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Luzes, câmera, som!

Colaborativa, múltipla e muitíssimo fértil, a cena musical ligada à produção cinematográfica pernambucana vive um momento de ouro

Por Bruno Albertim, do Recife

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No final do ano passado, Helder Aragão lançou um vinil com nove faixas. “Discos de vinil são como slow food, o resgate do hábito de ouvir o disco inteiro, seguindo a ordem de quem o concebeu, uma pausa no meio da correria da vida para apreciar música”, ele diz sobre “Banda Sonora”, o álbum que seria mais uma bolacha musical com o fetiche que o vinil evoca hoje não fosse um detalhe: o disco assinado pelo DJ Dolores, codinome assumido por Helder desde que se transformou num dos pioneiros a injetar boas doses de tecnologia para reprocessar ritmos tradicionais, é todo composto por canções e temas feitos para o cinema.

“Compor sob encomenda é muito mais fácil. Ter patrão, prazo definido, temática etc. só ajudam a estabelecer o foco. Compor para mim mesmo é muito chato, porque normalmente eu não tenho nada a dizer”, discorre, numa modéstia inadequada como roupa emprestada, o ganhador de um Kikito pela trilha sonora, ano passado, do aclamado longa pernambucano “Tatuagem”, de Hilton Lacerda.

Dolores confirma um dos expedientes atualmente mais frequentes entre os músicos do estado nordestino: a composição ou a direção para o cinema. No Recife e nos arredores, imagem e som vivem um casamento fecundo, constante - e poligâmico.

"Desde a retomada da produção em Pernambuco, com 'Baile Perfumado' (de Lírio Ferreira e Paulo Caldas), as relações entre o cinema e a música do movimento manguebeat são bem estreitas. Basta lembrar a música de Chico Science na cena de abertura do filme”, diz o crítico e professor de cinema Alexandre Figueiroa, da Universidade Católica de Pernambuco. “Em outros filmes, como 'Amarelo Manga' (de Cláudio Assis), os músicos do movimento também estão presentes com músicas, cuidando da trilha, a exemplo de Siba, DJ Dolores, Fred Zero Quatro, entre outros”, continua.

Para o professor, as mesmas preocupações alimentam esteticamente a música e o cinema feitos no estado. “Eu acredito também que há uma aproximação de ideias e traços estilísticos compartilhados entre alguns filmes e a produção musical local: um certo compromisso de abordagem social nas obras, uma estética que mescla gêneros e ritmos, um olhar sobre a realidade flagrando o cotidiano das ruas”, explica. “Há, portanto, um diálogo entre a cena musical e a cinematográfica.”

Do começo dos anos 1990 para cá, mais de trinta longas foram produzidos em Pernambuco. Uma filmografia com, pelo menos, uma centena de importantes prêmios nacionais e internacionais. Apenas “O Som Ao Redor”, a aclamada obraprima de Kléber Mendonça Filho, já é dono de 34 prêmios, entre eles o de melhor filme no Festival do Rio e na Mostra de São Paulo e o especial da crítica do festival de Roterdã, na Holanda. Hélder Aragão foi convidado por Mendonça para fazer o som do longa. Não apenas ilustrando, mas imprimindo sua crônica musical a respeito das questões abordadas na obra. “Hélder, acima de tudo, é um amigo, é talentoso, compõe bem e tem uma grande capacidade de entender e reprocessar o que você está falando”, elogia o cineasta. “Somos da mesma geração, temos o mesmo senso de humor. Ele reagiu de maneira muito forte ao filme e pareceu entender muito bem o que eu estava falando.”

Para fechar o filme sobre o Recife caoticamente urbano e ainda herdeiro das tensões entre casa grande e senzala, Mendonça usou a música “Setúbal”, composta por Hélder para o médiametragem “Enjaulado” (1997), espécie de pontapé para a temática que o diretor abordaria em “O Som Ao Redor”. “Essa música soa como se fosse a base de uma crônica, é lacônica. Ela abre 'Enjaulado' e fecha 'O Som...'.”

“Enjaulado”, aliás, é tido por Renato L, um dos autores do Manifesto Manguebeat, como uma das primeiras coletâneas, já no começo dos anos 90, da nova cena pop do Recife. No CD derivado do filme, hoje esgotado, estão nomes que fizeram a música tomar corpo e artérias no Recife noventista, entre eles as bandas Eddie, Paulo Francis Vai pro Céu, Lara Hanouska e Faces do Subúrbio, bem como o então novato Otto, recémsaído da bateria da Mundo Livre S.A. Ele participa com “TV a Cabo”, canção do seu disco de estreia, “Samba Pra Burro”.

