Revista Viração - Edição 117 - Jul/Dez 2020

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_manifesto antirracista


QUEM FAZ A

VIRA

CONHEÇA OS VIRAJOVENS EM 11 ESTADOS BRASILEIROS E NO DISTRITO FEDERAL:

PELO BRASIL

Aracaju (SE) Belém (PA) Brasília (DF) Curitiba (PR) Guarulhos (SP) Mariana (MG) Natal (RN) Osasco (SP) Rio de Janeiro (RJ) Salvador (BA) Santa Maria (RS) São Luís (MA) São Paulo (SP) Vitória (ES)

Esta edição foi financiada por:

Organizações parceiras que colaboraram com esta edição:

Viração Educomunicação – São Paulo (SP) • Viração & Jangada – Itália • Agência Jovem de Notícias – São Paulo (SP) • IBEAC – São Paulo (SP)


EDITORIAL BEL SANTOS MAYER*

CONTRA O RACISMO, O ANTIRRACISMO! O convite para escrever este editorial não me pegou de surpresa. E não digo isto pela vaidade de ser uma das “tias da Vira”. É que o convite chegou um dia após ter participado de um encontro com duas jovens negras candidatas a vereadoras. Na sala virtual lotada de pessoas brancas e negras o assunto eram pautas antirracistas. Neste dia compartilhei cinco editais para estudantes negrEs. Pensei: é hora de posicionar-se! Sabia que a Viração mandaria seu recado. Há pouco mais de 132 anos, um projeto de desumanização combinando violências, ciências e religião, manteve escravizada a população africana e afrodescendente que vivia no Brasil. Um conjunto de leis como a Lei Áurea (1888) tratou de impedir e dificultar a participação negra na sociedade brasileira. Muita gente quis achar, por ingenuidade ou conveniência, que os 300 anos vividos sob açoites, violações de direitos e ataques ao aquilombamentos seriam diluídos em boas intenções brancas e esforços individuais negros. E outra vez, combinações de violências, ciências e religião tentaram enterrar o assunto vivo. O genocídio da juventude negra e outros dados “desenham” para quem quiser saber. Tentaram nos destruir. Conseguiram? Não! Seguimos lutando em todas as áreas, inclusive criando leis como a Lei 10.639/2003 de inclusão da História e Cultura da África e dos Afro-brasileiros nos currículos, para corrigir a invisibilidade que nos foi imposta. São séculos de lutas, estratégias, ações, enganos e acertos até este tempo em que não é mais possível um debate sério de enfrentamento ao racismo sem atitudes efetivas. Esse memorial honra todEs que vieram antes de nós e resistiram para que nossa história e dignidade fossem (re)conhecidas. Cada seção nos convoca a seguir lutando. Vamos?! Como escreveu Conceição Evaristo: “É tempo de formar novos quilombos!” porque “a liberdade é uma luta constante”.

Copie sem moderação! Você pode: • Copiar e distribuir • Criar obras derivadas Basta dar o crédito para a Vira!

QUEM SOMOS A Viração é uma Organização da Sociedade Civil sem fins lucrativos, criada em março de 2003, que atua nas áreas de educomunicação, juventudes e direitos humanos. Recebe apoio institucional do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), da Ashoka Empreendedores Sociais e do Núcleo de Comunicação e Educação da Universidade de São Paulo. Além de produzir a revista, a Viração oferece cursos e oficinas em educomunicação, Direitos Humanos, gênero e sexualidade e meio ambiente em escolas, grupos e comunidades em todo o Brasil. Para a produção da revista, contamos com a participação dos conselhos editoriais jovens de diferentes estados, que reúnem representantes de escolas públicas e particulares, projetos e movimentos sociais. Entre os prêmios conquistados nesses dezessete anos, estão o Prêmio Cidadania Mundial, concedido pela Comunidade Bahá’ío, o Prêmio Don Mario Pasini Comunicatore, em Roma (Itália) e o Prêmio nternacional de Educomunicação, concedido pela União Católica Internacional de Imprensa.

Paulo Pereira Lima Diretor Executivo da Viração

* Coordenadora do Ibeac e co-gestora da Rede Litera Sampa.

Apoio institucional


VIAS

O QUE OS DADOS DIZEM SOBRE AS DESIGUALDADES NA POLÍTICA?

EXPRESSAS

página 12

JÁ PENSOU SE A HORA DE MUDAR FOSSE AGORA?

página 15

AQUILOMBAMENTO & ANCESTRALIDADE

POR QUE TODO MUNDO ESTÁ MAL?

página 16

página 17

AS MAZELAS DE UMA MOBILIDADE PROJETADA NA EXCLUSÃO

RACISMO E TECNOLOGIAS DE RECONHECIMENTO FACIAL

página 18

O RACISMO NAS PALAVRAS

página 26

página 22

RACISMO E EQUIPAMENTOS DE SAÚDE PÚBLICA

INTOLERÂNCIA RELIGIOSA É EUFEMISMO

página 27

EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA POR MEIO DA ARTE

página 28

página 29 HOMOAFETIVIDADE E O RACISMO NAS ESTRUTURAS DAS RELAÇÕES HUMANAS DO CONTEMPORÂNEO

SEMPRE NA VIRA MANDA VÊ

06

PROVOCAÇÕES

08

QUE FIGURA

09

GALERA REPÓRTER

10

IMAGENS QUE VIRAM

19

NO ESCURINHO

38

página 32

Rafael Alves da Silva

PRESIDENTA

EQUIPE

DIRETOR EXECUTIVO COORDENAÇÃO

COLABORADORES DESTA EDIÇÃO

VICE-PRESIDENTE PRIMEIRA-SECRETÁRIA

Áurea Lopes

CONSELHO FISCAL

Paulo Lima

4

RACISMO NO MUNDO DA MODA E NAS PASSARELAS

página 35

página 36

Adriana Carrer, Aline Nogueira, André Araújo, Cleide Agostinho, Elisangela Nunes, Jenny La Rosa, Jéssica Lima, Jéssica Rezende, Juliane Cruz, Kalline Lima, Luiza Gianesella, Monise Cristina, Patrícia Cavalcanti, Pedro Neves, Scheila Leandro, Vania Correia e Viviane Delgado

Rodrigo Bandeira, Vanessa Camargo e Marilda Santos

Alexsandro Santos, Aparecida Jurado, Isabel Santos, Leandro Nonato e Vera Lion

CUANDO UNA VOZ ES LA DE MUCHOS

página 37

REVISTA VIRAÇÃO - ISSN 2236-6806

CONSELHO PEDAGÓGICO

QUANDO UMA VOZ É A DE MUITOS

CONSTRUÇÃO DE NARRATIVAS NA LITERATURA E NO AUDIOVISUAL

Cristina Uchôa

Rodrigo Bandeira, Vanessa Camargo e Marilda Santos

página 30

página 34

RG DA VIRA: CONSELHO EDITORIAL

AFINAL DE CONTAS… SOU UMA MULHER?

Elaine Souza EDIÇÃO

Jéssica Rezende EDIÇÃO E REDAÇÃO

Adriana Carrer, Monise Cristina, Jéssica Rezende, Juliane Cruz e Pedro Neves

Revista Viração • Ano 17 • Edição 117

Adriana Miranda, Amanda da Cruz, Ana Rosa Calado, Andressa Dutra, Bel Santos Mayer, Flora Guazzelli, Franklin Ferreira, Gabriel Gonçalves, Geovana Nogueira, Giovanna Feliciano, Isabelle Moura, Júlia Cavalcante, Laura Vega, Lorrany Castro, Lucas Valentim, Luziana Flora, Mariana

Assis, Moises Tabi, Nathalia Araujo, Paulo Cruz, Reynaldo de Azevedo, Silvana Salles, Teresa Sebastião, Thais Akemi, Thais dos Santos, Thamires Jabbur, Vinícius Munhoz ARTE

Manuela Ribeiro JORNALISTA RESPONSÁVEL

Paulo Pereira Lima – MTb 27.300 DIVULGAÇÃO

Equipe Viração CONTATO

comunicacao@viracao.org DOAÇÃO

mobilizacao@viracao.org


O QUE É EDUCOMUNICAÇÃO?

DIGA

LÁ VIRA AMIGO DA VIRA! Desde 2014, a Revista Viração não trabalha mais com assinatura. Ao invés disso, pedimos o seu apoio para a manutenção das nossas atividades. Além da produção de conteúdo por e para jovens, também realizamos encontros de formação em direitos humanos e educomunicação e atividades de mobilização social. Nosso trabalho está sustentado no entendimento de que o adolescente é um sujeito de direitos. A partir da educomunicação e da educação entre pares, impactamos as vidas de milhares de adolescentes e jovens Brasil a fora, considerando suas condições únicas de desenvolvimento. Para apoiar, é só acessar o site www.viracao.org/apoie e seguir as instruções. É tudo online e bem rapidinho! Agora, se você prefere depositar um valor direto na nossa conta, os dados são: Viração Educomunicação Banco do Brasil | Agência: 6501-3 | Conta Corrente: 200.023-7 CNPJ: 11.228.471/0001-78 Apoie a Viração na promoção de direitos, no fortalecimento da participação de adolescentes e jovens e na construção de uma comunicação democrática.

PERDEU ALGUMA EDIÇÃO DA VIRA? NÃO ESQUENTA! Você pode acessar, gratuitamente, as edições anteriores da revista na internet: www.issuu.com/viracao

É comum, nas edições da Vira, encontrar a palavra “educomunicação” ou o termo “educomunicativo”. A educomunicação é um campo de intervenção que surge da inter-relação comunicação/ educação para a transformação social. Dizemos que um projeto ou prática é educomunicativa quando adota em seus processos, especialmente do jovem, o caráter comunicacional, como o diálogo, a horizontalidade de relações e o incentivo à participação, fazendo com que os sujeitos exerçam plenamente o direito humano à expressão e à comunicação, em diferentes âmbitos e contextos. A Viração promove ações educomunicativas por meio da produção midiática, incentivando que adolescentes e jovens produzam reportagens coletivas em diferentes linguagens.

COMO SER UM VIRAJOVEM? Virajovens são os integrantes dos conselhos editoriais jovens da Viração, que produzem conteúdos em suas cidades. O conselho pode ser um coletivo autônomo de jovens ou um grupo ligado a uma entidade, organização, movimento social, escola pública ou privada, que dará apoio para que os virajovens produzam conteúdos. A parceria entre a Vira e entidade é oficializada com um termo de compromisso e com a publicação do logotipo da organização na revista. Quer saber mais? Entre em contato com a gente: comunicacao@viracao.org

FACEBOOK.COM/ VIRACAO.EDUCOMUNICACAO @VIRACAOEDUCOM

@VIRACAOEDUCOM Para garantir a igualdade entre os gêneros na linguagem da Vira, onde se lê “o jovem” ou “os jovens”, leia-se também “a jovem” ou “as jovens”, assim como outros substantivos e pronomes com variação de masculino, feminino e gênero neutro.

Mande seus comentários sobre a Vira, dizendo o que achou de nossas reportagens e seções. Suas sugestões são bem-vindas! Escreva para Rua Araújo, 124, 2º andar – CEP 01220-020 – São Paulo (SP) ou para o e-mail: contato@viracao.org


MANDA VÊ TEXTO GIOVANNA FELICIANO E FRANKLIN FERREIRA, VIRAJOVENS DE SÃO PAULO (SP) IMAGEM FOTOCOLAGEM*

P

ara combater o racismo, ser “menos” racista não é suficiente. Se não nos abrimos para refletir e mudar a própria conduta, não nos posicionamos frente a situações de racismo e não atuamos ativamente pela construção de um mundo menos desigual, não estamos fazendo progresso, mas empurrando o problema para debaixo do tapete. Como diz Angela Davis: “Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”. Muitos anos se passaram desde o início da colonização e da Lei Áurea no Brasil – que, inclusive, foi o último país do Ocidente a abolir a escravidão – mas as marcas deixadas são intensas, estão enraizadas e estruturam a sociedade. Desde antes dessa abolição inconclusa, a população negra e indígena resiste, se organiza e luta por seus direitos, enfrentando as mazelas da escravidão e colonialismo cotidianamente. Não ter feito parte daquele processo de escravidão e violação de corpos negros

durante o longo processo de colonização em nosso país não significa que pessoas brancas não gozem dos privilégios que este longo período proporcionou a aqueles que desposavam (e ainda desposam) de protagonismo. É impossível não perceber que, mesmo hoje, após a “abolição”, muitos corpos negros ainda são vítimas de objetificação, animalização e aprisionamento por conta da herança desse período que não podemos dizer que acabou “de vez”. Pessoas brancas dispõem de regalias e benefícios apenas por conta da cor da pele – o famigerado privilégio branco, que só será minimizado quando pessoas brancas começarem a questionar seus lugares de privilégio. “Quando criança, fui ensinada que a população negra havia sido escrava e ponto, como se não tivesse existido vida anterior das regiões de onde essas pessoas foram tiradas a força” (RIBEIRO, 2019). É a partir desses gritos por uma justiça e por uma reparação histórica real que precisamos nos tornar antirracistas. Já passou da hora de pessoas brancas terem consciência sobre a responsabilidade que possuem diante da sociedade e se aliarem à construção de outras perspectivas de mundo também. Por esse motivo, perguntamos para jovens:

QUAL O PAPEL DAS PESSOAS BRANCAS NA LUTA

ANTIRRACISTA?

