Kalango23

Page 1

Kalango #23 - Ano VI - Dezembro de 2015

É NATAL ESPECIAL CONTOS DE TERROR Kalango#23 •

1


Kalango #23 • Dezembro de 2015

Boa viagem!

2 • Kalango#23


Kalango#23 •

3


4 • Kalango#23


SEJA SOLIDARIO

Kalango#23 •

5


GPS (( LOCALIZE-SE ))

À noite... Por Paulo HDS

O grito eterno. Por Orivaldo Biagi O valentão e o demone. Por Luis Brandino

Cílios grandes, olhos assustados. Por Haisem Abaki Humildade e Majestade. Por Sonia Brown Joelma, 74. Entrevista com um sobrevivente. Por Osni Dias

Revista Kalango. Edição #23. ANO VI. Dezembro de 2015. Editor: Osni Tadeu Dias MTb21.511. A Kalango é uma publicação independente, não tem vínculos políticos, econômicos, nem religiosos. A Kalango está no ar desde 2010. Quer anunciar? Quer ser colaborador? Ajude uma mídia independente. Escreva para osnidias@gmail.com. Concluída em dezembro de 2015.

6 • Kalango#23

Coruja agoureira – Rasga mortalha! Por Érica Cardoso


Editorial Em meio ao circo dos horrores em que se transformou o país, nada mais justo que encerrar o ano com uma edição retratando o horror, o terror, o avesso. Nas páginas dos jornais, nos noticiários de rádio e televisão, nos sites e nas redes sociais, o que se vê é a lama em sua máxima expressão. A edição que caiu em suas telas não deixa de ser um protesto. Um pretexto. Um brado contra o consumo desenfreado e o capitalismo que está engendrado dentro de cada um. Por isso decidimos tocar o terror. Cheios de ironia e sarcasmo, monstros e aberrações, dizemos não ao supérfluo, ao barato. Ao engodo e aos desmandos veiculados pelas grandes revistas e ao monopólio das comunicações, que ditam as renas, as rezas e as regras. Em 2016 completaremos seis anos no ar. Sabe o que isso significa? Nada. Ou melhor, quer dizer que estamos juntos, insistindo em continuar vivos em meio à barbárie. Quer saber mais? Sem nenhum patrocínio ou apoio cultural – isso mostra que o desejo e a vontade são maiores do que a tal crise. Mostra também que acreditamos na utopia, na arte, na amizade, na loucura e no prazer. Apostando no diferente, na cultura, na informação e na palavra como último recurso em defesa da liberdade, da evolução humana e do despertar de possibilidades. Desejamos um ótimo 2016 a você. Osni Dias Guarani

NESTOR LAMPROS

LEIA AQUI: O Brasil que não quer se ver. Recomendo: http://noo.com.br/o-brasil-que-nao-quer-se-ver/ Kalango#23 •

7


BRISA

Muito amor Por Tetra-H* Queixava-se que não tinha sorte. Nunca teve namorado... Jessika era uma menina engraçada. Gostosa. Família humilde. Azar na vida, sorte no amor, pensava. Amava os gatos. - Lucas Silva... Que gato. Será que um dia? Tinha um sonho. Se casar. Na igreja. De branco. Todos sabiam que não jamais chance. Rosto cheio de espinhas. Boca grande. Sorriso enorme. - O Lucas? Aquele bonitão? Ahhh. Sem chance. Nem com promessa! Cansada da vida de amargura, Jessika foi num terreiro. Atibaia tinha poucos. A escravidão expulsou os negros do lugar. Congadas? Só em dias de festa e olhe lá! Cidade conservadora... Aparências... A moça foi atrás. Achou um bem escondido. Zona da mata. - Esse rapaz vai ser meu, pai Gilvan! – Uuum zifia, dexa com pai Gilvan. Suncê tá com zika fia. Pretu véio tá vendu tudo. Zifia toda di brancu. Num tem zika. Tô até vendo ele. Chovia firme naquela noite. Jessika suspirava. Suando muito, a testa até pingava. Dia seguinte, a moça gemia de dor. Chamou o vizinho. Lucas chegou, todo fogoso. - Tô com dor, tô com febre. A menina suava. - Te levo no hospital, o carro está aqui na frente. Correram. Chegaram no SUS. Jessika quase não respirava. O corpo tremia. Suspiros de dor e emoção se juntavam naquela hora. Horas depois, toda de branco, entrava na UTI, com o rapaz ao lado. Estava com Zika Vírus. Não sucumbiu a picadura. Preto véio tinha razão. A moça tava com a Zika. Bem que ele avisou. Só não viu que ia partir ao lado do tão sonhado rapaz. Ainda virgem. * Tetra-H é extraterrestre, jornalista, comprou uma nave em 48X e não votou no Aécio, never.

8 • Kalango#23


Humildade e Majestade Sonia Mara Ruiz Brown O renomado crítico literário Erick Auerback surpreende num ensaio intitulado “Sacrae Scripiturae Sumo Humilie” em que analisa o Novo Testamento e o classifica como estilo baixo, humilde, mas sublime. Explica que o estilo baixo, isto é, a elocução simples, de construção com frases por vezes coloquiais, é empregado, embora todos os temas da literatura cristã sejam elevados e sublimes, porque se destinam a todos, e todos devem compreender a mensagem e vivê-la. Registra que os maiores mistérios da fé podem e são, na Bíblia, expostos em palavras simples e acessíveis, o que representa um desvio marcante da tradição retórica e literária. A história de Cristo na Terra conduziu a uma revolução profunda na concepção do sublime com a introdução da humildade realista que resultou numa transformação total na maneira de ver e julgar os homens, os fatos e os objetos. A presença de Jesus, portanto, é tão profunda, importante e determinante que até mesmo a concepção de estilo literário e oratório foi mudada. Para demonstrar sua tese. Auerback cita Santo Agostinho que, segundo ele, consegue com maior ênfase que os Evangelhos, marcar a antítese entre o realismo baixo da humilhação e a grandeza sobre-humana da narrativa da Paixão. “Aquele que esteve diante do juiz, aquele que levou tapas, aquele que foi flagelado, aquele que levou cuspidas, aquele que foi coroado com espinhos, aquele que foi coberto com golpes, aquele que foi pendurado num lenho, aquele que pendurado num lenho foi insultado, aquele que morreu na cruz, aquele que foi ferido com a lança, aquele que foi sepultado, esse mesmo ressuscitou. Cometam os reinos quantas crueldades possam, o que farão contra o Rei dos reinos, contra o Senhor de todos os reis, contra o Criador de todos os séculos? ” Cristo é modelo a ser seguido e é pela sua humildade que se pode alcançar sua majestade. Sonia Mara Ruiz Brown é doutora em Língua Portuguesa/USP.

Kalango#23 •

9


PALAVRA

O capitalismo será derrotado pela Terra

Há um fato incontestável e desolador: o capitalismo como modo de produção e sua ideologia política, o neoliberalismo, se sedimentaram globalmente de forma tão consistente que parece tornar qualquer alternativa real inviável. De fato, ele ocupou todos os espaços e alinhou praticamente todos os países a seus interesses globais. Depois que a sociedade passou a ser de mercado e tudo virou oportunidade de ganho, até as coisas mais sagradas como órgãos humanos, água e a capacidade de polinização das flores, os Estados, em sua grande parte, são forçados a gerir a macroeconomia globalmente integrada e menos atender ao bem comum de seu povo.

cerca de 90% de todas as riquezas. 85 opulentos, conforme a séria ONG Oxfam Intermon, de 2014, têm dinheiro igual a 3,5 bilhões de pobres do mundo. O grau de irracionalidade e também de desumanidade do sistema falam por si. Vivemos tempos de explícita barbárie. As crises conjunturais do sistema ocorriam até agora nas economias periféricas. Mas a partir de 2007/2008 a crise explodiu no coração nos países centrais, nos EUA e na Europa. Tudo parece indicar que se trata não de uma

O socialismo democrático em sua versão avançada de eco-socialismo representa uma opção teórica importante, mas com pouca base social mundial de implementação. A tese de Rosa Luxemburgo em seu livro Reforma ou Revolução de que “a teoria do colapso capitalista é o cerne do socialismo científico” não ocorreu. E o socialismo ruiu. A fúria da acumulação capitalista alcançou os níveis mais altos de sua história. Praticamente 1% da população rica mundial controla

10 • Kalango#23

Esse crescimento piora ainda mais o estado da Terra. O preço das tentativas de reprodução do sistema é, aquilo que seus corifeus chamam de “externalidades” ( o que não entra na contabilidade dos negócios). Elas são fundamentalmente duas: uma degradante injustiça social com níveis altos de desemprego e crescente desigualdade; e uma ameaçadora injustiça ecológica com a degradação de inteiros ecossistema, erosão da biodiversidade (com o desaparecimento entre 30-100 mil espécies de seres vivos, por ano, segundo dados do biólogo E. Wilson), crescente aquecimento global, escassez de água potável e insustentabilidade geral do sistema-vida e do sistema-Terra.

