Revista Viração - Edição 116 - Jan/Jun 2020

Page 1

literatura e direitos humanos

PARA LER, VER E CONTAR CONHEÇA O PROJETO QUE PENSA A LITERATURA COMO UM DIREITO HUMANO

CHEGA DE RÓTULOS COMO LIDAR COM O ESTEREÓTIPO DE UMA JUVENTUDE QUE NÃO LÊ?

UMA FESTA DO POVO A DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO ÀS FEIRAS LITERÁRIAS


QUEM FAZ A

VIRA

CONHEÇA OS VIRAJOVENS EM 11 ESTADOS BRASILEIROS E NO DISTRITO FEDERAL:

PELO BRASIL

Aracaju (SE) Belém (PA) Brasília (DF) Curitiba (PR) Guarulhos (SP) Mariana (MG) Natal (RN) Osasco (SP) Rio de Janeiro (RJ) Salvador (BA) Santa Maria (RS) São Luís (MA) São Paulo (SP) Vitória (ES)

Realização

Esta edição foi financiada por

Apoio

iBeac • Rede Litera Sampa • Ministério Federal das Relações Externas • Consulado Geral da Rep. Fed. Da Alemanha • Human Rights • RNBC


Copie sem moderação! Você pode: • Copiar e distribuir • Criar obras derivadas Basta dar o crédito para a Vira!

EDITORIAL

LITERATURA E DIREITOS HUMANOS Nós acreditamos que o direito à literatura se fortalece através do direito à comunicação. Essa certeza ganha corpo nessa edição, resultado do encontro da Viração com o projeto-ação Literatura e Direitos Humanos: Para ler, ver e contar, do iBeac – Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário, que acontece dentro de uma rede que se espalha no tempo e no espaço.

QUEM SOMOS

No espaço, porque liga o iBeac ao LiteraSampa (rede formada por 10 bibliotecas comunitárias e uma escolar, cujo objetivo é fomentar a leitura literária) e o LiteraSampa à RNBC – Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias. No tempo, porque reúne militantes, profissionais e escritores que há muito batalham pela garantia do encontro do livro com seus leitores e, com isso, ajudam a construir o futuro. E nós acreditamos que esses encontros são capazes de multiplicar ideias e ações.

Recebe apoio institucional do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), da Ashoka Empreendedores Sociais e do Núcleo de Comunicação e Educação da Universidade de São Paulo. Além de produzir a revista, a Viração oferece cursos e oficinas em educomunicação, Direitos Humanos, gênero e sexualidade e meio ambiente em escolas, grupos e comunidades em todo o Brasil.

Os textos dessa revista falam sobre a construção do acesso à literatura como um direito humano, a criação coletiva de espaços e oportunidades de troca em torno dos livros e sobre o aprendizado e o prazer que a experiência literária promove. Feiras literárias, fanzines, poemas, saraus, debates e educomunicação: todos são, ao mesmo tempo, meios e fins. Ao fazer com que o acesso à literatura e o direito à comunicação andem juntos, fomentando práticas e espaços nos quais a cada um seja oferecida a possibilidade de encontrar-se consigo mesmo e com seus pares, seremos capazes de produzir a imaginação política e a vontade de estar e fazer junto, tão necessárias e urgentes nos tempos atuais.

A Viração é uma Organização da Sociedade Civil sem fins lucrativos, criada em março de 2003, que atua nas áreas de educomunicação, juventudes e direitos humanos.

Para a produção da revista, contamos com a participação dos conselhos editoriais jovens de diferentes estados, que reúnem representantes de escolas públicas e particulares, projetos e movimentos sociais. Entre os prêmios conquistados nesses dezesseis anos, estão o Prêmio Cidadania Mundial, concedido pela Comunidade Bahá’ío, o Prêmio Don Mario Pasini Comunicatore, em Roma (Itália) e o Prêmio Internacional de Educomunicação, concedido pela União Católica Internacional de Imprensa. Paulo Pereira Lima Diretor Executivo da Viração

Apoio institucional


VIAS

COMIGO E CONTIGO – O PROJETO “LITERATURA E DIREITOS HUMANOS: PARA LER, VER E CONTAR”

LITERATURA RIMA COM DIREITOS HUMANOS

EXPRESSAS

página 9

página 10 DE JOVEM PRA JOVEM: A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS

página 16

ZINE: UMA MANIFESTAÇÃO LITERÁRIA

página 21 COMO SE FAZ: FANZINE

ME VEJO NO QUE VEJO, ME LEIO NO QUE LEMOS

página 23

LUGAR DE FALA: DAS PALAVRAS À HUMANIZAÇÃO

página 28

página 30

A PRAZEROSA DIFICULDADE DE ESCOLHER UM LIVRO

página 32

SER JOVEM POETA NA PERIFERIA

página 35

SEMPRE NA VIRA MANDA VÊ

06

PROVOCAÇÕES

08

GALERA REPÓRTER

12

COMO SE FAZ

19

IMAGENS QUE VIRAM

25

NO ESCURINHO

40

QUE FIGURA

42

RG DA VIRA: REVISTA VIRAÇÃO - ISSN 2236-6806 CONSELHO EDITORIAL

NÓS LEMOS, ELES LEEM

página 38 DAS PÁGINAS PARA A TELA

página 40

PRESIDENTA

EQUIPE

Cristina Uchôa

André Araújo, Andressa Nascimento, Cleide Agostinho, Elisangela Nunes, Jéssica Rezende, Juliane Cruz, Kalline Lima, Luiza Gianesella e Viviane Delgado

