o outro lado da chuva

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o outro lado da chuva caio resende



Eu era um segredo de lua tatuado no zinco



(nervura)



Pedra, vidraça (a partir de um retrato de Arthur Omar)

Em pleno abandono – só os olhos encharcados de luz – veste teu riso arde o ritual em que a lagarta se liberta: ) não te encolhes mais para aquém do antigo espelho ( passa o teu batom e é um pouco feito sangue que se expulsa das artérias Existe algo por surgir no rebentar de cada gesto Uma paisagem de folhas banidas extrapolando a galharia E até a própria lua que urina a tua face tem consigo a pretensão de uma pedra


(e agora aqui)

devo beirar essa esfinge e seu silêncio, beirar como toda essa areia que aos poucos se distingue e dissolve, beirar como quem beira, ao indissociável e ao amargo de cada manhã. devo beirar a minha margem, nadar o vapor da pólvora — esse útero de chamas de cavar os nossos poros. devo cravar meus pés com mais força ainda nesse chão de lagos sem fundo, nessa sarjeta e luz de poste que abriga o último cravo da constelação de tua ausência. devo percorrer cambaleante o cume sonoro da minha angustia e cavar com minhas unhas o asfalto dessa noite. devo cagar a minha estirpe com longos braços de descuido, ancorar toda vertigem num caule de graúnas cegas miseráveis. devo viver só mais um pouco, matar só mais um pouco, calar nas filas a minha agudeza, rir-me por dentro, com estardalhaço, de tudo que é frágil, vil e dócil. devo beirar a voragem dessa casa, violentar o meu abrigo reconhecer a tua espécie no ranger de cada víscera. devo morrer a minha morte sem outro gênio de mil braços


capaz de agarrar a hora certa, ou queimar o meu esquife no labor do teu sorriso — queimar o meu esquife no labor do teu sorriso. devo andar com minhas manhas mais um tempo; erotizar a tua fala desprovida de desejo como quem arranca dessa vida o que dela não é sopro. devo voltar naquela tarde — dia da infância — e comer a mesma lama uma vez ainda ou socorrer cada afogado preso ao espelho estático de um rio ou ejacular as minhas dúvidas para o escuro de teus olhos ou mesmo, agora, acordar a tua cama de lençóis irrevogáveis ou circundar o raio de teu seio junto à prece de um louco ou esmurrar o meu reflexo na parede mais escura ou num desajuste subcutâneo batizar as tuas unhas com meu sangue devo lamber até o choro ( libertar antes o choro) em cada nuvem constipada devo sentir a madrugada na gagueira de meus ossos


Evoé

Nada está perdido! O azul do sol nasce para dizermos "o azul do céu" – tudo se debruça aos olhos! Numa orgia de vida a morte é uma invenção barata, e só morre quem vive de olhar para ela. A aranha fia a sua teia para a mosca debater-se inútil, no entanto não existe a morte duma mosca a debater-se. Toma teu vinho, fecha teus olhos: estar vivo é embebedar-se de tudo!


Pássaro turvo Uma face de clown te mira do escuro – sem sorrir-te, porém E caminha com teus passos E uma paisagem de lodo se desprende da brasa dum poste (cavalos de sombra amputados no tronco, metamorfoses em mulas-de-fogo e medo infantil) Povoado de escassos acenos, o cérebro urgindo nos anfiteatros do tempo as ilhas de fogo dos amores perdidos, com o teu caminho num lance de dados, o céu palafitado de nuvens em ira, todos os teus desejos são bonecos vodu espetados de estranhas carícias; intermezzo de solidão compulsiva e caralhos turgescentes reduzidos a pó Sobre o pavimento enlouquecido, segues com teus passos de coragem


e acendes o teu Cigarro num gesto impreciso Segues com teus passos de coragem num gesto impreciso É madrugada! Tua fome de sentido fora enterrada junto a um cadáver de filho As adolescentes não rogam mais pela dureza em teu nome, os pederastas fugiram dos banheiros públicos, a coriza de tuas narinas noturnas vence o roxo limite de teu sonho E andas com teus passos trêmulos, num descompasso de ternura E tuas mãos tateantes mastigam folhas de absinto Homem bêbado, tua chaga é a luz de algum meu verso, teus anseios eu conheço bem ou quase-nada, de ter cavado na madrugada, tanta vez, um corpo frio e sem nome


