixo, capa e contracapa do livro de José Luiz Branco produzido pela EDITAE


CAPA

Contragolpe pós-50

E

Por Maurício Andrade

stou perto dos 50, daqui a exatamente um desenvolvimento intelectual e aplicação desse ano. Penso sobre o que pode acontecer desenvolvimento em sua estrutura social. em cinquenta anos na vida, na percepção, O poder que governa pode, como na ditana consciência de toda uma nação. Afinal, pasdura restabelecer, por debaixo dos panos, leis sou-se uma geração inteira. Eu particularmencomo o AI – 5 (Ato Institucional Número 5), te, vivi, vi, conheci e aprendi mais do que inúcamuflando tudo como uma nova experiência meras pessoas que conheço, bem mais velhas midiática, afinal tudo tem um nome em indo que eu, por não ter sido oprimido em parte, glês, hoje. Outra coisa que não entendo, uma na pele, penso. Mas um país que em cinquenta nova inteligência, a “Artificial Intelligence” A.I. anos teve sua existência política assolada pela – afinal nossos jovens são obrigados a consuinércia ditatorial, como em tantos outros paímir essa tal inteligência todos os dias em seus ses, deveria ter emergido do inconsciente, no “gadgets” (em inglês: geringonça, dispositivo). mínimo na valorização de seus cidadãos. Não Ah desculpem-me, suas geringonças eletrôniforam cinquenta anos de ditadura, mas de concas, que também são as nossas. Afinal, podesequências embutidas na mos poupar dinheiro para comprar Podemos poupar falácia na qual estamos dinheiro para comprar um tablet, mas não para pagar um mergulhados até hoje.Eu “bom” plano de saúde. Eu acredito um tablet, mas não tento comparar as oporque temos de buscar paz, para pagar um “bom” tunidades que tive de outra vez uma paz que não plano de saúde. Eu viver uma infância plena, com es- acredito que temos de venha exclusivamente de tudos relativamente superiores ao governos através de golpes buscar a paz que os jovens recebem nas escolas e vivendo mais cinquenta estaduais do país, com nossa economia sempre anos de pós-alguma coisa. comprometida, assistindo ao aparecimento, Talvez esse “eu” quase cinquentão não tedesaparecimento ou requalificação de classes nha absorvido o resultado final do marco pós– média, média alta, média baixa, alta ou coisa -militarismo, vejo que ainda não mudou muita assim. Até hoje não me encaixei em qualquer coisa. Opa, não estou esquecendo as torturas, ideia do que venha a ser isso ou a que classe raptos, censura, exílios e tantos outros terropertenço. Sempre pensei que era da “classe hures dignos de um holocausto. Claro que mumana”. Pergunto-me se os “benefícios” de uma dou. Vivemos à mercê da ocupação do tráfico ditadura resolveriam nossa situação hoje, afinal, e de seus financiadores infiltrados no Estado. conheço inúmeras pessoas que desejam ardenVivemos em um estado policial e com políticos temente um “contragolpe”, mas em quem? Me que gostaríamos de um dia dar um golpe. Mas pergunto: tem solução? enquanto a consciência cidadã não mudar ou Os jovens saem às ruas e hoje temos nomes permanecer na sombra de sua história, talvez para tudo, os telejornais hipocritamente aponnada mude, afinal, nós não somos nossa histótam: “houve vandalismo, mas foi só uma minoria, somos quem a constrói. Ou estou errado? ria”, “Black Blocs”, “são pagos por partidos...”. Enquanto isso nos vendermos aos reality shoTem alguma coisa tirando o foco, estamos senws, engolindo o “vamos pensar nisso depois da do distraídos pela mesma falácia política e alCopa” e as Bolsas Família. Ser ou não ser – eis gum tipo de contra-ordem está se firmando, aí uma série de questões. Eu quero o “contracomo uma sombra, contra a população. Dilma golpe” depois que passar dos meus cinquenta. não é Jango, mas se faz de “Django”. Bem, após E que venha pela paz, mas acredito que minha esse devaneio, temos de lembrar que a história mente ainda cultua John Lennon, afinal “eu é medida em sua evolução por comparações de posso ser só um sonhador”.


O Brasil começou a mudar.

Lenta e tardiamente. Por Moacir de Souza

N

a manhã do dia 31 de março de 1964, o general Mourão Filho, o “Vaca Fardada”, disparou telefonemas para todo o Brasil, dizendo: “Minhas tropas estão na rua!”. Na noite do mesmo dia, ordenou que as tropas da IV Divisão de Infantaria que comandava em Juiz de Fora seguissem para ocupar o Estado da Guanabara. As forças do general foram reforçadas por dois outros regimentos golpistas. Seguiram sem resistência e terminaram por se confraternizar no meio do caminho com os milicos do I Exército que haviam partido do Rio de Janeiro com a missão de confrontá-los. E assim o Vaca Fardada antecipou a quartelada que deixaria o país durante 21 anos nas trevas. As pesquisas de entidades de Direitos Humanos, dos familiares e ex-presos políticos e de comissões especiais indicam um cenário devastador:

426 mortos e desaparecidos políticos, sendo 30 no exterior, e 70 na repressão à Guerrilha do Araguaia; 1.118 assassinatos de trabalhadores rurais, 2 mil waimiri-atoari assassinados por resistirem à construção da BR-174, Manaus-Boa Vista; centenas de presos comuns exterminados por Esquadrões da Morte; 50.000 prisões arbitrárias; 20.000 torturados; 10.000 exilados; 130 brasileiros banidos com passaportes cancelados; 10.034 atingidos por inquéritos policiais; 7.367 indiciados; 6.592 punições e desligamentos de militares; 700 mandatos políticos cassados; 1.202 sindicatos sob intervenção do Estado; 254 sindicatos dissolvidos; 49 juízes expurgados; 4 condenados à morte, que foram banidos; 3 ministros do STF afastados.

A família de Vladimir Herzog recebeu em 15 março 2013 o novo atestado de óbito do jornalista, torturado e morto nas dependências do DOI-Codi, em 1975, durante a ditadura militar. O novo atestado aponta como causa da morte lesões e maus-tratos sofridos por Herzog durante interrogatório no DOI-Codi, orgão de repressão do regime militar. Na versão anterior, sustentada pelo Exército na época, a causa apontada foi asfixia mecânica por enforcamento, indicando que o jornalista teria cometido suicídio.


O legado maldito amplia-se ao levarmos em conta a contabilidade político-social que arrastamos ainda nos dias de hoje: projetos culturais de gerações interrompidos, a devastação do ensino público, o alijamento político de jovens que encaram a vida como um projeto pessoal, a prática da tortura como método de obter informação como o maior legado do qual nossas polícias civil e militar são os legítimos herdeiros. Para Carlos Eugênio Paz deveríamos discutir o sistema político autoritário como um todo. “Se não tivesse havido tortura, estaria tudo bem? O que importa é a natureza do poder que foi instalado”, questiona. Para o ex-guerrilheiro, a ditadura serviu para formar uma geração esvaziada do “projeto de nação” e centrada em um “projeto individual de carreira”. Em 2010, o STF rejeitou o pedido da OAB por uma revisão na Lei da Anistia. A Ordem pretendia que o Supremo anulasse o perdão dado aos torturadores no regime militar. O então presidente da Corte, ministro Cezar Peluso, ungido pelo espírito do algoz, cravou a imortal assertiva: “Só o homem perdoa, só uma sociedade superior qualificada pela consciência dos mais elevados sentimentos de humanidade é capaz de perdoar”. Sábio ministro, estariam os torturadores inspirados nesses “mais elevados sentimentos de humanidade” ao praticarem seus crimes? Infelizmente o Supremo arrefeceu as esperanças de que a Lei da Anistia fosse revista, porém alguns promotores estão encontrando brechas na lei para tentar processar torturadores por crime de sequestro nos casos de presos políticos desaparecidos. Como o corpo de muitos nunca foi encontrado, o argumento é que o crime ainda estaria em andamento. Tal expediente jurídico não teria alcance pela Lei da Anistia. Além disso, organismos internacionais fazem pressão para que o Brasil puna essa velhacaria oficialesca. A decisão unânime dos membros da Comissão Nacional da Verdade coloca uma pá de cal na pretensão da milicada linha-dura, que

queria ver incluída na apuração ações de militantes de esquerda que resistiram à ditadura. “Ora, como anistiar quem nunca foi julgado e punido? Nós, as vítimas, sofremos prisões, torturas, exílios, banimentos, assassinatos e desaparecimentos. E os que provocaram tudo isso merecem o prêmio de uma lei injusta e permanecer imunes e impunes como se nada houvessem feito?”, disse Frei Beto. Enfim. É a primeira coisa que se pode dizer sobre a decisão da Justiça de que na certidão de óbito de Vladimir Herzog deixe de constar a mentirosa informação de suicídio. O Brasil começou a mudar. Lenta e tardiamente. Já há réus em crimes de morte de presos políticos. O coronel Ustra chupa mais uma da justiça. Sua condenação como torturador foi ratificada em segunda instância. O Grão-tinhoso era comandante do DOI/CODI de SP de 1970 a 74. A Justiça Federal no Pará aceitou as denúncias do Ministério Público Federal sobre dois ex-agentes da ditadura acusados de crimes cometidos durante os combates à guerrilha do Araguaia. O coronel reformado Sebastião “Curió” e o major da reserva Lício Augusto Maciel, o “Doutor Asdrúbal”, estão na mira da justiça.


CAPA

O cinismo da democracia Por Carlos Eduardo Carneiro*


ram “gradual, lenta e segura” para a democrática República Nova cujo marco inicial foram as eleições nacionais de 1989. A assim chamada “liberdade de expressão”, tão utilizada pela direita para justificar a difusão da mentira e do conservadorismo é a mesma que, naquele ano, fundamentou a manipulação contra o candidato à presidência Lula a favor de Collor. A república natimorta para os trabalhadores é a que resplandece nas telas de rede de televisão como a Globo, cuja concessão pública das ondas de radiodifusão foi acordada durante o regime militar em 1964. A rede Globo, democraticamente, não deveria existir, pois presta um desserviço ao povo brasileiro. No entanto, pautar o debate sobre a necessidade de fechar a rede Globo para sua estatização sob o controle popular é tido como uma ofensa aos direitos de expressão... Em nossa Não devemos nos democracia nem mesmo o povo esquecer que a poderá decidir sobre isso, afinal, ditadura de 64 teve a rede Globo é uma das como argumento maiores do planeta e serprincipal o ve bem aos interesses da reestabelecimento dos classe dominante. “valores democráticos”

Antes de 64, as circunstâncias do potencial golpe já eram denunciadas por intelectuais de esquerda e que, como ainda hoje ocorre, foram arrogantemente rotulados de “teóricos da conspiração” ou equívocos de mentes atidas a velhos conceitos e métodos ultrapassados. Enfim, previsões científicas ridicularizadas pela direita e por intelectuais covardes ou que, na melhor das hipóteses, simplesmente tinham o pensamento distorcido pelo mito da constitucionalidade republicana e da democracia. É comum em nossos dias contrapor democracia à ditadura, como se a democracia fosse o sistema político no qual as individualidades fossem plenamente livres e a ditadura sua antagonista. Não devemos nos esquecer que a ditadura de 64 teve como argumento principal o reestabelecimento dos “valores democráticos”, do “respeito à constituição”, a necessidade da “ordem social” contra os ‘terroristas”. A democracia é um mito que escamoteia a ditadura do mercado, do lucro. Não por acaso, os ditadores brasileiros durante o governo do General Ernesto Geisel forjaram uma transição que eles mesmos denomina-

N

ão pretendo analisar ou narrar as circunstâncias históricas que levaram a elite brasileira, em conchavo com a estadunidense, a realizarem o golpe de 64 no Brasil. Um dos militares que ativamente participou do golpe de 64, Juracy Magalhães, revela a mentalidade subalterna da elite de um país colônia frente ao imperialismo: “O que é bom para os EUA é bom para o Brasil”. É conhecida na literatura sobre o período a articulação entre governos, empresários, militares e paramilitares nacionais e internacionais no planejamento e na execução desta excrescência política de nossa história, infelizmente celebrada com nostalgia e, o que é pior, defendida como necessidade política atual pelos setores mais reacionários da sociedade brasileira.