Por Leonardo Boff

As saídas encontradas pelos países que hegemonizam o processo mundial são sempre da mesma natureza: mais do mesmo

crise conjuntural, sempre superável, mas desta vez, de uma crise sistêmica, pondo fim à capacidade de reprodução do capitalismo. As saídas encontradas pelos países que hegemonizam o processo mundial são sempre da mesma natureza: mais do mesmo. Vale dizer, continuar com a exploração ilimitada dos bens e serviços naturais, orientando-se por uma medida claramente material (e materialista) que é o PIB. Ai dos países cujo PIB decresce.

Estas duas injunções estão pondo de joelhos o sistema capitalista. Se ele quisesse universalizar o bem-estar que propicia aos países ricos, precisaríamos, pelo menos, de três Terras iguais a esta que dispomos, o que evidentemente é impossível. O nível de exploração das “bondades da natureza” como são chamados pelos andinos os bens e serviços naturais são de tal ordem que em setembro deste ano se verificou “o dia da ultrapassagem” (the Earth overshoot Day). Em outras palavras, a Terra não possui mais a capacidade, por si mesma, de atender as demandas humanas. Ela precisa de um ano e meio para repor o que lhe subtra-


ímos durante um ano. Ela se tornou perigosamente insustentável. Ou refreamos voracidade da acumulação de riqueza, para permitir que ela descanse e se refaça ou devemos nos preparar para o pior. Por se tratar de uma super-Ente vivo (Gaia), limitado, com escassez de bens e serviços e agora doente, mas sempre combinando todos os fatores que garantem as bases físicas, químicas e ecológicas para reprodução da vida, tal processo de degradação despropositada pode gerar um colapso ecológico-social de proporções dantescas. A consequência seria que a Terra derrotaria definitivamente o sistema do capital, incapaz de se reproduzir junto com sua cultura materialista de consumo ilimitado e individualista. O que não temos conseguido historicamente por processos alternativos (era o propósito do socialismo), o conseguirão a natureza e a Terra. Esta, na verdade, se livraria de uma célula cancerígena que está ameaçando de metástase todo o organismo de Gaia. Nesse entretempo a nós cabe a tarefa de desde dentro do sistema, alargar as brechas, explorar todas as suas contradições para garantir especialmente aos mais humildes da Terra o essencial para sua subsistência: a alimentação, o trabalho, a moradia, a educação, os serviços básicos e um pouco de lazer. É o que vem sendo feito no Brasil e em muitos outros países. Do mal tirar o mínimo de bem necessário para a continuidade da vida e da civilização.

Uma pequena

história

para vocês pensarem... Orivaldo Leme Biagi Destino... destino!!! Em Bagdá, um empregado de um sultão volta correndo para a tenda. Curioso, o sultão pergunta ao servo a razão de toda a correria e pânico, e ele lhe responde: “Eu vi a Morte em Bagdá! Ela olhou para mim e fez uma cara estranha, de horror, assustando-me... ela me quer! Preciso fugir dela! Por favor, senhor, empreste-me um cavalo para que eu fuja até Cabala! Deixe que eu fuja do meu destino!” O Sultão emprestou o cavalo a seu servo que não demorou muito para partir na direção de Cabala. Intrigado, o Sultão foi até a cidade. Chegando lá, ele realmente encontrou a Morte andando sossegadamente no meio dos mercadores. Aproximou-se dela e disse bruscamente: “Como ousas vir até aqui, olhar para meu funcionário e fazer uma expressão de horror para ele? Por que o assustou?” A Morte calmamente respondeu: “Na verdade, Sultão, não olhei para ele com expressão de horror, mas sim de surpresa, pois me surpreendi muito com sua presença em Bagdá. Tenho um encontro com ele, hoje à noite... em Cabala! Passagem narrada por Boris Karloff do filme Na Mira da Morte (Targets, 1968), dirigido por Peter Bogdanovich

E no mais, é rezar e se preparar para o pior. Leonardo Boff é colunista do JBonline, teólogo, filósofo e escritor. www.leonardoboff.wordpress.com Kalango#23 •

11


LETRA

O fim dos dias conhecidos Por Maurício Andrade

N

unca Hollywood, fez tantos filmes sobre o fim do mundo, sobre o fim dos dias, apocalipses, terremotos, invasões alienígenas, conflitos e confrontos tecnológicos de todos os tipos. Super-heróis que enfrentam o mal e demônios de todos os tipos. Aliás os demônios, monstros e guerras invadiram até o universo dos desenhos animados, não temos uma série de desenhos da Mônica e sua turma ou do Snoopy, como sucesso de bilheteria, é o contrário. As legiões de jovens preferem Dragon Ball, anime, mangás, que muitas vezes beiram a pornografia e são chamados de arte, e por aí vai. As crianças e jovens estão à mercê do fim dos dias conhecidos. Andando pelas ruas das grandes cidades, vemos conflitos, turbas de alienação, outras de manifestações, outras ainda de pseudo-autoridades, bandeiras, flâmulas, rótulos, grupos “pró isso” ou contra “aquilo”, GLS’S, MST’S, PT’S, Veganos, Pró-cães e gatos, Contra-Humanos, militantes, ativistas, índios, comunistas, homofóbicos e anti-homofobia, o novo feminino e as feministas, a religião e a pedofilia, os pastores e a riqueza que vem de suas ovelhas, raças, racistas e escândalos da corrupção política, além claro do Estado Islâmico e Estados Unidos S/A. É uma lista sem fim

12 • Kalango#23

de novos nomes, rótulos, siglas e eventos que parecem ter vida própria, mas no fundo, no fundo, não têm. É preciso olhar antes, sem se comprometer com a razão que cada um acreditar ter para ser e sentir-se parte de algo. Poucos estão lutando para ter direito a acabarem as divisões, por mais que esse seja o discurso, há uma cortina de fumaça que encobre a consciência, que coloca um vulto sobre o a possível coerência. Quem está certo, quem está errado e quem percebe a hipnose coletiva? Quando dizemos que essas coisas não têm vida própria, queremos dizer que embora pareça um movimento natural, onde todas as coisas acontecem com parte da evolução, ao contrário, existe uma dissonante realidade, entre os eventos que parecem vir de conceitos de libertação, mas em verdade, vem de um novo tipo de enredamento mais sofisticado, há um padrão, e esse padrão tende a executar seu programa de destruição, causando a autodestruição. A história nos mostra como muitas antigas civilizações, quando chegam a um apogeu, entraram em um processo de caos, deturpação das leis morais, ou conduta de equilíbrio com a vida, e finalmente acabam. Muitos dos eventos dessas civilizações. É interessante também perceber que sempre que essas antigas civilizações desapareceram, eventos cataclísmicos eclodiram ou

acompanharam uma mudança de comportamento das populações. Secas, inundações, terremotos e furacões em sincronia com os ciclos de manchas solares, exatamente quando essas civilizações chegaram a um apogeu e finalmente acabaram. Similarmente as transformações que nosso planeta está vivenciando, ora por mudanças cíclicas, ligadas aos distúrbios solares, que afetam inclusive o comportamento humano e animal, ora pelo descaso e corrupção do homem, estão ligados a todos os eventos, em todos os lugares. Podemos começar exemplificando de muito perto, do mar de lama em nossa política, como nunca houve antes gerando a morte pela lama toxica do Rio Doce, que está contaminando o mar, até a os imensos distúrbios climáticos de seca, inundação e terremotos, com o terrorismo global, e o controle das grandes corporações sobre a vida humana, através da escravização tecnológica, transgênica, pela manipulação da saúde e opinião global através da mídia, além claro do consumo de drogas e sexo. Estamos no fim dos dias conhecidos, e é inevitável que essa sociedade, da forma que a


conhecemos desapareça. Mas entendamos, que o que virá a desaparecer não é a vida. Em um recente texto, Sua Santidade, o Dalai Lama, fala duramente sobre a hipnose coletiva a qual a humanidade está submetida, sobre como orações são boas, mas não suficientes se não nos responsabilizarmos e agirmos com nossa consciência alinhada com a responsabilidade de resolver aquilo que geramos. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, nos fala sobre a “Sociedade Líquida”, nessa estrutura em que a sociedade tem cada vez menos contato uns com os outros, onde as relações “escorrem pelos dedos”, onde tudo que há agora são apenas relações “liquidas”, nada é mais sólido. Estaríamos presenciando o apocalipse, e os monstros das histórias, dos mitos finalmente estariam assumindo forma humana? Como as novas modalidades de seres tatuados com cornos implantados no crânio e língua bífida? Como a crença em que um sistema político é que irá resolver a crise da consciência humana, as separações nas famílias, os pais ausentes e os jovens medicados com anfetaminas sociais? A lista para o fim dos dias conhecidos é imensa. Mas é impossível que tudo continue como está, recentemente os cientistas encontram um novo calendário Maia que vai além dos 13 Baktuns, que se estende até 17 Baktuns, elevando a contagem de ciclo para

