5 minute read

Parintins: uma disputa também fora do Bumbódromo

Advertisement

Agremiações que integram o famoso festival folclórico não repassam direitos autorais aos compositores das toadas e são levadas à Justiça pelo Ecad

Por Gustav Cervinka, de Manaus

Uma das maiores manifestações culturais do Brasil, o Festival Folclórico de Parintins, realizado a cada ano no último fim de semana do mês de junho, no interior do Estado do Amazonas, é marcado pela disputa acirrada entre os bois-bumbás Caprichoso e Garantido diante de mais de 16 mil pessoas no bumbódromo. Fora da arena de apresentações, contudo, uma outra disputa ofusca o brilho da riqueza artística do evento: os compositores das toadas executadas nas apresentações de ambos os bois simplesmente não recebem os valores relativos aos seus direitos autorais.

De acordo com o Ecad, os pagamentos jamais foram recolhidos nesses eventos, a despeito do processo judicial movido pelo escritório central. “O Ecad vem procurando todos os anos os organizadores do evento, incluindo as associações folclóricas, o governo do Estado do Amazonas e os patrocinadores, a fim de conscientizá-los sobre a necessidade do pagamento”, afirma o escritório, por meio de nota.

Segundo a ação, nem as agremiações nem o governo do estado se comprometem a mudar o quadro e passar a recolher os direitos. “Apesar da magnitude e da representatividade do evento, não há a valorização dos artistas por parte dos organizadores. Mesmo com toda a receita gerada, simplesmente não o fazem. Como não há o pagamento, os titulares que têm suas obras executadas ficam sem receber os direitos devidos”, continua o Ecad.

O cantor e compositor de toadas de boi-bumbá Tony Medeiros, que é filiado à UBC, sustenta nunca ter visto a cor do dinheiro dos direitos autorais relativos à execução de suas músicas na arena, durante as três noites de realização, pelo boi Garantido, o vermelho. “Tenho reclamado bastante. A agremiação tem condições de pagar, e não vejo a necessidade de renunciar a esses direitos. Sei que existem alguns casos em que, no próprio contrato, os compositores desobrigam o boi do recolhimento”, explica o artista, que também é deputado estadual. Ele estima que seu prejuízo ultrapasse a marca de R$ 100 mil nos dez anos em que escreveu músicas para o Garantido, sem receber direitos autorais da agremiação. Entre suas cerca de 200 composições, destacam-se “Boi de Pano”, “Toada da Vaqueirada”, “Vou Anunciar” e “Dança do Banzeiro”.

Rafael Lacerda, outro compositor do Garantido, afirma não ter recebido nenhum valor referente aos seus direitos autorais de arena há dois anos. “Componho para o boi desde 2004. Admito que essa atividade, para mim, é como um hobby. Mesmo assim, em relação a outras veiculações de minhas obras, recebi meus dividendos de maneira retroativa. Só não recebi o que diz respeito ao Festival de Parintins. Acabei não entrando com processo na Justiça, mas acho válido e apoio os colegas que precisarem”, enfatiza o autor de toadas como “Sentimento Vermelho” e “Yawira das Águas”.

Do outro lado, pelo boi Caprichoso, o compositor Paulinho Du Sagrado diz que “da arena ninguém recebe nada”. Segundo ele, suas músicas são usadas, mas os direitos autorais não chegam. “O festival envolve uma série de patrocinadores, e circula muito dinheiro. Por que não recolhem? A obra é que orienta tudo o que é arquitetado para a arena. É da letra das músicas que se extrai o espetáculo. Acontece que o boi virou uma 'cobra grande', e tudo o que passa à sua frente ele quer comer”, filosofa. “Usam nossa paixão pelo boi para tirar proveito de tudo isso”. Du Sagrado escreveu obras como “Táwapayêra”, a mais recente e que está na lista de toadas para o festival deste ano. Embora componha desde a década 1980, ele somente passou a escrever para o Caprichoso em 2010.

