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'A graça é não saber o caminho'

Turnê, espetáculo infantil, livro, saraus, composições, show-homenagem, haicai, viagens, vida on e off-line: o mundo de coisas que move o mundo de Adriana Calcanhotto

Por Leonardo Lichote, do Rio

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Adriana Calcanhotto gosta de acordar com a luz do dia e de fazer as coisas numa ordem que segue mais a intuição que um método determinado. Um desejo de estar próxima ao “tempo da natureza”, como ela define. Mas nada de paisagens serenas clichê. A natureza de Calcanhotto é a natureza mesmo, real – incessantemente produtiva, em ebulição sob a capa de harmonia. Sob a voz tranquila e a conversa leve, a cantora – que, avessa ao ritmo frenético da internet, escolhe estar mais off-line do que on-line – sustenta um vulcão. Atualmente, circula com a turnê “Olhos de Onda”, prepara um show em homenagem a Lupicínio Rodrigues, estreou sua versão de “Pedro e o Lobo”, de Prokofiev (um espetáculo que inclui a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, arranjos de André Mehmari e canções de Partimpim, persona da artista dona de uma obra para crianças)... E encontra tempo para compor. Além disso, cumpre uma agenda de eventos relativa a dois livros que idealizou e compilou: “Antologia Ilustrada da Poesia Brasileira: Para Crianças de Qualquer Idade”; e “Haicai do Brasil”, que lançou na última Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Soma-se a tudo a ideia de aprender a tocar violão sete cordas. Natureza selvagem.

Como vai a turnê de “Olhos de Onda”? E como o show e sua percepção sobre ele mudaram ao longo da estrada?

A turnê vai de vento em popa. É uma delícia fazer esse show, tenho gostado mais e mais. A turnê vai até março do ano que vem, acaba em Lisboa, na sala Gulbenkian. Tem uma coisa interessante nesse show: ele se impôs para ser feito em teatros, tem uma dinâmica que faz com que não se dê em outro tipo de local. Perde muito, não imprime o que ele é, se não for assim. O rádio, o momento do acaso, o que está tocando na hora. Já fiz muitos shows de voz e violão, em lugares abertos, para 10 mil pessoas – e acontece. Mas esse show não funciona. Ele tem um habitat natural, o teatro. De todos os shows que fiz, com pensamentos, intervenções e conceitos teatrais, é o mais teatral. E se revelou assim para mim ao longo da turnê.

Essa parte do rádio - na qual vocês põem no áudio uma rádio do local, ao vivo, interferindo no show – deve gerar uma série de surpresas curiosas, não?

Muitas vezes acontecem coisas tão incríveis, tão inesperadas, que nenhuma cabeça poderia inventar. É tão surpreendente que minha tendência é parar para ouvir aquilo, e eu não posso, tenho que focar em cantar e tocar. Em Lisboa, tocou Amália. No camarim a gente comentou que as pessoas devem ter achado que era uma gravação, uma referência óbvia que estávamos usando (risos).

Sim, algo como lá vem a brasileira que só conhece Amália fazer um agrado...

Isso! (risos)

Como está a recepção ao “Haicai do Brasil”?

O livro foi recebido com um encantamento enorme. Até pela potência mesmo que o haicai concentra em si, aquela hipercondensação de poesia. Na verdade, a reação é um reflexo do que é, de o haicai ser a forma poética mais praticada no mundo. As pessoas têm adorado o livro, e as perguntas que elas fazem são de uma pertinência... Você percebe que o haicai está na vida das pessoas, elas conhecem, não é um assunto tão distante. Você nota que umas têm ligação com Mário Quintana, outras, com Millôr, por ele ter estado na imprensa... Mas o que chama a atenção delas é quando percebem o arco da história do haicai, de onde ele vem, até essa coisa de não se saber de onde ele vem ou quem foi o primeiro a fazer, as diferentes correntes... Tudo mostra que tem uma história acontecendo, como um poeta influencia o outro. Mesmo eu, quando fui me deter, me dei conta dessa trajetória muito viva. Surpreende mesmo. E continuo tendo uma acolhida muito boa para a antologia (“Antologia Ilustrada da Poesia Brasileira: Para Crianças de Qualquer Idade”), que está na segunda edição, agora completa, com poemas de Manuel Bandeira e Cecilia Meireles. Tenho sido muito chamada para falar dela.

E “Pedro e o Lobo”? Como foi a experiência com o encontro de Osesp, Mehmari, canções da Partimpim?

Fiz duas apresentações, 6 e 7 de setembro, na Sala São Paulo, e depois no POA Em Cena, em Porto Alegre. Foi uma liga maravilhosa, foi tudo muito mágico, quando juntou orquestra, arranjos, regente... Fizemos ensaios abertos em São Paulo antes da estreia, e a cada sessão foi melhorando. Nos primeiros ensaios eu ficava olhando a sala, depois olhando o olho das crianças... Perdi várias entradas (risos).

Você viu outras versões de “Pedro e o Lobo”? Como foi seu olhar sobre a obra?