Quantos conhaques apertados contra o peito, quantos baques esfolaram-te os joelhos, engendrando dores recebidas com sorriso Há vestígio de cabeças esmagadas habitando sob a dispéptica paisagem dos bueiros, engravatados que se molestam com canetas enquanto noivas desafiam a gravidade, há doentes mastigados em espera, genitálias jorrando o pus dos moralistas, papagaios enterrados nos quintais da obediência enquanto a vida persiste em coroar a natureza Mas tu, pássaro turvo, homem bêbado, com teu rim transplantado por engano, com tuas tíbias e costelas fraturadas; tu, com teus passos de vexame, pouco sabes disso tudo que há no mundo, belo que tu és – com teu fígado poente e cigarras ruidosas nas pálpebras do sono, por onde agitas a caveira, desvirginando a praça pública


com teu mijo soberano: nenhuma inocência te pôs menor ou maior que o instante! Assim como o circuito das pastagens luminosas ocultado por estúpidos acenos esculpidos nas usinas, e como epígrafes do ócio suicida que se atira das manchas de luz dando vida a tudo que existe, imbuída nas horas secretas – e pelos carrosséis delirantes de neblina – a tua imagem alucina a mandrágora do tédio Quantos conhaques apertados contra o peito Quantas vociferações entregues ao nada Nessa miríade de olhos ausentes, sob o sumo sombrio de tuas feridas, o sal corrosivo que emana dos ventos encontra tua hora mais pura.


(evocação)



Maria Paraíso! – grita a romaria, e Maria que nunca se viu pesa no corpo um céu ideal. Sem azul e sem nuvens. Não sei o que a tarde me guarda, a tarde que é feito um lençol, que nunca esteve comigo. Romaria! – grita Maria, e o céu se despede das nuvens se despede da cor azul e dos urubus que cantam carniça. Sem saber eu tomo conhaque : a beleza é um rio perdido, e Maria não lembra o meu nome.


Ausência Numa valsa para Rilke ) uma semente se partindo ( compreendo uma imensa clareira no lugar da exatidão As moças de vestido seguem pela rua O marulhar das conversas fixa verdade nos postes da angustia Memória! : insistentemente quando vinha a insônia e lesmas no sal das minhas lágrimas os meus lábios fendiam-se por teu nome Arriscando outra vez pelo sereno a paz, meu bem, era uma estrela sem lume – um corpo baldio no cordão da madrugada


tocando de estrela (ou Ela vai entrando para fora da porta) por caio resende, ian c.lima, pablo luz Ando no chão tatuado de vinho, na esfinge da rua do estampido. Escala que se martela de assobio, estampado à boca rubra na intensidade de um milhão de hipérboles (são todas células trêmulas repelindo gostos calafrios da recém-primavera na língua). Besouros disputam nossos ouvidos. Vozes de cetim deslizante, aveludadas, rebatem na fronte – porque o tempo não é esse, as teclas não são essas. Repito: estamos beirando e seremos mutilando os nossos braços, expelindo versos, mastigando lares; o que ficou, o que deveria ter ficado é substância, idéia e substância de alguma quase canção – Pulo de vozes falando de como é fácil


ser besouro em uma dança estranha e abalar as estruturas da veia mais corrente! mas a música sempre volta, sempre volta. (uma varanda observa com nuvem e um multicolorido de guitarra e mulher: dance!) Há entre os dedos a felicidade das asas que vão além e não há choro. Choro choro pra ninguém. (tocando de estrela) E ela vai saindo pela porta, Ela vai voando e não volta: ela vai entrando para fora da porta


O poema é a mão estendida Porque persiste à tua carne essa invencível ausência – soma de braços sedentos despindo conhaque pela clave do peito Porque de veias convulsionadas não foste a medida APENAS não foste ordinário às coisas da vida. Porque persiste, em cada teu gesto, algum olhar mais perdido dum agreste recalque telúrico, com que fitas as moças de praça nos olhos da ama Porque foste ausência, suor e conhaque! foste escombro e sopro de vida