*Edição e montagem: Manuela Ribeiro Imagens: Freepik, @user18526052 6

Revista Viração • Ano 17 • Edição 117


SAMARA GARCIA

13 ANOS | SÃO PAULO (SP)

T HAMI RES RIBEI RO

18 ANOS | SÃO PAULO (SP)

Num contexto de opressão, calar-se ou omitir-se é escolher o lado do opressor, assim como estar em cima do muro também é uma posição. Assim, manifestar-se e COMPORTARSE contrariamente às práticas racistas é um dever de todos, principalmente de brancos. Sem discursos rasos como “mas eu não escravizei ninguém, foram os meus antepassados” pois além de burro, ignora todo um contexto de dívida histórica. Defendamos as cotas e todas as políticas de inclusão, bem como as manifestações artísticas!

Em minha opinião, em primeiro lugar você tem que respeitar. Em segundo lugar você tem que lutar, sempre considerando que você não está em seu lugar de fala; e em terceiro lugar, POR FAVOR não falar que existe racismo reverso! A escravidão existiu por mais de 300 anos, morreram milhões de pessoas e até hoje carregamos uma sequela chamada racismo estrutural. Não temos privilégios, somos discriminados e você aí falando que racismo reverso existe! Pense, lembre, repense!

PEDRO FONSE CA

14 ANOS | SÃO PAULO (SP)

Bom, o papel dos brancos na luta antirracista é aprender e escutar as pessoas que já passaram por coisas horríveis na vida. Podem falar sim sobre racismo, mas do lugar que ocupam, jamais podem falar do papel de pessoas pretas! Então, para que nossa sociedade torne-se uma sociedade antirracista, os brancos necessitam aprender sobre o assunto e escutar quem enfrenta o racismo.

T HIAGO RAMOS

17 ANOS | RIO DE JANEIRO (RJ)

Vivemos em uma sociedade construída sobre os alicerces da desigualdade, da discriminação e do racismo, todos nós devemos nos perguntar qual o nosso papel, seja perpetuando, seja lutando contra esses alicerces. Para nós, pessoas brancas, o primeiro passo é reconhecer que somos parte do problema para consolidarmos a atitude permanente de reconhecer e repreender práticas racistas.

TÁ NA MÃO Assista ‘O lugar das pessoas brancas na luta antirracista’ no Instagram da Vira” em https://bit.ly/2MZiS4h

KAIQUE MENEZES

18 ANOS | SÃO PAULO (SP)

Para mim, o papel das pessoas brancas na luta antirracista é ao lado das pessoas pretas, amarelas e vermelhas. Lógico, observando seus limites dentro dos movimentos e de suas vivências que carregam seus privilégios, questionando os espaços da branquitude, construindo uma análise Interseccional da realidade, como a que propõe Angela Davis, uma análise que leve em consideração os fatores de raça, classe e gênero para todas as situações, de uma luta que é para construir uma nova forma de viver em sociedade, onde essas diferenças não sejam mais existentes, de forma que se possa alçar uma nova forma de viver a vida, uma nova forma que seja coletiva!

Revista Viração • Ano 17 • Edição 117

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PROVOCAÇÕES

TEXTO ELAINE SOUZA* IMAGEM FOTOCOLAGEM**

O POVO PRETO NÃO QUER SER LEMBRADO APENAS EM NO V EMBRO VIDAS NEGRAS IMPORTAM NO ANO TODO

maioria quando se trata de encarceramento, homicídio e subemprego.

P

ensar questões raciais em um país que se estrutura por raça e gênero é um convite para discutir projetos de sociedade descolonizada que questione as perspectivas hegemônicas. No Brasil, 56,10% da população se declara negra. Somos o país com maior população negra fora da África – mas isso não reflete a presença de pessoas negras em cargos com poder de decisão, seja nas empresas, governo e organizações sociais, seja nas profissões historicamente acessadas por pessoas com alto poder aquisitivo, como medicina e direito. Tampouco a população negra do Brasil está entre a maioria a publicar livros e a ocupar espaços nos programas considerados importantes da TV brasileira. Apesar de ser maioria em população, as pessoas negras no Brasil seguem sendo a

Desde a primeira série, uma pessoa preta passa a sair de casa sabendo que é preta. Tem vergonha de levantar a mão para responder uma pergunta, porque se espera que não saiba. Convive com a rejeição em festas, brincadeiras e brinquedos. O racismo estrutural, processo histórico no Brasil, atravessa a vida de todas as pessoas pretas e indígenas desde a primeira infância. Acrescendo o componente de gênero à questão racial, mulheres, jovens, adolescentes e meninas são as que têm menos oportunidades, os menores salários e são vítimas de diversas violências. Estamos em 2020, ano em que o ECA completou 30 anos, mas crianças pretas seguem sendo as mais vulneráveis a violências. Adolescentes e jovens pretos, a partir dos 15 anos, têm 3 vezes mais chances de serem assassinados do que brancos. Quando pensamos na população LGBTQIA+ preta, lembramos que os componentes sociais

*Coordenadora Geral da Viração ** Edição e montagem: Manuela Ribeiro | Imagens: Freepik, @makyzz 8

Revista Viração • Ano 17 • Edição 117

esperados pela sociedade hetero-cis-patriarcal não estão presentes. Isso significa pensar todas as violências lgbtfóbicas adicionadas às violências raciais. Diante do cenário em que a população preta no Brasil e no mundo segue sem conseguir respirar, é preciso construir espaços e manifestos políticos como esse, que busquem restituir a humanidade a nós negada. O povo preto não quer ser lembrado só em novembro; existimos e re-Existimos. Não podemos esquecer que mulheres negras, que vieram antes de nós, foram as primeiras a se organizarem para questionar o patriarcado e o feminismo branco que não considerou intersecções de raça, ainda que, para acessar a academia, outra mulher (na maioria preta) precisava dar conta das tarefas doméstica e de filhes. O enfrentamento ao racismo estrutural não é uma ‘’ajuda’’ de pessoas brancas ou não negras. O enfrentamento ao racismo é um ato de justiça social. Não vamos esquecer que a nossa ‘’liberdade é uma luta constante’’.


QUE FIGURA

ESPE RANÇA GARCIA

ILUSTRAÇÃO GATIRO

UMA HISTÓRIA DE LUTA E RESISTÊNCIA

N

ascida no município Nazaré do Piauí em 1751, mulher, negra, escrava, hoje consagrada a primeira advogada do Brasil, Esperança Garcia simboliza resistência contra a opressão.

Aos 9 anos foi retirada do local em que nascera (uma fazenda Jesuítica) e levada para a Fazenda Algodão, do capitão Antônio Vieira de Couto – onde é hoje a capital do Piauí, Teresina. Pouco se conhece sobre sua biografia, postos os esforços de apagamento das personalidades negras – salvo que foi casada com um rapaz angolano e teve sete filhos, dando a luz ao primeiro filho aos 16 anos. Tampouco se sabe em quais condições se deu sua alfabetização, uma vez que, na época, o letramento de escravos era ilegal. Ainda assim, Esperança Garcia, com uma força de grande magnitude, derrubando por terra qualquer estereótipo racista que traz a ideia fantasiosa que os negros escravizados não apresentavam resistência à escravidão ou até mesmo a aceitavam, aos 19 anos envia uma carta, em caráter

TEXTO PEDRO LUCAS, VIRAJOVEM DE SÃO PAULO (SP)

de petição, para o então Governador Gonçalo Lourenço. A carta data de 6 de setembro de 1770 e consiste em uma denúncia sobre as condições desumanas e a violência exacerbada a qual ela e os seus estavam submetidos. Como mostra o trecho, com a grafia original: “A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho nem, sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca; em mim não poço explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de Deus escapei.” Na carta, ela pedia ainda que fosse levada para sua terra natal para junto de seu marido e para que pudesse batizar a sua filha. Em 2017 a Ordem dos Advogados do Brasil – Secção Piauí (OAB-PI), a pedido da Comissão da Verdade da Escravidão Negra a reconhece como a primeira advogada, mulher, negra e escravizada do país.

CELEBREMOS ESPERANÇA GARCIA E A SUA LUTA! Revista Viração • Ano 17 • Edição 117

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GALERA REPÓRTER

DO QUE TRATA E QUAL A LUTA DO

A F RO E M P RE E N D E D O RI SM O NO BRASIL? TEXTO GABRIEL GONÇALVES E NATHALIA ARAUJO MOTA, VIRAJOVENS DE SÃO PAULO (SP) IMAGEM FOTOCOLAGEM*

UMA CONVERSA SOBRE O AFROEMPREENDEDORISMO E SUA IMPORTÂNCIA PARA A NOSSA SOCIEDADE.

C

onversamos com Thais Gomes, Nikolas Vinicius e Bruno Fernandes, fundadores da Juntxs – uma galera que busca criar conexões entre empresas e grupos minorizados, que se preocupa com as diversidades operando dentro do mundo do trabalho. Me diz aí, bora afro-empreender?

A MISSÃO DA JUNTXS É TRAZER VISIBILIDADE ÀS VOZES DE PESSOAS DE GRUPOS MINORIZADOS. QUAL A IMPORTÂNCIA DESSA VOZ PARA A SOCIEDADE ATUAL?

Uma das coisas que o sistema faz é invisibilizar, ignorar ou até mesmo distorcer as nossas opiniões e as nossas necessidades, como criar produtos e serviços que não conversam com o que a gente precisa realmente ou nos entrevistar e ignorar o que falamos. Para isso, existem dois parâmetros importantes: fazer as pessoas de grupos minorizados entenderem que suas opiniões são importantes; mas, também, mostrar para as empresas que elas têm que valorizar essas vozes – se elas realmente querem ser inclusivas. Mais do que fazer as empresas ajudarem as pessoas, é muito importante trazer esse olhar de que as pessoas de grupos

minorizados não são as únicas beneficiadas. Nós não somos os receptores de caridade, esse tipo de coisa. Nós somos pessoas que causam transformações, a grande massa consumista e operária. Então, querendo ou não, nós temos um espaço na sociedade. DO QUE TRATA O AFROEMPREENDEDORISMO?

Quando a gente olha pra afroempreendedorismo, olhamos primeiro para o que entendemos como empreendedorismo – que é basicamente criar soluções que você quer ver na sua quebrada ou no seu meio, soluções que não existem no lugar em que você está. A gente percebe que a maioria das pessoas que empreendem no Brasil são mulheres negras; então, o afroempreendedorismo sempre foi sobre sobrevivência!

*Edição e montagem: Manuela Ribeiro | Imagens: Freepik, Rawpixel 10

Revista Viração • Ano 17 • Edição 117


Eu acho que a gente sempre empreendeu por necessidade, por precisar de dinheiro, por não ter acesso. No momento atual, estamos nos movimentando para ressignificar isso. Estamos mostrando que o afroempreendedorismo não deve nascer só por falta de acesso e sim porque você tem talento, porque você faz algo muito bem e porque é um futuro que talvez não foi apresentado pra gente. A GENTE VÊ COMO UM PROBLEMA ESTRUTURAL A FALTA DE ACESSO AO MERCADO DE TRABALHO PARA A JUVENTUDE. COMO VOCÊS VEEM ESSE CICLO DESTRUTIVO PARA O JOVEM PERIFÉRICO?

Como disse Darcy Ribeiro, “a crise de educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”. Foi desenhado para vivermos nesse ciclo que nos mantêm em situação de vulnerabilidade social. Então, é um cenário imposto desde que a gente nasce. É um assunto extremamente complexo para se dialogar e as soluções a têm que partir de forma estruturada pelo governo. A gente sempre tem essa dificuldade de acesso à educação e emprego. Esse é, justamente, um dos pontos que fortalece tanto o afroempreendedorismo nas periferias, como o movimento de “black money” – com a importância de valorizar o dinheiro preto. E eu acho que o empreendedorismo surgiu há muito tempo para tentar lidar com essas relações sociais. É sempre antes da ponte, o

empreendedorismo negro é sempre nas nossas comunidades. Temos um papel muito importante de mostrar que não é só porque essa condição foi imposta que a gente deveria se conformar com ela. Podemos mudar essas estruturas sociais ou pelo menos lutar por isso, porque é o que os nossos ancestrais fizeram. QUERO QUE VOCÊS COMPLETEM: “LUTAR PELO AFROEMPREENDEDORISMO É LUTAR POR...”?