VICE-PRESIDENTE

Rafael Alves da Silva PRIMEIRA-SECRETÁRIA

Rodrigo Bandeira, Vanessa Camargo e Marilda Santos

Áurea Lopes

CONSELHO FISCAL

DIRETOR EXECUTIVO

Rodrigo Bandeira, Vanessa Camargo e Marilda Santos

Paulo Lima

CONSELHO PEDAGÓGICO

Elaine Souza

Alexsandro Santos, Aparecida Jurado, Isabel Santos, Leandro Nonato e Vera Lion

EDIÇÃO

COORDENAÇÃO

Jéssica Rezende EDIÇÃO E REDAÇÃO

4

página 36

A DESCENTRALIZAÇÃO DAS FEIRAS LITERÁRIAS: UMA FESTA DO POVO

Jéssica Rezende e Juliane Cruz

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

COLABORADORES DESTA EDIÇÃO

Alef de Paula Santos, Bel Santos Mayer, Bruno Souza, Clarissa Roberta Alves, Danylo Paulo, Dayana de Almeida Moraes, Djalma Nando Góes, Duda Pimentel, Fernanda Pompeu, Gabriel Feitosa Neto, Gabriel Razo da Cunha, Julia Silva Gomes, Ketlin Santos, Lizandra Stephany Santana, Mara Esteves Costa, Maria Celeste de Souza, Márcia Pereira Cunha,

Mayara Leite de Melo, Natalia Milagre Elias, Renata Herondina Santos, Suillan de Sá, Vanessa Nunes Pereira e Vitor de Souza Bittencourt ARTE

Manuela Ribeiro JORNALISTA RESPONSÁVEL

Paulo Pereira Lima – MTb 27.300 DIVULGAÇÃO

Equipe Viração CONTATO

comunicacao@viracao.org DOAÇÃO

mobilizacao@viracao.org


O QUE É EDUCOMUNICAÇÃO?

DIGA

LÁ VIRA AMIGO DA VIRA! Desde 2014, a Revista Viração não trabalha mais com assinatura. Ao invés disso, pedimos o seu apoio para a manutenção das nossas atividades. Além da produção de conteúdo por e para jovens, também realizamos encontros de formação em direitos humanos e educomunicação e atividades de mobilização social. Nosso trabalho está sustentado no entendimento de que o adolescente é um sujeito de direitos. A partir da educomunicação e da educação entre pares, impactamos as vidas de milhares de adolescentes e jovens Brasil a fora, considerando suas condições únicas de desenvolvimento. Para apoiar, é só acessar o site www.viracao.org/apoie e seguir as instruções. É tudo online e bem rapidinho! Agora, se você prefere depositar um valor direto na nossa conta, os dados são: Viração Educomunicação Banco do Brasil | Agência: 6501-3 | Conta Corrente: 200.023-7 CNPJ: 11.228.471/0001-78 Apoie a Viração na promoção de direitos, no fortalecimento da participação de adolescentes e jovens e na construção de uma comunicação democrática.

PERDEU ALGUMA EDIÇÃO DA VIRA? NÃO ESQUENTA! Você pode acessar, gratuitamente, as edições anteriores da revista na internet: www.issuu.com/viracao

É comum, nas edições da Vira, encontrar a palavra “educomunicação” ou o termo “educomunicativo”. A educomunicação é um campo de intervenção que surge da inter-relação comunicação/ educação para a transformação social. Dizemos que um projeto ou prática é educomunicativa quando adota em seus processos, especialmente do jovem, o caráter comunicacional, como o diálogo, a horizontalidade de relações e o incentivo à participação, fazendo com que os sujeitos exerçam plenamente o direito humano à expressão e à comunicação, em diferentes âmbitos e contextos. A Viração promove ações educomunicativas por meio da produção midiática, incentivando que adolescentes e jovens produzam reportagens coletivas em diferentes linguagens.

COMO SER UM VIRAJOVEM? Virajovens são os integrantes dos conselhos editoriais jovens da Viração, que produzem conteúdos em suas cidades. O conselho pode ser um coletivo autônomo de jovens ou um grupo ligado a uma entidade, organização, movimento social, escola pública ou privada, que dará apoio para que os virajovens produzam conteúdos. A parceria entre a Vira e entidade é oficializada com um termo de compromisso e com a publicação do logotipo da organização na revista. Quer saber mais? Entre em contato com a gente: comunicacao@viracao.org

FACEBOOK.COM/ VIRACAO.EDUCOMUNICACAO @VIRACAOEDUCOM

@VIRACAOEDUCOM Para garantir a igualdade entre os gêneros na linguagem da Vira, onde se lê “o jovem” ou “os jovens”, leia-se também “a jovem” ou “as jovens”, assim como outros substantivos com variação de masculino e feminino.