Não cheguei a ver o que Regina Casé fez na Quinta (da Boa Vista, no Rio de Janeiro), mas ouvi tudo que pude. Quis manter o mais próximo do original. Uma das qualidades da peça, o que a torna uma obra-prima, é que Prokofiev escreve pouquíssimas frases para contar a história. Isso dá espaço para a imaginação das crianças. A história não é mirabolante. Tem o lobo, o herói, a voz da razão que é o vovô, tem o cara mau. Não sei russo, mas escolhi uma tradução que parece ser literalmente a do russo para o inglês e passei para o português. O objetivo de Prokofiev é contar a história, mas também apresentar a orquestra para as crianças. Isso é o mais importante.

Você está compondo?

Um pouquinho. Estava compondo mais antes de estar superdedicada a “Pedro e o Lobo”. Agora ainda não voltei totalmente porque estou começando a me dedicar a um concerto que farei no dia 4 de dezembro só sobre Lupicínio Rodrigues.

Como será esse show?

Montei uma banda para isso, terei a participação de Arthur Nestrovski. Estou agora na árdua tarefa de tirar canções do roteiro. Cortar as minhas é mais fácil (risos). É engraçado porque estou revendo minha relação com Lupicínio, a confirmação dessa coisa de que Lupicínio para mim sempre existiu. Tive muitos impactos, com vários compositores, de pensar “meu Deus, de onde saiu isso?”. Mas com Lupicínio nunca teve isso. Esses dias, lá em Porto Alegre, me falaram de alguém que disse que Lupicínio seria nosso Shakespeare, porque está tudo ali. Fiquei pensando, de certa forma é isso mesmo. E talvez a sensação de que ele sempre existiu para mim talvez não seja só por eu ter nascido ali. Talvez sempre tenha existido mesmo, nesse sentido shakespeareano. Estou pensando o show dessa forma. Mas é difícil. Porque fiz uma primeira lista obrigatória. E aí depois fiz uma lista de mais 40 que também são obrigatórias. Não tem grandes pinçadas a fazer.

Então você está muito voltada para esse show, sem tempo para compor...

Tem esse lance que o Gilberto Gil fala, que quando você abre uma canção, quando você sonha em fazer uma canção, você fica meio refém daquilo. Até que aquilo acabe você precisa estar à disposição. Fazendo tanta coisa, às vezes eu fecho essa porta para não me atrapalhar. Antes de “Pedro e o Lobo” eu estava conseguindo conciliar turnê, os eventos dos livros e compondo algumas coisas. Estava musicando uns poemas, brincando com o violão de sete cordas que comprei. Aliás meu gato o quebrou. Ele faz strike, joga boliche com meus violões, numa dessas quebrou a cravelha da sétima corda. Mas, como disse, andei musicando uns poemas, um do Waly, um da Alice Sant'anna chamado “Rabo de Baleia”. Gosto muito de compor, ainda mais assim, sem um projeto, sem estar pensando num disco. Gosto dessa coisa solta, acho o outro jeito, “estou compondo para o meu disco”, aterrorizante, paralisante.

O que a move para compor?

A vida. Você não sabe o que começa o processo. Você lê uma frase no jornal, bota o jornal de lado, pega o violão, toca meia música que existe, e dali sai uma coisa. Estava lembrando do jeito que foi feita a canção “Olhos de Onda”. Acordei, liguei o laptop, vi um vídeo daquela banda Tipo Uísque pedindo patrocínio, grana para fazer o projeto deles. Peguei o violão e escrevi “Olhos de Onda”, que não tem uma ligação direta com isso. A graça é não saber o caminho.

Você gosta de falar de suas canções?

Não tenho problema em falar delas, às vezes eu só não sei o que dizer. O mais importante, que é como uma canção nasce, não dá para saber. E também não importa saber. Muitas vezes as pessoas fazem comentários sobre canções minhas que eu nunca imaginaria. Mas, se está certo ou errado, não sei dizer. Uma vez, numa entrevista de lançamento do “Senhas”, a jornalista disse: “Por que você diz numa de suas canções: 'eu hospedo infratores e bandidos'... Eu respondi: “Não, eu canto 'banidos'”. E ela: “Não, 'bandidos'” (risos).

Como é sua relação com as redes sociais, a internet?

Enjoei da internet, estou mais desconectada do que conectada. Já andei mais em internet, hoje uso mais como ferramenta de pesquisa mesmo, das minhas maluquices, dos meus assuntos. Como essa coisa do haicai, que é muito viva. Li estudos literários na internet sobre o assunto, por exemplo. Mas hoje eu desconecto mesmo, fisicamente. Só entro na internet para olhar algo. Não fico o tempo todo on-line. Porque existem as duas possibilidades, estar ou não conectado, mas o mundo conectado vai levando a gente para uma única opção, que é estar o tempo todo on-line. Para mim talvez seja mais fácil me desligar porque vivi um tempo em que não se estava conectado. Isso parecia uma possibilidade maravilhosa que só meus netos viveriam. Então acho que estou totalmente no lucro de viver isso também. Mas, por exemplo, não uso mais relógio. Acho que ficar muito escravo do tempo é ruim. E na internet você fica escravo dos segundos, se aquilo não baixa na hora você começa a se frustar. Até tenho redes sociais no meu celular, mas não olho. Meu celular funciona como telefone. Estou gostando mais de viver num timing mais perto do tempo da natureza, fico mais relax. Acordo com a luz do dia... Quero dizer, não tenho muita escolha, porque a vida na estrada é o exército, você acorda às 5h da manhã, essas coisas. Mas a minha preferência é acordar com a luz do dia, fazer tudo cedo. Tudo que fazia antes vou fazendo mais e mais cedo, ficando mais e mais diurna. Gosto da luz do dia. Vou fazendo meus compromissos sem muita ordem, não sou metódica.

