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Amados mestres

Um papo com os 'decanos' da UBC, filiados há muitas décadas que viram de perto (e protagonizaram) a evolução da música e dos direitos autorais no país

Por Leonardo Lichote, do Rio

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Era uma tarde quente, com céu sem nuvens, e Tito Madi estava na fazenda de sua irmã no interior de São Paulo. O ano era 1954. Ele pegou o bote e o levou até debaixo de uma árvore que havia tombado no meio do lago. Ali, na sombra da folhagem, compôs “Chove Lá Fora”, que se tornaria um de seus maiores sucessos. “Era uma fase em que tinha muita facilidade para compor”, lembra Madi, aos 84 anos. “Naquele dia não chovia lá fora, mas chovia dentro de mim.”

Filiado à UBC desde 1957, o mestre do samba-canção é um dos representantes da “velha guarda” da nossa associação, artistas que atravessaram décadas acumulando histórias de vida, arte e evolução da questão dos direitos autorais no país. Nomes como Evaldo Gouveia, Zé Menezes, Zuzuca do Salgueiro e Edson Menezes, que começaram a compor num Brasil pré-bossa nova, profundamente romântico, de um tempo mais dilatado.

A primeira música que fiz foi 'Eu Espero Você', para uma namorada, na minha época de estudante, com meus 19, 20 anos”,

conta Madi, autor ainda de sucessos como “Balanço Zona Sul”, lançado por Simonal. “Mas só vim a me familiarizar com direitos autorais quando gravei meu primeiro 78 rotações, com 'Não Diga Não' de um lado e 'Piraju' do outro. Tive sorte, ele estourou na parada de São Paulo. Quando estourei 'Chove Lá Fora', já na UBC, passei a receber direitos do exterior, vindos de países da Europa e também dos Estados Unidos, onde ela foi gravada pelo The Platters. Hoje, posso dizer que tenho recebido os direitos autorais de forma muito precisa.”

Evaldo Gouveia já começou na UBC, com seu parceiro Jair Amorim – a dupla formou uma usina de canções de amor populares, sambas-canções como “Alguém Me Disse”, lançada por Anísio Silva e gravada por intérpretes como Gal Costa, Maysa e Ana Carolina. Como ocorreu com Madi, sua inspiração inicial foi uma paixão. “Comecei a compor com 'Deixe Que Ela Se Vá', recorda o compositor de 85 anos, que deu início à carreira como integrante do Trio Nagô.

Todas essas músicas vêm de mulher, né? Estava me referindo a uma ex-namorada e falei 'deixe que ela se vá'. Isso ficou na minha cabeça, daí começou a sair uma música que, no dia seguinte, já estava pronta. Acabou sendo gravada pelo Nelson Gonçalves.”

O compositor lembra que, em seus tempos áureos de fama, os direitos autorais lhe permitiram adquirir os imóveis que hoje garantem seu sustento.

É assim mesmo, quem está na mídia fatura mais. Teve época em que o hit parade era todo de músicas minhas. Eu faturava bem.”

Edson Menezes também enfileirou sucessos com seus sambas modernos, sincopados – muitos em parceria com Alberto Paz. “Zig-Zag” e “Deixa Isso Pra Lá” se tornaram símbolos da música de Jair Rodrigues, que fez gravações antológicas de ambos. Associado desde 1955, Menezes integrou os Partideiros do Plá e foi gravado por cantores como Elza Soares, Alceu Valença e Beth Carvalho.

Parceiro dele, Zuzuca do Salgueiro é outro que tem a história entrelaçada à da UBC. Há 47 anos na associação, ele carrega no nome a escola que adotou ao se mudar para o Rio, saído de Cachoeiro de Itapemirim (ES). E foi exatamente no Salgueiro que construiu alguns dos capítulos mais importantes de sua trajetória. Foi descendo o famoso morro da Zona Norte carioca que ele compôs seu primeiro sucesso, “Vem Chegando a Madrugada”, parceria com Noel Rosa de Oliveira. “Fiz muitas músicas no Salgueiro”, conta Zuzuca. “'Vem Chegando a Madrugada' fiz realmente voltando para casa, depois do samba. Composição é assim, coisa de momento. Às vezes vem da alegria, outras, da tristeza. 'Pega no Ganzê' (como ficou conhecido 'Festa Para Um Rei Negro', sambaenredo histórico da escola, de 1971) eu compus baseado na história (do desfile), com aquelas ideias todas na cabeça para transformar em samba. Ganzá é uma palavra que existe, ganzê eu inventei para ficar bem ali. A arte não tem muita explicação, não. Ela vem.”

O compositor conta que seus direitos autorais, hoje, vêm mais do exterior que do Brasil.

E certamente os direitos nacionais vêm mais no carnaval”, ele explica.

O mais velho entre seus colegas, aos 92 anos, Zé Menezes tem uma das histórias mais curiosas e ricas, boa parte dela vivida com a UBC, onde está desde 1952. Sua trajetória inclui uma apresentação, ainda criança, para o mítico Padre Cícero e a composição do famosíssimo tema do programa humorístico da TV Globo “Os Trapalhões”, além de passagens pela Rádio Nacional e pelo Quarteto Continental, que tinha em sua formação o compositor Radamés Gnattalli, bem como a criação do divertido grupo Velhinhos Transviados, que fazia leituras bem-humoradas de sucessos da nossa música, como “Fica Comigo Esta Noite”, de Adelino Moreira e Nelson Gonçalves, e “Quero Que Vá Tudo Pro Inferno”, de Erasmo e Roberto Carlos.

“Comecei a compor ainda criança, lá em Fortaleza. A primeira foi 'Meus Oito Anos'. Foi essa que toquei para meu padim Ciço. Não sabia nada de harmonia, mas ela tem uma sequência de acordes tão bonita que parece até que eu sabia”,

relembra, em sua fala humorada e cheia de energia. “Fui predestinado a ser músico. Com mais de 90 anos, ainda estou atuando, estudando e gostando do que faço.”

Seu olhar sobre a música e sobre a vida (“Olho para frente, porque andar para trás não dá... Só se for caranguejo”) guia também a avaliação que faz sobre a questão dos direitos autorais.

A UBC só melhorou, e muito, desde quando eu comecei. Já de cara fiz sucesso, e até hoje muitas dessas músicas ainda continuam me rendendo, como 'Comigo é Assim', 'Seresteiro' e 'Tudo Azul'.”

A UBC cresceu muito e se modernizou, consegue agilizar meus direitos no mundo inteiro. Alguns compositores do meu tempo reclamam. Mas o caso é que, muitas vezes, eles fizeram uma música de sucesso, recebiam bem por isso e se acostumaram. Mas é natural que o músico receba menos se suas músicas são menos executadas. E o tempo anda para frente. Antes, ganhavam-se direitos vendendo partitura. Depois veio o tempo do vinil, que era ótimo, porque a pessoa tinha que comprar, e não se podia fazer cópia como se faz hoje. Mas não tem como voltar. A evolução é assim.”

Tito Madi também prefere produzir. Ele tem um disco de inéditas na gaveta, pronto, composto em parceria com Gilson Peranzzetta. “Não consegui lançar, mas compus novas. O ritmo de produção é diferente do da juventude, quando era mais fácil escrever músicas. Mas tenho umas 20 inéditas”, conta o veterano, dono de uma grande energia que também se faz presente nos outros mestres. Zuzuca resume essa força:

“Compositor é um mensageiro. Esse negócio de fazer música é divino... É coisa de Deus.”