Mande seus comentários sobre a Vira, dizendo o que achou de nossas reportagens e seções. Suas sugestões são bem-vindas! Escreva para Rua Araújo, 124, 2º andar – CEP 01220-020 – São Paulo (SP) ou para o e-mail: comunicacao@viracao.org


MANDA VÊ

A

l iteratura está presente na vida das pessoas desde muito tempo. Manifestando-se na linguagem oral ou escrita, tem como mola propulsora as fabulações e ficções, atuando em nossas subjetividades. Ela nos inspira e nos mobiliza a interferir em nossas realidades, denunciando as desigualdade sociais, como fez Carolina Maria de Jesus. Também, por meio da prática da alteridade, a literatura pode nos colocar no lugar do outro, reconhecendo a humanidade nas diferenças. É inegável o poder da literatura. Quem nunca se sentiu tocado ao ler um livro ou escutar uma história? Quem, após se identificar com aquele ou aquela personagem, se sentiu mais forte para enfrentar a vida? Quem nunca se envolveu com uma história ao ponto de se sentir parte dela, saindo transformado quando chegou na última página? Pensando nisso, nós convidamos pessoas a refletir sobre a pergunta: Qual livro te ajudou a derrubar um muro? E o resultado foi incrível!

QUAL LIVRO TE AJUDOU A

LIDIANE OLI V EI RA

38 ANOS | SÃO PAULO/SP

DE RRUBAR UM MURO?

TEXTO GABRIEL RAZO DA CUNHA, EDUCOMUNICADOR DO IBEAC* IMAGEM FREEPIK

O livro que me fez derrubar o muro foi um gibi encontrado soterrado nas terras do meu avô na Bahia, ainda quando criança. Lembro-me de correr para casa, lavar as páginas com todo cuidado do mundo para tirar a lama e colocá-lo ao sol para secar. Não consigo descrever em palavras o tamanho da minha felicidade por ter encontrado aquele tesouro. Esse gibi faz parte da minha história porque foi a partir daquele momento que eu percebi que poderia romper barreiras através da leitura e ter acesso à educação.

BEL SAN T OS MAYE R

52 ANOS | SÃO PAULO/SP

Um livro que me ajudou a derrubar um muro foi Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves. Derrubou o muro da narrativa da escravização de negros e negras do continente africano somente na perspectiva dos homens. Quando Ana Maria Gonçalves trouxe essa história, narrada por mulheres, derrubou o muro, para mim, de que a escravidão era ruim para todos de forma igual. Não, para as mulheres foi muito pior.

Instituto Brasileiro de Estudos Comunitários

6

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116


ALEF DE PAULA SAN T OS 25 ANOS | SÃO PAULO/SP

O livro que me ajudou a derrubar muros foi Catálogo de Perdas, do escritor João Anzanello Carrascoza. No mundo que a gente vive, onde falam que o homem não pode demonstrar sentimentos porque é sinônimo de fraqueza, esse livro, que trabalha muito com o emocional, me fez derrubar essa barreira. Eu posso sim mostrar meus sentimentos, eu posso sim chorar quando estou triste – isso não vai me fazer nem mais, nem menos homem do que qualquer outro.

RENATA H. D OS SAN T OS 23 ANOS | SÃO PAULO/SP

Um livro que vem me ensinando a refletir e a derrubar alguns muros é Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie. É uma obra questionadora que está olhando para as questões de classe, de gênero, de raça e imigração. Seus diálogos são profundos e abrem portas e janelas para as reflexões sobre as relações humanas, identidades e, tanto a obra como a personagem Ifem, me ensinam a ter coragem.

MAYARA LEI T E

23 ANOS | SÃO PAULO/SP

Olhos de Azeviche, livro que reúne diversos autores, me ajudou a derrubar diversos muros. Um desses muros foi o de que chorar é demonstração de fraqueza. Chorei diversas vezes lendo esse livro e me sinto mais forte depois da experiência dessa leitura.

VANESSA PE REI RA

17 ANOS | SÃO PAULO/SP

O livro que me fez derrubar muros foi O Peso do Pássaro Morto, de Aline Bei, porque me deu coragem para começar a fazer coisas que eu tinha trauma por causa de lembranças e pessoas ruins. Também mostra que a vida é limitada para você ficar usando desculpas de que não tem tempo e que não pode fazer aquilo que você tem medo.

DUDA PIMEN T EL

17 ANOS | SÃO PAULO/SP

Um livro que me ajudou a derrubar um muro foi o livro Heroínas Negras Brasileiras, de Jarid Arraes. Ele derrubou para mim o muro da identidade, fez me reconhecer como mulher negra e me identificar com mulheres que batalharam e fizeram grandes coisas para a humanidade.

JULIA SIL VA GOMES 16 ANOS | MAUÁ/SP

O livro que me ajudou a derrubar um muro foi Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino. Me ajudou a derrubar o muro da percepção, pois comecei a observar mais coisas ao meu redor que no dia a dia a gente não percebe muito.

CONTA PRA GENTE!

