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Novas trilhas da música

Cinco tendências que impactarão profundamente a produção, a distribuição e a arrecadação na nossa indústria

por_ Alessandro Soler ■ de_ Madri

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Michele Miranda ■ de_ São Paulo

e Lúcia Mota ■de_ Nova York

A revolução tecnológica que vivemos supõe uma transformação nos modos de produção, distribuição, apresentação e consumo da música cuja verdadeira dimensão, por ora, podemos apenas prever. Mas há caminhos de médio e longo prazos bastante claros. A música nas próximas décadas será majoritariamente criada e consumida num contexto digital, o que pensadores e criadores estimam que afetará até mesmo os shows como os conhecemos – um modelo de exibição que pode estar com os dias contados.

Mas não é a única mudança: a criação por algoritmos, ou seja, a partir da combinação de acordes e sons feita por um robô, já é realidade em projetos de corporações como a Sony e suscita debate sobre a quem pertencem os direitos autorais; instrumentos musicais materializados por impressoras 3D ajudarão a romper todas as barreiras da concepção sonora; os serviços de streaming, que deverão passar a produzir artistas, poderão reviver a era dos grandes selos; a internet das coisas multiplicará exponencialmente o consumo de música... mas também os lucros dos criadores?

Estudiosos, criadores, advogados e outros especialistas opinam sobre o tema nesta edição especial da Revista UBC que inaugura uma nova fase da União Brasileira de Compositores em seu próprio salto para o futuro.

Na página 6,saiba mais sobre as importantes transformações pelas quais a UBC está passando.

Eu, (compositor) robô

Sempre se pensou que a arte, tão subjetiva, tão inerentemente humana, não poderia prescindir de pessoas. Mas aí veio a robótica, e a criação musical por algoritmos se tornou já uma realidade em projetos do laboratório de ciências da computação da Sony, em Paris; da companhia Amper Music, de Nova York; da startup londrina Jukedeck; do aplicativo de elaboração on-line e instantânea de música eletrônica Mubert; ou de experimentos acadêmicos diversos. A lógica é simples: a mistura randômica de acordes, timbres, tons de vozes por um software pode gerar um conjunto compreensível e... “artístico”. No fim do ano passado, a Sony lançou “Daddy’s Car”, uma música inteira criada por um programa informático, que, para além do debate estético ou artístico, traz outro, mais palpável: a quem pertencem os direitos autorais de uma “obra” assim? Se os acordes usados na “reconfiguração” vêm de outras canções, inteiramente humanas, seus criadores ganham algo?

“Evidentemente deveriam. O problema é provar o uso. Os manipuladores do software podem alegar que criaram tudo do nada, o que, se fosse verdade, lhes garantiria totalmente os direitos de reprodução e execução”, afirma o advogado espanhol Joaquín Muñoz, do escritório madrilenho Ontier, especialista em Direito ligado a novas tecnologias. Ele prevê a criação de sistemas algorítmicos para varrer as criações robóticas em busca de acordes pré-existentes, outros sistemas para analisar o comportamento do consumidor e gerar novas músicas a partir do que “está mais quente” e, não menos importante, o surgimento de novas leis para embasar as previsíveis disputas de autoria.

O compositor soteropolitano Lucas Santtana, antenado em novas tecnologias, arrisca: passado o obaoba, a criação randômica tende a perder a graça. Ou, ainda, tornar-se só mais uma possibilidade: “A tecnologia sempre existiu. O que é novo é o pensamento de que tecnologia são só máquinas. As ferramentas irão sempre mudar, cabe à criatividade de cada músico fazer o que quiser com elas.”

Ouça mais! “Daddy’s Car”, a primeira canção completa criada por algoritmos. goo.gl/7cKtWF

Minha música toca na geladeira. O que ganho com isso?

A internet das coisas deve colocar músicas – e produtos audiovisuais em geral – na geladeira, nos carros, nos óculos 3D, em objetos variados ao nosso redor. E isso ocorrerá, estima-se, numa questão de dez anos ou menos. É lógico supor que os compositores terão mais chances de ganhar, certo? Não se as remunerações continuarem tão baixas. É o que diz Rick Carnes, presidente da Composer’s Guild of America, a poderosa associação de criadores estadunidense. Ele aposta no conceito de direito moral ao criticar os maus contratos impostos aos artistas pelos serviços de streaming – os maiores distribuidores do nosso tempo: “A pedra angular da relação entre criadores e distribuidores deveria ser o direito moral dos primeiros a uma remuneração melhor, mais condizente. Temos o direito inalienável de viver do nosso trabalho.”

Carnes avalia que o aumento da escala poderá trazer ganhos maiores a quem vive de música, mas insiste em que somente a mudança de mentalidade das plataformas de distribuição permitirá a revalorização da profissão de compositor.

Maurício Bussab, sócio-fundador do selo paulistano Tratore, vê um panorama menos escuro: “Se a arrecadação é baixa é porque o número de assinantes ainda é pequeno”, opina. “A pergunta ‘como os artistas estão sobrevivendo?’ é simples de responder, e a resposta é sempre a mesma desde que existe música gravada: os artistas recebem de uma dúzia de fontes de renda diferentes, como shows, aulas, merchandising, editoras e, sim, do fonograma. O total arrecadado pelo fonograma caiu neste novo mundo de internet, mas continua sendo significativo dentro do streaming. O aumento de escala beneficiará todo mundo”, sustenta.