Igualdade, inclusão, oportunidade, representatividade. É lutar contra um sistema que ainda tem preconceitos com pessoas negras e periféricas. Ser afroempreendedor é lutar contra as condições que são impostas aos corpos negros, aos corpos LGBTs, aos corpos PCDs, aos corpos indígenas e muitos outros grupos. É lutar contra essas condições sociais, contra pessoas que não querem que a gente seja, que a gente faça, que a gente viva. É lutar por direitos de igualdade, inclusive igualdade de voz. POR MAIS QUE SEJA UTOPIA, COMO VOCÊS ACREDITAM QUE O OLHAR SOBRE ESSA LENTE PODE CRIAR O MUNDO QUE A GENTE DESEJA?

Estamos criando um mundo melhor; um mundo em que a gente possa, de fato, valorizar o potencial da população negra. Vemos, em muitos parâmetros, que os nossos trabalhos não são valorizados – seja dentro de uma corporação, seja você um

freelancer, seja você um empreendedor. Os nossos trabalhos são a todo tempo questionados: “Ah, mas será realmente que você vai conseguir me entregar o que você está prometendo?”. Quando apoiamos o afroempreendedorismo, estamos apoiando um mundo em que a potência negra vai ser valorizada e respeitada. A gente não vê as grandes empresas com lideranças pretas. Com a exclusão dos negros nesses cargos, os jovens das periferias vão ficando desanimados: “Nossa, eu não vejo um negro como chefe, eu não vejo um negro assim e assado”. Se a sociedade colocasse mais pessoas negras para trabalhar nessas áreas, os jovens da periferia iriam olhar e pensar “Se ele/a pode, eu também consigo”. COMO SABER SE EU SOU UM AFROEMPREENDEDOR/A?

Se você é negro/a e está empreendendo, você já é um/a afroempreendedor/a. Você pode ser um/a afroempreendedor/a social – trabalhando para mudar não só a sua realidade, mas também a realidade de pessoas como você, criando produtos artesanais, por exemplo.

Revista Viração • Ano 17 • Edição 117

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TEXTO SILVANA SALLES, EX-VIRAJOVEM DE SÃO PAULO (SP) IMAGEM FOTOCOLAGEM*

O QUE OS DADOS DIZEM SOBRE AS

DESIGUALDADES NA POLÍTICA?

PARE UM MINUTINHO PARA VISUALIZAR MENTALMENTE: COMO É UM POLÍTICO? É PRETO OU BRANCO? HOMEM OU MULHER? TEM A MESMA CARA QUE TINHA QUANDO VOCÊ ERA CRIANÇA OU ALGO MUDOU?

A

PESAR DE 55% DA POPULAÇÃO BRASILEIRA SE IDENTIFICAR

COMO PRETA OU PARDA, A NOSSA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA ESTÁ LONGE DE RETRATAR AS CARAS E CORES DO POVO. Um estudo do IBGE sobre

desigualdade racial mostrou qual era o cenário em 2019: os negros eram apenas 24% dos deputados federais. Nas cidades, a disparidade era menor, mas continuava presente: vereadores negros eram 42%. O primeiro passo do caminho para deixar a nossa representação política ‘mais representativa’ é ter mais candidaturas negras e femininas nas eleições. Neste aspecto, as eleições municipais deste ano trouxeram pelo menos uma notícia positiva: pela primeira vez, as pessoas negras são maioria entre as candidaturas a vereador no Brasil.

* Edição e montagem: Manuela Ribeiro | Imagens: Freepik, Rawpixel

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Revista Viração • Ano 17 • Edição 117

Os dados estatísticos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostram que candidatos e candidatas negras somaram nesta eleição 51% do total de candidaturas a vereador, contra 47% de candidaturas brancas. Os números ainda não correspondem aos da população em geral, mas já mostram uma inversão importante em relação às eleições municipais anteriores, realizadas em 2016. Naquele ano, as candidaturas negras foram 49% e as brancas, 50,5%.


Também entre os candidatos a prefeito a porcentagem de candidaturas negras subiu. A alta não foi suficiente para superar as candidaturas brancas, mas a diferença diminuiu. Olhando para o gênero dessas candidaturas a prefeito, vemos que, de 2016 para 2020, os homens pretos subiram de 2,8% para 3,6% e os homens pardos, de 26% para 27%. Já a participação das mulheres negras é muito menor: de uma eleição para a outra, as mulheres pretas foram de 0,4% para 0,7% do total de candidaturas – quase o dobro, mas de um número que é muito pequeno. Estatisticamente, o retrato das mulheres pardas mudou ainda menos: elas foram de 3,7% para 3,8%. Segundo a cientista política Hannah Maruci, o aumento no número de candidaturas negras, tanto para prefeito quanto para vereador, pode ser atribuído a dois fatores: a mudança de autodeclaração dos candidatos, que passaram a se identificar mais como pretos ou pardos nestas eleições, e o trabalho contínuo do movimento negro para estimular e apoiar mais candidaturas negras. No entanto, a pesquisadora chama a atenção a um problema que persiste: o do financiamento de campanhas eleitorais. A cientista política é co-idealizadora da A_Tenda das Candidatas, que oferece apoio e assessoria a mulheres que decidiram se candidatar nas eleições deste ano. Um dos objetivos é apoiar candidaturas comprometidas com causas feministas e antirracistas e mandar um recado importante

aos partidos: “vocês não vão fazer dessas mulheres laranjas”. A preocupação tem a ver com as mudanças dos últimos anos nas regras eleitorais brasileiras. Como os ministros do TSE não decidiram se os recursos do Fundo deveriam ser destinados a campanhas majoritárias ou proporcionais, cabe a cada partido decidir como vai usar o dinheiro, desde os 30% cheguem nas campanhas das mulheres. Muitos partidos preferiram dar mais recursos dos fundos às campanhas majoritárias do que às proporcionais e“contornaram” a regra dos 30% formando chapas mistas. O partido deposita o dinheiro na conta da candidata a vice, que é mulher, mas acaba beneficiando o candidato a prefeito, que é homem. “Teve um aumento grande de mulheres candidatas a vice neste ano”, nota a cientista política. Hannah conta que, conversando com candidatas apoiadas pela A_Tenda, descobriu casos em que as mulheres não estavam recebendo nenhuma estrutura de seus partidos. Algumas chegaram a receber orientações erradas quando procuraram os advogados dos partidos para tirar dúvidas. “Elas se candidatam, querem fazer a campanha séria, mas o que acontece é que os recursos não chegam para elas”. Os números parecem confirmar o efeito da falta de apoio às mulheres nas eleições. Embora a proporção de candidaturas femininas tenha crescido nos últimos 20 anos, desde 2012 esse

indicador continua no mesmo patamar. Um patamar que indica que as mulheres continuam muito subrepresentadas na política institucional.

O QUE SÃO OS FUNDOS PARTIDÁRIO E ELEITORAL? São fundos públicos para financiar as atividades dos partidos políticos. Os recursos são repassados aos partidos mensalmente e distribuídos entre os partidos de acordo com a proporção de deputados federais que cada um tem na Câmara. A principal diferença entre eles é que o Fundo Especial de Financiamento de Campanha só pode ter seus recursos distribuídos em ano de eleição. Para usar o dinheiro, os partidos precisam destinar 30% dos recursos para candidaturas femininas. Essa regra se estende ao tempo de propaganda eleitoral gratuita. A partir de 2022, também será obrigatório destinar 30% dos recursos para candidaturas negras.

Fontes: Site do TSE ‘Eleições 2020’ e CepespDATA

Revista Viração • Ano 17 • Edição 117

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TEXTO AMANDA DA CRUZ COSTA E PAULO CRUZ, VIRAJOVENS DE SÃO PAULO (SP), ANA ROSA CALADO CYRUS, VIRAJOVEM DE BELÉM (PA) E ANDRESSA DUTRA, VIRAJOVEM DE DUQUE DE CAXIAS (RJ) IMAGEM RAWPIXEL

O

termo racismo ambiental foi desenvolvido pelo reverendo e Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr., companheiro de Marthin Luther King e uma grande liderança negra pelos direitos civis nos Estados Unidos. Em 1981, ele cunhou a expressão a partir de suas investigações e pesquisas entre a relação de resíduos tóxicos e a população negra estadunidense.

JÁ OUVIU FALAR DE RACISMO

AMBIEN TAL? PARA ENTENDER COMO AS DESIGUALDADES AMBIENTAIS SE RELACIONAM COM O RACISMO ESTRUTURAL

essas áreas serão exploradas, danificando a vida e a saúde de povos marcados por sua identidade racial, como negros, indígenas, latinos e asiáticos. Há uma estreita relação entre “racismo ambiental” e “justiça ambiental”. De acordo com a ativista ambiental Cristiane Faustino, “RACISMO AMBIENTAL É A PRÁTICA DE DESTINAR ÀS COMUNIDADES E POPULAÇÕES

No Brasil, foi em novembro de 2005 que o termo ganhou notoriedade, através do I Seminário Brasileiro contra o Racismo Ambiental, realizado pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e a FASE, no âmbito do Projeto Brasil Sustentável e Democrático. Nesse encontro, pesquisadores, gestores federais, ativistas dos movimentos negros e indígenas discutiram como a desigualdade e a injustiça ambiental que recai sobre esses povos. É necessário entender toda a lógica de poder que existe, por exemplo, na escolha das áreas a serem exploradas e como

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NEGRAS, INDÍGENAS, NÃOBRANCAS E IMIGRANTES OS PIORES EFEITOS DA DEGRADAÇÃO AMBIENTAL”.

Enquanto para os pesquisadores Henri Acselrad, Selene Herculano e José Pádua, justiça ambiental “é o conjunto de princípios que garantem que nenhum grupo de pessoas, sejam grupos étnicos, raciais ou de classe, se adeque de forma desproporcional quanto à degradação do espaço coletivo”. As maiores dificuldades de acesso a empregos de qualidade e aos serviços básicos se concentram nas regiões menos desenvolvidas. Na lógica desenvolvimentista, configurou-se um padrão muito

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bem concentrado e excludente, no qual parte do território brasileiro permanece com seu potencial de desenvolvimento sub-explorado, contribuindo para o atraso e para limitar as oportunidades de crescimento pessoal e profissional dos brasileiros socialmente racializados. Grande parte da população negra está nas periferias e habita imóveis insalubres, amontoados, com elevado número de pessoas por cômodos, sem saneamento, acesso a água e sem ter suas necessidades básicas contempladas. Para o professor e ativista Henrique Cunha, “Falar sobre meio ambiente é falar sobre território periférico, indígena, quilombola e dos povos tradicionais. Onde houver desigualdade ambiental há racismo ambiental.”


JÁ PENSOU SE A HORA DE MUDAR FOSSE AGORA? FAZ TEMPO QUE A GENTE OUVE FALAR DAS AÇÕES PARA CONTER A CRISE CLIMÁTICA. ESTÁ NAS NOSSAS MÃOS COMEÇAR A AGIR

D

esde muitos anos, um montão de gente chique discutiu formas de combater a degradação ambiental. Contudo, com pouco resultado! É necessário menos blablablá e mais ação!

Só para você ter uma ideia, olha o que já rolou:

Apesar das ações globais, houve poucas mudanças na implementação de ações que solucionassem os desafios socioambientais, potencializando assim, a injustiça ambiental para os povos vulneráveis, principalmente do sul global.

CLUBE DE ROMA (1968): início do

debate sobre o uso desenfreado de recursos naturais; CONFERÊNCIA DE ESTOCOLMO (1972): marco para os debates sobre as mudanças climáticas; RELATÓRIO BRUNDTLAND NOSSO FUTURO COMUM (1987):

criação do termo “desenvolvimento sustentável’’. CÚPULA DA TERRA/ECO - 92 (1992): debate sobre os desafios ambientais mundiais.

O termo “Injustiça ambiental” é definido como “o mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos sociais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis.” (Declaração da Rede Brasileira de Justiça Ambiental)

PROTOCOLO DE KYOTO (1997):

acordo entre os países para evitar o aumento da produção de gás carbônico (principal causador do aquecimento global). ACORDO DE PARIS (2015):

fortalecimento da resposta global às ameaças do clima.

Desse modo, a crise climática ganha uma grande repercussão na comunidade internacional. Ela é caracterizada pelo aumento da emissão de gases causadores do efeito estufa, como o gás carbônico (CO2) e o gás metano (CH4).