O compositor Geovane Bastos, também criador de canções para o boi azul e branco, conta que essa é uma realidade comum. “Escrevo há pelo menos sete anos. Em todo esse tempo, nada recebi de direitos autorais pela execução da obra na arena”, afirma, citando termos dos contratos apresentados aos compositores pelas agremiações.

Bastos tem aproximadamente 30 obras compostas para o Caprichoso. Somente em 2013, seu nome esteve em seis das 21 músicas que fizeram parte do repertório do festival, incluindo “O centenário de Uma Paixão”, ao lado de Guto Kawakami e Adriano Aguiar, “Deusa da Paixão”, com Alquiza Maria, e “Yuriman”, em parceria com Saullo Vianna.

Tanto a diretoria do boi Caprichoso quanto a do Garantido afirmam que os autores das toadas recebem “uma premiação de R$ 2 mil pela música escolhida em concurso cultural, que acontece regularmente um ano antes do evento”. Segundo o presidente do azul e branco, Joilto Azedo, após selecionada a obra, o contrato assinado para a sua exploração prevê sua aplicação em CD, DVD, ensaios, eventos oficiais e arena. “Os compositores ficam cientes, e os que concordam assinam o contrato. No caso de direito de arena, o Caprichoso acerta valores individuais com cada compositor, que terá sua obra utilizada durante o festival. Esses compromissos foram todos cumpridos”, afirma.

Do outro lado, Telo Pinto, presidente do Garantido, diz que o pagamento do prêmio e os acordos que existem com alguns compositores “desobrigam” a agremiação de fazer repasses ao Ecad - e, por consequência, aos autores.

Por meio da sua assessoria de imprensa, a Secretaria de Estado da Cultura no Amazonas afirma tão-somente que a obrigação do pagamento de direitos autorais é exclusivamente dos bois-bumbás.

A coordenação jurídica do Ecad, por sua vez, afirma que, de acordo com a ação que corre na 4ª Vara da Fazenda Pública Estadual de Manaus, os bois jamais apresentaram qualquer documento comprovando que de fato têm autorização dos titulares para a execução pública das obras musicais. Mais: como titulares da UBC e de outras associações, os autores reclamam textualmente por não receberem pelo uso das toadas. Quanto à alegação da Secretaria de Cultura, continua o Ecad, pelos termos da lei de direitos autorais a tentativa de se desvincular da obrigação de pagamento não se sustenta, uma vez que o órgão é um dos promotores do festival.

Em 2014, evento ganha dimensão ainda maior

A 49ª edição do Festival Folclórico de Parintins, nos próximos dias 27, 28 e 29 de junho, vai coincidir com a realização do Mundial da Fifa, e Manaus, uma das sedes dos jogos, terá uma programação cultural integrada aos festejos do interior. Para este ano, os temas das agremiações são “Táwapayêra” (aldeia mística), pelo Caprichoso; e “Fé”, pelo Garantido.

O espetáculo de cores e ritmo que evoca as culturas do Norte e do Nordeste do país, mesclando a herança portuguesa dos autos de fé e as tradições dos povos indígenas da Amazônia, será um dos principais focos da divulgação da cultura amazonense pelo governo do estado. Como de costume, os organizadores não revelam as surpresas preparadas para o festival. Entre algumas possibilidades, está uma homenagem que o boi Garantido fará a dona Maria Ângela Faria, madrinha do vermelho, morta em fevereiro passado, aos 91 anos. Sua devoção ao boi era tamanha que até a piscina de sua casa era vermelha. Uma toada - “A benção, Madrinha” – foi escrita em sua memória e deve estar na arena, assim como uma alegoria criada especialmente para homenageá-la.

Pelo Caprichoso, pode-se adiantar a mudança no item “Sinhazinha da Fazenda”, cujo posto deixado por Thainá Valente será assumido por Karyne Medeiros, ex-porta -estandarte do boi azul e branco.