Nossa retaliação ao ódio deve ser a compaixão, força de vontade que vai além das ideias virais ou modismos

milhares de anos. O mundo vai continuar. Que mundo queremos? Que sociedade desejamos para nós e nossos filhos? Talvez os veganos não atinjam seu objetivo de “carne 0”, pois os povos nativos do mundo, os povos da África, e tantos outros povos do planeta necessitem da proteína animal, por centenas de anos, mas podemos reduzir o consumo, sermos menos “animalescos”, menos cruéis com as criaturas que fazem parte da mesma humanidade que nós. A Humanidade pode ser mais humana. Mais uma vez nos diz o Dalai Lama, que sem a compaixão a humanidade não sobreviverá, e como ele, tantos milhões de seres humanos ainda creem nessa possibilidade. O quadro global nos parece irrecuperável com tanta degradação, mas independente das manifestações pelas ruas, é certo que algo incomoda o ser humano, que lhe falta felicidade e paz e aquela paz que não vem com um tratado apenas, mas a paz de espírito da simplicidade que muitos tentam anonimamente cultivar e ensinar com bons exemplos. A natureza do Homem é boa, creia, mesmo em meio ao caos a bondade existe e existe a esperança ativa sem a qual o mundo já não existiria, aquela bondade que nos faz repensar nossas ações e crenças, nos faz insistir no melhor, apesar de ver o contrário. Nossa existência não é fortuita, nem fruto da colisão de um meteoro, ela é

foi elaborada para que aprendamos a usar o poder inerente do amor. O amor, não nasce somente pela convergência de hormônios, mas está presente na vida, como que impregnada em nosso sistema de vida, aguardando um estímulo de bondade e preservação da vida. Os animais nos dão continuamente o exemplo disso por toda a natureza. Nossa retaliação ao ódio deve ser a compaixão, e isso é a maior demonstração da força de vontade que vai além das ideias virais que convencem as pessoas de que uma opinião deve ser aceita apenas pelo fato de uma autoridade ou modismo dizer que é assim. Não podemos ser escravos, das imposições criadas por nós mesmos e pela força que tenta controlar os desenhos animados, filmes, novelas e propagandas das “Black Fridays” diárias das emoções. Nascemos com o potencial e condições de sermos melhores, de vencermos a programação da “matrix”. Mas, nos cabe tomar a pílula com coragem amorosa, sabedoria e entendimento de que depende de cada um, pois esses dias estão acabando. De que o fim dos dias conhecidos, virá, mas virá para novos dias. Que o medo não nos turve a consciência, e saibamos encontrar o caminho na escuridão sendo a “luz sobre o alpendre”, unindo nossa luz, à luz de todos. Esse é o novo caminho, e ele aguarda o primeiro passo, a oração, a ação e uma nova unidade de irmãos planetários, sem rótulos, siglas ou a necessidade de confronto uns com os outros, tampouco consigo. Assim, sem medo, finalmente colocaremos nossas crianças na frente da televisão e com elas vamos assistir ao desenho da Mônica.

LEIA: Diálogos sobre o fim do mundo. No EL PAÍS. http://migre.me/ssJGV

Kalango#23 •

13


BOAS COMPRAS!

VAMOS TOCAR O TERROR.. PREPARE-SE!! 14 • Kalango#23


Kalango#23 •

15


PALAVRA

Cílios grandes, olhos assustados Por Haisem Abaki

C

onheci um sujeito meio caipira, que não gostava do barulho de São Paulo. Ele não morava tão longe da metrópole e um dia teve uma oportunidade de trabalho lá. O rapaz já tinha carteira de motorista, mas ficava apavorado com a idéia de dirigir na Marginal do Tietê. Para sorte dele, o novo emprego ficava bem perto de uma estação de metrô. Era uma caminhada curta, de menos de dois quarteirões. O horário não ajudava muito, mas pelo menos o deixava livre da barulheira da cidade. Ele desembarcava do trem perto da meia-noite, e seguia em passos rápidos ao passar em frente aos botecos que se concentravam naquele curto percurso. Numa noite, dois rapazes mexeram com o caipirinha: - Vem cá, neném... Ele ficou com medo de um possível assalto, apertou ainda mais o passo e, quando percebeu, já estava correndo. Chegando ao trabalho, caiu na besteira de contar o ocorrido e logo começou a ouvir as gozações. Não havia motivo para susto, era apenas um bar temático, frequentado por pessoas alegres e assumidas. Aos poucos, o rapaz foi se acostumando com a cidade e o horário. Tanto que nem se importou uma vez quando, ao ir embora, já com o dia claro, ouviu um comentário de dois sujeitos (seriam os mesmos?) que saíam do bar: - Nossa, mas que cílios grandes que você tem! Ele não olhou, mas não apertou o passo e seguiu calmamente para o metrô.

16 • Kalango#23


No trajeto diário que fazia, ele também se acostumou a encontrar moradores de rua, catadores de papelão, torcedores que vinham do estádio do Pacaembu e uns bebuns. Nada mais o impressionava naquele ambiente. Um dia isso mudou e foi de forma traumática. O caipira se atrasou um pouco e saiu do metrô Santa Cecília, perto da igreja da mesma santa, no exato momento da badalada da meianoooooooite. De repente, percebeu um vulto que vinha na direção dele e sentiu um frio na espinha. O coração disparou e quase saiu pela boca quando ele viu aquele ser cada vez mais próximo, pensando que era uma visão do além. O assustado rapaz notou que era uma alma feminina e que tinha até corpo. A garota era esquelética e pálida, muito

braaaaaanca. Vestia roupas roxas e pretas que ele não sabia descrever, mas que pareciam ser calça e túnica. No pescoço, carregava um crucifixo. Quando se aproximaram e ela o encarou com olhos negros e penetrantes, ele sentiu uma fisgada na nuca e, antes de sair em disparada, emitiu uma frase que até hoje não sabe de onde saiu (da boca é que não foi): - Deus me livre e guarde!!! Passou em frente ao bar dos alegres rapazes feito um foguete. - Aonde você vai com tanta pressa, neném dos cílios grandes??? No trabalho, os colegas logo perceberam que algo estava errado. O ofegante rapaz bebia água deixando o líquido escorrer pelo rosto, como se tivesse encontrado um oásis no deserto. - Que é isso, cara? Até parece que você viu um fantasma! O ingênuo garoto contou então a sua aterrorizante experiência e levou a pequena platéia às lágrimas. Quem ouviu chorou... de tanto rir. Não era uma alma do outro mundo, mas apenas a frequentadora de um bar gótico da região. Só aí ele descobriu que os góticos são pessoas com ar triste, que freqüentam cemitérios e o mundo das treeeeeevas. - Quer ir lá um dia? - Deus me livre e guarde!!! A lembrança dessa história voltou dia desses, quando passei perto da Igreja de Santa Cecília. Dezessete anos depois, pensei de novo naquele rapaz. Ele, saindo do metrô e andando a passos rápidos. Eu, de carro. Ele, incomodado com a cidade grande. Eu, acostumado com a loucura da metrópole. Ele, quase ingênuo diante do que via à sua volta. Eu, sabendo conviver com as diferenças. Ele, assustado com o que parecia ser uma alma penada. Eu, pensando que já vi tudo, ou quase tudo. Nossa, como sou diferente daquele cara! A não ser pelos cílios, que continuam grandes! Publicado pela 1ª vez em 04/07/2008 Haisem Abaki é jornalista do Grupo Estado.