Durante a democracia presenciamos massacres de índios, assassinados por pistoleiros contratados por grandes empresários proprietários de empresas de extração de recursos naturais. A mineradora Vale do Rio Doce, sob o comando de Eike Batista, é responsável por diversos assassinatos, incluindo, além de índios, pequenos agricultores. São estes empresários que pousam em capas de revistas como grandes exemplos de superação. Durante a democracia, presenciamos à massacres de trabalhadores rurais sem terras que reivindicam o direito às terras violentamente tomadas por esses empresários, como no caso de Eldorado dos Carajás. Na democracia presenciamos o Estado autorizar e realizar a expropriação de imóveis de centenas de milhares de trabalhadores, como o exemplo mais recente do caso de Pinheirinho e a Aldeia Maracanã, ou para a construção de grandes empreendimentos privados subsidiados com dinheiro público como a usina de Belo Monte, o Por-


to do Rio de Janeiro ou mesmos os estádios para a copa de futebol da FIFA. Em nossa democracia o Estado tortura e assassina os encarcerados, como em Carandiru em 1992, além de humilhar seus familiares. Não é coincidência a maioria dos cativos nos porões da democracia ser formada por jovens pobres, negros e índios. Sem falar da Polícia Militar, criada pelo regime imposto em 1964, que permanece até hoje em guerra com os civis... das periferias.

Democracia e ditadura diferenciam-se apenas sob um ponto de vista quantitativo e não qualitativo. Sob a democracia o trabalhador pode se organizar politicamente para a conquista de mais direitos, apenas isso. Ainda sim bastante limitado, basta ver o exemplo do índice de produtividade das terras que se mantém o mesmo desde o inicio da década de 70 e que o parlamento se recusa a rever ou o caso dos 10% do PIB para a educação pública. A juventude, nascida durante a democracia e desanimaO “espetáculo da democracia”, para emda com a lenga-lenga da política, começa pregarmos uma expressão da Band utilizaa perceber que, de fato, o poder corrompe da nas vinhetas de abertura dos debates o homem, independente de quem seja este eleitorais, é de fato uma grande fanfarrice homem e, se não o corromper, o assassina. entre os indivíduos que compõe a elite braComeça a perceber que não basta mudar sileira: intercalam PSDB e PT no Executivo, os rostos dos “representantes”, nem mesambos amarrados ao PMDB no Legislativo mo mudar as siglas partidárias. Em 1843-44 sob o mito da “governabilidade” e jamais Marx levantava justamente este problema e propuseram eleições chegara à seguinte conclusão: “A É preciso uma para o Judiciário... quem existência do Estado e da escratransformação prática manda no Estado são os vidão são indissociáveis”, seja a das condições que grandes empresários e escravidão antiga seja a moderna corrompem o homem, seus interesses privados escravidão assalariada. é preciso humanizar por lucro. Talvez nossa República Se o poder corrompe o essas circunstâncias de Nova, justamente por ser nova, vida para que o homem homem, é preciso uma teve de aprender com a mais transformação prática não se corrompa mais velha democracia do planeta, das condições de exisos EUA, que intercala Republicanos e Detência que corrompem o homem, é preciso mocratas no Executivo a mais de um século humanizar essas circunstâncias de vida para e se julgam um exemplo de democracia a que o homem não se corrompa mais. Como ser exportado para o mundo. Sua política isso é possível? Não seria mais uma utopia? internacional é belicista e invade países Vejamos. como o Brasil de 64 ou o Chile em 73 derrubando governos eleitos democraticaDurante os debates sobre a redação da mente; mas isso não é coisa do passado, Constituição dos EUA de 1787, as lideranças de um longíquo século XX, atualmente, políticas visualizaram, com muita clareza, em pleno século XXI, financiam golpes e a fonte do poder e do Estado e explicitaterror contra democracias no planeta que ram em textos e discursos. Em 1776, John não atendem aos interesses de suas mulAdams escrevera: “O poder segue sempre tinacionais, como nos recentes casos da de perto a propriedade. (...) o equilíbrio Venezuela Bolivariana e da Ucrânia, mas do poder vem acompanhado do equilíbrio se calam diante de ditaduras milenares da propriedade da terra”. Sinceridade que como a da Arábia Saudita, pois esta lhe jamais será vista pelos representantes das é subserviente. A democracia é sempre democracias e vista apenas durante o nasuma justificativa para a elite e seus cães cimento da primeira democracia mundial de guarda implantarem as mais sangrencuja elite ainda alimentava sonhos enquantas atrocidades em nome do lucro. to a realidade republicana não as obrigava,


por debaixo dos panos, corromper os indivíduos ou assassiná-los em nome do lucro. Estado, lucro, poder e propriedade privada são expressões diferentes para uma mesma relação social: exploração e aviltamento da humanidade. Não basta o povo conquistar o Estado, é necessário sua destruição, afinal, os parasitas que dele vivem, vivem apenas devido aos tributos pagos pela população trabalhadora e, mais que isso, é preciso politizar a economia. A corrida por lucro está levando à destruição da biosfera do planeta terra, problemas ecológicos de enormes proporções são iminentes, mas aqueles que defendem a democracia política são incapazes de defender a democracia sobre a economia. A população precisa decidir coletivamente os rumos das empresas e indústrias, pois todos trabalham para produzir o mundo que nos rodeia, mas essa produção atende aos interesses dos proprietários. Se a vida como um todo está em risco devido a essa produtividade irracional e insustentável, porque a humanidade não pode decidir sobre os rumos da produção? Justamente porque a representatividade política, a troca de partidos no Estado e outras balelas da democracia, esconde a mais cruel ditadura: a dos proprietários na busca de lucros cada vez maiores contra os interesses coletivos da humanidade e em detrimento do planeta.

A democracia é uma invenção dos senhores de escravos da antiguidade; mas hoje, num mundo no qual não se pode negar que os trabalhadores são seres humanos e não simples “instrumentos falantes”, como defendia Aristóteles, a democracia vai mostrando seus limites, pois o poder acompanha a propriedade e a destruição do poder é a destruição da propriedade ou, em termos positivos, é a construção de um mundo no qual todos pensem e trabalhem juntos e compartilhem os produtos do trabalho coletivo conforme a necessidade de cada um, sem patrões, sem políticos e sem militares. Por isso, democracia não é sinônimo de liberdade; democracia é sinônimo de Estado. Mas, se é para falarmos de democracia, comecemos a falar da democracia no local de trabalho e nas praças públicas. Afinal, a produção do mundo humano deve servir aos interesses privados de uns poucos proprietários, mesmo que isso leve a humanidade à extinção por meio de crises ecológicas, ou deve servir à emancipação humana do sofrimento de carências elementares e promover o bem estar de cada indivíduo vivo? A resposta da elite brasileira e mundial já é conhecida: a grande mídia criminaliza aqueles que estão indo às ruas protestar contra as grandes corporações e seu Estado assassino que agora aprovou a Lei de Segurança Nacional (20/12/13) rotulando aqueles que lutam por direitos como “terroristas”. Ditadura e democracia não são antagônicos, são apenas arranjos da elite na direção do Estado para fazerem uso da violência legalizada com maior ou menor intensidade. Fiquemos atentos! * Carlos Eduardo Carneiro é educador.


Cão de muitos donos

passa fome Por Marco Milani*

A

astúcia de Jango é uma questão polêmica. Mas, sabemos, tinha um grande projeto para o Brasil. As reformas de base atacariam questões estruturais no Brasil, que nunca puderam ser resolvidas desde então. Entretanto, forçou até as últimas consequências seu plano de governo fazendo as alianças erradas. Quanto às Forças Armadas, estiveram sempre prontas a intervir na sua República de estimação, tão logo achassem conveniente. Goulart acreditou que estaria a salvo obtendo o apoio das baixas patentes, mas mexeu com o brio da cúpula ao por em xeque o valor mais caro aos militares: a hierarquia.

Leonel Brizola, seu cunhado e correligionário, vociferava contra o “entreguismo”, os lucros astronômicos das multinacionais sobre os recursos brasileiros, sempre devidamente remetidos às matrizes. Como governador, nacionalizara duas multinacionais que não haviam cumprido devidamente seus contratos. Assim, cometeu o pecado capital para uma bananas republic, desagradando o Tio Sam. Brizola, contudo, sabia bem como pretendia reagir e nunca perdoou Goulart por não ter oferecido resistência bélica ao golpe de 1964. Não obstante, João Goulart pisou no calo dos donos do país ao empreender uma reforma agrária e uma reforma urbana, visando promover o acesso de toda população à terra urbana e rural. Com todos aqueles que dominavam o

diagrama do poder no país pondo sua cabeça a premio, Jango recorreu às bases da sociedade no famigerado comício da Central do Brasil. No dia 13 de março de 1964, discursou a sindicatos, estudantes e à população em geral contra o hábito conciliador do Estado para com as elites do país. Ao findar daquele mês foi deposto pelo golpe. De todas as acusações que podemos fazer à cúpula do PT, a ignorância a respeito de nossa história não é uma delas. O partido nasceu sob a proposta de representação direta das camadas populares, em meio ao clima otimista da redemocratização, mas foi se pasteurizando com o passar dos anos. Lula aparou a barba, penteou os cabelos e vestiu terno italiano para se reunir com empresários e provar que, se eleito, não seria tão radical quanto o antigo sindicalista. No poder, o partido decepcionou os seus e conquistou a ira de uma geração que sequer conhece suas origens. Daí o estranhamento de Joan Baez para com a reação da plateia ao chamar Eduardo Suplicy ao palco, há algumas semanas. Baez, ícone da contracultura, fora impedida de fazer seu show pela censura, em 1981, dera uma bitoca em Suplicy e nunca mais voltara ao país. Em tempos de fãs da contracultura reacionários, cabe esperar do PT as Reformas de Base de Jango?