“Desde os anos 1990, a movimentação musical da cidade estimulou muito quem trabalha com cinema ou qualquer outra coisa criativa”, lembra Kléber Mendonça Filho, confirmando que o binômio música e imagem compõe um ecossistema de permanente retroalimentação no Recife. “Foi muito natural que o cinema levasse uma injeção na veia da música feita na cidade. Os filmes de Cláudio (Assis), por exemplo, quase todos têm grandes direções musicais de Pupillo, Jorge du Peixe ou Lúcio Maia”.

“Esse é o grande lance”, resume Otto. “Faço música para um disco que acaba ficando no filme de um amigo. Ou para um filme que acaba indo parar num disco meu”, diz o Galego, como é chamado pelos amigos do Recife.

Na cidade, corre um termo sociologicamente intuitivo sobre o processo de criação colaborativista: “brodagem”. Implicitamente, ele explica que criações podem se dar mais por afinidades estéticas e afetivas que por editais de patrocínio. Lúcio Maia e Jorge du Peixe, por exemplo, estavam fazendo a direção musical de “Amarelo Manga”, o retrato do Recife pelo avesso de suas artérias filmado por Cláudio Assis em 2002. Mas não estavam na cidade a tempo de enviar a música-tema que seria cantada, à capela, por Matheus

Filme: Tatuagem

Filme: Tatuagem

Filme: Jardim Atlântico

Filme: Jardim Atlântico

Filme: Recife Frio

Filme: Recife Frio

Filme: Canção Para Minha Irmã

Filme: Canção Para Minha Irmã

Nachtergaele no bar/pensão/inferninho onde os personagens gravitam. “Otto estava na cidade, e o chamei. Ele fez a canção de improviso, na hora”, lembra o diretor. “Eu fiquei embaixo da mesa (no set), cantando baixo, para Matheus poder repetir em quadro”, lembra Otto, agora às voltas com a criação da trilha sonora original do próximo filme de Lírio Ferreira, “Azul Acrílico”. “Ainda estamos discutindo, não sei como vai ser”.

Ao explicar o processo de criação da trilha, Cláudio Assis é incisivo, metódico: “O músico tem que estar junto, tem que ir ao set para sentir o clima. É parte efetiva da equipe”, diz ele, às voltas, agora, com Hélder Aragão para a construção da sonoridade de seu próximo filme. Adaptação do romance de Xico Sá, “Big Jato” percorrerá os caminhos errantes de um limpador de fossas no interior do Nordeste dos anos 1970 que é fissurado pelos Beatles. “Além de não ter dinheiro para comprar os direitos das músicas dos Beatles, acho que será melhor, mais legal, se criarmos algo novo. Talvez até, claro, com uma musicalidade inspirada nos Beatles, já que, naquele momento, havia tantas bandas que faziam música inspirada neles.”

Marco na relação carnal entre imagem e som no cinema pernambucano, “Baile Perfurmado”, ainda nos anos 1990, teve na sua trilha nomes fundamentais da música do estado naquele momento: Nação Zumbi, Mundo Livre S.A. e Mestre Ambrósio, além do veterano Alceu Valença. Agora terminando as filmagens de “Sangue Azul”, longa sobre uma história de amor numa ilha, seu codiretor Lírio Ferreira confirma ser a música ainda fonte primal de energia para a sétima arte. “Certamente o cinema pernambucano não seria a mesma coisa se não tivesse tido, como ainda tem, o impulso da música”, afirma Ferreira, que conta com a direção de Pupillo, da Nação Zumbi, para ver seu filme musicado por gente como Ortinho, Arto Lindsay, Otto, Marina de La Riva e Junio Barreto.

“Eu estava na escola ainda e gazeava aula para ver a gravação da trilha do 'Baile'. Queria ver como funcionava música com imagem”, lembra o músico Tiago Andrade, o Zé Cafofinho, responsável pela trilha de dois longas recentes: “Uma Canção Para Irmã” e “Épico Culinário”, ambos de 2011. O segundo é um filme-arte do artista Paulo Caldas sobre lendas populares do horror pernambucano. Já no primeiro, dirigido por Pedro

Severien, Cafofinho, além de compor a canção-título, viveu o protagonista: um preso que volta para reencontrar a família depois de a cidade ser devastada por uma enchente.