Kalango#23 •

17


ENTREVISTA

JOEL

18 • Kalango#23


M A , 74

Kalango#23 •

19


O SOBREVIVENTE Por Osni Dias*

1

º de fevereiro de 1974. Edifício Joelma, centro de São Paulo. Segundo a lenda, o terreno onde fora construído o prédio servira como local de castigo para escravos indisciplinados, entre os séculos XVIII e XIX. Negros teriam sido torturados, numa série de mortes no local, considerado, por muitos, amaldiçoado. A obra, iniciada em 1969 pela Joelma S/A, utilizou estrutura de concreto armado, vedações de tijolos ocos, cobertos por reboco e revestimento de ladrilhos. As janelas eram de vidro plano em esquadrias de alumínio, e o telhado de telhas de cimento amianto sobre estrutura de madeira. A construtora informou, na época, que havia instalado o mais moderno sistema de incêndios. Concluída sua construção, em 1972, o edifício foi imediatamente alugado ao Banco Crefisul de Investimentos. Naquele início de fevereiro, às 8h50, um funcionário ouviu um ruído de vidro rompendo, vindo do 12º andar. Um aparelho de ar condicionado estava queimando. Logo, o fogo correu pela fiação na parede e atingiu as cortinas e se alastrou pelo forro, se propagando por todo o prédio. As salas e escritórios no Joelma eram configurados por divisórias, com móveis de madeira, pisos acarpetados, cortinas de tecido e forros internos de fibra sintética, condição que contribuiu para o alastramento incontrolável das chamas. O Corpo de Bombeiros recebeu o primeiro chamado minutos depois e às 9h05 duas viaturas se aproximaram do edifício, cujo fogo se propagava rapidamente para os andares superiores. Um grande contingente se destacou para o salvamento, num trabalho exaustivo de retirada das vítimas e de combate ao fogo. Todo material combustível do 12º ao 25º foi consumido pelo fogo. Outras ficaram nos andares, resistindo ao calor intenso do fogo, se molhando com água das mangueiras. 40 morreram, saltando do alto do edifício. Sem ter como deixar

20 • Kalango#23

o prédio, muitos tentaram abrigar-se em banheiros e nos parapeitos das janelas A escada foi rapidamente tomada pela densa fumaça, impedindo a fuga dos ocupantes que, ao invés de descer, começaram a subir, na esperança de serem resgatados no topo do prédio. Boa parte se salvou sob as telhas de cimento amianto, outros morreram sob os efeitos do intenso calor e da fumaça, asfixiante. Não haviam escadas de emergência nem brigadas de incêndio ou plano de evacuação. Helicópteros foram acionados para auxiliar no salvamento, mas não conseguiram pousar no teto do edifício pois este não era provido de heliporto. No início, muitos conseguiram fugir pelos elevadores. 13 pessoas tentaram fazer o mesmo, mas morreram carbonizadas. Os corpos não foram identificados, ainda não existia a análise de DNA. Foram enterradas lado a lado no Cemitério da Vila Alpina em São Paulo. >>


E

Kalango#23 •

21


22 • Kalango#23


Os corpos deram origem ao mistério das Treze Almas. A elas são atribuídos milagres. São as 13 Almas não identificadas. Ao lado das sepulturas, foi construída a “Capela das Treze Almas”. O local ficou conhecido algum tempo depois, quando pessoas ouviram gemidos e choros misteriosos, que saiam das sepulturas das 13 vítimas. Então, sabendo como morreram, foi derramada água sobre as sepulturas, sendo que em seguida os gemidos e choros cessaram. Assim, as pessoas começaram a fazer orações às 13 almas, pedindo graças diversas. Diariamente os visitantes fazem suas preces, agradecem à Deus pelas graças alcançadas e colocam faixas e “placas” com mensagens de gratidão. Quem visita os túmulos das “Treze Almas” no Cemitério São Pedro, sempre pode verificar a existência de um copo com água sobre cada sepultura, isso com o objetivo de tranquilizar as almas dessas vítimas do incêndio do Edifício Joelma, as quais morreram carbonizadas em um imenso calor. >>

Entrevista do coronel do Corpo de Bombeiros à época e outros áudios marcantes da tragédia no edifício Joelma, em matéria do repórter Thiago Uberreich, aqui: http://player.mais.uol.com.br/embed_audio2.swf?mediaId=14845323

Kalango#23 •

23


24 • Kalango#23


O QUE NINGUÉM SABE é que naquele elevador haviam 14 corpos. Sim, uma pessoa a mais. Nem bombeiros, nem médicos, nem a imprensa soube do paradeiro daquela pessoa, se homem ou mulher, ninguém sabe, conseguiu se salvar. Essa pessoa, que não quer se identificar, procurou a redação da Revista Kalango e decidiu contar tudo o que aconteceu nesse dia, envolto em mistério. E medo. Vamos chama-lo de sr. Cunha. Ex-bancário do grupo Crefisul, chegou do exterior nos anos 70 e conseguiu emprego na área de contabilidade. Naquela época, poucas pessoas conseguiam ter boa formação. Mas nem tudo é como a gente gosta, nem tudo é como a gente quer. O sr. Cunha conseguiu ficar apenas dois anos nessa empresa. “O incêndio acabou com a esperança de todos. Virei Sem Teto”, desabafou ao repórter o senhor, já no alto dos seus 55 anos, cabelos grisalhos e face cansada pelo tempo. Aquilo tudo foi desesperador e o governo não procurou as vítimas, nem o banco, nem instituição alguma. Sem emprego, sem dinheiro e sem moradia, o jeito foi ir para as ruas. “Para muita gente, outro mundo é possível. Acompanho as notícias pelas TVs ligadas nas vitrines e dentro das lojas, na cidade. Ouço rádio. Gosto muito do Haisem, ouço todo dia”, disse o moribundo. Revelou à reportagem que virou militante, era contra a globalização, o alto custo de vida, e “esse tal de Cunha, que coçou o cu com unha”. Nervoso, disse que nada tinha a ver com ele. Um tanto queimado pelo sol (“a cidade é quente demais e não venta, é só prédio e carro”, contou), o sobrevivente do Joelma vestia uma camisa de santo Dias da Silva, com palavras de ordem pedindo moradia a todos. A PM caminhava na rua São Bento, centro velho da cidade, onde o sr. Cunha decidiu falar com a reportagem. As mãos tremiam. Segundo ele, de febre. “Estou sempre quente”, falou, olhando firme nos olhos, sem pestanejar. “Não sou desse mundo”, disse, em tom firme. “Essas coisas me chateiam. Injustiça. Violência. Desamor”. E disse a frase que marcou o Fórum Social Mundial, ocorrido em 2001, Um Outro Mundo é Possível. “Eu tava lá”, lembrou. >>

Kalango#23 •

25


26 • Kalango#23


Estive também na Índia, Nairobi, Caracas... E revelou que também esteve nas manifestações em Eldorado dos Carajás, na linha de frente, em abril de 1996. Perguntei se não tinha medo, já que escapou de um incêndio em 1974 e passou por várias situações difíceis. Sorridente, disse que não diria mais nada. O sr. Cunha partiu entre os transeuntes da rua São Bento. Camisa vermelha, cheia de furos, gasta pelo tempo. Só depois percebi que alguns furos eram tão perfeitos, quase feitos por tesoura, ou algum objeto pontiagudo. Redondinhos, redondinhos. O Outro Mundo, por vezes, está mais perto do que imaginamos.

Kalango#23 •

27


Coruja agoureira – Rasga mortalha! Érica Flávio Cardoso

N

ão é que a Rasga Mortalha (Coruja Suindara) fez ninho na minha casa? Há quem diga que elas são sempre prenúncio de má sorte, ou pior MORTE mesmo! Tudo bem, mas agora não tá! Na primeira noite, já me lembrei de uma frase recentemente ouvida, atribuída a Augusto Cury: A gente sabe que vai morrer, mas não vive como se realmente fosse. Bom ... anota na agenda: Curtir mais a vida! Prazo: Ontem! Tirando o aspecto agourento, elas são lindas! Mas, meu deus, como são bravas. Tomaram conta da casa, a casa AGORA é delas. Não nos deixam dormir, cantam, bicam e brigam a noite toda, caçam os ratos e às vezes não conseguindo matar todos, alguns chovem aqui para baixo, sim isso mesmo, está chovendo rato agora! Já faz uns quatro meses, ou mais! Minhas olheiras já passaram de profundas, para eternas e nem sinal de saírem do telhado.