O que fica nas entrelinhas, especialmente nas falas de Lula, é que o partido fez uma opção dramática. Em nome da governabilidade, tenta superar a miséria no país sem cortar o barato dos donos do poder. Uma análise superficial do modelo de crescimento do PT deixa claro que ele não passa de uma adaptação do Milagre Econômico do regime militar. Não é à toa que o idealizador do Milagre, Delfim Netto, elogiou tanto a política econômica de Lula. Grandes somas investidas pelo Estado em obras e na indústria estatal aqueceram a economia, que reverberou no aquecimento do mercado interno, permitindo ainda, grande influência do capital estrangeiro. Entretanto, a criação de mercado centrou-se, dessa vez, na população de menor poder aquisitivo, um projeto político, mas também uma tendência da economia mundial nos dias atuais. Houve, de fato, o ingresso das classes baixas no mercado de consumo, gerando certa euforia e um aumento relativo de bem estar. Entretanto, agora, esse modelo parece estar se esgotando, e esbarra, dentre outros fatores, na estrutura social do país. Os pobres tem TV de LCD e podem viajar de avião, mas nem sequer avistam saúde, educação ou alimentação de qualidade. E, se os ricos reclamam da falta de segurança, que dirá quem não pode pagar por ela? Chegamos a um ponto em que alguma mudança nesses quesitos implica, necessariamente, em afrontar os interesses de grupos poderosíssimos. Contudo, nada indica que o PT mexerá nos privilégios desses figurões, pois sabe bem o que aconteceu com Jango. E, na falta de uma grande solução, ficamos sem saber de quem esperar uma mudança real no país.

Concomitantemente, surgem grupos, escassos mas barulhentos, que querem forçar o mesmo destino de Jango para Dilma. Parte do projeto político de Goulart estava calcado na melhoria real da educação pública. Esse, obviamente, é um nos pontos que vergonhosamente nunca conseguimos enfrentar. E é apostando nisso que atuam esses novos golpistas, ora risíveis, ora nojentos (na acepção mais sartreana possível do termo). As novas gerações, com acesso à informação mas nenhum senso crítico para filtrá-la (todo meu respeito aos que são exceção), compartilham, sorridentes, vídeos de Bolsonaro e, quem diria, de Lobão, o porra-louca quadradão. Érico Veríssimo foi felicíssimo, no Incidente em Antares, em retratar como os poderosos brasileiros advogam com paixão por qualquer partido, baioneta, ou justiceiro que possa garantir seus status quo. E é isso que nossos conterrâneos de todas as gerações parecem ignorar ao amar esses fascistóides da Internet ou televisão. Esses tipos tentam empurrar uma versão calhorda da memória da ditadura militar para desestabilizar um governo que oferece riscos mínimos aos privilégios de qualquer um. Estão longe de conseguir o que querem, mas, caso consigam, vão acabar jogando o bebê junto da água suja. Se conhecessem um pouco de história além dos Guias Politicamente Incorretos saberiam que, depois de um golpe de Estado, qualquer um pode parar nas câmaras de tortura, basta uma palavra errada (que vem tão fácil no Facebook) ou um simples engano do policial. A democracia vai mal, todos sabem. Mas nada é tão ruim que não possa piorar. * Marco Milani é historiador formado pela Unesp e educador.


O Golpe – para bons e maus entendedores Por Marco Milani

P

ense num conto de fadas, num clássico Disney. Há a bruxa má e seus seguidores e há o príncipe bom e seus seguidores. Quem é do lado mal é feio e fedido e quem é do lado do bem é lindo e limpinho. Era mais ou menos assim que muita gente via o mundo na década de 1960. E a comparação com as animações de Walt Disney não é completamente por acaso, já que ele fora uma espécie de embaixador dos EUA na difusão dessa visão de mundo. Então existe a bruxa má. A da Branca de Neve, por exemplo. Se por um acaso, uma jovem donzela é deixada sozinha, a bruxa se disfarça e vem lhe oferecer a maçã envenenada, a mais vermelha da cesta. Do nosso lado do mundo, era assim que se viam os comunistas em 60, pessoas que se dissimulavam por aí e ofereciam o Livro Vermelho para converter nossas crianças ao seu comunismo feio, fedido e pervertido. Essa visão atendia aos interesses do lado capitalista durante a Guerra Fria, mas caiu como uma luva para certos setores da política brasileira. João Goulart, o presidente deposto em 1964, pertencia a uma linhagem política que ficou conhecida como Populismo (uma definição hoje em desuso). Essa forma de fazer política obviamente defendia os interesses pessoais dos próprios “populistas”, mas é inegável que ela provocou uma reviravolta no país quando começou a entender que pobres e mulheres eram uma força política poderosa. Afinal, não era muito mais fácil quando eles não podiam votar ou o faziam debaixo de cacetadas? Jango, como era conhecido o presidente, pôs em prática inúmeras reformas que pretendiam reduzir a desigualdade social do país. Para seus adversários, rotulá-lo como comunista era a melhor forma de fazê-lo

cair fora. Não importava que os comunistas de verdade, os do Partido Comunista Brasileiro, não apoiassem Goulart, que consideravam um “reformista”. Quando os militares saíram às ruas, em 64, contavam com uma campanha de propaganda anticomunista e anti-Goulart que vinha sendo promovida por empresários há anos. Além disso, contavam com navios de guerra estadunidenses que rumavam para cá, para apoiá-los numa guerra civil que, acreditavam, duraria meses. Mas Jango, provavelmente esperando evitar o derramamento de sangue, não ofereceu resistência através dos setores das Forças Armadas ainda fiéis a ele. Entretanto, muito sangue foi derramado depois do golpe, ainda sob a alegação de combater o comunismo. Enquanto uma parte significativa da população apoiava Goulart, outra via nele a bruxa disfarçada. Pouco antes do golpe, foi promovida a Marcha da Família com Deus Pela Liberdade, com apoio da Igreja e de empresários. A caça às bruxas, ou ao comunismo (como preferir o leitor) foi a justificativa para que os militares concentrassem maior poder nas mãos dos generais. A polícia, ao lado de membros das Forças Armadas que assumiram a função de polícia, atolou-se em um pântano de torturas e execuções sumárias de que até hoje têm dificuldade em se livrar. As justificativas para acusar um suspeito de pertencer ao “outro lado” eram as mais estapafúrdias. Como nesse trecho de um folheto distribuído pelos militares: “[suspeite-se] das livrarias que clandestinamente vendem livros subversivos, do rock and roll, esta música eletrizante, e portanto subversiva, dos advogados, jornalistas, professores.”


É na banalização da violência que surge a diferença fundamental na nossa comparação. Enquanto os “príncipes” dos clássicos Disney recusam-se a matar a bruxa, deixando que seu destino trágico se cumpra, os da vida real (ao menos os que assim se consideravam) não hesitavam em executar seus inimigos, ocultando corpos ou simulando grosseiramente acidentes e suicídios. Curiosamente, nos dias de hoje, tem surgido pessoas dispostas a acreditar no conto de fadas da caça a um comunismo

mitológico que, disfarçado de velhinha, corromperia as nossas mentes. Elas desvalorizam nosso regime democrático e sugerem o tempo todo que os militares deveriam promover um novo golpe. Dentre eles, músicos e jornalistas que se esquecem que foi justamente o fim da ditadura, da censura e da repressão que lhes permitiu constituir carreira. Se esquecem de que falar mal do governo é um privilégio das democracias e que, se o Brasil não vai bem, pode ficar muito pior se não pudermos mais denunciar suas mazelas.

1964: História do Regime Militar Brasileiro – Marcos Napolitano Editora Contexto Muitos livros foram lançados próximo a data dos cinquenta anos do golpe, muito escritos por autores de peso. Dentre eles, se destaca o do historiador Marcos Napolitano, 1964: História do Regime Militar Brasileiro. Napolitano é professor da USP, conhecido por suas pesquisas históricas em torno da música brasileira. Nos últimos anos, no entanto, ampliou seu escopo para outros aspectos desse período histórico. Como resultado, lança esse livro, que é uma análise ampla, sólida e equilibrada dos acontecimentos do período. Uma obra altamente indicada tanto para especialistas quanto para os não iniciados. Brasil: Nunca Mais – Dom Paulo Evaristo Arns Editora Vozes Embora não reflita sobre questões políticas ou sociais em torno da ditadura militar, o livro Brasil Nunca Mais é obrigatório para quem quer entender o período. Ele é fruto do Projeto Brasil Nunca Mais que, através de advogados de presos políticos, conseguiu reunir clandestinamente mais de um milhão de páginas de seus processos. As páginas eram fotocopiadas e remetidas à Suíça, onde estavam a salvo e puderam ser analisadas e servir como base para um extenso relatório e, posteriormente para o livro. É necessário ter estômago para ler os relatos de torturas, mas fazê-lo é, no mínimo, prestar homenagem aos que arriscaram suas vidas para trazê-las a público. O dia que durou 21 anos – Dir. Camilo Tavares Baseado em uma extensa base documental, Camilo Tavares retoma o tema do apoio dos Estados Unidos ao golpe de 1964. São papéis, áudio e vídeos da inteligência estadunidense que contam como o embaixador dos EUA, Lincoln Gordon, amarrou as franjas do golpe, garantindo a participação de diversos membros da sociedade brasileira. Ainda, segundo o documentário, foi Gordon quem convenceu os presidentes John F. Kennedy e, posteriormente, Lyndon Johnson, a oferecer apoio militar aos golpistas, sob a alegação de que Goulart ameaçava os interesses dos EUA e que o Brasil poderia se tornar uma nova Cuba, com o agravante de ser o maior e mais influente país da América Latina.