Queremos saber: qual foi o livro que marcou a sua história? Envie sua resposta para o nosso Instagram! @agencia.jovem

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

7


PROVOCAÇÕES

LITERATURA: VOCÊ CONHECE ESSE DI REIT O?

REFLETINDO E REAFIRMANDO O DIREITO AO ACESSO À LITERATURA.

A

D eclaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pelos países membros da ONU, é formada por 30 artigos de direitos específicos previstos a todos os seres humanos – independentemente de raça, gênero, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição. Nenhum deles cita diretamente o acesso à literatura como algo primordial à vida, despertando uma dúvida inquietante: a literatura pode ser considerada um direito humano? Para refletir em relação a essa pergunta é preciso ter como ponto de partida o entendimento de que DIREITOS HUMANOS SÃO TODOS OS DIREITOS QUE GARANTEM A PROMOÇÃO À VIDA, ESTIMULANDO

ATRAVESSANDO SÉCULOS, A LITERATURA TEM GARANTIDO A EXISTÊNCIA HUMANA DE FORMA MAIS DIGNA, ALÉM DA POSSIBILIDADE DE EXPERIENCIAR NOVAS HISTÓRIAS E CRIAR SUA PRÓPRIA NARRATIVA. E a

resposta à pergunta inicial, acerca de considerar ou não a literatura como um direito humano, surge a partir das contribuições de Antônio Cândido, sociólogo e um dos maiores críticos literários brasileiros, que defendia a literatura como direito para todas e todos: “Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação”. Ou seja, a literatura é um direito humano que independe de gênero, raça e classe.

A CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE MAIS HUMANIZADA E JUSTA, COM BASE NAS NECESSIDADES E CONTEXTOS HISTÓRICO E SOCIAL.

Dessa forma, tendo em vista que mais do que garantir instrução, educação e lazer, a literatura promove a comunicação de ideias, pensamentos e manifestações artísticas, garantindo a construção de conhecimentos sensíveis, além da reflexão sobre si e o outro, podemos considerá-la um direito humano tão importante quanto os direitos à moradia, alimentação e saúde.

8

TEXTO CLARISSA ROBERTA ALVES DOS SANTOS E DAYANA DE ALMEIDA MORAES, ATRIZES E MEDIADORAS DE LEITURA NAS BIBLIOTECAS COMUNITÁRIAS AMORIM LIMA E CULTURA NO QUINTAL, VIRAJOVENS DE SÃO PAULO (SP).

Sendo assim, a literatura com seu poder humanizador é altamente qualificada para ser considerada um direito humano – mas tal desconhecimento mostra como há direitos que permanecem para poucos, tornando-se privilégios. Gerando novas dúvidas: se a literatura é um direito humano, porque nem todas e todos têm acesso a ela?

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

IMAGEM MANUELA RIBEIRO


TEXTO FERNANDA POMPEU* IMAGEM MANUELA RIBEIRO

L

iteratura e direitos humanos operam como a mão e a luva, a corda e a caçamba, a linha e a agulha, o peixe e a água. Qualquer literatura? Não. Mas a boa literatura – aquela que faz personagens multifacetados em enredos redondos. A BOA LITERATURA É O TERRITÓRIO ONDE HABITAM AS DIVERSIDADES HUMANAS. O UNIVERSO DE MUITOS OUTROS. QUER

LITERATURA RIMA COM

DI REIT OS HUMANOS UM CASAMENTO PERFEITO.

Quando eu tinha 14 anos, meu pai, um leitor apaixonado, me apresentou o romance Crime e Castigo, de Fiodor Dostoievski (1821-1881). Sobre esse escritor, basta dizer que foi um gigante das letras russas. O fato é que eu, carioca, estudante, vivendo sob o autoritarismo da ditadura militar (1964-1985), com os problemas existenciais da adolescência, mergulhei febrilmente na história do atormentado Ródion Ramanovich Raskolnikov. Eta!

DESENVOLVER SUA EMPATIA? LEIA LITERATURA. DESEJA ACRESCENTAR NOVOS PONTOS DE VISTA AO SEU? LEIA LITERATURA.

O crime do Raskolnikov – um paupérrimo estudante de São Petersburgo – foi matar a machadada uma velha agiota a quem ele devia dinheiro a juros exorbitantes. Ele a mata e se justifica: “Ela era uma péssima pessoa, ele um bom rapaz”, “ela era velha, ele jovem”. Porém, ele acaba também assassinando a irmã da agiota que o surpreende no momento do crime. Raskolnikov consegue sair da cena sangrenta de modo impune. Mas, pelas centenas de páginas seguintes, ele viverá seu castigo:

o remorso pelo duplo homicídio. Essa é uma sinopse geral, pois o livro fala de inúmeras outras coisas. Sendo a principal delas: a existência humana é marcada, de um jeito ou de outro, pela culpa. Crime e Castigo impactou a minha vida, pois me aproximou de uma realidade distante da minha. Eu não havia matado ninguém, o Rio de Janeiro nada tinha de São Petersburgo, estava há mais de cem anos de 1866 – ano da publicação. Mas vejam: eu chorei, ri, condenei, perdoei, tive compaixão, senti o drama daquele estudante russo. Tive empatia – ora com as vítimas, ora com o algoz. QUE PODER FABULOSO A LITERATURA TEM!