28 • Kalango#23

Outro dia, ao invés de chover rato, choveu filhote. Um dos filhotes (não sei ao certo quantos são) mas, um deles caiu aqui, em frente a minha cozinha. O telhado aqui de casa é muito alto, assim, a coruja filhote, sem saber voar direito, não conseguiu mais voltar ao ninho. O filhote era enorme, parecia mais uma galinha brava. Sem saber o que fazer, chamamos alguém do setor de meio ambiente da prefeitura local. Eles vieram e levaram a coruja, quase implorei que levassem todas elas, mas me disseram que era crime ambiental. Com todo respeito à natureza, mas e minhas noites de sono... bom, já eram. O pior é que me afeiçoei a elas, eu e toda a família. Perguntei se o filhote sobreviveria e qual seria seu destino, ele iria para uma ONG, numa cidade próxima, que acolhe animais silvestres. Fiquei pensando nos pais à noite, que se revezam no cuidado da ninhada e caçando os ratos para os queridos bebês! Com cer-


teza sentiriam falta do filhote! Bom, mas não havia nada a fazer! Foi uma noite péssima, elas chamaram pelo filhote a noite toda, não dormi nada e ainda fiquei com pena delas. Ser mãe nessa hora é péssimo! Isso me levou a pesquisar mais sobre a coruja Suindara e descobri que ela também recebia o nome de rasga-mortalha. Vem daí sua fama agoureira. Reza a lenda que tudo começou com uma jovem de 35 anos, chamada Suindara. A jovem tinha a pele muito alva, era um pouco gorda e também inteligente e culta, logo, recebeu o apelido de coruja branca. A jovem era também carpideira (mulheres com mais de trinta anos, pagas para chorarem em velórios e cemitérios). Era filha de um feiticeiro que sempre se vingava de quem fizesse mal a sua família. Suindara acabou por se apaixonar por um jovem, filho de uma condessa que lógico não aprovava o relacionamento do filho com uma carpideira, filha de um feiticeiro. A condessa então bolou um plano e atraiu Suindara ao cemitério, com a promessa de contratação de seus serviços como carpideira. A jovem foi morta por um empregado da condessa. A população se comoveu com a morte da moça e ela foi enterrada em um grande mausoléu, com uma estátua enorme de coruja branca a lhe prestar homenagem. Quando o pai e feiticeiro descobriu a verdade, jurou vingança e executando um poderoso ritual fez com que o espírito de Suindara penetrasse na grande estátua branca. Naquela mesma noite a coruja pousou em uma das janelas do castelo, piando e entoando um som estranho, como se alguém estivesse rasgando um pano de seda. A al-

deia toda escutou os terríveis ruídos que a coruja fazia na janela do castelo. No dia seguinte descobriram a condessa morta, com todas as suas roupas de seda rasgadas, dentro do armário. A partir de então, toda vez que alguém estava prestes a morrer, a coruja branca pousava na janela da “vítima” e piava aquele som estranho, para avisar que ele estava prestes a morrer. Vem daí o apelido de rasga-mortalha. Quanto a mim e as corujas, depois de descobrir sobre a lenda fiquei impressionada, pois, a jovem Suindara, me lembra muito uma amiga de faculdade que faleceu recentemente, no mesmo período em que elas começaram a fazer o ninho. O câncer a levou muito cedo, de forma abrupta e para mim cruel, minha amiga tinha a beleza e a inteligência das Suindaras. Todas as noites, antes de conseguir dormir ao menos um pouco, tenho lembrado a minha amiga! Estava com raiva das corujas, não conseguia ver nada além do meu sono na frente! Agora penso que se provavelmente elas atrapalham meu sono, eu também atrapalho o delas. Dizem que, uma vez que elas escolhem um local para o ninho, ele é eterno. Meu deus... será!! Escrevi o texto porque, as corujas me tiraram mais uma vez a venda dos olhos, quero que ele seja um alerta para mim e para os que lerem que: Sabemos que vamos morrer, mas de fato, não vivemos como se realmente fossemos. Anote na agenda: Viva! Prazo: Agora! Érica Flávio Cardoso é psicóloga e professora na FAAT Faculdades. Kalango#23 •

29


Vテ好EO

30 窶「 Kalango#23


Kalango#23 •

31


Freddy Krueger não é mais aquele Luis Pires

32 • Kalango#23


N

a década de 1980 dois vilões assustadores disputaram palmo a palmo a preferência dos fãs de filmes de terror: Jason Voorhess, de Sexta-feira 13, e Freddy Krueger, de A Hora do Pesadelo. O sucesso da dupla foi tão grande que várias continuações se sucederam. Sexta-feira 13 teve nada menos que doze seqüências, enquanto Freddy Krueger esteve presente em outras oito. Em Freddy vs Jason (2003), inclusive, os dois se enfrentaram e não sobrou pedra sobre pedra. A história de Jason teve um remake em 2009, sem muito sucesso. Freddy Krueger também voltou à cena no ano seguinte com a refilmagem de A Hora do Pesadelo, estreia na direção de Samuel Bayer, competente diretor de videoclipes, que já trabalhou com Nirvana, Offspring, Green Day, Jesus and Mary Chain e David Bowie, entre outros. O filme original foi escrito e dirigido pelo mestre do terror Wes Craven em 1984. O enredo girava em torno de um grupo de adolescentes aterrorizados por Freddy Krueger, um sujeito com o rosto queimado, que vestia um pulôver preto e vermelho e usava uma luva com garras de aço (sua marca registrada), com a qual fatiava suas vítimas sem piedade. Ele as perseguia durante o sono e tudo o que ocorria nos sonhos acabava acontecendo na vida real, inclusive a morte. A refilmagem seguiu a mesma linha do original, mas não tem a mesma “pegada” do clássico. Os sustos são previsíveis e os joguetes psicológicos realizados por Krueger não tem o mesmo apelo nesta nova versão, diminuindo o impacto das mortes – todas de adolescentes, aqui interpretados por atores e atrizes na faixa dos 25 anos, o que torna tudo ainda mais inverossímil. O problema principal talvez esteja na escolha do interprete do vilão. É impossível fugir da comparação. Robert Englund, que deu vida a Krueger no filme original, imprimiu ao personagem um tom sarcástico, que transformou a série em cult. Já a interpretação de Jackie Earle Haley para o homem das garras afiadas ficou muito aquém do original. Embora Krueger não assuste mais como antigamente, comparar as duas versões (ambas disponíveis em DVD), pode ser um programa diferente para os não se deixam seduzir pelos sinos e renas do bom velhinho. Bom Natal a todos!

Kalango#23 •

33


PALAVRA

Seres da noite, dentro e fora da mente

T

Por William Araújo

al como muitos paulistanos que não têm garagem suficiente para guardar o carro —para driblar o rodízio—, preciso colocar minha carroça em um que seja pago, e por fazer isso sempre de madrugada, tenho visto uns personagens noturnos que não assustam pela fantasmagoria, mas pela condição que concebem. Pessoas que vasculham o lixo da noite em busca do ouro branco (alumínio) soa estranho e peculiar! Passo perto e nem percebem, tão socados na lida que escolheram. Outro ser é o bêbado, que dedicou seu dia (ou final de expediente) a “trocar” ideias, “bater” um papo em um bar ou boteco qualquer. O resultado disso é lastimável – quando você vê uma pessoa falando “sozinha” com outros que só ele vê. Dia desses detive-me nesse personagem para perceber melhor essas conversas, especialmente de um jovem rapaz, que sempre está em situação lastimável. Era visível sua briga com alguém que só ele via, pois o xingava muito quando, de repente, vira-se como se fosse ouvir o que um outro ser diz, instigando-o. Aquela conversa certamente adentraria noite afora, ou ao menos enquanto este jovem-bêbado pudesse ver seus amigos-alucinados. Em outra ocasião, chegando em casa, abrindo o portão, por uma questão de segurança lancei os olhos ao redor, levando um susto de sobressalto. Próximo a um poste, inclinado sobre uma cesta de lixo ali fixada, vi o que parecia ser um extraterrestre alto e magrela. Algo inusitado àquela hora da noite, e aterrador, pois de difícil identificação. Em meio ao inusitado e à necessidade de decifração, eis que vem à mente a lembrança de que esta criatura nada mais era que uma jovem que há pouco se instalara em uma casa vazia desalojada e que —por isso— foi invadida por pessoas ainda jovem e consumidora de crack. Eles mesmos, tempo depois colocaram fogo na casa por conta de briga por ciúmes de um casal apaixonado, tese que é rebatida por outros, tidos como maldosos e que dizem ter isso ocorrido por conta do efeito ou da ausência do personagem crack. Ainda outro dia, vinha eu descendo a rua e de longe avistei o que parecia ser um anão andando com dificuldades. Por vezes o mesmo parava e isso realmente assustava, pois além de lento e tranquilo, sua fragilidade e velocidade desafiavam a noite e o que ela traz em termos de perigo. Foquei meu olhar para melhor saber e qual não foi minha surpresa ser aquele ente um senhor de muleta, pequeno, pois ñ crescera, e a forma estranha das pernas paralisadas tal como um arco, dava a dimensão do aleijão que o acometera. Isso levou-me a profundas reflexões, especialmente sobre a incerteza quando ao nascer tudo se pode ser, dependendo de leis e variáveis que vão além da mera ciência, se nisso for considerado que vir ao mundo é uma escolha, pedido e obtenção de uma dádiva, que atende exatamente àquilo que se planejou. Aleijões assustam pela torpeza, dor, estética aviltada e mesmo impedimento inexorável para muitos afazeres, na maioria das vezes exigindo ajuda de outros. Mas não era isso que eu via: pelo contrário, ao passar por mim, percebi a fragilidade daquele ser que, sem ajuda de ninguém, subia à rua para, quem sabe a que hora, chegar à sua casa. Não à toa tudo isso remete às possibilidades visionárias forjadas por Edgar Allan Poe, que curiosamente via muito mais do que os outros, haja vista seus contos mostrarem um mundo fantástico que às vezes está dentro e por vezes está fora da mente que (deduzo) não mente. Por isso, não sai de minha memória o que ele dizia: “Será que o que sou, penso e suponho é um sonho dentro de um sonho!?”

