tertúlia

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tertĂşlia querino



e fazemos poesia porque antes fomos fruto mastigado ao ventre dela (em Serendipite, poema de Caio Resende)



(só os encontros são reais) arre, esses dias de extremo alvoroço! quando vamos dançar para a nossa liberdade, quando vamos celebrar ao que somos!? porque não somos esta máscara de orgulho que costumamos vestir, não somos o recato de nosso cotidiano. não , somos mais além: somos sangue e músculo, sangue e músculo e suor – não a forma, mas a experiência: nossos corpos cruzando a linha de nossas vidas feito a verdade que esquecemos de acreditar.


dos começos muito precisos o corredor é tão estreito quanto as ruas de nossa fuga, por onde cantaremos até o blues bater reflexos vermelhos em nossos olhos – eis o momento mais exato, compreendo tudo: o bar fechado e aquela fumaça de cigarro subindo quarta ou quinta, eu acho uma cachoeira me visita a memória aquele bichano uma onça aquela noite (esta) uma descoberta sem qualquer reação apenas as teclas do piano e eu sei eu sei que não dormiremos até amanhã então me beije uma vez mais sob esta chuva de lá fora – bem dentro eu me entrego sem reserva.


cenas da criação todas as coisas nesse instante agora todos os versos de um poema todas as manhãs de nossa partida e os paraísos descobertos para a nossa mais perfeita compreensão de tudo – aquela trilha, aquela pedra onde deitamos nossos corpos em silêncio na plenitude da nudez familiar uma queda d’água sobre meus ombros e você perto eu encontrava razões e logo as descartava todas você apenas se estendia ali agora.depois nossas pernas e pés encruzilhados em liberdade atávicos, mas sem rastro de sentença alguma apenas o acontecimento – saciedade


todo rastro é uma sedução definitiva, ou Rituais edgard neto, querino

Esses telhados que nos inundam a vista fazendo crer em tudo o que é dito através desses olhos que a noite esculpiu; eu não teria muito o que fazer – haverá para sempre esses belos olhos para a noite a mão estendida

o que se faz

quando ninguém mais vê o que talvez seja apenas isso café posto à mesa uns versos escritos na expectativa do que sucede as luzes acesas canção uns passos que –


e então o silêncio) é a mão Aqueles olhos sempre imersos, aspirados na teia que tece branca a vida do outro lado a dizer o que não se diz a esquecer também a não saber a se deixar levar, porque é assim que se faz é assim que se quer o desejo a escolha o alcance a beirada e então o silêncio) é a mão ESTENDIDA


na praça da pedra, arespeito do candeeirocafe caio resende, frank morais, querino

pois a inocência só é bela quando não há nada para além do momento, quando os corpos povoados de presença reinventam a própria pele na orgia; outra maneira de sentir, uma outra maneira do sentir: o conhaque mais forte no peito cigarros queimando nos cinzeiros da memória conversas que respiram povoadas de ausência as paredes retorcidas nesse estranho novelo de espelhos dilacerados quando os interditos já são claros demais para falarmos enquanto a Pedra povoa nossas almas de peito inflado comboio de apontamentos desconhecidos – sê, candeeiro, feito a Hercílio Lima: alma extraviada no coração de Conquista – tudo isso sussurros do que ainda não dizemos do que iremos dizer quando (os passos tremendo ante esses estranhos rios de orelhas profundas e metais submersos –


paisagem estendida por sob os cacos de nossas unhas à luz de desenhos opacos ao entardecer – leituras descortinadas entre um trago e outro enquanto um tinto galga em nosso sangue uma revoada de anjos trôpegos em sua eternidade).