Ela é capaz de transformar o leitor, de sacolejar “aquela velha opinião formada sobre tudo”. E principalmente, a literatura nos aproxima do “universo de muitos outros”. Escutar e ler o outro é se comprometer verdadeiramente com os direitos humanos.

TÁ NA MÃO!

Gostou desta crônica? Então, aproveite e conheça o site da autora! www.aceleratexto.com.br

* Fernanda Pompeu é escritora e faz oficinas de redação para as mídias sociais. Também é presidenta do Ibeac. Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

9


COMIGO E CON T IGO TEXTO MÁRCIA PEREIRA CUNHA*

- O PROJETO “LITERATURA E DIREITOS HUMANOS: PARA LER, VER E CONTAR” LER SOZINHO É BOM. LER JUNTO TAMBÉM. NO PROJETO, OS DOIS MOMENTOS DA EXPERIÊNCIA LITERÁRIA SE ENTRELAÇAM DESDE O NOME ATÉ OS RESULTADOS QUE SE ESPERA ALCANÇAR.

Entrei no projeto “Literatura e Direitos Humanos: para ler, ver e contar” com a tarefa de sistematizar a caminhada ao longo de seus dez meses. Mas imaginem a responsabilidade de colocar no papel a trajetória de um grupo de mediadoras e mediadores de leitura, gente que conhece literatura, forma leitoras e leitores, milita pelo acesso ao universo dos livros como um direito humano. Vou dizer que não dá para contar tudo por uma limitação de espaço, mesmo sabendo que a dificuldade é bem outra. SE O PROJETO FOI UM CONJUNTO DE ENCONTROS, RECORDÁ-LOS E DESCREVÊ-LOS É UM POUCO COMO OLHAR POR AQUELE FURINHO DO CALEIDOSCÓPIO: OS ELEMENTOS QUE COMPÕEM A FIGURA ESTÃO SEMPRE LÁ, MAS É SÓ DAR UMA GIRADINHA PARA TERMOS UM NOVO DESENHO, UM MAIS

e lido por todos. O Ibeac colocou a proposta no papel, sugerindo que seis jovens recebessem uma bolsa, de maneira a garantir que eles se dedicassem à leitura e aos encontros. O passo seguinte foi submeter a proposta a um edital de apoio a projetos de Direitos Humanos, aberto na Comunidade Europeia pelo Ministério das Relações Exteriores da Alemanha, com quem a ONG já havia interagido em ações anteriores. Com o projeto aprovado, o Ibeac contatou a Rede LiteraSampa de bibliotecas comunitárias, para que elas indicassem jovens de suas instituições e grupos para participarem do projeto. Assim, para que aquela ideia simples e certeira ganhasse vida, foi preciso esforço e colaboração de muita gente: três organizações, 11 bibliotecas, 6 bolsistas e 11 mediadoras e mediadores de leitura.

BONITO QUE O OUTRO.

O projeto partiu de uma ideia simples e certeira: um grupo de mediadoras e mediadores de leitura se reuniria duas vezes por mês para discutir um livro escolhido

A CURIOSIDADE INDIVIDUAL APARECIA AO LADO DA

Agora, então, era colocar as rodas para girar. Cada encontro foi facilitado por dois educadores: uma fera no mundo das letras, um fera no tema dos direitos humanos (e vice-versa!). Eles estão aqui

* Socióloga, com atuação em sistematização de projetos sociais 10

na revista também: são a Maria Celeste e o Djalma Nando. E então chegou a hora: “Ok, vamos ler. Mas qual livro?”. Seis convidados e convidadas escreveram cartas, que você poderá ler daqui a algumas páginas, onde indicaram dez livros cada um e, dos sessenta indicados, o grupo selecionou cinquenta. Esse momento de escolha se repetia a cada encontro, quando era hora de se despedir de um livro e de preparar-se para o seguinte: às vezes já lido ou visto por alto, em outras, um ilustre desconhecido. A negociação, os argumentos e, claro, as tiradas mais sedutoras para que o próximo livro fosse ‘A’ e não ‘B’ não perdiam entusiasmo diante da lembrança que também era vez ou outra puxada da manga: “Mas, pessoal, nós vamos ler todos. Tanto faz se primeiro esse ou aquele...”.

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

REFLEXÃO CONJUNTA SOBRE A SEQUÊNCIA MAIS PERTINENTE E A MEMÓRIA DO GRUPO IA SE FORMANDO AOS POUCOS, NESSA PAUSA E OLHADA PARA TRÁS.