34 • Kalango#23


Kalango#23 •

35


À noite... Paulo HDS 2h45 DA MADRUGADA. Silêncio. Casa deserta. Recostado no umbral, Heitor observava os pais dormirem tranquilamente. Tudo estava bem, por ora, estava. “Hoje será o fim” — o adolescente sorriu com a possibilidade de seus planos se realizarem àquela noite. Dissimulado. “Heitor é o melhor filho do mundo!”, “Que garoto de ouro você tem em casa, amiga.”, Que sorte seria se todos tivessem um irmão assim...” — relembrava velhas falas e sentia algo perverso dilatar dentro de si. Subtil. Performático. “Sou um ator e...” (!) O pai deu um grande suspiro e em seguida virou-se na cama. O velho de pijama antiquado tinha a respiração ruim devido a vida sedentária. Remexeu, emitiu sons guturais e adormeceu novamente. Ao seu lado, a mulher dormia como um bebê. “Durmam... isso, assim.” Na penumbra, Heitor premeditava. “Vocês não sabem nada sobre mim e nem o que se passa comigo. Nada!” — os pensamentos soavam-lhe sonoros na mente, por vezes, temia ser ouvido. Ambiente. Silêncio. Apenas os ponteiros dos relógios se moviam na casa. Só eram percebidos em tais calmarias. Na cozinha, na sala, no corredor. “Não me lembro desse último.” Tic, tac, tic, tac...” Tudo para e tem um fim, menos eles.” Heitor sabia que os planos que traçara para aquela noite mudariam sua vida para sempre, mas estava preparado, havia arquitetado aquilo ao longo de seus 18 anos, ou, pelo menos, desde que descobriu que era diferente. “Sujos. Não me deram outra escolha. Serão purificados.” A mão direita demonstrava inquietude, desejo, arrependimento. Estava pesada. Sobre o leito materno, repousavam seus olhos pálidos. Neles não haviam compaixão, culpa ou qualquer outra coisa — só trevas. O velho suspirou uma vez e outra. Heitor emergiu do transe. Era chegada a hora. Endireitou-se, segurou com firmeza o martelo que trazia na destra, entrou no quarto e fechou a porta. “Sou um ator e um assassino”

36 • Kalango#23


Kalango#23 •

37


O GRITO ETERNO Orivaldo Leme Biagi

O

garoto sempre gritava. Todos os dias. Uma das suas maiores brincadeiras era ficar inventando histórias para assustar as pessoas... e para gritar, logicamente. “Fui assaltado!”, “Estou sendo morto!”, “Caí no poço!” ou simplesmente “Socorro!” - eis algumas das frases que o garoto gritava em total estado de desespero para, pouco depois de chamar a atenção de muitas pessoas, começar a rir delas, ali mesmo, no lugar da brincadeira. Ele sempre gritava de maneiras diferentes e sempre chamava a atenção de uma grande quantidade de pessoas. As outras crianças o desprezavam por causa deste comportamento. Alguns adultos apenas sentiam um profundo ódio: o mundo era lindo e calmo para terem de suportar a presença daquele garoto e de suas histórias inventadas, além dos seus gritos pavorosos. Seus pais? Dois “bananas”... um pai operário e uma dona-de-casa. Eles o mimavam demais, todos na vizinhança concordavam. Depois de uma brincadeira realmente pavorosa, quando uma menina foi hospitalizada por causa de um choque nervoso, o menino sumiu no outro dia. Todos estranharam a calmaria daquele dia, sendo que tal calmaria se prolongou nos dias seguintes. Onde estaria o garoto? Teria se sentido culpado? Teria sido, finalmente, repreendido pelos seus

38 • Kalango#23


pais? Será que os pais da menina teriam dado uma bronca e o garoto, graças aos céus, teria se “mancado”? Duas semanas depois surgiu a resposta: o garoto foi encontrado morto, nas margens de um rio próximo. [ O choque foi inevitável para toda a vizinhança... mataram o garoto! Ele era terrível, é verdade, mas não precisava ter um fim tão horroroso. A polícia informou que um grupo de pessoas mascaradas o agarrou, quebrou o seu pescoço e o jogou no rio. Curioso, todos pensaram: quando o perigo realmente aconteceu, ele não gritou. As suspeitas recaíram, logicamente, para os pais da menina hospitalizada. Nunca se confirmou a culpa deles, mas uma pequena história popular tende a ratificar esta suspeita. Na noite que descobriram o corpo do garoto, a menina dormia tranquilamente no hospital. A enfermeira que trabalhava no seu leito, hoje internada num hospício, jura que viu o menino morto surgir perto da cama da garota, acordando-a, e dizendo que jamais ele a abandonaria... logo depois, ele começou a gritar, sendo logo seguido pela menina, num outro grito longo, desesperado e profundo, acordando todo o hospital. Quando os médicos e outras enfermeiras chegaram, ela estava sentada na cama, completamente imóvel e, principalmente, com a boca aberta e os olhos arregalados, como se ainda estivesse gritando, num horrível silêncio... posição que ficou para sempre. A família se mudou e ninguém mais soube da menina. Mesmo assim, ela ficou conhecida como a “A Menina do Grito Eterno”.

Kalango#23 •

39


A velha casa no centro Orivaldo Biagi

40 • Kalango#23


Kalango#23 •

41


A

casa era bastante velha: três andares, porão e sótão, um velho jardim maltratado pelo tempo e descaso, além de uma enorme sala famosa por sua linda lareira enfeitada por um grande e velho espelho. Uma casa velha, porém imponente: era um verdadeiro castelo localizado no centro da cidade grande, poluída, barulhenta, suja. A velha casa no centro destacava-se por sua presença, tradição... e tragédias! Lendas sobre festas orgásticas e maldições horrendas eram relatadas sobre ela. Verdades ou superstições? Ninguém sabia... na verdade, ninguém mais se importava - não passava de uma velha casa no centro, um monumento arcaico e sem vida que insistia em existir no meio do novo vibrante. Seus fantasmas não assustavam as novas e técnicas mentes humanas dos nossos tempos. Um casal a observava com interesse - eram noivos, casamento marcado para breve. Adoraram a casa, apesar do alto aluguel. Ela queria, ele queria. Foram avisados pela imobiliária dos problemas que a velha casa no centro poderia criar: friagens, encanamento velho, ratos. Não se importaram. Queriam a velha casa no centro. Logo, conseguiram. O casamento se aproximava e muitas reformas estavam sendo feitas, rapidamente, na velha casa no centro. Tintas modernas não estavam conseguindo tirar algumas manchas negras de algumas paredes, principalmente no porão. As manchas pareciam sombras, disseram os pintores. Não importava, pois “podemos viver com elas”, disse a jovem noiva, sorrindo. Logo, as reformas estavam prontas. Os novos donos se casaram, viveram uma intensa luade-mel e foram para sua nova residência - e para seu novo destino. Os primeiros dias numa nova casa sempre se caracterizam pelo excesso de bagunça - arrumação, limpeza, luta contra os ratos, entre outros problemas. Não foi diferente com a velha casa no centro. Enquanto ele trabalhava fora, ela ficava arrumando a casa e, principalmente, o porão. Dias e dias arrumando aquele grande porão. Apenas uma frágil lâmpada iluminava o ambiente. Num desses dias, enquanto desfazia as caixas, ficou observando uma parede com uma enorme mancha. Nunca tinha notado sua forma com muita atenção antes, mas,