O Fantasma da revolução brasileira – Marcelo Ridenti Editora Unesp Outra obra a ser recomendada é O Fantasma da revolução brasileira, de Marcelo Ridenti. Nela, o autor empreendeu a corajosa tarefa de esmiuçar a esquerda brasileira pré e pós 64. Trata-se de um quadro extremamente complexo, com uma infinidade de grupos dissidentes e posições divergentes. Partindo de uma época em que a arte em todo mundo era extremamente ligada às utopias de esquerda, os artistas brasileiros ganharam um capítulo no estudo de Ridenti, ao passo que a análise se estende até às alas mais radicais da esquerda, partidárias da luta armada. É, sem dúvida, um livro para aqueles que querem aprofundar seu conhecimento a respeito desses personagens históricos. Mas ganha importância também para os leigos, uma vez que a desmoralização dos opositores do regime tem sido cada vez mais usada como arma em defesa da ditadura. Zuzu Angel – Dir. Sérgio Rezende Trata-se de um formidável drama – em todos os sentidos do termo – sobre a luta da estilista Zuzu Angel para descobrir o paradeiro de seu filho, um militante estudantil de esquerda, morto pela ditadura. Zuzu empenhou uma incansável campanha usando de sua proximidade com membros da elite brasileira e internacional, para a qual desenhava roupas. No entanto, sua busca foi interrompida em um acidente de carro, o qual, sabe-se hoje, foi provocado também por agentes do regime militar. O filme explora aspectos emocionais da perda de Zuzu, mas traz à tona a discussão a respeito da banalização da vida perpetrada pela ditadura. A Memória que me contam – Dir. Lúcia Murat Este definitivamente não é um filme feito para informar o espectador. Com trama relativamente complexa, o drama faz inúmeras referências às questões enfrentadas hoje por quem foi esquerda nas décadas de 1960 e 70. Como aqueles que viveram a contracultura e a luta contra a ditadura (armada ou não) lidam com a atual política do país, com a velhice, com os traumas causados pela tortura e com as novas gerações? – estas, com novas formas de enfrentamento político e aparentemente um pouco mais caretas que seus pais. O presente definitivamente não é benevolente com os contestadores do passado. Murat, através do filme, levanta questões autobiográficas e homenageia Vera Silvia Magalhães. Vera foi amiga de Lucia e participou do sequestro do embaixador Charles Embrick, retratado de maneira pouco feliz no filme O Que é isso companheiro? Nota do autor: “Os títulos foram selecionados à partir de sugestões de historiadores especialistas em ditadura militar” (Marco Milani)


Dica do Kalango Fahrenheit 451 - LEGENDADO (No Youtube) Fahrenheit 451, 1966 - A obra-prima literária de Ray Bradbury sobre um futuro sem livros ganha assustadora dimensão realística neste clássico filme dirigido por François Truffaut, um dos grandes inovadores do cinema de todos os tempos. Montag (Oskar Werner) é um bombeiro designado para queimar livros proibidos até conhecer uma revolucionária professora que se atreve em lê-los. De repente ele se vê como um fugitivo caçado, forçado a escolher não apenas entre duas mulheres, mas entre sua segurança pessoal e a liberdade intelectual. Primeira produção de Truffaut em língua inglesa, o filme é uma fábula extraordinária em que a própria raça humana se transforma no terror mais assustador. https://www.youtube.com/watch?v=ZriW3CPU9G4 LIVRO

Em comemoração ao 60º aniversário da obra de Ray Bradbury - Fahrenheit 451, a Simon & Schuster convidou seus leitores a projetarem uma nova capa para este clássico icônico. É uma obra que se manteve significativa, instigante e relevante para todas as gerações.

Fahrenheit 451 - Cartaz vintage da obra de François Truffaut baseada no livro homônimo de Ray Bradbury, um dos mestres da ficção científica - Editora Aleph

O desenho vencedor foi utilizado pela primeira tiragem da edição de aniversário, na primavera de 2013. O designer recebeu $ 1.500 e o projeto poderá ser utilizado na loja e outras promoções, tanto física quanto online. As inscrições foram recebidas e visualizadas nesta página no Tumblr. Para conhecer o vencedor, é só acessar: http://fahrenheit451jacketcontest.tumblr.com/ O livro ‘As Capas desta História’ reúne imagens de jornais alternativos, clandestinos e produzidos no exílio entre 1964, ano do golpe, e 1979, quando foi aprovada a Lei da Anistia. A obra traz ainda capas de jornais considerados precursores das publicações dos anos de chumbo. As Capas desta História, de Ricardo Carvalho (coord.), José Luiz Del Roio, Vladimir Sacchetta e José Maurício de Oliveira (orgs.), Editora Instituto Vladimir Herzog, São Paulo, 2011. Saiba mais aqui: http://migre.me/iCm2c





O irmão do “terrorista” Por Luis Pires

E

m tempos já tão distantes, na periferia de Osasco, o sonho de nove entre dez garotos era se tornar jogador de futebol. Não sonhávamos com carros, mulheres, dinheiro, mas tão somente em ganharmos a vida fazendo aquilo que mais gostávamos: jogar futebol. Passávamos o maior tempo possível disputando partidas nas diversas canchas espalhadas pelo bairro, que poderiam ser tanto um campo tamanho oficial, como uma viela ou a quadra da escola. Nem mesmo terrenos íngremes impediam nossos embates contra os meninos da rua de cima, da rua de baixo, de outros bairros, etc. Pergunta-se o atento leitor: o que esse papo tem a ver com o tema desse número especial da Kalango, que é o cinquentenário do golpe militar de 1964? Explico-me: nasci poucos meses depois do famigerado 31 de março, e durante os anos seguintes, em minha casa, pouco se falava a respeito. Meu pai era um operário sem estudo, apolítico, cujo único objetivo era não deixar faltar comida sobre nossa mesa. Em seu pouco tempo livre, sentava no sofá para ler religiosamente o jornal Gazeta Esportiva, talvez o único vício a que se permitiu em sua vida. Mesmo com a efervescência

política ocorrendo na insubmissa Osasco do final dos anos 1960, me recordo que a pouca menção ao assunto ocorria quando nossos pais se referiam a uma família vizinha, cujo filho “terrorista” havia sido morto pelo Exército. Havia um medo velado de convivência com a estigmatizada família. Mas entre os membros dela havia um goleiraço. E quem já jogou futebol sabe o quanto são raros os goleiros. Ainda mais um bom. Assim, nos esquecíamos do “perigo” e convivíamos perfeitamente com ele, o “irmão do terrorista”. Na década de 1980, já na faculdade de jornalismo, em busca de outro sonho profissional, comecei a ler tudo o que se referia aos anos de chumbo. Foi então que descobri que o tal vizinho “terrorista” era o soldado Carlos Roberto Zanirato, que no dia 25 de janeiro de 1969, desertou do Exército, partindo do quartel de Quitaúna, juntamente com o capitão Carlos Lamarca. Levaram consigo 63 fuzis FAL, três metralhadoras INA e diversos outros equipamentos de guerra e a missão de implantar no Brasil uma guerra de guerrilhas, com o intuito de derrubar o governo militar. Lamarca, como se sabe, foi assassinado pelos militares

no sertão da Bahia dois anos depois. Zanirato foi preso por agentes do DOPS/SP, em 23 de junho de 1969, quando saia do aparelho (nome que se dava à base das organizações clandestinas) para ir ao cinema. Foi morto sob tortura, mas a versão oficial é que teria se suicidado atirando-se sob um ônibus, no cruzamento das ruas Bresser e Celso Garcia, quando era levado pelos policiais a um encontro com companheiros de luta. Recentemente se descobriu que seu corpo foi enterrado clandestinamente como indigente no cemitério da Vila Formosa, utilizado como local de desova de corpos dos opositores do regime. Tempos atrás, encontrei-me com o tal goleiro. Era corretor de imóveis. Seu sonho de se tornar jogador de futebol também tinha ficado para trás. A marca da ditadura deixada em sua família, porém, jamais se apagará. (Dados extraídos do livro Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil – 1964/1985. Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos / IEVE – Instituto de Estudos sobre a Violência do Estado/Imprensa Oficial, São Paulo, 2009, 2° ed.) *Luis Pires é jornalista e fotógrafo profissional.


CAPA

A Marcha naufragou Por Luis Brandino*

N

ossa tradição política, infelizmente, não anda de mãos dadas com a democracia . Explico. O Brasil tem 192 anos como nação. Os primeiros 66 anos vivemos sob uma monarquia imperial. Nossa República nasceu (em 1889) de um golpe militar; e os primeiros 30 anos do novo regime a democracia basicamente não existiu. Como bem observou Florestan Fernandes em seu artigo Existe uma crise democrática no Brasil?, na República Velha (1889-1930) houve a ausência de padrões democráticos, pois a prática era “o viciamento das eleições pela influência dos ‘coronéis’ ou por fraudes inspiradas no Governo, a incapacidade aglutinadora dos partidos, inconsistência da opinião pública”. A Revolução de 1930, comandada por Getúlio Vargas, teve como principal objetivo combater a política dos governadores, que tinha como base regional o coronelismo, e o “atraso” industrial. Revolução passiva (no conceito criado pelo filósofo Antonio Gramsci), pois a oligarquia, que Vargas e a revolução combateram, manteve-se no poder. Em 1937, com o apoio dos militares, Vargas implantou o Estado Novo, período ditatorial que durou até 1945, quando os militares depuseram o presidente. Vargas baniu os partidos políticos e governou o Brasil por sete anos sem o Congresso e com interventores nos Estados, que não tinham autonomia política e econômica.

Período democrático (1945-1964) A queda de Getúlio inaugurou no Brasil o primeiro período democrático, de 1945 a 1964. O país já não era rural e agrário. Surgiam os grandes centros urbanos e uma nova classe social: o operariado. Candidato pelo PSD (Partido Social Democrático), com apoio de Vargas, o general Eurico Gaspar Dutra derrotou nas urnas o brigadeiro Eduardo Gomes, candidato pela UDN (União Democrática Nacional). Embora tenha aprovado em 1946 uma constituição liberal, Dutra não fez um governo que poderíamos considerar “democrático”, pois cassou o registro político do PCB e os mandatos dos deputados comunistas, proibiu greves e perseguiu sindicalistas. Cinco anos depois de deposto, Getúlio Vargas voltou ‘a presidência da República pelo voto popular. Venceu de novo Eduardo Gomes, baseando sua campanha na defesa da industrialização e na necessidade de ampliar a legislação trabalhista. Vargas enfrentou em seu governo uma ferrenha oposição dos udenistas e das elites em geral, especialmente da imprensa. Seu governo enfrentou uma grave crise econômica e denúncias de corrupção. Vargas perdeu o apoio das Forças Armadas, que exigem sua renúncia. Para evitar o golpe, suicidou-se no dia 24 de agosto de 1954. Juscelino Kubitschek é eleito pelo PSD em 1955. Mas antes mesmo de ser empossado, enfrentou uma crise com os militares, num episódio que ficou conhecido como “golpe preventivo”, promovido pelo general Lott, que interveio junto às Forças Armadas para garantir JK assumisse o governo. O governo de JK é considerado o período de maior estabilidade política, embora tenha enfrentado uma aguerrida oposição da UDN e enxurradas de denúncias de corrupção por parte da imprensa. O sucesso do governo se deu especialmente pelo crescimento econômico e pelo clima de otimismo.


A crise Jânio-Jango A UDN finalmente chegou ao poder em 1960, mas por vias tortas. Jânio Quadros elegeu-se pelo pequeno PTN, com apoio da UDN de Carlos Lacerda. Governou apenas sete meses e renunciou no dia 24 de agosto de 1961. A renúncia de Jânio provocou uma grave crise política. A posse do vice, João Goulart, que fora eleito pelo PTB (a Constituição de 1946 previa a eleição tanto do presidente como do vice), fora contestada tanto por udenistas como pelos militares. Para não deixar vago o poder, o Congresso encontra uma solução: o sistema de governo passou de presidencialista a parlamentarista, e Jango assumiu no dia 7 de setembro de 1961. Em janeiro de 1963, um plebiscito decidiu pela volta do presidencialismo.

