3 minute read

Distrito Musical

Como um grupo de bares e casas noturnas de um bairro em transformação fomentam uma cena pop-rock que, outra vez, volta a fervilhar na capital gaúcha

por_ Matheus Passos Beck ■ de_ Porto Alegre

Advertisement

No dia 20 de setembro, Filipe Catto desceu da sacralidade do palco e apresentou o espetáculo “O Nascimento de Vênus” no chão do Agulha, casa noturna inaugurada há cerca de um ano no 4º Distrito, em Porto Alegre. O show é uma experiência catártica de luzes e sons concebido pelo multiartista — que ficou mais evidente no amplo galpão com o cantor próximo do público. Uma cena e um cenário incomuns por aqui até bem pouco tempo atrás. E que diz muito sobre o novo momento musical que vai recolocando esta cidade, sempre ponta de lança das vanguardas do rock e do pop, de novo no centro da criação e da difusão musical nacional.

Filipe Catto: “A vida boêmia se desloca e faz com que a cidade floresça em outros lugares”

Filipe Catto: “A vida boêmia se desloca e faz com que a cidade floresça em outros lugares”

O próprio Catto comenta a transformação. Ele conta que se descobriu artista no Ocidente, bar fincado em uma esquina do tradicional bairro Bom Fim, em meados dos anos 2000. Nessa época de relativa decadência, a noite porto-alegrense se concentrava em bares acanhados e sufocantes da Independência e da Cidade Baixa.

Melancolia e esperança com o futuro da cidade são refletidas no novo EP da Alpargatos, “O Chão É Lava”

Melancolia e esperança com o futuro da cidade são refletidas no novo EP da Alpargatos, “O Chão É Lava”

Os novos ambientes, no 4º Distrito, são quase o oposto: grandes hangares abandonados em uma área com pouca vizinhança, onde a música vai soando noite adentro.

O 4º Distrito é uma região de 594 hectares que se estende pelos bairros Floresta, Navegantes, São Geraldo, Humaitá e Farrapos. É a porta de entrada e saída da capital gaúcha, seja pelo aeroporto ou por vias terrestres. Outrora setor industrial pujante, ele se degradou na segunda metade do século passado, passando a ser mais conhecido pelas zonas de prostituição e consumo de drogas. Porém, nos últimos anos, a vida cultural do lugar começou a mudar. Primeiro, iniciativas pouco articuladas entre si começaram a revitalizar o patrimônio histórico local. Depois, uma espécie de polo cervejeiro informal foi constituído ali. Porém, a transformação mais acentuada é a da cena musical.

“Em qualquer época de ruptura cultural, as coisas precisam migrar para outras áreas. Este momento de crise e de golpe está fazendo com que os artistas se reaproximem das pessoas, e lugares como o Agulha propiciam uma experiência mais visceral”, diz Catto. “A vida boêmia se desloca e faz com que a cidade floresça em outros lugares”, completa.

O tradicional OCulto Pub, por exemplo, mudou-se da Cidade Baixa para o São Geraldo no final de agosto. A exemplo do Agulha, não há um palco para as bandas. Elas se apresentam em formato circular, como em uma arena. Uma tradução da proximidade entre a nova cena e o público.

Afonso Antunes, vocalista da Alpargatos, é um dos expoentes dessa geração que vai fermentando novos sons a partir do Sul. Ele escolheu a zona do 4º Distrito para o lançamento do terceiro EP do grupo, “O Chão É Lava”, no qual expressa pessimismo com o clima político atual.

“O primeiro EP (Rodovia do Parque) era mais otimista. O segundo (Essa Cidade Cheia de Heróis) já é mais triste. E, no terceiro, paira a melancolia”, compara. “Porque, apesar de Porto Alegre estar cada dia mais dividida, ainda vemos um pouco daquela cidade harmoniosa. E fazer arte é uma maneira de tentarmos reconquistar o terreno perdido”.

No festival de reinauguração do OCulto, foram reunidas 16 bandas em três noites de som e diversidade. Entre as atrações, nenhuma simboliza melhor o atual momento do que a Gentrificators. O nome remete ao processo de gentrificação, fenômeno de transformação de um bairro ou região no qual um grupo social passa a ocupar espaços de outros grupos mais pobres.

Guitarrista e vocalista da banda lo-fi, Marcelo Conter se familiarizou com o conceito quando morou em Nova York, em 2014, durante seu doutorado em Comunicação. Ele se insere na cena pop-rock que fervilha outra vez a partir do 4º Distrito, mas alerta para o perigo de uma possível gentrificação.

“Os bairros (do 4º Distrito) estão recebendo o público de fora, mas que não modifica sua realidade. O que nos preocupa é como vamos lidar com possíveis loteamentos de locais onde moram famílias pobres e como evitar a especulação imobiliária”, descreve, na melhor tradição analítica, cheia de mensagem e política, do rock gaúcho.

Presente distópico é refletido nas letras da Gentrificators, quinteto porto-alegrense de lo-fi

Presente distópico é refletido nas letras da Gentrificators, quinteto porto-alegrense de lo-fi