42 • Kalango#23

de alguma forma, parecia um pouco diferente da forma que ela imaginara ter visto no dia anterior. Ela se aproximou da parede, da mancha, e a tocou. Sentiu arrepiar-se pelo frio que sentiu. O porão estava frio, sim, mas não tanto quanto aquela parte da parede, a parte com a mancha. - Deve ser vazamento de água! - falou consigo mesma. Quando ela virou as costas para se dedicar às últimas caixas ainda fechadas, ouviu uma voz. - Não deixa ele me matar, mamãe! Era uma voz de criança. Fraca, fina... e desesperada! Virou-se rapidamente, aproximouse da parede, da mancha, e não viu coisa alguma. Encostou seu ouvido na parede, na mancha, e nada ouviu. Tinha certeza que ouvira alguém dizer alguma coisa, mas nada existia ali. Deu com os ombros e pensou que tivesse sido algum barulho da movimentada rua - carros e pessoas passavam sempre na frente da velha casa no centro. Nem comentou o incidente para seu marido. No dia seguinte, voltou ao porão para terminar o trabalho. Algumas horas depois, sem querer, olhou para a parede, para a mancha, e ela parecia ainda mais diferente do que no dia anterior. - Está diferente mesmo! - disse a mulher para si mesma. Aproximou-se devagar e, quando tocou a parede, a mancha, a frágil luz estourou, a porta de entrada do porão fechou e o local ficou escuro. Ela virou a cabeça assustada com o estouro da lâmpada, com o bater da porta e com a escuridão. Ainda assustada, virou sua cabeça outra vez, vendo luz na direção da parede, da mancha. Esta não estava mais: havia, agora, uma linda criança vestida com roupas infantis de marinheiro. Pequena, frágil, pálida. A mulher segurou-se para não gritar. Então a frágil imagem disse: - Não deixa ele me matar, mamãe! Era a mesma voz de ontem... as mesmas palavras. “O que significam?”, pensou a mulher. Neste instante, a porta se abriu, um pouco de luz entrou no porão e ela ouviu passos. Ainda assustada, virou rapidamente o corpo para olhar a pequena luz que entrava, colocou as mãos na cabeça e, finalmente, gritou - um grito alto,


horrendo, desesperado. - O que está acontecendo aqui? - disse seu marido, abraçando-a. Ele chegara do trabalho. Ela tinha ficado horas no porão e não tinha percebido. Ela nada falou sobre o incidente outra vez. Na verdade, ela não falou sobre coisa alguma o resto do dia. De noite, ele fez amor enquanto ela ficou parada, fria, olhando para o teto, sem poder pensar em outra coisa. Um dia se passou sem que ela descesse no porão. Mas não mais do que um dia. Resolvendo enfrentar o que quer que fosse, ela desceu no porão, devagar. Lá estava uma outra frágil lâmpada emitindo uma luz tão fraca quanto à anterior que tinha estourado. Lá estava a parede. Lá estava a mancha. Aproximou-se da parede, da mancha, sentou-se no chão, bem na sua frente, e ficou olhando, catatônica, esperando algum ruído, algum movimento, alguma coisa, seja lá o que fosse. Ficou horas sentada no chão, olhando, esperando. Cochilou. O delicado toque de mãos suaves e frias nos seus cabelos a acordaram. Mas não eram as mãos do seu marido, como ela inicialmente pensou. Uma criança, com roupa de marinheiro, a acariciava. Desta vez ela não gritou e nem sentiu medo. - Não deixa ele me matar, mamãe! - disse a criança. Ela tentou dizer que não era sua mãe, mas foi interrompida quando o dedo da criança tocou seus lábios e, depois, foi até o seu ventre. Ela, atordoada, entendeu. Colocou suas mãos sobre a barriga, sorriu e uma lágrima escorreu de seus olhos. Voltou seu olhar para frente, procurando falar alguma coisa, mas a criança não estava mais lá. Tinha desaparecido, sobrando apenas a parede, apenas a mancha. Ela ouviu a porta da frente abrir e percebeu que seu marido havia chegado. Subiu correndo, com lágrimas nos olhos, de alegria, pronta para contar as boas notícias, contar que o grande sonho dos dois estava se transformando em realidade. Mas, ao chegar na sala onde ele estava, percebeu, pelo reflexo do velho espelho, uma imensa tristeza no rosto do seu amado. Ele estava sentado numa cadeira. Tenso.

- Perdi o emprego! - disse o marido. Melancólico. Ela se voltou à lareira, na frente do grande espelho, olhando para seu ventre. Tremendo - Estou esperando um filho... o nosso filho! - ela disse. Nervosa. Ele, sentado, baixou a cabeça e colocou suas mãos sobre ela. Desconsolado. - Não foi o melhor momento para que isso acontecesse! - disse o marido, bruscamente, levantando-se rápido e saindo da sala. Desesperado. Ela fechou os olhos, colocou a mão na parte alta da lareira. Soluçando. Seus olhos se levantaram e, pelo reflexo do espelho, ela viu a criança com roupas de marinheiro, derrubando lágrimas dos seus olhos avermelhados. Desesperançado. - Vou te salvar, meu amor! - ela disse suavemente. Sorrindo. A criança com roupas de marinheiro também sorriu. Esperançoso. Poucas horas depois, no quarto, ele falava, falava e falava, arrependido do que dissera antes. Ele amaria a criança que estava por vir. Mas ela já não o ouvia mais. Apenas sorriu e pediu para que fizessem amor intensamente. Ela o beijou. Logo, estavam se amando. Outra vez ele fazia amor enquanto ela ficou parada, fria, olhando para o teto, sem poder pensar em outra coisa. Seu marido está chegando ao clímax. Uma faca, antes escondida, surge na mão da mulher. Ela abre os olhos e vê, perto da cama, a criança com roupas de marinheiro, olhando dentro dos seus olhos, sorrindo. Ela também sorri. - Vou te salvar, meu amor! - disse a mulher olhando para a criança. Enquanto o marido chega ao orgasmo, a faca na mão da mulher desce uma, duas, três... várias vezes. Gritos confusos na velha casa do centro, beirando entre o prazer, a dor... e a morte! *** Kalango#23 •

43


Hospício. Noite. A mulher está num quarto sem móveis, sentada, encostada na parede gelada, apertando seu ventre com as uma das mãos, enquanto a outra ficava acariciando a barriga, de cima para baixo. Com lágrimas nos olhos e tenra felicidade nas palavras, ela apenas repetia, ininterruptamente, sem gritos, sem alardes, a mesma frase: - Eu te salvei, meu amor! - Eu te salvei, meu amor! - Eu te salvei, meu amor!... Do lado de fora do quarto, através de uma janelinha de vidro localizada na parte alta da porta, dois médicos a estão observando. - Dá para imaginar? Eles se casaram a pouco mais de um mês e ela esfaqueou o marido no meio da transa! Loucura! - disse um dos médicos, olhando atentamente para uma prancheta que estava em suas mãos. - E por que ela o esfaqueou? - perguntou o outro médico enquanto olhava a mulher. - Ela alegou que ele iria matar o filho que ela estava carregando, que seu marido não o queria e que ele iria matar o seu feto e coisas assim... bem, este é o problema! Ela sequer está grávida! afirmou o primeiro médico. Agora ambos estavam olhando para a mulher, que continuava a repetir a mesma frase. *** É noite. A velha casa no centro está vazia, mas barulhos estranhos são emitidos, vindos do porão. Lá, uma criança com roupa de marinheiro brinca despreocupadamente com alguns carrinhos. Sua tranquilidade acaba quando ouve uma voz feminina, alta e firme, vinda da parede, da mancha: - Júnior! Já falei para não brincar com as pessoas assim! A criança levantou a cabeça e sorriu: - Desculpe, mãe... é tão legal brincar com os mortais! Eles são tão bobinhos! E voltou à sua despreocupada brincadeira com seus carrinhos no porão da velha casa no centro.

44 • Kalango#23


Fonte> http://www.theburningplatform.com/2014/12/25/santa-syndrome-when-lying-is-ok-if-everyone-is-doing-it/

Kalango#23 •

45


BOAS COMPRAS!