O clima esquenta Os anos de certa estabilidade política fizeram com que os movimentos sociais avançassem e fizessem surgir no panorama social novos atores, como as Ligas Camponeses, que lutavam por reforma agrária, o crescimento da mobilização estudantil e operária. O movimento operário organizado – ligado especialmente ao PCB – entendia que uma aliança entre o capital e o trabalho seria a solução para o país. Por isto exigia reformas de base, que tinham por objetivo modernizar o capitalismo e reduzir as profundas desigualdades sociais do país, a partir da ação do Estado, como escreveu o historiador Boris Fausto. Para o historiador, “isso implicava uma grande mudança à qual as classes dominantes em geral, e não apenas os latifundiários como se pensava, opu-

seram forte resistência”. O medo do comunismo, que rondava a América Latina depois da revolução cubana, também levou a direita liberal a organizar-se. Para influenciar ideologicamente, grupos de empresários, intelectuais e militares, com apoio dos norte-americanos, criaram o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e o Ipes (Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais). O Brasil vivia um período de grave crise econômica, que o Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social, feito pelos ministros Celso Furtado e San Tiago Dantas, não conseguiu combater. Jango passa a receber tanto críticas da esquerda, que o considera comprometido com o imperialismo e com o latifúndio, quando pela direita, que o acusa de subversivo. O Brasil estava maduro para o golpe!


Cinquenta anos depois Desde 1985, com a eleição, ainda indireta, de Tancredo Neves para a presidência, o Brasil vem amadurecendo sua democracia política. O grande problema é que esta expansão da cidadania política foi acompanhada pela deslegitimação da cidadania civil, especialmente a partir dos anos 1990, com o neoliberalismo influenciando a economia, a constituição do Estado e as novas relações de trabalho. Para explicar este fenômeno, a antropóloga Teresa Pires do Rio Caldeira cunhou o termo “democracia disjuntiva”. Nos últimos dez anos, graças aos programas de distribuição de renda, mesmo que tímidos, uma boa parcela da população ingressou no mundo do consumo. Além disso o governo federal vem promovendo políticas de inclusão da parcela da população menos favorecidas às universidades por meio do ProUni (financiamento em instituições privadas) ou por meio das quotas raciais nas universidades públicas. Estas ações encontraram forte resistência da classe médias e das elites.

Em junho de 2013, o Brasil assistiu a uma série de atividades de rua, que se iniciou em São Paulo com uma passeata promovida pelo Movimento Passe-Livre (MPL). A repressão policial desproporcional levou a outros grupos a aderirem às passeatas promovidas pelo MPL. Uma grande parcela da juventude, descrente do sistema representativo e dos políticos em geral, engrossou as manifestações, rechaçando os partidos políticos. Em meio as reivindicações por “saúde e educação”, empunharam bandeiras contra as políticas públicas de inclusão e contra grupos minoritários. Utilizaram-se, inclusive do slogan de propaganda de uma grande empresa multinacional de bebidas: “O gigante acordou”. Iniciou-se, a partir daí, uma verdadeira guerra ideológica pelas redes sociais. Como em 1964, os conservadores acusam o governo federal de subversivo, que apoia ditaduras. Grupos mais radicais do que se poderia chamar de extrema direita chegaram a promover, no dia 22 de março, uma tentativa de reedição da “Marcha com Deus pela Família”, que há 50 anos levou às ruas de São Paulo os conservadores pedindo a cabeça do comunista Jango Goulart. Felizmente os tempos são outros, e a marcha naufragou!

* Luis Brandino é jornalista. Utilizo aqui os critérios que Robert Dahl estabeleceu para democracia: participação efetiva; igualdade de voto; entendimento esclarecido; controle de programa e planejamento; inclusão dos adultos (ou seja, plenos direitos de cidadão).


A ditadura na prateleira Há 50 anos, no dia 1º abril, as tropas do general Olimpio Mourão Filho, comandante do 4ª Região Militar e da 4ª Divisão de Infantaria do I Exército, sediados em Juiz de Fora (MG), seguiram rumo ao Rio de Janeiro dando início ao golpe militar que derrubou João Goulart da presidência do Brasil. A queda de Goulart marca o fim do até então mais longo período de regime democrático no País – de 1945 a 1964. Para entendermos e construirmos a história do presente, como nos ensino o sociólogo francês Robert Castell, é preciso se retornar ao próprio passado. A

filósofa Hannah Arendt, em seu livro Eichmann em Jerusalém, escreve que “os buracos do esquecimento não existem. Nada humano é tão perfeito, e simplesmente existem no mundo pessoas demais para que seja possível o esquecimento”. É por isto que preparamos para você, leitor, uma seleção de livros que ajudam a entender este período conturbado da nossa história. Buscamos priorizar os livros recémlançados, por serem, obviamente, mais fáceis de serem encontrados. Contudo, não poderíamos deixar de fora alguns clássicos escritos por pesquisadores brasileiros e estrangeiros – estes, conhecidos como brasilianistas. (Luis Brandino)

1964: a conquista do Estado – ação política, poder e golpe de classe. Autor: René Armand Dreifuss Editora: Vozes O livro é resultado da tese de doutorado do uruguaio René Armand Dreifuss na Universidade de Glasgow. Publicado na década de 1980, o livro é considerado importante primeiro porque traz mais de 300 páginas de documentos, depois porque Dreifuss nos releva o importante papel que o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) tiveram na propagação ideológica no período pré-golpe. O livro está fora de catálogo, mas pode ser encontrado em sebos. 1964: golpe ou contragolpe Autor: Hélio Silva Editora L&PM Publicado originalmente em 1975, o livro do historiador Hélio Silva ganhou nova edição da L&PM. Para o autor, o golpe complementa o ciclo de Vargas. Hélio Silva recupera as minúcias da preparação e da eclosão do golpe, que mergulhou o país num longo período de obscurantismo, perseguições, desprezo às liberdades individuais e aos direitos do cidadão. 1964 – O golpe Autor: Flávio Tavares Editora L&PM Jornalista político em Brasília, Flávio Tavares conviveu com civis e militares envolvidos nos conluios, tramas e tramoias que desembocaram na derrubada de João Goulart. Acompanhou no Palácio do Planalto os derradeiros momentos do presidente já em fuga. No livro, Tavares revela como os Estados Unidos financiaram e apoiaram a conspiração mobilizando até a frota naval pelo Atlântico, na Operação Brother Sam, em apoio aos golpistas.


Combate nas trevas – a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada Autor: Jacob Gorender Editora: Ática Combate nas trevas narra a história da esquerda brasileira que se lançou à luta armada. Militante do PCB – foi do Comitê Central –, Gorender imprime ao livro um certo coeficiente memorialista, como ele mesmo assume, mas que não se sobressai na obra, baseada em sólida pesquisa bibliográfica e documental, além de entrevistas com os protagonistas da luta armada. Infelizmente o livro está fora de catálogo, mas pode ser encontrado em sebos. Estado e oposição no Brasil (1964-1984) Autor: Maria Helena Moreira Alves Editora: Vozes Lançado em 1984, a tese central da autora é que, a partir do golpe civil militar de 1964, o estado populista é substituído pelo Estado de Segurança Nacional. Esta ideologia, de acordo com a autora, molda as estruturas de Estado, que elabora e impõe formas de controle da sociedade civil. O livro tem como base a tese de doutoramento que a autora apresentou junto ao Massachusetts Institute of Techonology (MIT), dos Estados Unidos. Livro fora de catálogo. 1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil Autores: Jorge Ferreira e Angela de Castro Gomes Editora: Civilização Brasileira Um panorama de como se instaurou a ditadura civil-militar no Brasil e seus desdobramentos. Pelas mãos dos autores é possível entender melhor esse conturbado período da história, que rendeu ao país duas décadas de repressão e tantas injustiças. Numa linguagem objetiva, sem exageros acadêmicos ou notas de rodapé excessivas, que tornem o texto menos atraente para o grande público, os autores destacam personagens e momentos que marcaram o período, relembrando falas de personalidades e trechos de jornais que noticiaram o Golpe. Brasil: de Getúlio a Castello Autor: Thomas Skidmore Editora: Companhia das Letras Thomas Skidmore é um dos principais brasilianistas norte-americano. Brasil: de Getúlio a Castello (1930-64) é leitura básica para qualquer tentativa de estudo ou compreensão do período abordado. O autor inicia a obra na Revolução de 1930, passando pelo autoritarismo do Estado Novo e pelo período de governo democrático depois da Segunda Guerra Mundial, para ser concluída com o golpe de 1964. Há um segundo volume, de Castelo a Tancredo, editado originalmente pela Paz e Terra, infelizmente esgotado e que ainda não foi reeditado pela Cia das Letras. Memórias do esquecimento Autor: Flávio Tavares Editora: Record O autor sofreu na carne as técnicas usadas pela polícia política do regime militar para incriminar os inimigos do regime. A tortura, os choques elétricos, o pau-de-arara, o exílio. Expulso do país, viveu no México e na Argentina. Sequestrado e preso novamente no Uruguai, foi libertado, depois de mais sofrimentos físicos, e seguiu para a Europa. Retornou ao Brasil após 10 anos de exílio, em 1979.



Nada mais que a verdade Por Paloma Rocha Barra*

A

fim de estabelecer a verdade sobre o que aconteceu no Brasil na Ditadura Militar, entre os anos de 1964 e 1985, foi instaurada pelo Governo Federal, em 2012, a Comissão da Verdade com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos, crimes contra a humanidade, sequestros, tortura e homicídios praticados neste período com o objetivo de garantir o direito à memória e à veracidade histórica, além de promover a reconciliação nacional. Para Carlos Alberto de Azevedo, jornalista e colaborador do livro ‘”HABEAS CORPUS - Que se apresente o Corpo - A busca dos desaparecidos políticos no Brasil”, o papel da Comissão da Verdade é exatamente buscar a verdade sobre os crimes ocorridos durante a ditadura. “É indicar os responsáveis de forma que a sociedade possa saber tudo o que aconteceu e tomar uma decisão soberana sobre a responsabilização desses crimes. E, assim, a Nação possa fazer justiça e avançar na rota da democratização”, afirma Carlos.