TEXTO AMANDA DA CRUZ COSTA E PAULO CRUZ, VIRAJOVENS DE SÃO PAULO (SP), ANA ROSA CALADO CYRUS, VIRAJOVEM DE BELÉM (PA) E ANDRESSA DUTRA, VIRAJOVEM DE DUQUE DE CAXIAS (RJ)

Apesar do desafio ser global, os grandes debates raramente escutam as pautas locais, onde se territorializam as consequências da emergência climática. “Não se escuta os lugares, as entranhas, quem sofre ou sangra diante das violências que afetam corpos, territórios e essências!” Pensar em combater a crise do clima sem escutar os povos vulneráveis é compactuar com a linha de raciocínio pregada por um sistema capitalista de supremacia branca. Essa lógica potencializa diversas injustiças ambientais, perpetuando práticas como a queima de florestas, aumento das desigualdades e a exploração dos povos que ocupam a base da pirâmide social. Para o líder indígena Ailton Krenak, é preciso mudar as estruturas, descolonizar o pensamento e reinventar novas formas de estar nesse mundo. Está na hora de achar as soluções que contemplem o AGORA!

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TEXTO GEOVANA NOGUEIRA, JÚLIA CAVALCANTE E THAIS DOS SANTOS; VIRAJOVENS DE SÃO PAULO (SP) IMAGENS FREEPIK

AQUILOMBAMENTO & ANCES T RALIDADE

QUAL A IMPORTÂNCIA DA ANCESTRALIDADE, DO ATO DE SE AQUILOMBAR? SABER DE ONDE VIEMOS? DE BUSCAR NOSSAS RAÍZES?

O

Brasil foi o último país a abolir a escravidão, há apenas 130 anos. Temos um enorme histórico de exclusão e opressão da população preta, resultado de uma estrutura racista que é reproduzida até hoje. Temos uma sociedade que invisibiliza e esconde a história do povo preto e dos povos originários. Só existimos hoje porque houveram os resistentes do passado. Nossos ancestrais romperam muitas barreiras para que pudéssemos ser o que somos. Por isso o resgate da nossa ancestralidade é tão urgente: os valores e os saberes do povo preto não podem ser apagados!

A busca de se conectar com suas raízes não deve ser individual, mas sim coletiva. Compreender as tecnologias e métodos que construímos ao longo dos séculos, o pertencimento e essa identidade são fundamentais para percebermos que não estamos sozinhos na luta, mas sim agindo coletivamente e estrategicamente. Foi este pensar que ergueu grandes civilizações, gerou inúmeros conhecimentos e até estratégias de sobrevivência.

AQUILOMBAR-SE É RECONHECER

Como diz um adinkra – conjunto de ideogramas dos povos Akan, chamado ‘Sankofa’: “Nunca é tarde para voltar ao passado e apanhar o que ficou para trás”. É PRECISO

A SUA CAUSA, A SUA LUTA NO

CONSTITUIR ESPAÇOS DE

OUTRO. É o movimento constante

RESISTÊNCIA E FORTALECIMENTO

HISTÓRIAS QUE NÃO NOS CONTAM A história de nossos ancestrais se inicia em Kemet, que significa Terra negra – os gregos chamaram de Egito. Berço das culturas da África Subsaariana, começou a se formar no final do período paleolítico, quando o clima árido do Norte da África e a desertificação do Saara levaram muitos africanos a se mudarem para o Vale do Nilo. Quando pensamos na criação e construção das pirâmides, os keméticos foram pioneiros nas maiores ciências e tecnologias do MUNDO! Nossos ancestrais criaram a medicina, a matemática, a arquitetura, engenharia, astronomia, filosofia, escrita, eletrônica e muitas outras coisas! É necessário sempre resgatar a história de rainhas, faraós e deuses keméticosegípcios como de fato eram: pretos africanos.

de lutas de pretos e pretas contra PARA QUESTIONAR O QUE ESTÁ a invisibilização social e cultural, IMPOSTO, NOS COLOCAR EM exploração e opressão que marcam MOVIMENTO PARA MUDAR a nossa história desde a época da A REALIDADE! escravidão. Quilombos devem ser entendidos como como forma de resistência, pois TÁ NA MÃO eram marcados pela Assista os vídeos para saber mais sobre o tema: Aquilombar para reparar (https://bit.ly/3ieQN4Q) diversidade – onde estavam Ancestralidade – Ocupação Abdias Nascimento (https://bit.ly/38IFw9K) abrigadas as pessoas que não Coletivos negros da UFRJ falam sobre o desafio de aquilombar-se (https://bit.ly/3ibQd7L) viam no sistema colonial uma Írín Afrika: A mensagem subliminar esculpida em antigos portões (https://bit.ly/3icKvlX) alternativa para sua vida. 16

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TEXTO JÚLIA CAVALCANTE, VIRAJOVEM DE SÃO PAULO (SP) IMAGEM RAWPIXEL

T ODO MUNDO ES TÁ MAL? POR QUE

A INFLUÊNCIA NEGATIVA DOS FILTROS DO INSTAGRAM NA AUTOESTIMA DAS PESSOAS PRETAS

U

m sociólogo chamado Jean Baudrillard1 fala sobre a ideia do simulacro. Em resumo, significa que a representação de uma realidade é muito mais legal do que a realidade de fato.

preconceituosa. Por exemplo, os filtros de vitiligo, aplicativos que modificam nosso rosto e iniciativas de blackface em challenges que fingem homenagear a cor da pele pra ganhar likes.

A internet tem sido um dos grandes motivos para nos sentirmos tão mal com essa representação da realidade. O Instagram, que é o quarto aplicativo mais baixado e usado no mundo (e também o mais imagético de todos), é acusado de ser uma das redes sociais mais tóxicas para a saúde mental. Ao rolar o feed e ver vidas tão perfeitas fica difícil a gente se enxergar, se aceitar e não se comparar.

Um fenômeno chamado snapchat dysmorphia tem feito com que muitas jovens norte-americanas mostrem fotos de si mesmas com filtros a cirurgiões plásticos, para indicar como elas querem parecer. Além disso, as intervenções físicas mais procuradas, nos últimos anos, foram rinoplastia e preenchimento labial. Segundo um estudo da Academia Americana de Cirurgiões Plásticos, a motivação de 55% das pessoas que passaram por estes procedimentos, em 2017, foi sair melhor na selfie. Já a procura pela bichectomia – procedimento de afinar as bochechas, teve um aumento de quase 20% só no Brasil, principalmente entre jovens de 15 a 25 anos.

Os filtros do Instagram eram, inicialmente, uma forma de diversão – mas não demorou para que transformassem nosso rosto, aumentando a boca, afinando o nariz, tirando os traços que já somos ensinadas a odiar. Deixar todo mundo com a mesma aparência é especialmente danoso para as pessoas pretas.

Mulheres pretas demoram muito mais para se aceitarem do que as brancas, que sempre foram representadas positivamente. Mulheres pretas retintas têm ainda mais dificuldade de se aceitar e serem aceitas do que as pretas de pele mais clara.

Mulheres pretas não são devidamente “assumidas” nas relações amorosas, o que faz com que elas acreditem que realmente não são bonitas ou boas o suficiente. No mercado de trabalho, muitas vezes, não aceitam nosso cabelo volumoso, o que dificulta assumir sua forma natural. Seja pela história ou por ciclos sociais, sempre somos invisibilizadas e os filtros prejudicam a autoaceitação e autoestima da mulher preta.

É IMPORTANTE LEMBRAR QUE A BELEZA É UMA CONSTRUÇÃO SOCIAL. E O POVO PRETO, AINDA

As próprias configurações das câmeras dos celulares já deixam a gente “pique Kardashian”: além de embranquecer, tem toda uma perspectiva racista e

HOJE, É O QUE MAIS SOFRE COM A FORMA QUE É RETRATADO, DEVIDO À ESTRUTURA RACISTA, GENOCIDA E PRECONCEITUOSA.

1 Saiba mais no livro “Simulacros e Simulação” (1981), publicado no Brasil pela editora Livros do Brasil. Revista Viração • Ano 17 • Edição 117

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TEXTO ISABELLE MOURA, VIRAJOVEM DE SÃO PAULO (SP) IMAGEM FREEPIK

AS MAZELAS DE UMA MOBILIDADE PROJETADA NA

EXCLUSÃO

UMA CRÔNICA SOBRE COMO O TRANSPORTE PÚBLICO DE SÃO PAULO DESCARTA O DIREITO AFRO-PERIFÉRICO À CIDADE

A

mobilidade urbana nas periferias de São Paulo é precária. Apesar da intensa influência do governo no transporte público, há uma diferença gritante entre os terminais centrais e os territórios periféricos. Nas estradas esburacadas, o trânsito diário é comum graças ao mau planejamento urbano. Dificuldade de locomoção é um dos fatores que influenciam o desemprego, principalmente em tempos de pandemia que inflam os transportes públicos. Os valores das passagens não dialogam com a estrutura de estações de regiões extremas, que possuem o maior acúmulo de habitantes da cidade, sendo eles também imigrantes. O planejamento de circulação das frotas de trens e ônibus diariamente atrasam, são quentes e extremamente precários – ocasionando superlotação, atrasos no destino, falta de conforto, cansaço mental e físico.

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A mobilidade nas estradas torna-se desgastante ao sair de casa, deparando-se com o congestionamento e estradas de difícil acesso. Há quem diga que o governo tem certa culpa nisso, influenciando por meio de propagandas invasivas a compra de veículos. Porém, a falha humana é o principal fator do trânsito na cidade. Muitos motoristas são imprudentes e dificultam a locomoção, causando acidentes e até levando vidas. As contradições que vivemos em nossos territórios não condizem com os planos de melhoria. A falta de investimento público nos distritos periféricos torna nosso lar invisível aos olhos da cidade. Teremos um dia algum plano diretor que realmente funcione para a mobilidade?


IMAGENS QUE VIRAM TEXTO E FOTOS PAULO VITOR CRUZ DE OLIVEIRA, VIRAJOVEM DE SÃO PAULO (SP)

DO CELES T E AO BARRANCO RESISTÊNCIA ANCESTRAL DA CULTURA POPULAR E O MEIO AMBIENTE

P

ara quem vive a cultura popular brasileira, a natureza é mãe: abraça a todos, é força geradora de toda vida que brota na criatividade do ser humano. É inspiração, matéria, como diz Ailton Krenak e Mateus Aleluia: é o barro de baixo do chão, tão farta de mistérios.

No #FicaCITA (Centro de Integração de Todas as Artes), espaço que fica no Campo Limpo, Zona Sul de São Paulo, o Maracatu Ouro de Congo, Baque Mulher, a Capoeira de Angola, as Sambadeiras do Samba de Roda, permacultores e ativistas se encontram para proporcionar momentos de escape desse sistema. Ações como oficinas, atividades comunitárias e aulas são rotinas para a comunidade. Ainda assim a comunidade vem passando por um processo de despejo por parte do poder público que quer retirar esse espaço que foi ocupado por essa gente fazedora de mundos, por isso se faz ainda mais importante lembrar alguns desses momentos...

Ainda que dotada de beleza e esplendor, a natureza no atual sistema capitalista-racista não passa de mercadoria, nada além de recurso a ser extraído, desrespeitando crenças, tradições e a conexão dos povos com a natureza. Tudo para que ela possa ser comercializada sem rota, remetente e destino para enriquecer as empresas multinacionais. Hoje, nas periferias de todo Brasil, a cultura popular preserva a memória das nações africanas e indígenas, que transformaram visões sobre o mundo em dança, teatro e música. Esses encontros simbólicos proporcionam o resgate de outro sentido para a vida, transformando o descaso em força geradora para inserir no cotidiano a leveza do viver, com seus ritmos e batuques que convidam o povo para a festa de ser. A natureza foi e é provedora dos sonhos de nossos ancestrais.

#FicaCITA e Permaperifa 25 de maio de 2019

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IMAGENS QUE VIRAM

#FicaCITA, Maracatu Ouro de Congo e Baque Mulher, 20 de Julho de 2019

Em outra borda da cidade, na correria da Avenida Dona Belmira Marim, extremo sul de São Paulo, a rotina não é diferente para artistas populares. Em apresentações nos extremos da cidade, o Grupo Identidade Oculta encena Kalunga Grande: Rios de Sangue, corpos negros jogados ao mar, que retrata as identidades periféricas. Os rios de sangue atravessam a cidade de São Paulo de forma não literal. Basta olhar para a linha férrea que percorre paralela aos rios da capital paulista, os quais seguimos o curso ao circular pela cidade. Nosso povo tem cor, raiz e história – e se faz necessário contá-las. O que foi feito das senzalas? Quem pariu as favelas? 20

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IMAGENS QUE VIRAM

As identidades são múltiplas, próprias da natureza que nos cerca. O grupo Terreiros do Riso, em uma apresentação no Festival Semear Grajaú, às margens da Represa Billings, realiza brincadeiras de criança que tomam forma e o sorriso de quem pisa firme no chão. Não é somente cênico – é resistência. Grupo Identidade Oculta Falando em resistência, o Grupo Semente do Jogo de Angola realizou em 2019 o encontro regional sudeste nas margens da Represa Billings, Ilha do Bororé – SP. O encontro contou com a presença dos mestres Jogo de Dentro e Fabio Formigão, que enriqueceram o grupo ao falarem de suas experiências e compartilharem os fundamentos da capoeira de angola.