46 • Kalango#23


Kalango#23 •

47


O valentão e o demone Por Luís Brandino A história que vou narrar foi contada por minha avó, “dona” Angelina, como ela era conhecida em Gália, cidade onde nasci. Dona Angelina era filha de italianos, que chegaram ao Brasil no final do século XIX para trabalhar em fazendas de café, como fizeram batalhões de desempregados e de sem-terra, que não tinham como sustentar suas famílias numa terra arrasada pelas guerras da unificação da Itália. Diz a lenda da famiglia que a avó de dona Angelina, – minha tataravó Maria – era de uma família rica na região de Pádua. Bem educada – embora o estudo das moças das famílias abastadas fosse opcional, ele tinha como objetivo maior não o de instruir a mulher, mas melhorar as chances de um bom casamento – minha tataravó cometeu um grave erro: se apaixonar por um pobretão. Claro que teve de fugir para se casar e também transformou-se numa pobretona. Diante da pobreza, a solução da famiglia Tamelini foi pegar um navio para o desconhecido Brasil, porque o governo pagava as passagens. Como praticamente todas as crianças filhos de colonos que viviam nas fazendas de café começavam a trabalhar aos seis, sete anos, portanto não frequentavam escola. Com minha avó as coisas não foram diferente. Ela só aprendeu a escrever por volta dos 50 anos, quando frequentou o Mobral*. A nona Maria, que sabia ler e escrever, reunia os netos todas as noites em volta de sua cama e contava-lhes histórias de príncipes e princesas, de rainhas más, de jovens valentes e espertos e de fantasmas. Foi com ela que “dona” Angelina aprendeu a arte da narrativa. Da mesma forma, muitos anos depois, dona Angelina reunia os netos – eu, meu irmão e meus primos – aos pés de sua poltrona na sala de estar para narrar seus contos populares. Seus preferidos eram histórias de espíritos maus que povoavam o imaginário do povo humilde do campo.

48 • Kalango#23

Era uma vez um rapazote, de nome Antonio, que vivia com seus pais num pequeno sítio. Antonio, metido a valentão, não se conformava com a pobreza em que vivia naquele pequeno chão inóspito. Vivia rogando praga, para desespero de sua mãe, que se benzia e pedia para que Deus perdoasse seu filho ingrato: – Esta terra é do diabo, do cramunhão, do coisa ruim, do sem nome. Aqui não nasce nem capim... Vou me embora dessa praga, ganhar o mundo, ganhar dinheiro, a senhora verá...Nem que tenha que vender a alma ao Satanãs... Quando completou dezoito anos, Antonio resolveu que era hora de se aventurar por este mundão. Arrumou seu matulão e pôs os pés no estradão, deixando sua mãe aos prantos e seu velho pai desolado. – O mundo, meu filho, é muito perigoso. Está cheio de armadilhas, gritou o pai, na esperança de demovê-lo da ideia maluca. – Meu pai, sou valente, não tenho medo de nada, nem do diavolo... E pôs a caminho do nada, seguindo a estrada para onde ela levasse. Apressou o passo e andou até o sol se pôr no horizonte. A primeira noite dormiu ao relento. No segundo dia, com o estômago reclamando de fome, decidiu procurar por algum ser vivente e piedoso que lhe desse guarida por algumas horas e lhe servisse um prato de comida. Andou meia hora por um descampado até avistar ao longe uma casinha branca. A fumaça que saía do chaminé indicava que ali, com certeza, alguém cozinhava. Aproximou-se aos poucos do local: – Ô de casa, ô de casa. Quem chega é de paz. Um velhinho de barbas brancas e um chapéu panamá na cabeça, bem maior que seu cucuruto, apareceu na porta. – Se é de paz, pode se achegar. Antonio se refestelou depois de esvaziar o prato de feijão, mandioca e carne de porco que o bem velhinho lhe servia. Antes dele partir, o velhinho lhe deu um bom conselho: – Filho, no final desta estrada você encontrará uma encruzilhada. O caminho da esquerda é cheio de pedregulhos e mais parece uma picada;


o da direita, largo e arenoso. O conselho que te dou: pegue o dá esquerda, pois o outro está povoado por almas penadas e é governado pelo sem-nome! Mal-agradecido, Antonio desdenhou do conselho, dizendo-se valentão, que não tinha medo nem do demônio. E assim se sucedeu. Na encruzilhada pegou a caminho da direita, largo e de fácil caminhar. Quando a lua já tomava o lugar do sol no firmamento, cruzou com um homem alto, que vestia um terno branco de linho e um chapéu borsalino, também branco. – Meu senhor, caminho há horas, estou cansado. Não sabe me indicar se há alguma pousada onde possa passar a noite? O homem parou, virou-se para ele e o mirou de cima abaixo: – A uma légua daqui você encontrará uma casa, usada por errantes como você. Lá você encontrará dormida. Mas quer um conselho: se eu fosse você não entrava no local, dizem ser mal-assombrada. – Não se preocupe, seu valente, não tenho medo de nada, respondeu Antônio. Depois de caminhar por mais de uma hora, já sob uma escuridão, avistou uma luzinha fraca e trêmula que mal iluminava um cômodo do casarão velho. A porta rangeu quando Antonio a abriu. Ele escutou um grande barulho, como se alguma coisa muito grande houvesse caído no telhado. Ele se arrepiou todinho, mas disse a sei mesmo: “Não se assuste, você é valentão’. Entrou devagarinho no casarão, dirigindo-se para o quarto onde a luzinha de vela iluminava. Ao chegar à porta, a luz se apagou e ele ouviu uma voz rouca e poderosa: – Quem vem lá? – É Antonio, o valentão. E quem fala daí? E escutou alguma coisa cair do telhado. Mesmo no escuro vislumbrou uma perna. Depois ouviu a voz: “Caiu uma perna; caiu outra perna; caiu um braço, caiu outro braço... De repente, formou-se a sua frente a imagem de um homem alto, com patas de bode, com um rabo comprido e chifres. – Tremendo, Antonio perguntou: – Quem é você? – Sou o dono de suas terras e aquele a quem vendestes tua alma, háháháhá. E o demone levou com ele a alma do valentão Antonio. E a história se findou, quem quiser que conte outra...

ANUNCIE NA KALANGO !!!!

Kalango#23 •

49


50 • Kalango#23


IMAGEM Alline Nakamura

Kalango#23 •

51


TEU PRÓXIMO

É TODA A HUMANIDADE

52 • Kalango#23


Juliana El Taouil Azar No livro “Teu Próximo é Toda a Humanidade”, de Mauricio de Andrade, é forjada a necessidade de tornar a mensagem humanitária de paz e amor maiores do que o egoísmo e chauvinismo planetário. O propósito do livro, basicamente, é instigar a reflexão sobre a maneira como as relações humanas são perpetuadas em nossa sociedade e como criar um novo paradigma social e cultural que vise o auxílio ao próximo, por meio de valores que compreendam a compaixão como um elo entre todas as formas de vida. Afinal de contas, estamos todos conectados por uma força espiritual maior que rege todos os seres em sua jornada cármica. Por isso, a busca por si mesmo é, na verdade, a busca pelo próximo. Então, se não buscarmos ajudar uns aos outros, toda a essência do Amor deixará de existir e toda a raça humana sucumbirá. É necessário, pois, que reconheçamos em cada ser do planeta uma fonte vívida de amor e de sabedoria; de plenitude e de cooperação. A fim de salientar a necessidade de conexão para com o outro, o livro dispõe de conceitos e percepções profundas do Budismo e do Cristianismo que compreendem a essência do Amor e da Comunhão como intrínsecas à felicidade natural do ser humano. Além disso, o livro conta com três contos, como propostas humanitárias sobre a busca da redenção humana, a crença e a dignificação da vida. Dessa forma, “Teu Próximo é Toda a Humanidade” procura jorrar luz sobre questões que transcendem o materialismo e a concretude das coisas. Pois, ao contrário do que se pensa, o mundo vai além de meras convenções e rituais sociais. Ao entendermos que o sentido da vida consiste em desconstruir imagens e estereótipos em prol de uma corrente humanitária maior, conseguiremos alcançar a verdadeira felicidade - aquela que é desprovida de ego e sentida com o coração. Kalango#23 •

53


GOSTOU DO QUE VIU? Acompanhe a Revista Kalango no Facebook e no endereรงo www.revistakalango.com.br Entre lรก. Curta, compartilhe!

54 โ ข Kalango#23

VOLTE SEMPRE


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.