Em busca dessa verdade sobre a ditadura e por uma democracia real em nosso país, jovens saem às ruas para denunciar torturadores e assassinos do período militar no Brasil. Os “escrachos” realizados pelo Levante Popular Jovem, já aconteceram por diversos estados brasileiros alertando a população de que perto deles mora ou trabalha algum militar que abusou do poder durante o período ditatorial. Indicado para receber o Prêmio Nacional de Direitos Humanos, da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência de República, o Levante Popular da Juventude é organizado por jovens militantes que buscam a mudança da sociedade através de agitação com músicas, graffite, dança, teatro, fanzines, faixas, adesivos, murais e gritos de luta. Entre os militares denunciados a população pelos “escrachos” está Maurício Lopes Lima tenente-coronel reformado que fazia parte do alto-escalão do Departamento de Operações de Informação dos Centros de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) e da Operação Bandeirante especializada na caça de organizações que se opunham à ditadura. Lima chefiou equipes de busca e interrogatórios entre 1969 e 1971 e é acusado de ter comandado as prisões e torturas da presidente Dilma Roussef, Frei Tito e Virgilio Gomes da Silva um dos fundadores da Ação Libertadora Nacional (ALN) que foi levado com sua família sob ordens de Mauricio e acabou morto. O tenente-coronel assumiu ainda ter participado do ataque que levou as mortes de Antonio dos Três Reis de Oliveira e Alceri Maria Gomes de Oliveira. A população e o Governo Brasileiro ainda estão caminhando para o processo de ampliação e aprofundamento da democracia no país, ações como os escrachos do Levante Popular da Juventude e a Comissão da Verdade são projetos pioneiros em outros países que também enfrentaram repreensão durante a ditadura militar como Argentina, Uruguai e Chile. Paloma Rocha Barra é jornalista formada pela FAAT.



MÚSICA

O truta do Leminski e do índio que ri em câmera lenta Meu barato nestes últimos dias é por para rolar sempre que posso e pinta vontade “Jataí”, sétimo CD de Edvaldo Santana, que recebi enviado diretamente por ele, com direito a um autógrafo! Por Marcelino Lima


FOTO: EDS

ON KU

MASAK

A


P

ara quem ainda não o conhece, uma breve, mas suficiente informação: Edvaldo Santana é cantor e compositor da fervente e fervorosa cidade paulistana de São Miguel Paulista, ZL na veia, na pele, no corpo, na alma. Poeta que ama a lua feito lobo solitário e usa o brilho dela para viajar, afinado com os passarinhos, sabe tempo e modo certos de podar rosas e de cultivar bromélias. Edvaldo Santana bebe nas fontes de Baudelaire, Sérgio Sampaio e outros “malditos” e com amigos fecha bares enquanto o papo rola no vapor. Nem santo, muito menos quem não presta, tem muito de blues, de folk, de rock... mas com malemolência de quem chacoalha em trens do ramal Brás-Calmon Viana manda bem também nos sambas. Com bênçãos dos terreiros, umbanda e candomblé, dos manos, da vó que fazia comida pra toda a família. Em suas músicas deste “Jataí” Edvaldo Santana alerta que é um “cara estragado pelo medo e pelo susto”, contudo não se enquadra no papel de pop star, não dá colher de chá, nem põe mel no cigarro de revistas mesquinhas; adverte que sabe que cada mídia tem um lado e o que ele (convidado) vai falar, deixando o sujeito acabrunhado. Por isso (se) preserva e preza a independência, as posturas libertárias de quem precisa driblar indiferenças e preconceitos, ginga típica de quem desde pivete precisa ralar na periferia mais distante dos centros (inclusive das atenções). Mas bota fé no taco, e mesmo com quase todo mundo contra, leva muito em conta o que o próprio coração diz. Quando tira a viola e o violão do saco, EdvalROBERTO ANDRADE

do Santana canta pra um mundão que chega até além do Piauí, atravessa Oiapoques e Chuís, engrandece gente que joga fora o guardanapo e topa comer com a mão. “Quando Deus quer, até o diabo ajuda”, tá ligado. E assim vai seguindo dando certo um sujeito que acredita na franqueza, na liberdade que o orienta, que chegara ao mundo para dar errado mas conquistou a proteção do índio que ri em câmera lenta, venceu o temor pelos inimigos, mas sem perder a ternura e o tino. A jornalista Teresa Albuquerque, do Correio Braziliense escreveu sua opinião sobre este guerrilheiro, samurai que aprendeu a costurar as próprias roupas quando as flores eram poucas, que seguiria o próprio destino sem dogmas e sem fé: “Edvaldo Santana é camarada de Tom Zé e Arnaldo Antunes. Assim como foi de Paulo Leminski, Haroldo de Campos e Itamar Assumpção (só para citar seus parceiros mais famosos)”. O disco “Jataí”, ainda de acordo com Teresa, é o primeiro em que ES assina todas as faixas sozinho. Ai ela cutuca: “achava que as letras chamavam a atenção porque eram escritas pelos parceiros? Que nada. As letras do novo CD (que vem com bela capa do artista Elifas Andreato) são muito boas. E as alquimias, como ele chama as misturas que faz — de blues, reggae, baião, xote, música cubana e o que mais vier à cabeça — continuam lá, assim como a voz rouca, ainda que em tom mais suave”. Precisa mais? Então que tenha a palavra o próprio: “Jataí tem uma sonoridade diferente dos outros discos que lancei. É semiacústico, mais baseado no meu violão. E a voz não está tão alta, dei uma suavizada”, comenta. “Continuo compondo com parceiros, claro. Mas, às vezes, as parcerias não batem com o momento que estou vivendo e acabam entrando em outro disco. Desta vez, quis gravar coisas bem minhas. Jataí tem muito do que estou pensando, do que estou sentindo.” Para saber mais sobre Edvaldo Santana e “Jataí”: http://www.edvaldosantana.com.br/sobre.html


Edvaldo Santana bota fé no taco e leva muito em conta o que o próprio coração diz: “Quando Deus quer, até o diabo ajuda”, diz o artista.


GUSTAVO KALY:

o primeiro disco solo do último romântico Por Juli Manzi

É

, o mundo mudou de novo... Poupem-nos da ladainha dos avanços digitais, da sociedade midiática, das redes socias, etc. Vamos direto ao assunto: música. Mais ainda, canção e música pop. No lugar da reconfiguração do mercado fonográfico e das novas formas de distribuição, vamos falar do perfil típico do novo compositor. Aí chegamos ao Gustavo Kaly. Conhecedor do bom texto e das melhores melodias do rock underground, jornalista de dia, músico à noite, pagador de aluguel, usuário de metrô, figura da boemia e maluco full time. Não desistiu do sonho. Contra a maré. Não espera nada de ninguém. Grava um disco inteiro no tablet, se precisar. Um bom papo, um camarim animado, e ele sempre mostrando pitadas de inteligência e bom gosto, entre um gole e outro. Mais um trovador de província que veio parar na megalópole. Um espaço ao sol na cidade de céu cinza. E num instante dum raro verão seco, o fluxo urbano estancou: tá descendo a Rua Augusta o cara do ray-ban pirata, do case de gatos, com o minúsculo panamá sobre a fronte coberta de grandes ideias. Traz no bolso esquerdo do casaco desbotado o álbum “Porres, Ressacas e Canções”, com músicas que gravitam por quartos de hotel, maços de cigarro, levadas de violão folk, biritas, despedidas, guitarras à la Tarantino, saudades e amores falhos. Nostálgico por excelência, o romantismo pós-moderno do compositor se ilumina pela beleza das melodias e arranjos do disco, regidos pelo bom-gosto de quem conhece as nuances do rock. O álbum de Kaly é um signo carregado do espírito de seu tempo, com uma atualidade que traz em si décadas de cultura underground e arte ousada, conduzido por um coração perturbado e uma alma inquieta.


Quando a tua história com a música começou? Não sei exatamente o ano, mas por volta de 1993/1994. Minha primeira banda, uma barulheira desigual, já se baseava em repertório próprio. A gente intercalava covers e músicas que eu e outro amigo fazíamos. Era coisa de adolescente, banda de rock barulhenta, a gente fazia nossas músicas porque éramos péssimos músicos para copiar os outros. Não sei se pensávamos muito em seguir aquilo. Acho que a primeira vez que subi num palco foi nessa época, com essa banda, chamada Wendy psycho du bist verrückt. Foi no susto, um concurso de bandas, nos inscrevemos mas esquecemos, vimos no jornal que íamos tocar no dia do show e não tínhamos um baterista fixo. Isso foi em Blumenau, Santa Catarina. Depois tu montou uma banda que ficou bem conhecida em SC, né? Tinha uma conhecida no circuito punk/ hardcore, que durou uns bons anos - Enzime. Depois montei um projeto chamado Stuart, que começou sozinho e teve várias formações. Eu tocava basicamente punk rock e hardcore, mas estava começando a experimentar outras influências em composições que, obviamente, não se encaixavam na banda que eu tinha. Comecei a gravar em casa, bem tosco, músicas de voz e violão com barulhos. Bem tosco mesmo, mas mesmo assim eu comecei a gostar e enviar para alguns amigos. Logo vieram alguns convites para tocar em alguns lugares, daí convidei amigos para me acompanhar ao vivo, isso foi por volta de 1999. Mas as primeiras composições nesse lado da força são de 1996. Tocamos em várias festas na faculdade, foi uma época boa. Que ano tu chegou em Sampa? Como foi a tua chegada? Saiu procurando trampo? Em 2006. Cheguei com contatos já, em uma semana tava trampando. E a música? Continuei com a Stuart, um pouco depois vieram os outros integrantes de SC e fazíamos alguns shows pequenos por aqui, num circuito Augusta. Na verdade, logo depois que eu cheguei veio o Magola, baterista. Daí começamos a ensaiar e tocar em SP com o Giancarlo, um amigo gaúcho que mora aqui. Não demorou

muito o Cristiano veio, fizemos mais alguns shows, gravamos o segundo disco e daí, com a volta do baterista a SC, deixamos em stand by o projeto, fazendo shows irregulares por aqui, e alguns no sul, cada vez menos. Nesse meio tempo, fiquei com outros projetos pequenos, sempre compondo, tocando com o Wander Wildner e cuidando da vida não-musical. E o que tu acha da cena musical paulistana atual? Quais trampos te chamam mais a atenção? Eu gosto muito do Jair Naves, que é de SP, acho, mas tirando isso, a maioria das bandas legais não são daqui, só moram aqui. Teu disco tem bastante baladas, como pintou essa veia? É muita coisa que eu ouvia na década de 90, e depois, em 2000. O Stuart tinha muito disso. “Isso” te aproximou da fase punk brega do Wander Wildner, ícone do underground nacional? A gente se conheceu em 2001 nesse circuito catarinense. Minha banda abriu alguns shows dele, daí ficamos amigos. Na época ele tinha só um disco lançado como solo. E o lance dele tocar teu som? O porquê eu não sei, hehehe, mas é aquela coisa, somos amigos, ele conhece minhas músicas e volta e meia grava uma delas em algum disco dele, toca várias em shows, virou meio que uma parceria. Minhas ele gravou Um bom Motivo e Boas Notícias, depois com os Últimos Românticos ele gravou O Último Romântico da Rua Augusta e Boliviano, e no DVD solo dele tem essa também, em uma versão ao vivo. Quais tu considera as tuas principais referências? Eu gosto de som orgânico, acho que depois da escola punk básica que cresci ouvindo, como Ramones, Descendents, Undertones, Pistols e Bad Religion, eu comecei a pirar em Violent Femmes, Neutral Milk Hotel, Johnny Cash, aquela parada com muito violão e instrumentos acústicos. Também muita coisa do sul me influenciou, Jupiter Maçã, Graforreia, o próprio Replicantes, banda do Wander.