Grupo de Capoeira Semente do Jogo de Angola 16 de novembro de 2019

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RACISMO E TECNOLOGIAS DE

RECONHECIMEN T O FACIAL TEXTO THAIS AKEMI E VINÍCIUS MUNHOZ, VIRAJOVENS DE SÃO PAULO (SP)

AO INVÉS DE TRAZEREM A IDEIA DE INOVAÇÃO, AS TECNOLOGIAS DE RECONHECIMENTO FACIAL FALHAM AO CONDENAR INJUSTAMENTE CORPOS NEGROS E PERIFÉRICOS. NESTE ARTIGO, BUSCAMOS ENTENDER MAIS SOBRE ESSA LÓGICA RACISTA

George Floyd era um afro-americano que foi assassinado em Minneapolis no dia 25 de maio de 2020. Floyd foi estrangulado por um policial branco que ajoelhou em seu pescoço durante uma abordagem por supostamente usar uma nota falsificada de vinte dólares em um supermercado. Testemunhas que estavam no local gravaram os seus últimos minutos de vida e o vídeo repercutiu pelo mundo inteiro, desencadeando ondas de protestos contra o racismo. Mesmo após a indignação generalizada com o caso, Derek Chauvin, o ex-policial que sufocou George Floyd, foi libertado da prisão após pagar fiança.

IMAGENS FOTOCOLAGEM* CRÉDITO ILUSTRA

E

m maio de 2020, o assassinato de George Floyd, em Minnesota (EUA), mobilizou manifestantes do mundo inteiro a denunciar um problema que não é recente: o racismo estrutural e a violência do Estado contra corpos negros. Neste contexto, uma tecnologia que nasceu com a promessa de tornar as cidades mais seguras passou a ser amplamente contestada. Trata-se das TECNOLOGIAS

DE RECONHECIMENTO FACIAL, que têm se mostrado

extremamente perigosas ao reproduzirem formas de discriminação e opressão relacionadas às questões de gênero, raça e classe.

Meses depois, um ativista do movimento Black Lives Matter foi preso em Nova Iorque após a polícia usar tecnologias de reconhecimento facial para comparar imagens congeladas de vídeos com uma fotografia sua publicada no Instagram. O ativista foi acusado de usar um megafone para gritar na orelha de um policial. Ao contrário do que foi defendido pelas autoridades locais, as circunstâncias que envolvem a prisão deste manifestante não são de um caso isolado. Todos os dias, pessoas são presas injustamente devido às falhas algorítmicas de um sistema

* Edição e montagem: Manuela Ribeiro | Imagens: Freepik, Rawpixel 22

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que reafirma os preconceitos já existentes em nossa sociedade. Este debate é tão recente quanto o surgimento dessas tecnologias, mas já é possível questionar os limites de sua utilização: o reconhecimento facial será utilizado para identificar suspeitos em casos de roubos e assassinatos ou para seguir e prender manifestantes de acordo com sua cor de pele? Os horizontes quanto ao emprego dessas ferramentas ainda não são muito visíveis, mas não há dúvidas de que provocam sérios abusos de direitos humanos.


TECNOLOGIAS DE VIGILÂNCIA Quando pensamos em tecnologias de vigilância, difícil não lembrar de 1984, famosa obra de George Orwell, que se tornou referência metafórica indispensável para as análises sobre controle e monitoramento social. Na distopia orwelliana, o estado autoritário, comandado pelo Big Brother, vigiava seus cidadãos por meio de dispositivos oculares, as tele-telas, espalhados em todos os lugares. Assim, sob o constante escrutínio do Big Brother, as pessoas viviam constrangidas e auto-regulavam suas maneiras de agir, pensar e falar.

Estado e instituições privadas, estão envolvidos em um esforço massivo de monitorar diferentes camadas da sociedade. O nosso Big Brother é o Big Data – amontoado de dados que alimentam todo tipo de tecnologia e que, ao categorizar seus usuários, reproduzem preconceitos de acordo com o perfil traçado de cada um. Em democracias, a vigilância ocorre de maneira difusa e, cada vez mais, descentralizada. Geramos dados a todo momento quando nos conectamos à internet, e grande parte dessas informações é destinada a empresas privadas que as

utilizam para atender seus interesses capitalistas. Além disso, essas tecnologias que são desenvolvidas em um primeiro momento para interesses privados, acabam também sendo procuradas por governos para facilitar os processos de securitização das cidades. Assim, as empresas exercem o papel de reproduzir, reprogramar e reordenar suas ferramentas para atender as demandas desse outro mercado: o da segurança pública.

Apesar de ser possível traçar paralelos entre 1984 e nossa sociedade, os alcances das tecnologias de vigilância atuais superaram essa visão distópica. A ênfase no Estado como principal agente vigilante, agora parece compor uma visão limitada em uma realidade em que ambos

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ativistas, que pedem o banimento total, as corporações exigem maiores regulamentações por parte dos governos, enquanto acreditam em um processo paralelo de aprimoramento e calibração dos algoritmos para eliminar essas falhas.

APRIMORAR OU BANIR? Para entender mais os dilemas envolvidos neste debate, entrevistamos o professor e pesquisador Alcides Peron, da UNESP, especialista nos estudos sobre vigilância e novas tecnologias.

“Sorria! Você está sendo discriminado.”

É nesse cenário que as tecnologias de reconhecimento facial são implementadas no policiamento urbano, com o intuito de reduzir custos e agilizar os processos de identificação de suspeitos para resolução de crimes. Assim, a partir de uma base de dados de imagens, os departamentos de polícia buscam seus alvos, muitas vezes, em redes nãoregulamentadas e que são repletas de falhas. Estudos mostram que os programas de reconhecimento facial falham em 98% dos casos¹, identificando erroneamente, principalmente, rostos de pessoas negras, de mulheres e crianças, reproduzindo vieses 24

discriminatórios e colocando pessoas vulneráveis em grandes riscos de violência sistêmica. Esses erros são tão comuns e recorrentes que são motivo para movimentações por parte da sociedade civil, que reivindica o banimento total da utilização de reconhecimento facial pelas polícias. A polêmica também chegou a incomodar as três maiores empresas que desenvolvem essas tecnologias, como Microsoft, IBM e Amazon. Elas decidiram suspender o desenvolvimento de ferramentas para a vigilância em massa ou para qualquer outro propósito que viole os direitos humanos. Entretanto, ao contrário dos

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Segundo Peron, as empresas perceberam que, no caso específico de reconhecimento facial, havia muitos erros, já que são tecnologias muito enviesadas, podendo ser consideradas extremamente imaturas ou maduras, dependendo do interesse que atendem. Ou seja, elas são imaturas porque são incompletas e apresentam falhas ou suas imperfeições revelam uma maturidade para reproduzir as práticas racistas, homofóbicas e misóginas já contidas no próprio processo de produção. Muitas vezes, essas tecnologias não são explicitamente racistas, mas toda uma cadeia de decisão revela diversas negligências que são expressas pela incapacidade dos algoritmos terem precisão em reconhecer rostos não brancos. Além disso, a produção de todas as inovações ocorrem dentro do triângulo composto por universidades, empresas e governos, que são compostos principalmente por pessoas brancas, e que utilizam bases de


dados caucasianos. O professor explica que, a partir dos anos 1970, ocorreram algumas mudanças: os centros de inovação são centralizados em empresas privadas que possuem interesses capitalistas por trás de suas operações. Portanto, a tecnologia nunca será neutra, sempre carregará consigo os valores e interesses de um grupo dominante. Desenvolvida essa ideia, Peron reitera sua posição favorável ao banimento das tecnologias de reconhecimento facial, uma vez que elas não possuem efetividade comprovada. Ele afirma que é muito delicado utilizarmos essas tecnologias em países como o Brasil, que já enfrenta imensas dificuldades para se consolidar democraticamente e seguir as diretrizes dos direitos humanos. Então, se ainda somos incapazes de responder a problemas jurídicos e políticos, como vamos implementar ferramentas que irão simplesmente amplificar e aprofundar procedimentos racistas e de violência policial?

CENÁRIO BRASILEIRO No Brasil, desde 2011, as ferramentas de reconhecimento facial vêm sendo utilizadas na segurança pública, nos transportes e no controle de fronteiras. Entretanto, a utilização da tecnologia se tornou especialmente popular apenas em 2019, quando a comitiva do governo Bolsonaro foi à China para importar sistemas capazes de reconhecer rostos dos cidadãos. Assim, essas ferramentas passam a ser largamente utilizadas, principalmente, no carnaval do Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia – cidades que se tornaram centros de implementação de reconhecimento facial. Após o monitoramento realizado pela Rede de Observatórios da Segurança, constatou-se que, de março a novembro de 2019, cerca de 90,5% das pessoas presas flagradas por câmeras eram negras. Enquanto nove cidades nos Estados Unidos já baniram o uso desses sistemas, no Brasil, há uma tendência de expansão de seu uso para diversos estados. Os debates que envolvem os impactos da tecnologia são recentes no país e estão em um processo de amadurecimento, não apenas dentro da sociedade civil, mas no meio jurídico, vide as diversas tentativas de adiamento para a aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que entrou em vigor apenas em setembro de 2020.

Em um cenário em que as regulamentações são muito recentes e não há ainda um consenso mundial quanto ao alcance e limites dessas tecnologias, implementar o reconhecimento facial na segurança pública brasileira exige muita cautela. Enfrentamos um problema grave na área, marcada por abordagens racistas e pela violência e letalidade das polícias. Portanto, investir nessa tecnologia só irá reforçar a discriminação e opressão aos grupos marginalizados. Como destacou Peron, os algoritmos, em si, não são racistas e, muitas vezes, as pessoas que estão programando nem sabem quais serão suas finalidades. Na verdade, o racismo está presente nas etapas do processo de decisão, que são capazes de agregar os valores humanos (já enviesados) no funcionamento das tecnologias. Calibrar e aperfeiçoar os algoritmos, portanto, não parece ser a solução enquanto estruturalmente reproduzirmos discriminações sociais. A implementação da tecnologia de reconhecimento facial, embora traga uma ideia de inovação e desenvolvimento, deve ser banida, uma vez que constitui uma peça perigosa dentro da infraestrutura da vigilância, construída para beneficiar interesses particulares do Estado e de empresas privadas.

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TEXTO LUZIANA FLORA E THAMIRES JABBUR, VIRAJOVENS DE SÃO PAULO (SP) IMAGEM FREEPIK

A

s pessoas usam palavras para atacar umas às outras em diferentes situações. No entanto, quando o outro a quem se quer ferir é uma pessoa negra, indígena ou de outra raça/etnia não branca, muitas vezes são escolhidas palavras que ofendem todo o seu povo. E não só em situações de conflito esses grupos são agredidos verbalmente – no vocabulário cotidiano são usadas palavras agressivas de forma camuflada. Expressões como “neguinha”, “neguinho”, “carvão”, “café”, são exemplos de algumas palavras que as pessoas falam frequentemente para atacar diretamente ou para eufemizar ser negro – como se fosse ruim. Quem escuta pode lidar de diferentes formas com a situação, inclusive ressignificando e adotando como apelido. Nesse ponto, vale reforçar que antes de chamar alguém por um apelido, é necessário saber se a pessoa gosta dele ou não. Eu, Luziana – jovem, mulher, nordestina e negra – já passei por situações racistas que aconteceram através das palavras

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O RACISMO NAS PALAV RAS AGRESSÕES VERBAIS E O (NÃO) USO DO TERMO NEGRO

e afirmo o quanto mexem com o psicológico. Você acaba ficando magoada/o consigo mesma/o, achando que ser negro é errado – quando, na verdade, as pessoas que impõem esse padrão de homem cis branco como ser universal são quem comete o erro de manter opressões que destroem outras formas de ser.