Uma canção a mais em tuas falanges, cada delírio num grão pela terra, e tu a ama como nunca (tua faca!) como um fado por sobre o papel! e até essa alegria, antífona das coisas miúdas: levaste-me, poeta, vida e terra, ao parco ouro das minhas mãos Porque preso nas presas de um afago, rasgando pelo brilho doutras coxas, estarei um dia diante dessa tua morte, desse teu ponderar o verso, sabido de tua dor que é tão minha Pois por isso vivemos, para provar também desse limbo Para que então, um dia, sonhemos graves orquídeas de luz. Como ondas que violassem mudas a dureza antiga das rochas


E deste fio, desta linha de azeite corrida pelo rosto, ganharemos as calçadas Porque em cada um de nós e de cada gesto poupado pela fenda azul dos olhos Porque dessa casca na pangeia de nossas eras, deste abismo, deste cinza estólido n’algazarra do cérebro O POEMA É

A MÃO ESTENDIDA



(ritual)



Laura Este silêncio vertigem que se esgueira pela noite matraqueado de passos corredor adentro

onde corvos neblinam

e ausentes antigos gestos no espelho se confrontam Este silêncio que se arrasta de halos que verte inalterado o seu busto de sombra (este exíguo grão da puberdade que anima a hóstia de um sonho) Tal presença orbitada de soslaio este silêncio que é a última parte que se rodeia de aldeias e de poços despindo a brônzea fuligem de tudo que se escorre mitigado se expande na loucura que se despe dos trópicos em longas torrentes de absinto


Ó, este meu silêncio , que não sabe maldizer o que tivemos que se vive que se perde como triste ilha de tesouro que é cigarro, pão & guerra onde Putas vão vender o seu delírio onde Padres sequelam juízos e acasos vão morrer no mesmo cais onde Narciso é a pata do que vejo onde Pollock jorra sangue sobre a tela ,

e meninas se dedilham com poemas

esperando da noite uma vontade qualquer Este silêncio meu infante desapego que se me ergue feito mantra pelas ruas e não reconhece a distância entre os pontos (qual certeza qual fuga ou a têmpora banhada de suor!)


que se arrasta pelas ruas

pouco mais

para retomar toda vertigem no breve tempo em que me perco dos cabelos quando a tarde já é nua , amena e a dor tão mais pequena se aquece de desejo Ah, este silêncio que se abre em mil feixes que desaloja incessante essa astúcia de grilo pela noite esse baque de porta pela noite esses mil fantasmas de homem pela noite e que se escorre sem destino pelo ventre carcomido de uma estrela


Devir Sempre se olha o ocorrido com pesares de justiça, mas entre a vespa e a orquídea uma luz se estremece Todo silêncio carrega em si um traquejo de fala E toda voz que canta é uma parcela de silêncio Eu ando nessa praça e ela me perde Eu ando nessa praça e mesmo me perco Não há verdade alguma em tudo isso: dizer poesia é encantar o silêncio


Giramundo Achar esse verso perdido com ventura de quem, estando no telhado, ergue a telha da casa do sonho Achar esse verso perdido vez que lá fora tudo é desterro! (e rios correm para dentro das ruínas do sonho – amarfanhado de raquíticas veias ) Achar esse verso perdido (ou erguer a velha divindade – triste, tão mais triste – de um gesto que deixamos) : descer outro porão, porque este é o caminho do poema


a pata do lince no estro das chamas Conspícua tarde de maio em que todos os nossos medos são relíquias de outonos desenganos Achar esse verso perdido a bruma perdida no elmo das horas até que ferva o seio sob o chambre alçando na sombra da morte um parto de rosas


do desejo Sê apenas. Como folhas que vão para o nada, sem apelos de sul ou de norte; que se só deixam a causa do caule pelo coito breve das plumas. Sê apenas – na superfície –, se deixando ao abrigo do acaso, essas setas que dobram do dia até destilarem os traços. Sê apenas. E caminhar nos vales do ermo, com mil flores brotando dos cascos!


Poema para uma porta fechando Havia um silêncio na velha casa de onde jamais teria saído o corpo imberbe do anjo descalço tecendo corais de absinto Havia na velha casa de um dia — no que a manhã era um lago sem fundo — a carne aberta da flor diluída que se desaba no grande Cronópio; Havia na pulsação do hemisfério (então muito longe das linhas do sono) da lua cabocla, a luz sonolenta de traças em pleno abandono



Publicado em Agosto de 2012 (1ª edição, ebook) Capa, fotografia: luís mathias (stagnaryo)

candeeirocafe.wordpress.com


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