E os Últimos Românticos da Rua Augusta, como surgiu, quem já tocou e quais são os projetos? O urra foi uma fase que eu tava sem banda e o Wander tava meio dando um descanso da carreira dele. Fizemos uma viagem para Santiago do Chile, eu, ele e o Cristiano, e passamos cinco dias tocando violão com nossas músicas. Foi quando apresentei um monte de som novo que eu tava fazendo, e resolvemos montar uma banda com essas músicas. Chegando ao Brasil, logo tratamos de convidar o Luciano Malásia (Ultramen) para fazer percussão, e alguém que soubesse tocar violão melhor do que eu e o Wander, hehehe... Daí ele lembrou do Sérgio Serra (ex-Ultraje a Rigor), que tinha dividido palco com ele em alguns shows. E ficou a formação original assim: eu, Wander, Serra, Malásia e Cristiano. Fizemos uma série de shows, principalmente no Studio SP. Gravamos um EP e um vinil de 7 polegadas com essa formação. Ficamos um ano parados e depois a banda voltou irregular. Fizemos uns três shows, alguns com o Wander e sem o Serra, outros com o Serra e sem o Wander, até que o Serra resolveu voltar para o Rio, e o Wander para o sul. Daí não tinha mais jeito... Pra continuar precisávamos de bons músicos, então o Malásia deu a ideia de chamar o Guilherme Almeida, da Pública. Chegamos a fazer alguns shows com bateria, mas a banda estava se descaracterizando muito do projeto inicial. Hoje temos também o suporte do Gabriel Guedes (ex-Pata de Elefante), que entrou para um show em um dia em que o Guilherme não pôde, e nunca mais saiu. O último EP, Amores Perros, já é com eles. E o teu disco solo, como surgiu? Em 2011 eu estava a fim de gravar umas músicas minhas, para dar vazão a algumas composições. Daí convidei uns amigos para fazer arranjos e gravações, e ficamos nessa brincadeira, entre outros projetos e trabalhos, por três anos, até se formatar o que veio a ser o disco. Foi um projeto sem prazo de validade, sem pressão, e que reuniu canções que eu tinha feito naquela época. Terminei ele sozinho, em casa, no fim de 2013. Em fevereiro lancei na web.

Seguiu o percurso que deve se tornar o padrão para o músico “independente”? Acho que foi menos que isso. Eu quase desisti na metade, por ter ficado velho o projeto, eu já estava com outras músicas em mente. Acredito que o próximo vai ser mais dedicado. Você está disposto a repetir esse percurso até morrer de velho? Sim, com certeza, enquanto sair poesia e melodia dessa cabecinha aqui, hehehe. Como você vê a relação música x grana, pela perspectiva do artista? Eu acho que é preciso ralar muito para ter um retorno razoável, equiparado com, por exemplo, o básico para se manter em uma cidade como São Paulo. Isso com música autoral, não comercial, quase experimental, é praticamente impossível. Tenho muitos amigos que vivem de música e seguem firme, só que ralam muito, são músicos, tocam com vários artistas. Mas como compositor, na linha de produção da base da pirâmide, é tarefa árdua. Então, qual o espaço profissional para o compositor de canção nato, que não é instrumentista, intérprete, nem professor de música? Na real deve haver um mercado, mas acho que é mais quando entra do âmbito mais popular, mais acessível ao grande público. Eu só falo palavrão, faço música subversiva, não é minha área de interesse fazer música pop. Tu é um cheff: qual a tua especialidade? Cogumelos. Bebida favorita? Cerveja IPA. Um lugar pra viver? Barcelona e/ou Colonia del Sacramento. Finitude ou imortalidade? Finitude. Beatles ou Stones? Ramones. * Baixe o álbum de Gustavo Kaly grátis em https://kalyeoshospedesdochelsea.bandcamp.com/


LETRA Por Renata Roquetti

Desejo que lhe sobre tempo Aquele de poder dar tchau devagarinho agarrar bem de mansinho e esquecer-se no sofá Aquele de ter coragem de dizer que ama agora de entregar-se ao que gosta de se dar sem esperar Desejo- lhe Todo o tempo Aquele que supõe que acha que possui E que ainda não entendeu Que acaba a toda hora! Desejo-lhe o Tempo De enfim, não malgastar o dia todo dia que morre a toda hora e você nem se dá conta!

Renata Roquetti ganhou seu primeiro recital aos 13 anos declamando a poesia “Eu” de Florabela Espanca. Em 2OO8 criou um blog para compartilhar o emaranhado de palavras que pipocam do seu coração e mergulhar ainda mais em poesia.


A viagem do elefante Por Dra.Yara Maria Martins Nicolau Milan


A

Viagem do Elefante, na sutil linguagem de Saramago é, sem sombra de dúvidas, um tributo à inteligência de quem é capaz de transpor pela análise, para além do tempo da narrativa, as questões pertinentes à atualidade da filosofia e da política. Por que? O elefante ofertado como presente, pelo rei de Portugal ao arquiduque Maximiliano II, da Áustria como presente de casamento, e sua trajetória até seu lugar de destino, é um fato histórico utilizado pelo autor para construção de uma crítica mordaz à farsa da prática política. Personificado nesse momento histórico, o modelo português, do século XVI, revela, em sua inoperância e irracionalidade, os motivos daquele “nonsense” da política que permitem tornar fatos, sem a menor relevância, em questões de Estado. Ressalte-se que a obra abre possibilidades para evidenciar o caráter ultrajante das pessoas investidas de poder e da desumanidade que se locupleta no controle do mesmo. As fraquezas humanas revelam-se em meio a uma combinação de personagens reais e fictícios que transcendem as expectativas do leitor. Nesta, como nas demais obras de Saramago, há uma reflexão esclarecedora sobre busca de sentido da humanidade e a força das representações elaboradas pelos membros da comunidade humana. Saramago ensina como ler na ficção e na metáfora, o desalento da realidade, quando aponta para as misérias e as esperanças da vida, ou os engodos “dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos”.

Mas a desumanidade subjacente ás relações humanas, para Saramago, não é uma figura retórica e imperceptível que se dobra ante às fantasmagóricas representações dos momentos da tradução da ação concreta da vida partilhada. Ela se concretiza nas ações dos personagens, nos níveis de consciência e nos momentos em que nascem as possibilidades de tripudiar sobre a credulidade dos ingênuos, em nome das razões que determinam as ações de mando. O propósito do autor é pedagógico no desvendamento da ação de homens sobre homens, tomadas em suas formas mais sutis e alienantes. “O que de fato lhe interessa revelar na narrativa, cujos personagens são um elefante e seu cornaca Subharo - o tratador- é o percurso que retrata a “metáfora da vida” a cruenta viagem como trânsito sob as intempéries. A fantasia é construída a partir dessa inusitada viagem do elefante Salomão, de Lisboa à Viena, na Áustria. Insólita viagem, o elefante é o mote? Certamente, não! O mote é o exercício da bazófia, da bravata e da bizarrice política. E a viagem do elefante começa assim: “Por muito incongruente que possa parecer a quem não ande ao tento da importância das alcovas, sejam elas sacramentadas, laicas ou irregulares, no bom funcionamento da administração pública, o primeiro passo da extraordinária viagem de um elefante a Áustria, que nos propusemos narrar foi dado nos reais aposentos da corte portuguesa, mais ou menos à hora de ir para cama”. Do início ao fim, A Viagem do Elefante é uma demonstração de como se realiza uma pantomima! A viagem do elefante José Saramago Companhia das Letras

Espetáculo teatral criado a partir do conto de José Saramago. Peça do grupo Trigo Limpo, no Teatro ACERT - Associação Cultural e Recreativa de Tondela. A fotografia é de Miguel Valle de Figueiredo.


_64de2014 Por Thiago Cervan e eles chegaru sem espelho (nenhunzinho) tudo vestido de preto. só dava pra ver os zoio. chegaru sem cruz, sem catecismo. foi tudo limpo. sem engano. só subiru e mandaru todo mundo entrá e quietá e oiá sem vê. no começo teve uns q gostaru deles acharu q ia melhorá. teve quem deu até água [vê se pode] hoje tem cinquenta e cinco a cada um. e não é mais o geisel o general faz tempo. e diz q o nome é outro. acho q antes terminava com ura urro urra agora termina com cia algo assim não sei.



LETRA

A Copa do Mundo sempre será deles Por Nestor Lmpros* 1. Vai ter Copa do Mundo? Pergunto e sob o coro dos torcedores que torcem pelos times do pseudo coração: sim. Mas não haveria que consultar as bases para pedir dinheiro contra a iniciativa particular e errada, privada, de ter em bolsas e paraísos sem fiscais o ônus pago por nós pacientes e emergentes cidadãos? Estádios que entediam todas as FIFAS- em seu séquito de fulos - fiscais-, entre nós- torcedorespagadores de nossas dores, para um pais mais real, que prime pela irrealidade e que combina na sua contramão a fé organizada pelos alimentadores de ocasião, nesta copa e cozinha de pizzas para alguns? 2. Revelaria que o time desse complexo verde-amarelo cozinha nossos olhos, e faz fritar nossos corações, sob o aspecto divertido e de diversão para parecer que somos donos de algo. Pairando em gols nossa monotonia, radiografias usadas para ter sede de algo mais do que a alma das águas que se divertiriam pela saciedade do nosso país Saara, como a algum oásis? 3. Uma taça vale um trilhão de meninas que ainda mendigarão para esta e as próximas gerações nas avenidas? 4. Sob que aspecto lunar ou solar os dirigentes dirigem o bem comum, ou mesmo distinguem-se pelo cuidado com a publicidade, com turismos migratórios, com mictórios suaves quase fossas nasais e anulares? Desses que entram pelos olhos e escorregam pelos cérebros sob o efeito www.nestorlampros.com.br

simultâneo das fábulas, de futeboys, ou das histórias instrumentais desses líderes de onde pedimos a total misericórdia pelo plano de saúde que não cobre o câncer? Ou pela violência que surge e nos acompanha de dia e de noite, mas para no meio de uma partida, desses vinte e dois craques e uma bola, nos anestesiando, de costas para as ruas e seus craqueiros? 5. Os futeboys descarnados. Quanta pressão sob este selo amado de antemão, esta mão comprada e violentada de quem tem em sua cauda um monte de exorbitâncias, de merchandises, e de afogados dentro de si, desacordados em meter no gol, além de aflições programadas, programações teleusadas, nas vias do esquecimento global, insular, destes que eram brasileiros. E nunca meteram a mão na massa de um trabalho digno de um qualquer dia sem alegrias? 6. O mundo poderá ver na Copa brasileira uma maneira de entender o povo brasileiro. Nós veremos a Copa como um meio de discorrer que toda a planura para estes estados e estádios, estes que completamente amealhando nesta espaçonave-cansaço que se dá o nome de governo, é algo aproximado da virtude de uma pisoteada maternidade feita e coberta com a vida que nunca foi liberta, mas escondida sob o time para ser treva e reserva e afogamento na nossa placenta diária nos jogos que nenhum juiz apostaria. * Nestor Lampros é professor, artista plástico, poeta, quadrionista e ilustrador.

http://www.flickr.com/photos/artes_de_nestor_lampros/



TEATRO


RECUSA O premiado espetáculo RECUSA, da Cia Teatro Balagan, volta a São Paulo para a quarta temporada paulistana. Em cartaz desde 19 de março, na Oficina Cultural Oswald de Andrade, na rua Três Rios, vai até o dia 12 de abril, com entrada gratuita.