NEGRO OU PRETO? Há algum tempo, emergiu um debate acerca da legitimidade do emprego do termo “negro” em detrimento do vocábulo “preto”. Para tanto, argumenta-se em relação à etimologia do termo negro, oriundo do grego nigro, que designa “inimigo”. Há estudos, entretanto, que indicam que o termo negro é o equivalente à niger, no latim, que conota coloração. O argumento apela ao dilema existente no emprego de negro enquanto adjetivo pejorativo, como em “ovelha negra”, “denegrir”, “mercado negro” etc. É dissertado ainda acerca da relação de disparidade de nomenclatura, sendo preferível que uma pessoa de pele escura seja denominada

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preta, remetendo a pigmentação, bem como ocorre com pessoas de pele branca. Ainda existe tímida pesquisa acadêmica nesse sentido, novas perspectivas sobre o tema haverão de ser debatidas. Há ainda certa relutância em relação a denominação “preto”, muitas vezes posta como ofensiva, ao passo que coletivos ainda se autodenominam negros. A linguagem é viva, dinâmica e reflete a cultura de uma sociedade. A seleção de vocábulos reflete em muito nossos valores e particularidades. Seja qual for sua origem, o termo foi ressignificado graças às lutas da sociedade civil, deixando de possuir a conotação negativa de outrora. Seja como for, é vital que procuremos usar racionalmente a linguagem a fim de não propagar preconceitos. Na dúvida, pergunte a pessoa como ela prefere ser denominada ou simplesmente a chame pelo nome.


TEXTO REYNALDO DE AZEVEDO GOSMÃO, VIRAJOVEM DE LAVRAS (MG) E LORRANNY CASTRO, VIRAJOVEM DE BRASÍLIA (DF) IMAGEM FREEPIK

A

p roblemática do racismo é compreendida como estrutural, uma vez que sujeitos, serviços e equipamentos de saúde pública são replicadores dessa lógica. Um primeiro reflexo do problema origina-se do afastamento da população negra quando estes não recebem atendimentos igualitários, por causa de distorções históricas. Os efeitos da escravidão repercutem nos dias atuais de forma densa. Por exemplo, para acessar à saúde, a população negra muitas vezes esbarra em outras dificuldades – como horários de atendimento desalinhados aos jornada de trabalho, falta de equipamentos no território, dificuldades de mobilidade para atendimentos especializados, não presença de médicos ou psicólogos negros e outros fatores que interferem de forma direta na possibilidade dos sujeitos negros em frequentar os equipamentos de saúde e seus serviços. Um segundo reflexo diz respeito ao próprio dano que o racismo causa nos sujeitos, deixando marcas de sofrimento psíquico, que reverberam também em outras doenças no corpo. A perversidade do racismo é tão grande, que muitos não se sentem no direito de buscar atendimento

RACISMO E EQUIPAMENTOS DE

SAÚDE PÚBLICA

COMO A LÓGICA RACISTA RESULTA EM BARREIRAS DE ACESSO AOS EQUIPAMENTOS DE SAÚDE PÚBLICA?

psicológico ou médico, por não se sentirem à vontade em receber tais cuidados. O Brasil é tangenciado por um projeto colonizador de se projetar como um país branco. Para romper essa lógica são necessários avanços e representatividades, defender nas graduações disciplinas obrigatórias sobre a saúde de negros, para que seja possível atravessar os estereótipos de quais serviços à população negra devem receber. Os usuários que vão até os equipamentos de saúde têm direito de se submeter a todos os tratamentos que são ofertados e regulamentados pelo SUS.

é a possibilidade para que a população negra tenha acesso aos serviços em sua integralidade, como tem ficado evidente no tratamento da COVID19.

TÁ NA MÃO Quer saber mais sobre como o racismo se manifesta por meio da violência obstétrica? Leia o artigo no site da Agência Jovem de Notícias (http://bit.ly/38NfItb).

É importante que a manutenção da saúde pública seja pelas vias da defesa do Sistema Único de Saúde (SUS), por ser uma política pública nascida na Constituição de 1988 e que tem como prisma a universalidade, equidade e integralidade no serviço público de saúde. A integralidade e a equidade são fundamentais para um avanço de saúde pública antirracista, uma vez que as diversidades são garantidas e os serviços de saúde são ofertados a partir dos atravessamentos sociais, raciais, territorial e de gênero. O SUS Revista Viração • Ano 17 • Edição 117

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TEXTO ADRIANA MIRANDA, VIRAJOVEM DO CAPÃO REDONDO; ZONA SUL DE SÃO PAULO (SP) IMAGEM FREEPIK/ WAYHOMESTUDIO ÀGÒ* AOS ANCESTRAIS ÀGÒ A MINHA YALORIXÁ*. ÀGÒ MEU PAI OXÓSSI*, DONO DO MEU ORÍ* E DO MEU CORAÇÃO.

LAROYE EXÚ! “AFéto”, “Aquilombamento” e “Resiliência“ são as palavras que eu usaria para descrever o candomblé, religião cheia de preceitos e segredos e uma das mais perseguidas no Brasil, porém, cresci ouvindo denominações como “Invocação do demônio”, “Seita Maligna” ou “ Discípulos de Satã” no núcleo familiar evangélico em que nasci quando se referiam às religiões de matrizes africanas. No início de 2018 me iniciei no Candomblé e enquanto passava pelos rituais, a casa sofreu um ataque no qual apenas objetos pessoais foram levados e saímos com nossas vidas preservadas. No mesmo ano, o terreiro “Ilé Asè Ojú Oyà”, o qual faço parte, foi covardemente invadido e teve seus assentamentos de Orixás quebrados e outros pertences roubados, resultando em uma família traumatizada em meio a boletins de ocorrências e visitas policiais. É controverso pensar que o Brasil tornou-se um Estado laico em 1890,

IN T OLE RÂNCIA RELIGIOSA

É EUFEMISMO POR QUE DEVEMOS CHAMAR AS COISAS PELO NOME CERTO? por meio de decreto. A laicidade pressupõe que o poder público não pode favorecer nem prejudicar o exercício de qualquer religião, mas encontramos ainda hoje nas notas do real a frase, “Deus seja louvado”. O mesmo Deus que no Rio de Janeiro, é usado por traficantes como escudo para atacar terreiros e proibir cultos. Toda essa violência é motivada por duas principais fontes, a primeira é a crença exclusiva em uma verdade única e a segunda é o racismo institucional que favorece, com amparo das leis, a intolerância religiosa. Em meados do século XIX a elite brasileira apoiou políticas públicas pautadas na ideologia de branqueamento que consiste em importar europeus para embranquecer a população e a cultura do país, assim contribuindo para a estruturação dos ideais racistas na formação da sociedade brasileira. Dessa forma, mesmo que tenhamos o Direito à liberdade de culto, estamos caminhando ao lado contrário dos ideais cristão e branco do nosso país. Em resposta a essa estrutura racista, intolerante e ignorante o povo de axé se levanta cada vez mais forte, se reconstrói a cada invasão e se arma com os ferros de Ogum, cria estratégias silenciosas movidas pela força de

Oxum, e caminha lado a lado com o orixá Exu dono de todas as chaves e conhecedor das encruzilhadas. O povo de axé guerreia diariamente, criando núcleos que reivindicam o nosso Direito de culto, como o “Mulheres de Axé do Brasil” que tem sede em diversos estados como Bahia, São Paulo, Pará e Rio de Janeiro. A “Coletiva Inã” grupo artístico que faço parte e que tem como base de pesquisa vivências pretas, periféricas e de Candomblé. O “Samba de Dandara” que canta a história dos orixás e a força do povo preto. E tantos outros núcleos e grupos que ainda estão por vir, mesmo que a luta seja árdua, nós não voltaremos ao banzo! Não vão calar nossas vozes! O som do nosso tambor ecoa, mesmo quando ele está em silêncio.

MOTUMBÁ!

Àgó: Licença | Yalorixá: Sacerdotisa responsável pelos atos e rituais de um terreiro. Mãe de Santo. | Oxóssi: Divindade conhecedora das matas, responsável pela caça e fartura. | Orí: Cabeça. 28

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TEXTO MARIANA ASSIS, RIO DE JANEIRO (RJ)

EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA POR MEIO DA ART E COLETIVO LEVA HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA A ESCOLAS EM SÃO PAULO

N

este ano, na esteira dos protestos que evocam que #VidasNegrasImportam, milhões de pessoas levantaram a voz contra o racismo, sistema responsável por matar um jovem negro a cada 23 minutos no Brasil. Mas engana-se quem acha que só a morte consumada seja uma violência racista. Já parou para pensar na gravidade que é não saber sobre seus antepassados? Conhecer as personalidades que tanto lutaram por igualdade racial e viabilizaram a nossa existência? Você conseguiria listar quantos autores negros leu na escola? A lei 11.645/2008 tenta contornar essa deficiência com a inclusão no currículo oficial da educação básica a obrigatoriedade da temática história e cultura afro-brasileira e indígena. Importante para minorar os efeitos da desigualdade racial no Brasil, a aplicabilidade da lei, no entanto, ainda enfrenta percalços, seja pela falta de conhecimento da história negra ou até mesmo de professores aptos a ensinar sobre o assunto. Foi a partir desse lugar de incômodo que nasceu o coletivo Malungo, criado em 2013 por

três educadores negros da periferia de São Paulo. Lili Souza (38), Kleber Luiz (39) e Avelino Regicida (35) estavam reunidos batendo papo sobre temas sociais quando tiveram a ideia de desenvolver materiais educativos que abordassem os temas previstos pela lei. Foi o pontapé para a estruturação de oficinas formativas em escolas e institutos para debater como o racismo estrutura a sociedade. As oficinas não tem formato fixo, pois a proposta do Malungo é adequá-las de acordo com o público. Assim, tanto um documentário pode ser o responsável por puxar uma discussão, como uma letra de música, por exemplo. “Como nossas formações são para jovens e adultos, usamos uma variedade de linguagens artísticas que permitem entrar nos temas que o coletivo trabalha”, comenta Lili Souza.

Os idealizadores do projeto destacam que os debates sempre pautam os efeitos do racismo institucional, a truculência policial, o genocídio da população preta, pobre e periférica. O objetivo é, por meio de conversas informais, suscitar a tomada de consciência dos efeitos que o racismo oferece à sociedade, entendendo que parte de um projeto histórico de extermínio e subalternizaçao dos negros. “Queremos uma escola que assuma a pauta e luta pelo fim do racismo”, eles pedem.

TÁ NA MÃO Assista ao documentário Malungo – Não deixe sua cor passar em branco! (https://bit.ly/38Ngial), produzido pelo coletivo. Está disponível no YouTube.

“A escrita também é uma forma que encontramos de refletir sobre os temas abordados pelo coletivo. Já publicamos zines e duas edições do Caderno Ilustrado Africanidades Brasileiras, que é um dos materiais educativos”, complementa.

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TEXTO ANA ROSA CALADO CYRUS, VIRAJOVEM DE BELÉM (PA) IMAGEM FREEPIK/ RACOOL_STUDIO

Q

uando tenta-se conceituar o que é ser uma mulher, na maioria das vezes, nos referimos a padrões que foram estabelecidos pelo sistema hegemônico – branco, patriarcal – e há uma determinada limitação que as amarras da sociedade, que possuem suas raízes fincadas nos pensamentos coloniais, nos limitam de enxergar o que está além, de tocar no que a dimensão do saber dominante não consegue alcançar.

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AFINAL DE CONTAS… SOU UMA MULHER?