Em 2016, os serviços de streaming musical superaram, pela primeira vez, o número de assinantes da Netflix, maior serviço de vídeos do mundo. Em um ano, Spotify, Deezer, Apple Music, Napster e Tidal, principalmente, tiveram um aumento espantoso de 48% na sua base de assinantes, contra 24% do Netflix. Para os próximos anos, analistas preveem que a adesão de assinantes reduza muito o problema da pirataria e que o próximo desafio da indústria será remunerar melhor o artista.

Veja mais! Rick Carnes fala (em inglês) sobre mercado e streaming. goo.gl/MLTQjG

“Artista exclusivo Spotify”

De maneira análoga ao de serviços de streaming de vídeos, as plataformas de streaming de músicas devem passar a não só oferecer conteúdos exclusivos como também produzi-los. Especialistas preveem, com isso, uma espécie de revival da era dourada das grandes gravadoras – mas com a sombra da má remuneração por parte das plataformas que dominam o mercado contemporâneo.

“Estar sob o guarda-chuva de uma grande major, mesmo que seja um serviço de streaming, pode ser vantajoso para os artistas, pela grande soma de dinheiro em produção e promoção do trabalho. Mas representaria o mesmo desafio de conseguir ser visto em meio à multidão. E, pior, estar sob as regras de empresas que jogam forte, impõem contratos duros e limitam a distribuição, à medida em que tiram o criador dos serviços rivais”, opina Jonathan Ostrow, pesquisador associado ao Music Think Tank, um centro de estudos da Universidade de Berkeley (EUA).

O francês Jeremie Varengo, dono da JTV Digital, um agregador digital, crê que Spotify, Apple etc. teriam de ser muito engenhosos na hora de passar a concorrer com as majors atuais sem parecer querer canibalizá-las. “Alguns desses serviços inclusive têm participação societária de gravadoras. Porém, Spotify e outros têm a grana, o mercado, os usuários. Um artista exclusivo de um serviço desses teria um nível de promoção do seu trabalho como há muitos anos não vemos.”

Leia mais! Conheça um estudo sobre as distorções na era do streaming. goo.gl/LtGjr1

E até penico dá bom som...

As impressoras 3D podem revolucionar a maneira de compor e tocar não só por permitir o fácil acesso a instrumentos já existentes. Elas podem ser os meios de elaboração de instrumentos não antes imaginados.

“O consumo hoje tende a ser voltado para a exclusividade. Construo sintetizadores analógicos, que eram populares nos anos 60, mas a tecnologia os baniu. Há cinco anos, eles voltaram com tudo. Os artistas me procuram porque querem ter seus instrumentos exclusivos, personalizar o som. As impressoras 3D serão muito úteis para isso”, prevê o associado Arthur Joly, produtor musical.

A equipe do professor Olaf Diegel, da Universidade de Lund, na Suécia, conseguiu desenvolver uma impressora tão acurada que imprime instrumentos milimetricamente adaptados aos músicos. “A forma das guitarras que conseguimos imprimir é incrivelmente complexa. A música não será mais a mesma”, prevê.

Ouça mais! Os sintetizadores personalizados de Arthur Joly. goo.gl/6CiOQF

O show é lá em casa. Mas pode “trazer” quem quiser

A transmissão ao vivo de shows em lugares alternativos para uma plateia potencialmente global já é realidade. Mas não poucos especialistas preveem a disseminação da prática como uma forma efetiva de o artista lucrar – recebendo parte dos ganhos com anúncios exibidos nas transmissões, por exemplo. Poupar custos com deslocamento e logística também é vantajoso.

A forma mais rápida e direta de fazer isso seria por meio das transmissões ao vivo em redes sociais, que vêm ganhando cada vez mais qualidade de stream. Youtube, Facebook, Twitter e Instagram já abrigam eventos desse tipo, e a estimativa é que o aumento nos próximos anos seja exponencial.

Outra alternativa são plataformas dedicadas a transmissões que permitem aos artistas receber doações e contribuições do público. No Brasil há duas grandes delas, Clap.me e Netshow.me. Rafael Belmonte, fundador da Netshow. me, vê possibilidade de grande expansão no modelo a curto e médio prazos. “Em breve, com óculos de realidade virtual, será possível que o espectador tenha em casa a mesma experiência de uma pessoa que está no Maracanã ao vivo. Para o artista, a ideia é baratear esse tipo de transmissão e melhorar a monetização, a fim de que os independentes também possam mostrar seu trabalho assim.”

O que quer que aconteça com o modelo de shows presenciais, uma realidade é inegável: a tecnologia bagunçou as regras anteriores do mercado, deu maior poder ao consumidor (e aos prestadores de serviço da era digital), enfraqueceu antigos atores que antes ditavam as regras e abriu um mundo de possibilidades de criação e distribuição. Como em todas as grandes mudanças, haverá quem se apegue ao passado e fique para trás. E haverá quem se adapte, aprendendo a se mover neste terreno ainda incerto e seguir adiante. Em que grupo você está?