A

Cia Teatro Balagan, prestes a completar 15 anos de existência, estreia mais uma temporada do premiado espetáculo RECUSA, a mais nova criação da companhia, em temporada popular, gratuita, na Oficina Cultural Oswald de Andrade, de 19/03 a 12/04, de quarta a sábado às 20h. Desde sua estreia em São Paulo, Recusa já circulou por 23 cidades brasileras, 8 estados, todas as comunidades indígenas da cidade de São Paulo, além de Rondônia, onde apresentaram para os parceiros indígenas Paiter Suruí, da Aldeia Gapgir, local em que a equipe realizou a troca cultural no processo de criação do espetáculo. Depois desta temporada o espetáculo retornará a Rondônia para apresentações em Porto Velho e Jí-Paraná (cidade onde um dos índios piripkura da reportagem original, que serviu de mote à criação, foi internado no hospital e fugiu dias depois). Na sequência Recusa irá para Belém e Altamira no estado do Pará – região onde diversos povos indígenas lutam contra a construção devastadora da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. A circulação pelos 2 Estados é realizada com o apoio do Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz. RECUSA começou a ser desenhado a partir do interesse despertado pela notícia veiculada no Jornal Folha de S. Paulo, em 16 de setembro de 2008 sobre o aparecimento de dois sobreviventes, índios Piripkura – etnia considerada extinta há mais de vinte anos. Viviam nômades, perambulando por

fazendas madeireiras no noroeste do Mato Grosso, próximo ao município de Ji-Paraná, em Rondônia, e ambos se recusavam a estabelecer qualquer contato com os brancos. Foram encontrados porque suas gargalhadas ressoaram na floresta e chamaram atenção: eles riam das histórias que contavam um ao outro enquanto davam conta de comer a caça recém abatida. RECUSA é narrado, cantado, por dois olhares e seus múltiplos: dois índios Piripkura; dois heróis ameríndios, Pud e Pudleré, criadores dos seres; um padre que foi engolido por uma onça que resol-

veu morar dentro de um lugar inesperado; um fazendeiro que matou um índio e o mesmo índio que o matou, por uma cantora que se perde na mata, por Macunaíma e seu irmão, os heróis dos Taurepang, e outros tantos. Três anos e meio para a criação de RECUSA A primeira fase do trabalho, que teve início em março de 2009, reuniu atores, dramaturgo, diretora, preparadora corporal, cenógrafo, e foi dedicada a tecer um diálogo com colaboradores convidados – antropólogos e estudiosos da cultura ameríndia


para investigar quais as formas de aproximação, artística, deste universo. A segunda etapa da pesquisa, de julho de 2010 a junho 2011, integrou o projeto O Trágico e o Animal contemplado pelo Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo – apresentou publicamente, na Casa Balagan, três Estudos Cênicos dos primeiros roteiros dramatúrgicos experimentados em sala de ensaio. Ainda como parte das pesquisas, em fevereiro de 2011 integrantes da Cia Teatro Balagan passaram um período de troca e convívio na aldeia Gapgir, junto ao Povo Indígena Paiter Suruí, em Rondônia. Lançando o olhar para outras fontes de pesquisa, descobriu-

-se que em inúmeras cosmologias ameríndias, o mundo, os seres e as coisas são criados por uma dupla de gêmeos, que passam pelo mundo, para criar e depois desaparecem. Para os ameríndios o mundo sempre existiu – não houve um começo – somente as coisas e os seres não o habitavam. E o mundo já acabou diversas vezes, configurando um ciclo de construção e destruição constante. Será que estes dois sobreviventes, ao invés de estarem a beira do fim, não passam pelo mundo, única e exclusivamente, pra criar algo? “O espetáculo é nossa via poética, de resistência artística e desloca nossas perspectivas sobre a ideia de extinção, finitude, história, civilização, identidade, alteridade, animalidade e humanidade”, complementa a diretora Maria Thaís.

ISTO É RECUSA: PRÊMIO SHELL DE TEATRO 2012 Direção – Maria Thaís Cenário – Márcio Medina PRÊMIO APCA – ASSOCIAÇÃO PAULISTA DOS CRÍTICOS DE ARTE 2012 Ator – Antonio Salvador e Eduardo Okamoto PRÊMIO COOPERATIVA PAULISTA DE TEATRO 2012 Espetáculo de Sala
 Projeto Sonoro – Marlui Miranda PRÊMIO FITA - FESTA INTERNACIONAL DE TEATRO DE ANGRA 2013 - RJ Cenário – Márcio Medina 8 INDICAÇÕES Prêmio Shell – Ator, Música Prêmio CPT – Dramaturgia, Direção, Elenco, Projeto Visual Prêmio FITA - Categorial Especial – Cia Teatro Balagan – Pesquisa de Linguagem, Música.


O mundo da moda é solidário Por Osni Dias. Fotos de Fábio Galuppi


A

tibaia foi palco da segunda edição do “Mundo da Moda Solidário”, evento beneficente em prol da ONG Consciência Solidária, em 21 de março, no Clube Recreativo. O evento contou com mais de trezentos convidados, destacando as presenças da primeira dama Simone Cardoso e da dra. Lucila Mary Hashimoto, da ONG Consciência Solidária. Participaram do desfile a Boutique Miyuki, Realeza Pink, Milla Toledo, Arezzo Atibaia, Gata Fashion e a AGATARP - Joias e Semijoias. As modelos da agência TWMModels desfilaram sob o design musical de Renan Marques e contribuíram no despertar dos valores da solidariedade e da promoção do comércio local. As meninas da TWM receberam os cuidados da Luciana Braga Studio Hair. Para Ana Malheiros, da TWM, uma das organizadoras do evento – ao lado de Claudete Mattos – “o mais importante foi a disponibilidade de todos os colaboradores e convidados para abraçar uma causa maior, que é solidariedade”. Para ela, essa meta foi atingida e mais de 300 latas de leite foram arrecadadas para doação. O Hospital Novo Atibaia (AMHA) foi em dos patrocinadores do evento, que teve também o apoio da Revista Kalango. O grupo de dança do Ventre do Studio de Dança Irany Sguillaro SapateArte fechou a noite solidária. As idealizadoras do Mundo da Moda Solidário acreditam que a iniciativa possa resgatar valores como a solidariedade, a sensibilidade e o interesse pelo próximo, principalmente no mundo contemporâneo – extremamente influenciado pelo egoísmo e pelo consumismo.

OSNI DIAS



Vó,* A senhora sabe. Desde bebezinho eu faço tudo pra agradar. Se os meus irmãos sorriam nas fotos, eu não. Eu me escondia atrás das pernas deles. Estava sempre bravo, não queria aparecer. Mas quando vi o meu primo Nelson mostrando o gravador para o amigo dele, fiquei encantado! Como um troço daqueles podia copiar a voz da gente, né vó? Aí disse que um dia eu ia ser repórter. Fui o primeiro aluno da sala. Mudei de escola, continuei sendo o primeiro, apesar da Ângela, aquela menina gigante de olhos azuis. Mas era o menino mais aplicado e a Dona Abigail dizia sempre que o melhor texto da sala era o meu. E eu fazia só pra agradar. Um dia colocaram os tanques na rua, mas eu nem era nascido. Só ouvia isso da barriga da sua filha, quietinho lá dentro. Chegaram quebrando tudo, sindicatos, partidos, espetáculos de teatro e música, jornais. Passei a ler jornal quando comecei a entender tudo isso. E eu já tinha 15 anos, vó. Ouvia Chico Buarque, Caetano, essas coisas que chamavam de música de bicho grilo. Eu vivia bem feliz. Vivia, mas não vivo. Faz tempo que comecei a ler jornais. Agarrava o primeiro caderno e sabia de tudo. Nomes de partido, dnome dos políticos, das emendas, dos projetos. Lia Sirkis, Gabeira, Gorender, esses nomes todos. Eles falavam do povo e os jornais também. Mas hoje em dia não consigo ler com o mesmo entusiasmo, pois eles não falam mais. Nem uma linha, vó. Só criticam. O povo foi às ruas, disseram que só tinha baderneiro, vó. Carros tombados, gente doida quebrando tudo. Não disseram que eles estavam quebrando quem também quebrou a gente. Nossas pernas. Nossos braços. Pior, minha vó: nossa voz. No fundo, não fui nada e nunca quis ser tanta coisa assim. Só queria que minha voz fosse ouvida, como foi naqueles dias, no comecinho dos anos 70, quando vi aquele gravador enorme e lindo, todo prateado, nas mãos do meu primo. Hoje não sou feliz, mas não sou mudo. Por isso a Kalango, vó. Hoje escrevo muito mais. Isso mesmo, aquele bichinho que sobrevive na seca, na pedra, no sol quente. Não vó, não é Kafka. Klaxon? Talvez. Não tenho apoio, Vó, os ricos de hoje ganharam dinheiro com o Milagre Econômico, vivem rindo à toa e sorrindo nas páginas das revistas, pagando uma boa grana pra aparecer. Ahhh, tenha dó, minha vó. “Isso é coisa de BABACA”, diria o Henfil. Deixa a gente sonhar. Se eu tenho uma receita para um país melhor? Não vó, não tenho. Tem jeito não, o povo unido gosta dos estados unidos. Esse povo, “de facto”, acabou mesmo. Mas ao menos continuo sendo autêntico, honesto, generoso, sincero e franco – como a senhora me ensinou. Tenho raízes, vó. Digo bom dia, boa tarde, boa noite. Ajudo a quem precisa. Mas falo mais que nunca, vó. Uma mistura de Zapata com Dercy, eu diria. O Darcy? Não vó, essas pessoas que eu citei não sabem quem foi ele. Estão em casa, com Deus, a Família e a Propriedade, contando o vil metal. Ultra legal, não é? E por falar em ultra... Deixemos os trocadilhos pra lá, minha avó, não tenho gás pra isso. Peço benção dizendo que sinto sua falta e que hoje tenho mais dúvidas que certezas. Que Deus esteja contigo, vó e com os nossos ancestrais também. * Osni Dias parafraseando o grande Henfil, in IstoÉ , 24 de junho de 1981, p. 86, nº: 235.


A Revista Kalango está no Facebook Entre lá, dê um Curtir e Compartilhe. Seja nosso parceiro! www.revistakalango.com.br

58 • Kalango#18

VOLTE SEMPRE


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.