COMO O RACISMO ATUA E SE MANIFESTA DENTRO DO RECORTE DE GÊNERO

O corpo, a essência, o SER mulher negra sofre constantes tentativas de silenciamento e é colocado em segundo plano, em detrimento da valorização das padronizações estabelecidas, sofre violências que incidem em diferentes instâncias das realidades destas mulheres. Neste sentido:

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A desvalorização da natureza feminina negra ocorreu como resultado da exploração sexual das mulheres negras durante a escravatura que não foi alterado no decurso de centenas de anos. Já previamente mencionei que enquanto muitos cidadãos interessados simpatizaram com a exploração das mulheres negras quer durante a escravatura quer após, como todas as vítimas de violação da sociedade patriarcal elas eram vistas como tendo perdido valor e dignidade como resultado da humilhação que elas suportaram. As crônicas da escravatura revelam que o mesmo público abolicionista que condenou a violação das mulheres negras olhou-as mais como cúmplices do que vítimas. (HOOKS, 1981, p. 40)

Foi tirado o direito da mulher negra ter dignidade, tiraram sua humanidade, a olham como objeto, uma moeda que vale para troca, a reduziram a ALGO e tiraram a possibilidade de a mulher negra ser lida como ALGUÉM. bell hooks ainda situa que difunde-se, na atualidade, por meio de diferentes mecanismos, a ideia da mulher negra como possuindo índole ‘negativa’. A representam de forma contrária ao que que a sociedade lê como necessário para construir o mundo que desenham como ideal. Afinal de contas, a mulher negra não é aceita por trazer em seu corpo recortes que a todo momento questionam as estruturas estabelecidas pelas discussões referentes às entranhas que dão base para as ordens que difundem as relações entre sexo e as questões raciais. Nas palavras de bell hooks:


Todos os mitos e estereótipos usados para caracterizar a natureza feminina negra tiveram as suas raízes na mitologia anti-mulher. No entanto, eles formaram a base da maior investigação crítica à natureza da experiência das mulheres negras. Muitas pessoas tiveram dificuldade em apreciar as mulheres negras como nós somos devido à avidez em impor uma identidade sobre nós, baseada num sem número de estereótipos negativos. Os esforços de disseminação contínua de desvalorização da natureza feminina negra tornaram extremamente difícil e frequentemente impossível às mulheres negras desenvolverem um auto-conceito positivo. Porque somos diariamente bombardeadas por imagens negativas. De facto, uma força opressiva foi este estereótipo negativo e a nossa aceitação disso como um papel viável e modelo sobre o qual podemos modelar as nossas vidas. (HOOKS, 1981, p. 26)

A realidade é que a mulher negra sofre com investidas constantes – violentas e desumanas – para ser inserida nos padrões do que acreditam que seja sua identidade; tiram dela o direito de conhecer-se, de se descobrir, viver suas histórias e não passar o resto de seus dias servindo a uma HISTÓRIA ÚNICA… contada por uma pequena parcela de pessoas que é criada para manter o poder concentrado nas suas mãos, negando aos demais o direito de sobreviverem, de conhecer suas essências e desenharem sua história. É preciso refletir sobre como, ao longo de todos os passos dados por mulheres negras, elas precisam triplicar suas forças, já que não é possível encontrar suas pautas em todos os movimentos que surgiram ao longo dos tempos pedindo libertação, inclusive dentro do movimento feminista. Enquanto mulheres brancas pediam pelo direito ao voto, mulheres negras

reivindicavam o direito à sobrevivência; enquanto mulheres brancas solicitavam o direito de irem às ruas para trabalhar, mulheres negras clamavam pelo direito de terem o que comer e onde morar. Não há como dizer que a história das mulheres negras pode ser lida sem levar em consideração recortes que insistem em a manter como objetos. Eu, como uma mulher negra, aos olhos do sistema patriarcal, não sou uma mulher. Mas aos olhos da resistência de quem luta para existir e estar neste mundo, sou. Que lutemos para que todas essas raízes profundas do sistema opressor, que desgasta o diferente até que desapareça, o qual oblitera da realidade quem não está dentro dos seus moldes, que ele sim desapareça. E não iremos desistir disso, afinal de contas… somos MULHERES NEGRAS!

TÁ NA MÃO! Quer ler mais sobre isso? Se liga! Sojourner Truth (1797-1883) foi a primeira mulher negra a pensar a feminilidade com recorte de raça. Vale ler seu discurso “Ain’t I A Woman?”, proferido na Convenção de Mulheres (Women’s Convention) em Akron, Ohio, no ano de 1851. Conheça mais sobre ela: A potência de Sojourner Truth (http://bit.ly/38IzBRV) Vamos falar de outras feminilidades: Se não sou uma mulher? (http://bit.ly/3spQ9Gd) Não sou eu uma mulher: Mulheres negras e feminismo, de bell hooks, escrito a partir do discurso de Sojourner Truth, é uma obra fundamental sobre a mulher negra, o racismo e sexismo presentes no movimento pelos direitos civis e no feminista. Leitura obrigatória para a construção de um mundo sem opressão sexista e racial.

Referência: HOOKS, Bell. Não sou eu uma mulher. Mulheres negras e feminismo. 1ª edição, 1981. Tradução livre para a Plataforma Gueto. Janeiro, 2014. Revista Viração • Ano 17 • Edição 117

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TEXTO LUCAS VALENTIM, VIRAJOVEM DE SÃO PAULO (SP) IMAGENS FREEPIK

H OMOAFE T I VI DA DE E O RACISMO NAS ESTRUTURAS DAS RELAÇÕES HUMANAS DO CONTEMPORÂNEO COMO SER UM HOMEM MODERNO SEM TER ATITUDES TÓXICAS EM UMA SOCIEDADE EM DESCONSTRUÇÃO?

E

xistem lutas constantes sobre o racismo e como ser afetivo nas interações homossexuais e, nessas guerras diárias, deixamos de resolver problemas que se transformam em traumas e até tumores cerebrais. Em uma conversa com o Rafael Santos, homem cis preto, estudante de Serviço Social na PUC morador do Grajaú, na zona sul de São Paulo, entramos em um diálogo longo sobre racismo e homoafetividade. Nesse texto trago algumas dessas reflexões. Nessas pautas, são levantadas questões que nos atravessam todos os dias. Rafael contou um pouco das suas experiências sobre quanto foi difícil achar uma referência de como ser um homem não tóxico. Quando criança era cobrado para adotar uma postura de “cabra macho”, ser rígido, sem “dar pinta”, não dançar, mostrar o que é ser homem aos familiares, definindo o quanto ser hetero cisgênero é a “salvação de uma nação”. Esse relato nos lembrou o caso

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recente e trágico do menino Alex, que sofreu medidas “corretivas” do pai por gostar de lavar louça. Essas medidas corretivas se transformaram em agressão que culminou com a morte da criança – um exemplo concreto de como a masculinidade é tóxica.

procurava por homens brancos de olhos azuis, como o ideal de um padrão a ser buscado. Suas relações interracias foram divisões de entendimento sobre a objetificação do corpo negro como sendo o ideal para a raça branca.

Passei pelos mesmos desafios quando criança: humilhado sem mesmo entender o que eram as ofensas homofóbicas e racistas. Os lugares em que me encontrava eram de ironizar todo esse discurso junto aos agressores, fingindo que nenhuma palavra me atingia, deixando-os ainda mais agressivos. Então, vivia me poupando de estar perto de meninos cis-normativos-héteros, depois que percebi que não me encaixava em nenhum padrão que fosse imposto.

Dialogamos sobre essa visão de corpo negro cisgênero e de suas dificuldades e facilitações dentro da sociedade machista e racista que destrói pessoas emocional e fisicamente, naturalizando a agressão, a rejeição ou simplesmente por ouvirem um não, mostrando suas verdadeiras faces.

O Rafael contou que, quando passou a entender a sua sexualidade, começou a se sentir permitido a se relacionar com pessoas do mesmo sexo, mas ainda na pauta do racismo,

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Soluções para ceifar essa agressividade masculina devem ser implementadas em sala de aula. Exemplos práticos dessa solução podem ser vistos em projetos como a “Semana Integrada de Combate ao Racismo”, realizada na cidade de Salvaterra – Pará, que em sua quinta edição abordou o tema “Da África para o mundo”.


Relações amorosas são as buscas verdadeiras de um ser humano. Falar é fácil, eu sei. Na prática, quando um casal está junto, sempre existe a busca de encontrar no outro uma solução de vida. Com o amor, com o tesão de pele com pele, muitos se prendem em casos que são complexos, nas barreiras raciais sobre se relacionar; são as afetividades que vão além das etapas morais e sociais, que fortalecem romances duradouros. Mas homens pretos gays procuram se relacionar com homens brancos e mulheres também; quando existe contato sexual é “sem compromisso”, com a justificativa do ‘não querer’ feridas emocionais – o que acaba machucando ainda mais as pessoas pretas nessa busca de um par ideal. Infelizmente, isso também acontece em sites de relacionamentos homossexuais masculinos. Na prática, o sexo vence e o romance falha. No meio dessas lutas, pretos e pretas estão se amando, mudando essa realidade, construindo relações afrocentradas. Para refletir sobre esse assunto, a autora Claudete Alvez traz em seu livro intitulado “Virou Regra”, reflexões sobre sobre a solidão da mulher negra e a sua subjetividade face

ao preterimento pelo homem negro. A obra é resultado de sua dissertação de mestrado em Ciências Sociais, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Homoafetividades passam ainda pela busca de igualdade de direitos, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em alguns países esse direito já foi conquistado, como na Holanda, no Uruguai, nos EUA, na Irlanda, na África do Sul e no Brasil, mas o caminho ainda é longo.

Por fim, é importante ter atitudes mais saudáveis na modernidade do século XXI, como a de manter-se bem informado sobre a comunidade queer e suas relações interraciais. Conhecer essas realidades te fortalece e ajuda a ter uma existência menos tóxica, além de criar hábitos mais positivos na construção de igualdade social e econômica mundial.

TÁ NA MÃO! Quer saber mais? Pega a visão! Teoria queer – uma política pós-identitária para a educação (http://bit.ly/2KitESq) Glossário LGBT+: Entenda o que é queer, interssexual, gênero fluido e mais (https://bit.ly/3srrb9i) Um caminho estratégico contra evasão escolar e fortalecimento da autoestima (https://bit.ly/3iaB9HD) Veja uma lista de países que já legalizaram o casamento gay (http://glo.bo/35ChxHa)

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QUANDO UMA VOZ É A DE

MUIT OS

RELATOS DE IMIGRANTES SOBRE O RACISMO E A XENOFOBIA NO CONHECIDO PAÍS DAS OPORTUNIDADES

A

noção de que o Brasil é um país hospitaleiro, onde todos os imigrantes são bem-vindos, não passa de um mito. O solo brasileiro é sim rico em oportunidades; a educação, o transporte, o mercado se comparados ao meu país de origem, Angola, são muito melhores. Mas, apesar do Brasil ser um país altamente miscigenado, constituído por variadas raças, lamentavelmente persistem situações de racismo e descaso para com os imigrantes – estes que possuem apoio na mesma medida em que sofrem constantemente com a exclusão. Já cheguei a passar por situações desanimadoras, pela minha pele negra ou por ser africana e angolana.

Penso que talvez seja difícil para muitos nativos entenderem que todos neste mundo têm o direito de crescer, desde que mereçam e corram atrás daquilo que é seu. O caminho é a mudança. Em pleno século 21, o importante deveriam ser as pessoas pelo que elas são. Não é natural que estimulemos tais comportamentos incongruentes. Devemos lutar contra o Racismo, pela inclusão e por dias melhores. TERESA SEBASTIÃO, ANGOLANA. HÁ 11 ANOS NO BRASIL.

A migração ocorre em todo o mundo por diferentes situações: econômica, familiar ou de trabalho. O desejo de sobreviver com um sustento adequado nos faz procurar maneiras de fazer isso. No nosso caso, foi a busca por um futuro melhor para nossa família, então decidimos viajar para o país das oportunidades. Porém, para estar neste lugar, passamos por situações desconfortáveis, ​​ como o racismo. Agora não é como antes, que nos insultaram ou mesmo agrediram fisicamente, agora apenas te olham, e há uma sensação de que não pertencemos a mesma sociedade que eles. Há uma rejeição geral de culturas diferentes às suas. Um Quichua Otavalo é reconhecido por sua longa trança e suas características faciais facilmente. Ao caminhar por ruas que não são típicas da nossa cultura, sempre nos sentimos reprimidos, nos veem como algo estranho e nos consideram inferiores a eles, apesar de todos termos os mesmos direitos, deveres e obrigações, e como migrantes sabemos disso, mas somos livres e temos o poder de escolher o melhor para nós e para nossas famílias. Para acabar com este problema há que criar uma mudança de pensamento em todas as pessoas, embora só com o tempo os resultados desse trabalho serão evidentes. MOISES TABI E LAURA VEGA, EQUATORIANOS DE ORIGEM INDÍGENA. HÁ 1 ANO NO BRASIL

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CUANDO UNA VOZ ES LA DE

MUCHOS

TEXTO TERESA SEBASTIÃO, MIGRANTE DE ANGOLA; MOISES TABI E LAURA VEGA, MIGRANTES DE EQUADOR

RELATO DE INMIGRANTES SOBRE RACISMO Y XENOFOBIA EN EL CONOCIDO PAÍS DE LAS OPORTUNIDA

TRADUÇÃO JENNY DE LA ROSA IMAGENS FREEPIK

L

a noción de que Brasil es un país hospitalario, en donde todos los inmigrantes son bienvenidos, no pasa de un mito. El suelo brasileño, es rico en oportunidades, sí; la educación, transporte, opciones de mercado, entre otros, si lo comparamos a mi país de origen, Angola, son mucho mejores. Pero, a pesar de que Brasil es un país altamente mestizado, constituido por variadas razas, lamentablemente persisten situaciones de racismo y negligencia con los inmigrantes, estos, que son apoyados en la misma medida en la que sufren constante exclusión. Ya llegué a pasar por situaciones desalentadoras, por mi piel negra o por ser africana y angolana.