De onde veio essa constatação de que estar off-line seria bom para você?

Tenho tanto compromisso que, se eu começar a pensar dessa forma opressora, com esse tempo opressor, não vou curtir as coisas que eu tenho para fazer. Faço todas essas coisas ao mesmo tempo porque eu acredito nelas, eu aceito compromissos porque são coisas bacanas de fazer, que eu quero fazer dando tudo de mim. Acho que me manter desconectada, com um tempo mais artístico, mais elástico, me deixa mais feliz.

Você tem um álbum favorito?

Não. Acho que, excetuando o primeiro, que é um disco que não tive muita vontade de fazer, eu tive uns desejos para cada um dos álbuns, e a sensação que tenho é que dei tudo de mim neles. Entre acertos e erros, tenho a sensação de que fiz tudo que queria ter feito ali. Nunca penso “putz, devia ter dado mais de mim”. Entrevistei o Arnaldo Antunes dia desses, e ele me disse isso mesmo: “uma vez que as canções, os discos estão no mundo, não tenho o menor interesse no que será feito, as coisas são reeditadas, e não tenho a menor vontade de olhar para trás, corrigir nada”. Tenho essa sensação também. Logo que uma canção minha sai, aquilo para mim está no mundo, já não me pertence. Se estou no palco vendo um set list de canções, e tem uma do Chico, outra do Caetano, uma minha, aquilo é uma lista de canções. Não faz diferença ser minha.

Por que você exclui o primeiro disco?

Aquilo foram circunstâncias, eu realmente não estava pensando em disco. Estava chegando de Porto Alegre, meu foco era estar no palco, fazendo performances... Fazia umas coisas para provocar vaias, eu estava nessa criancice (risos). E eu não tinha adentrado o mundo do estúdio, aquilo não passava pela minha cabeça. Mas, ao mesmo tempo, quando cheguei ao Rio, tinha convite de quatro gravadoras. Não era o momento de dizer “não quero isso”. Mas também não tinha o desejo verdadeiro, interno, de fazer um disco. Essa é a diferença do primeiro para o segundo, quando disse “agora vou sentar e fazer meu disco”. Apesar de muita gente gostar desse disco (o primeiro), para mim falta isso, a vontade de fazêlo. Ele tem provocações que eram feitas no palco com muita ironia, mas que não imprimiram no disco. E teve um corte também da banda, uma banda que já estava tocando aquele repertório comigo e que foi dispensada para que entrasse uma banda profissional.

Mas você ouve seus discos?

Não ouço mesmo. Para que ouvir, se posso ouvir coisas novas?

O que chama sua atenção nas coisas novas?

Me interessa sempre o que está acontecendo. Mas não estou atualizada, até pelo volume de trabalhos. Tenho gostado de ver uma movimentação no funk, tentativas do funk de chegar mais perto da poesia. Tem uma menina que ouvi há uns anos, lendo “O Fingidor” (“Autopsicografia”), do Fernando Pessoa, sobre um batidão. Esse rumo é interessante. Adorei o disco novo do Gil (“Gilbertos Samba”, sobre repertório de João Gilberto). Aí dizem: “Mas é imitando João Gilberto...”. É, sim, mas qual o problema? (risos)

E o terceiro disco de sua trilogia marinha, depois de “Maritmo” e “Maré”? Vai sair?

Ele existe. Se eu vou fazer ou não, é outra história... Agora vou continuar com a turnê “Olhos de Onda”. E não vou deixar de me dedicar a “Pedro e o Lobo”. Em fevereiro vou fazer o espetáculo na Sala Gulbenkian, em Lisboa. E é possível que faça no Rio em outubro, talvez em dezembro. É um projeto de que estou gostando muito, devo fazer quando as orquestras me chamarem. Em três dias de outubro de 2015 faremos de novo na Sala São Paulo, provavelmente registrando. De composição, tem umas duas músicas nas quais estou trabalhando, umas duas ou três que mandei para a Gal (a cantora está escolhendo repertório de seu novo disco). Esses poemas musicados estão comigo, um do Waly, um da Alice e um do Omar (Salomão). Fiz também o sarau com a Dona Cleo (Cleonice Berardinelli) no Real Gabinete Português (no Rio), só lendo Mário de Sá- Carneiro. Já tinha musicado algumas coisas dele, Dona Cleo pediu para musicar outras... Foi maravilhoso. E ainda tem o show de Lupicínio, a turnê de “Olhos de Onda”, a turnê dos livros... É bastante.