A convivência íntima da música com o cinema em Pernambuco faz, frequentemente, outros músicos cruzarem a fronteira. José Wilson de Castro Temotéo Jr., mais conhecido pela alcunha de Júnior Black, tem seu nome nos créditos de mais de dez fitas. Mas só em uma figura como músico. Nas outras, é ator. “Mas foi a música que me levou para o cinema”, diz o ex-vocalista do Negroove, hoje em carreira solo com um elogiado disco em que imprime suas digitais de soulman à música contemporânea de Pernambuco. “Eles (os cineastas) viram que eu tinha desenvoltura no palco. A partir daí, começaram a me chamar”, lembra Black, que teve seu début no longa “Amigos de Risco” (2007), de Daniel Bandeira. Ao lado do experiente Irandhir Santos (de, entre outros, “Tropa de Elite” e “Tatuagem”), compunha, na película, uma tríade de amigos em aventuras pela noite suburbana do Recife.

Outra participação marcante de Black na filmografia recente do Estado é como um vendedor de artesanato no (impagável) curta “Recife Frio”, de Kléber Mendonça Filho. Na trama que mostra como a capital pernambucana se comportaria se sofresse uma irreversível conversão térmica,

Filme: Recife Frio

Filme: Recife Frio

Filme: Recife de Dentro para Fora

Filme: Recife de Dentro para Fora

Filme: Jardim Atlântico

Filme: Jardim Atlântico

Black comercializa bonecos de barro ao estilo do Mestre Vitalino adornados com gorros e cachecóis. “Me sinto muito confortável no set, sou um amostrado”, brinca.

A primeira vez em que Black cantou num filme foi em “Tatuagem”, em que terça a voz com Ylana Queiroga na canção-hino “Polca do Cu”. O próprio diretor, Hilton Lacerda, aliás, é coautor da música com o DJ Dolores. “Todas as músicas foram construídas já no roteiro. É uma música de revista, de fácil apelo”, diz Hiltinho, como é conhecido.

A fertilidade musical de Pernambuco (ainda que conte com músicos parceiros de outras praças) inspira até filmes francamente musicais. No longa “Jardim Atlântico”, de Jura Capela, filmando entre Olinda, Recife, Fernando de Noronha e Petrópolis (RJ), um dionisíaco e algo diabólico triângulo amoroso é usado como fio narrativo para algumas das mais belas sequências musicais do novo cinema brasileiro. Sob a direção musical de Pupillo, da Nação Zumbi, Jura reuniu um belo extrato da nossa música contemporânea: Guisado, Fernando Catatau, Junio Barreto, Lirinha, Roger Man, Emiliano Sette, Ava Rocha, Mariana de Moraes e Céu, num plano-sequência de mais de quatro minutos em que realiza a interpretação provavelmente mais sexy que “Aquarela do Brasil” já recebeu.

"A presença de Pupillo como diretor musical foi imprescindível. Ele tem a capacidade de unir e gerir todo mundo”, diz Jura. “Eu pensava em usar fonogramas antigos, e ele sempre insistia: 'não, vamos chamar nossa galera, as pessoas que estão produzindo música agora'”, conta. “Na cena do surto do personagem Pierre, a ideia era homenagear o emblemático disco 'Paebiru', de Lula Cortes e Zé Ramalho. Pupillo entrou com a música, e Lirinha, com a letra. O resultado final, a canção 'Demantello', é exatamente o que eu imaginei para a cena.”

Embora alguns críticos e historiadores da arte brasileira vejam a música pernambucana feita a partir do manguebeat como o movimento mais importante do Brasil pós-tropicalista e como algo reconhecível por certos elementos, não é consenso que essa produção seja uniforme. Mesmo que o uso de novas tecnologias e de peças da cultura popular, como o coco e o maracatu, sejam (quase) constantes, as sonoridades são díspares. “O que nos une são dados geracionais, o fato de compartilharmos das mesmas informações ou termos uma perspectiva semelhante de mundo”, conceitua Dolores. “Embora todos se ajudem, e até discutam entre si, ninguém quer ser igual a ninguém”, corrobora Cláudio Assis, que continua: “Acho que nunca houve, nem na época da bossa nova, um movimento musical tão presente no cinema como a música feita em Pernambuco. Uma música de muitas sonoridades feita para um cinema de vários estilos.”