Pienso, que tal vez sea difícil para muchos nativos entender que todos en este mundo tienen el derecho de crecer, desde que merezcan y vayan atrás de lo que es suyo. El camino es el cambio. En pleno siglo 21 lo importante deberían ser las personas, por lo que ellas son. No es natural que estimulemos comportamientos incongruentes. ¡Debemos luchar contra el racismo, por la inclusión y por días mejores! TERESA SEBASTIÃO, ANGOLANA. 11 AÑOS EN BRASIL.

La migración ocurre en todo el mundo, por situaciones económicas, familiares, o laborales. El deseo de sobrevivir con un sustento adecuado hace que busquemos maneras para lograrlo. En nuestro caso, fue la búsqueda de un futuro mejor para nuestra familia, por eso decidimos viajar al país de las oportunidades. Pero, para poder estar aquí pasamos por situaciones incómodas como el racismo, ahora no es como antes, que nos insultaban o hasta llegaban a agresiones físicas, ahora te quedan mirando y hay una sensación de que no se pertenece a la misma sociedad que ellos. Hay un rechazo generalizado a diferentes culturas que no son la suya propia. A un quichua Otavalo lo reconoces por su trenza larga y sus rasgos faciales, claramente. Al caminar por calles que no son las habituales de nuestra cultura nos sentimos reprimidos, nos ven como algo extraño y nos consideran inferiores a ellos, a pesar de que todos tenemos los mismos derechos, deberes y obligaciones, y como inmigrantes sabemos de esto, pero somos libres y tenemos la facultad de elegir lo mejor para nosotros y nuestras familias. Para terminar con este problema hay que crear un cambio de pensamiento en todas las personas, aunque solo con el tiempo se verán los resultados de este trabajo. MOISES TABI Y LAURA VEGA, ECUATORIANOS E INDÍGENAS. 1 AÑO EN BRASIL.

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TEXTO GIOVANNA FELICIANO E JULIA CAVALCANTE, VIRAJOVENS DE SÃO PAULO (SP) IMAGENS FREEPIK

P

arece até coisa de outro século, mas não é. Estilistas, produtores e pessoas ligadas ao universo da moda muitas vezes não querem associar a figura do negro às suas criações. É inadmissível pensar que, mesmo sendo maioria no território brasileiro, o povo preto ainda seja representado por pessoas brancas. Afinal, qual é o sentido em manter um “padrão de beleza” que oprime e exclui? O mundo da moda é extremamente racista e somente através da luta antirracista este cenário mudará. Diversos coletivos – principalmente protagonizados por mulheres pretas – têm lutado por espaço no mundo da moda. Em entrevista para a Revista Glamour, Natasha Soares, modelo que faz parte do coletivo “Pretos na moda”, diz que: “Não tem como combater o racismo se não colocarmos um rosto na luta”.

RACISMO NO MUNDO DA MODA E NAS PASSARELAS AO COMPRAR UMA PEÇA DE ROUPA VOCÊ JÁ SE QUESTIONOU SE O QUE VOCÊ CONSOME ESTÁ ALINHADO AOS SEUS IDEAIS? no São Paulo Fashion Week, foi a primeira marca de moda indígena a desfilar no evento: “Uma coleção que nasceu do racismo, do preconceito, mas a nossa resistência venceu todos os obstáculo”. Carol Barreto, designer de moda autoral e professora do departamento de Estudos de Gênero e Feminismo na UFBA, conta em entrevista para o “Canal Preto” :“Tanto minhas pesquisas acadêmicas, como telas que pintei, exposições que eu fiz, instalações, desfiles, performances – todos colocavam o corpo como centro de um debate sobre os marcadores sociais da diferença”. Carol também diz que em 2000 era uma das poucas criadoras negras pautando sua ancestralidade e sua negritude nas imagens que produzia e, com o passar do tempo, percebeu que “imagem não é o suficiente, mas o processo e as pessoas que compõem a produção dessa imagem”.

Atualmente, podemos dizer (com orgulho) que o mercado vem sendo revolucionado por grandes artistas pretos e indígenas dentro e fora do país – como a artista Indígena We’e ena Tikuna. Formada em artes plásticas, ela desenha e confecciona suas próprias coleções. Em 2019,

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Moda e aparência podem sim ser formas de manifestar o ativismo político na luta antirracista. Por isso é importante que, quando for consumir um produto, você entenda o que está por trás dele: quais foram as mãos que fabricaram aquela peça, se estas pessoas foram bem remuneradas, quais corpos desfilaram pelas passarelas para sua divulgação, quantas pessoas pretas estavam envolvidas nesse processo como protagonistas – e não apenas no backstage -, quais conceitos estão atrelados a imagem daquela marca. A MODA É REFLEXO DAS DISTÂNCIAS SOCIAIS E DA MARGINALIZAÇÃO DOS CORPOS PRETOS. Somente com a manifestação de insatisfação por parte de quem consome – ou seja, quando mexermos no bolso das pessoas que estão envolvidas nesses processos racistas – teremos alguma mudança significativa.

TÁ NA MÃO! Entrevistas que valem a pena conferir: Emicida responde: Um moletom da Laboratório Fantasma é muito caro? (https://bit.ly/2LN9FM7) Futuro da Moda: Racismo com Carol Barreto (https://bit.ly/39u8LfD)


CONSTRUÇÃO DE NARRATIVAS NA LITERATURA E NO AUDIOVISUAL

TEXTO GEOVANA NOGUEIRA, JÚLIA CAVALCANTE E THAMIRES JABBUR, VIRAJOVENS DE SÃO PAULO (SP) IMAGENS FREEPIK/JCOMP

A IMPORTÂNCIA DA REPRESENTATIVIDADE PRETA E INDÍGENA NAS TELAS E ESTANTES.

A

s artes pretas e indígenas abrem os caminhos da ancestralidade – nos permitem buscar elementos para inspirar e refletir sobre o que acontece hoje. Somos povos que resistem através da cultura. No entanto, a história é marcada por falta de representatividade nos grandes meios, originada por práticas que invisibilizam pessoas não brancas e, acima de tudo, constroem narrativas racistas que as afetam diretamente. O mercado editorial brasileiro segue majoritariamente masculino e branco. Autoras pretas e indígenas ainda são pouco publicadas por grandes editoras, seja nas obras literárias de ficção ou de não-ficção. A falta de espaço em grandes editoras e o racismo institucional que desvaloriza a produção intelectual da população não branca são alguns dos motivos para a menor presença da literatura preta e indígena em estantes e livrarias. Quantos livros escritos por pessoas pretas e indígenas você já leu? Quantos autores e autoras pretas e indígenas você conhece? Algum/a autor/a negro/a ou indígena já foi leitura obrigatória ou indicada em sua escola ou universidade? A lógica se repete em séries televisivas, no cinema, na publicidade e outras áreas

das mídias audiovisuais. Na TV, principal veículo de comunicação de massa no Brasil, a falta de representatividade ainda hoje é nítida – seja nas novelas, noticiários ou demais programação. Isso influencia ativamente na construção das identidades das populações negra e indígena e na forma como são vistas na sociedade. E quando falamos em representatividade, não é sobre pessoas não brancas simplesmente aparecerem nas telas e estantes – mas serem bem representadas por pessoas e personagens que respeitem a história e cultura de seus povos. A literatura e o audiovisual não são espaços exclusivos da narrativa do real, mas constroem imagens que cruzam a fronteira e se concretizam na realidade. Um dos maiores exemplos disso é o impacto do blackface (prática de pintar atores brancos para interpretarem pessoas pretas) no reforço e construção de estereótipos racistas. Essa prática, nascida no teatro e muito utilizada nas primeiras décadas do cinema, trata-se da representação de pessoas negras de forma ridicularizada e violenta. Dessa e de outras formas ainda muito presentes atualmente,

o modelo de identidade negra difundida nos meios que atingem diretamente a população acabam alimentando um imaginário de exclusão e reforçando estereótipos sobre pretos e pretas na sociedade. Quando pessoas pretas e indígenas têm a oportunidade de mostrar suas próprias narrativas escrevendo, dirigindo ou atuando como personagens que de fato as representam, os impactos são enormes. Fortalecem a autoestima de quem sempre se viu retratado/a de maneira pejorativa – se ver em cima de um palco, nas telas ou páginas, brilhando, reforça a crença em si e no próprio povo.

TÁ NA MÃO Leia as matérias complementares “5 autoras pretas que você precisa conhecer” (http://bit.ly/3icvn8g) e “O blackface e a construção de estereótipos racistas no audiovisual” (http://bit.ly/3oIeOn2), disponíveis na Agência Jovem de Notícias.

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NO ESCURINHO TEXTO GABRIEL GONÇALVES, JULIA CAVALCANTE, LUZIANA FLORA E THAMIRES JABBUR; VIRAJOVENS DE SÃO PAULO (SP) IMAGEM FREEPIK

MOONLIGHT: SOB A LUZ DO LUAR

PIPOCA COM LUTA:

VISIBILIDADE PRETA NO CINEMA FILMES PARA ASSISTIR E SE VER NA TELA

2016 | 110 min

Sob direção de Barry Jenkins, a obra indicada a 8 categorias do Oscar, vencendo como Melhor Filme e Melhor Diretor, retrata o decorrer da vida de Chiron (Alex Hibbert, Ashton Sanders e Trevante Rhodes), um jovem negro residente de uma comunidade pobre de Miami. A trama relata a jornada do menino tímido que tem como mentor o líder local do tráfico (Mahershala Ali) até chegar à vida adulta. O filme é uma jornada pelo autoconhecimento que supera as barreiras do lugar comum ao despir-se dos estereótipos de masculinidade do homem preto.

BLACK IS KING 2020 | 85 min

O filme “Black is King” é uma releitura de O Rei Leão. A história mostra a trajetória de um jovem preto como representante de um povo, não sendo somente ele o protagonista, mas toda a população preta. Com estética afro surrealista, cheia de referências à cultura africana, ao pan-africanismo, movimento negro, religiões de matriz africana, arte contemporânea 38

e moda, a obra é uma aula de história, espiritualidade e representatividade preta. Tudo isso, claro, com muita música de artistas e produtores africanos. As canções que compõem Black is King narram a história de O Rei Leão em um novo contexto, em que a linguagem musical transpõe toda a trajetória de Simba como um jovem preto que enfrentará tudo aquilo que o leãozinho passou no filme, mas no contexto sócio-histórico. Simba possui uma família, suas raízes, um par romântico, tudo o que o havia na animação. Porém, neste filme, Simba tem questões sociais, raciais e identitárias que interferem e o marcam como um jovem preto que precisa enfrentar muitos desafios em busca de um final feliz. Há uma minissérie que realiza uma análise bem completa do filme no canal Spartakus, disponível no YouTube.

O ÓDIO QUE VOCÊ SEMEIA  2018 | 133 min Baseado no livro homônimo escrito por Angie Thomas, o filme mostra a história e força de uma garota negra chamada

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Starr Carter, que presenciou seu melhor amigo (Khalil) sendo brutalmente assassinado por um policial branco que supostamente viu o jovem com uma arma na mão. Após perdê-lo, Starr entra em uma luta que antes resistia em enfrentar. Pressionada, ela testemunha a favor de seu falecido amigo, desmascarando o preconceito e racismo que há envolvido no crime. O enredo deixa claro como o racismo é presente nos dias atuais e o quanto precisamos pensar em nossos atos e lutar contra toda forma de discriminação racial no mundo.

TÁ NA MÃO Confira mais indicações de filmes na matéria “Filmes para assistir e se ver na tela” (https:// bit.ly/5firpt), disponível no site da Agência Jovem de Notícias.


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VALORES CIVILIZATÓRIO AFRO BRASILEIROS POR GRUPO MOVANOS (RJ) MEMÓRIA. VITALIDADE. ANCESTRALIDADE. ORALIDADE. ESPIRITUALIDADE. MUSICALIDADE. COOPERATIVISMO. TERRITORIALIDADE. LUDICIDADE. CIRCULARIDADE. Sabemos a dificuldade que é falar da história da diáspora africana sem desassociar processos que marcam a existência da negritude e os desafios para que ela seja aceita, sem que as pessoas desqualifiquem ou exotifiquem a trajetória das populações negras. Queremos garantir nossa existência a partir do respeito às influências e contribuições históricas das populações negras nas outras culturas e nos outros povos do mundo. Estes valores, é possível perceber, estão presentes nos mais diversos grupo étnicos, e culturas, naquelas mais diversas, onde é inimaginável. Conheça cada um dos 10 valores civilizatórios afro brasileiros na série de artigos publicados na Agência Jovem de Notícias.


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