Nos encontros, as primeiras impressões acerca do livro da vez iam aquecendo as ideias para logo acolher e projetar as informações mais variadas: das características literárias de cada obra à história de construção dos direitos relativos a seus temas centrais. Por caminhos diferentes, a conversa sempre passava por refletir sobre como a consciência dessa herança social e o colocar-se no lugar dos mais diversos personagens fictícios se combinam para iluminar questões de hoje, urgentes, importantes. Líamos juntos, em voz alta – e parece que até o entendimento do que tínhamos lido antes, cada um na sua, mudava. Entrando na onda dos mosaicos fugidios do caleidoscópio, tento pinçar momentos em que um ou outro desses elementos de discussão aparecem mais fortes. Quando o encontro foi dedicado à leitura de Heroínas Negras Brasileiras, de Jarid Arraes, em formato de cordel, um grupo contou que, lendo em voz alta, no pátio de sua escola, sentiu vontade de cantar, porque o texto assim parecia pedir. Alguém concordou, dizendo que havia lido os versos como se eles fossem

a letra de um rap. Houve um dia, ainda, que a agenda levou ao inusitado encontro entre a Ifemelu, de Chimamanda Ngozi Adichie, e o Fabiano, de Graciliano Ramos. No habitual bordado entre conhecimento e sensações, o grupo tratou de como a autora nigeriana construiu a trama da sagaz personagem de Americanah e de como o clássico brasileiro apresentou o universo silencioso e sensorial de Vidas Secas. Disso, uma síntese particular: “Ifemelu me fez ver que eu aceitava situações de que não gostava. Eu era como o Fabiano, que sentia, mas não sabia como explicar. A Chimamanda me deu as palavras que me faltavam”. Como não vibrar juntos quando ouvimos que, em uma discussão universitária, a proposição do debate sobre os vieses racial e de gênero de determinado problema não foi silenciada, ao ser tachada de vitimismo, mas respondida com argumentos construídos nessa roda de fala e de escuta proporcionada pela literatura? Há ainda tantas histórias! De repente, um “não gostei muito dessa personagem, não. Então resolvi escrever um poema”; depois, um “eu estava lendo no

metrô e uma moça acenou porque estava lendo livro parecido” acolá; ou, ainda, um “eu sabia que era boa dançando, mas não sabia que era boa escrevendo”. Como não sou escritora nem poeta, termino não sabendo escolher a melhor imagem para descrever essa experiência. Mas como a literatura guarda um lugarzinho bom pra todo mundo, hão de perdoar minha metáfora fácil: LER SOZINHO E LER JUNTO É UM EXPANDIR-SE E RECOLHERSE, COMO FAZ O CORAÇÃO.

O ziguezague de olhar para o grupo e descobrir-se, olhar para si e reconhecer o grupo foi um movimento livre cujos propósitos só as ideias mais simples e certeiras podem garantir. É experiência que, digo do alto da temerosa responsabilidade que ganhei de presente, vale a pena repetir em qualquer tempo e espaço, em qualquer canto desse “mundo, vasto mundo”.

TÁ NA MÃO!

Saiba mais sobre o Ibeac e a Rede LiteraSampa nos sites: http://www.ibeac.org.br/ https://www.rnbc.org.br/p/sp.html

E OS LIVROS?

Conheça algumas das obras que o grupo leu durante o projeto: 1. As cidades Invisíveis (Ítalo Calvino) / 2. Orlando (Virginia Woolf) / 3. As mulheres devem chorar... ou se unir contra a guerra (Virginia Woolf) / 4. Heroínas negras brasileiras (Jarid Arraes) / 5. O peso do pássaro morto (Aline Bei) / 6. Meu crespo é de rainha (Bell Hooks) / 7. A revolução dos bichos (George Orwell) / 8. Americanah (Chimamanda Ngozi Adichie) / 9. Sejamos todos feministas (Chimamanda Ngozi Adichie) / 10. Vidas Secas (Graciliano Ramos) / 11. Catálogo de perdas (João Anzello Carrascoza) / 12. Cidade de Deus (Paulo Lins) / 13. A hora da estrela (Clarice Lispector) / 14. Sentimento do mundo (Carlos Drummond de Andrade) / 15. Bagagem (Adélia Prado) / 16. Um defeito de cor (Ana Maria Gonçalves)

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

11


GALERA REPÓRTER TEXTO KETLIN SANTOS E BRUNO SOUZA, MEDIADORES DE LEITURA NA BIBLIOTECA COMUNITÁRIA CAMINHOS DA LEITURA E VIRAJOVENS DE SÃO PAULO (SP).

A CORRENTE DOS LIV ROS

PARA DEFENDER E GARANTIR O DIREITO À LEITURA, VÁRIAS MÃOS SE JUNTAM.

C

oisa boa que é abrir um livro! Para que cada vez mais pessoas possam experimentar essa sensação, há muitas outras se reunindo e formando uma corrente: há quem escreva, quem publique, quem lute para que esse livro chegue ao maior número possível de leitoras e leitores. Esse Galera Repórter traz a perspectiva de pessoas que se juntam a partir de diferentes lugares dessa tessitura. Conhecer o que cada uma dessas figuras têm para contar pode nos ajudar a perceber qual lugar podemos ocupar nesse movimento. Conversamos com:

BEL SANTOS MAYER

Coordenadora do Ibeac e co-gestora da Rede LiteraSampa.

12

JOSÉ CASTILHO MARQUES NETO

Ex-secretário executivo do Plano Nacional do Livro e da Leitura (PNLL).