que toda a noite te torne humana: obra diego oliveira, platini, querino

Esses traços que nos entregam à vista essas questões de descoberta e companhia essa fidelidade de um tinto compartilhado a mão estendida, um cigarro aceso (um maço inteiro numa manhã de abril) conversas tolas sobre alguma consciência que talvez nos falte agora a exatidão de poemas mal escritos e alugueis atrasados o pó estendido através de prestações desperdiçadas a cor por entre as frestas de um sonho sobre como a noite vai desenhando os encontros e como tudo isso é diferente do resto, vozes contra o vidro embaçado – daqui a pouco a chuva irá nos atrasar mais uma vez – e o que dizer da estranha disposição de tudo da necessidade de nos mantermos vivos dessa absoluta presença do vazio gestos perdidos fazendo sombra no chão molhado em contraponto à luz do poste que denuncia aos míopes se a chuva ainda está ali ainda com o reflexo do desprendimento


rabiscado em papel manteiga

desde que reviva intensa I : esse blues vai se arrastar até a noite não ter fim, você me diz mas noite já não é então respeite as bitucas pelo quarto e o gosto que fica na espreita; traços de força duma fome que ainda é essa canção que apenas a manhã traz quando a cada passo é preciso dizer amém, salvação o fato de apenas lá e o que sucede a tudo isso o corpo ainda


sobre uma tela de rothko (ao som de algum Tomasz Stanko)

assim que o corpo penetra o silêncio logo atrás da porta há todo o instante indesculpável e verdadeiro absurdamente real a sequência dos fatos, a saber: a silhueta que se move no escuro rastando entre saliva e suor não diz mais que a presença interminável de exatidão e poder: sabedoria e música ancestral, geme a aliança – para apenas ser não é preciso muito: basta –


(a partir de um retrato da moça) os caminhos já conhecidos são feitos de calma e uma leve paixão por tudo o que ainda permanece: em teu corpo eu vejo desejo, há essa fala de multidão permeando tudo – eu te observo da janela, de onde a cama está impregnada de possibilidade, cheiro e prazer, suor: meu corpo descansa ao teu (mas uma canção nos desenha num entorno de samurais em pleno reconhecimento – não estaremos a salvo até a manhã)


... O outro, como uma arte inquieta e imprevisível, como o próprio futuro, é um mistério (num desses ensaios de Z. Bauman) e assim, talvez as cortinas finalmente revelem as estranhas e, por isso, belas formas de vida e o desespero à beira de quase e tudo entre uma coisa e outra, imerso Intermezzo até nos atentarmos a esse sol, o chão cor de poeira: a que estranha festa me convida, minha cara? não sei mais das respostas que procuro, das vontades que atravessam ( os detalhes todos, tão irreconhecíveis que confundo o meu nome na saída)


mais um pouco essas paredes desabam tigres soltos na sala desenhando essas vestes de torpor e loucura como se fosse possĂ­vel estamos aqui ĂŠ isso


planos de sequestro caio resende, ian c.lima, querino

te conhecer envolve perigo: tua presença mastiga o cristal e o levantar de templos, o espelho humano de abraçar porvires – que cristais são estes, intocáveis, que tu mastigaste com presas de suavidade, que me tentaste contra o peito num ato de liberdade? a árvore do bem e do mal te chamou, bossa nova, e os pêlos de meu corpo louvaram aos céus ( pois mesmo se os mares da saudade me afogassem o coração, eu seria ave na língua a oscilar nesse aberto estreito: ahh desce mais e me seja pés descalços na areia da praia: em meu peito, mulher, há uma fome de nação.


(chegando a ser dia) pablo luz, querino

ar de madrugada nas mais azuladas sensações de seus bocejos em reverência, o motor para a máquina do mundo para estamos ali estamos todos ali e nada mais nos convém estamos sós e a primeira brisa da manhã o mar inteiro sob nossos pés messiânicos eternidade e eternidades conhecemos infinitude saciedade de nossas cargas sedentas bastante apenas no aprofundado pisar de areia apenas a brisa conhecemos e eu sou somos num azul sem horizonte o mar


(foi ontem) Eis o lugar onde poemas são escritos entre corpos espalhados pela casa as paredes caindo e a mão estendida a tocar o outro lado onde sabemos muito bem quem somos num território de tamanha presença essa noite comove e há tantas canções por aí quem sabe se sobreviveremos



Publicado em agosto de 2012 (1ª edição, ebook) Capa, fotografia: giselli moreira

candeeirocafe.wordpress.com


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