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

SUILAN DE SÁ DO VALE

Coordenadora/ Mediadora de Leitura da Biblioteca Comunitária Solano Trindade e integrante do Coletivo de Esquerda Força Ativa.

LUIZ RUFFATO

Escritor, autor de “Eles eram muitos cavalos”, vencedor do troféu APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) e do prêmio Machado de Assis, da Fundação Biblioteca Nacional.

FOTOS ACERVO PESSOAL


torne um direito humano. Então, eu defendo que haja literatura na escola (mas não só), na rua (mas não só), nas casas (mas não só)... Que os livros possam circular onde haja gente; que cada lugar que tenha gente, que tenha possibilidade de pensamento tenha livro e que haja quem possa conversar sobre eles.

REVISTA VIRAÇÃO – VOCÊ SE CONSIDERA UMA ATIVISTA PELA LITERATURA? POR QUÊ? BEL SANTOS – Desde que conheci o poder da literatura, de servir como espelho, de servir como alto-falante interno, convocando outras pessoas para o prazer e desafios que é a literatura, eu me tornei uma ativista pela literatura. Tem algumas pessoas que usam o conceito de “artivista”, aqueles que são ativistas da arte – e acho que a literatura faz isso também. Ela nos faz pensar, nos faz trazer de um outro jeito aquilo que a gente leu. Eu me considero uma ativista da leitura porque entendi que o livro era aquilo que me possibilitava ter movimento, entender que minha realidade sozinha não explicava o mundo, mas que as desigualdades explicavam a periferia, o lugar que eu ocupava nesse mundo. Por isso eu comecei a defender que a literatura esteja em todo canto, que ela deixe de ser privilégio e se

JOSÉ CASTILHO – Tenho já uma longa jornada em relação a formar leitores no país. Como professor, como editor, como gestor de bibliotecas e também como dirigente episódico de políticas públicas, como secretário do Plano Nacional do Livro e Leitura, em duas ocasiões. Sou um ativista pela leitura, sou um ativista dos direitos humanos em última instância e isso talvez seja parte de ser professor, antes de tudo também. Então, é assim que eu me defino. Eu me considero um ativista literário principalmente no sentido da difusão da literatura, da difusão da importância do ato de ler, da importância do ato de escrever. Falo isso todo o dia. Procuro incentivar, procuro buscar no leitor, o escritor; no escritor, também o leitor, entendendo que todos nós somos um só.

SUILAN DE SÁ – Sim. A minha atuação em espaços literários e não literários me faz me reconhecer como ativista da literatura. Quando se entende a dimensão que tem a literatura, se entende também que a literatura é uma necessidade, um direito humano que muitas pessoas ainda não reconhecem pela sua falta de acesso. Ser ativista pela e na literatura é expandir e criar mecanismos de acesso a quem ela sempre foi negada. Nosso mestre Paulo Freire, em um de seus trabalhos, nos trouxe a seguinte reflexão: “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. Isso nos leva ao entendimento de que o ato de educar traz consigo o movimentar-se, a necessidade de não produzir mais do mesmo, de pensar além. Ser ativista pela literatura é levar o livro para os lugares em que ele está segregado, é movimentar-se para transformar, é defender que o livro e a leitura é um direito humano incompreensível (que não pode ser negado) – assim como comer, beber, vestir e morar (e que portanto não se trata de exercer caridade).

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

13


RV – DE QUE FORMA OS JOVENS PODEM PROMOVER O DIREITO HUMANO À LITERATURA? B.S. – Para mim, a expectativa que coloca que os jovens são a mudança, que os jovens são as transformações é muito pesada. Adultos ficarem no conforto das ideias cristalizadas e jogarem essa responsabilidade para os jovens e para as crianças é muito pesado. Mas tem algo que a juventude traz que é um frescor, um enfrentamento do medo. O medo está imposto para todos nós e os jovens são aqueles que dão risada do medo, que dão risada da morte. Os jovens dão risada da doença. É disso que eu gosto na juventude. Então, a juventude tem condições de atualizar os Direitos Humanos. Quando está lá no artigo falando que todo mundo tem o direito ao lazer; muitas vezes nosso mundo adulto quer que o jovem passe o tempo todo trabalhando. Pra falar do direito humano ao lazer, o jovem é aquele que para, é aquele que não responde no ritmo do trabalho esperado, é aquele que começa a perguntar “que lazer é esse?”. Eu acredito que os jovens podem o tempo todo atualizar os direitos humanos. Assim como Antônio Cândido trouxe, para os direitos humanos, o direito humano à literatura, estando com os jovens nesse enfrentamento dos medos, com essa risada, com essa leveza que trazem, acho que a gente vai conseguir trazer direitos que a gente ainda não imagina, mas que merecem ser para todo mundo.

14

S.S. – Os jovens estão em

diversos lugares lendo, contando e produzindo literatura. Eles também promovem momentos de discussões literárias em que a troca é essencial para entender a Literatura como um Direito Humano. Esta contribuição gera movimento, que resulta em novos contribuintes. LUIZ RUFATTO – Essa é uma questão muito interessante. Como os jovens podem ajudar a transformar isso que aparentemente não é um direito – que é o direito à literatura – num direito humano? Uma das formas (talvez mais fantásticas) desenvolvida, hoje, no Brasil é a das bibliotecas comunitárias. Porque as bibliotecas comunitárias saem daquela ideia, primeiro, de livraria. Que livraria sempre é uma coisa que a gente tem até medo de entrar, porque geralmente são aquelas luxuosas... a biblioteca, não. É um lugar de cuja transformação você também participou e, por isso, também é sua. Sua, como é de todas as outras pessoas que estão ao seu redor e, por meio deste acesso ao livro, você tem a oportunidade de fazer com que outras pessoas também se transformem em leitores e em cidadãos melhores, como você se transformou. Portanto, o jovem, e principalmente o jovem que

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

tem esse acesso às bibliotecas comunitárias, se torna um agente transformador da sociedade. A ideia é que haja cada vez mais bibliotecas comunitárias e que cada vez mais pessoas tenham acesso aos livros, que cada vez mais nós tenhamos cidadãos conscientes para tentarmos transformar a sociedade em efetivamente igualitária e justa. R.V. – CONSIDERANDO QUESTÕES URGENTES OU NECESSIDADES BÁSICAS COMO SAÚDE, EDUCAÇÃO E MORADIA, POR QUE VOCÊ CONSIDERA A LITERATURA COMO UM DIREITO HUMANO? L.R. – Sempre que a gente pensa em direitos básicos, a gente pensa em saúde, alimentação, moradia... e a gente sempre esquece de leitura. Por que a leitura é também um direito humano? Porque é por meio dela que você se torna efetivamente cidadão, quer dizer, você tem acesso à saúde, acesso à moradia, acesso a alimentação... São direitos básicos, mas você se transforma efetivamente em cidadão quando você tem a leitura como um alimento também, porque é ela que vai te abrir o mundo. Ela vai fazer com que você se torne efetivamente quem você é. Porque antes de ter contato com a leitura, você não sabe efetivamente quem você é e quando você descobre


com a minha gente, com as identidades, com as diferenças e foi um mergulho profundo de conhecimento do Brasil. Antes de tudo, foi isso. E, principalmente, eu acho, foi saber que antes de tudo, o brasileiro pensa, lê, reflete e realiza. quem você é, consegue conversar com outro, porque (...) aí você fica sabendo que o outro é, também, alguém como você. E é nesse diálogo que se estabelece a relação com a democracia e, portanto, é a democracia que dá esse direito, ou que permite ou que faz que você tenha esses direitos de moradia, de educação, de saúde e de alimentação. Ele vai se efetivar com o direito à leitura. R.V. – QUAL A IMPORTÂNCIA DO PNLL E DE QUE FORMA ELE CONTRIBUI PARA A SUA REALIDADE? J.C. – Meu encontro com o Plano Nacional do Livro e Leitura não foi só como gestor. Antes de tudo, foi um encontro com o Brasil, que acontece em todos os recantos desse imenso território. Foi encontro com o território também, foi encontro com a diversidade. Foi encontro com o fazer do povo brasileiro no sentido da sua sobrevivência, da sua vivência, da sua alegria, das suas tristezas. Daquilo que tudo a leitura carrega, do que a leitura traz. Então, antes de tudo, meu contato com o Plano foi além, obviamente, de gerenciar e coordená-lo. Foi também um encontro com o meu país,

S.S – O PNLL é, sem dúvidas, o resultado de muita luta de todos os representantes do Movimento Popular pela Literatura. Sua criação o torna um marco significativo para a elaboração de uma Política de Estado que pode “nortear” diversas vertentes relacionadas ao livro, podendo democratizar e assegurar o seu acesso – entendendo a sua importância socialmente. O meu encontro com o plano e o entendimento da sua contribuição à minha realidade parte da necessidade de acesso, de reconhecer que dentro da periferia não existia (e ainda em muitas espalhadas pelo Brasil não existe) esse acesso. Em contrapartida foi um encontro com outras realidades parecidas com a minha, com a diversidade, com a desigualdade que a nossa sociedade ainda mantém como norma. Quando ocorrem movimentos e tomase medidas, sejam em caráter público ou privado, com o intuito de diminuir o abismo que existe entre os níveis, o resultado é a chegada dos produtos ao povo. E aí a experiência mostra que o principal obstáculo pode ser a falta de oportunidade, não a incapacidade.

Eu gosto de ler gostando, gozando a poesia, como se ela fosse uma boa camarada, dessas que beijam a gente gostando de ser beijada. Eu gosto de ler gostando gozando assim o poema, como se ele fosse boca de mulher pura simples boa libertada boca de mulher que pensa... dessas que a gente gosta gostando de ser gostada. Solano Trindade

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

15


JOV EM PRA JOV EM: A DECLARAÇÃO DE

UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS A ESCRITA DO DOCUMENTO NÃO É FÁCIL DE ENTENDER – MAS A GENTE PODE AJUDAR A PARTIR DA NOSSA LEITURA! TEXTO GABRIEL RAZO, EDUCOMUNICADOR DO IBEAC. IMAGENS RAWPIXEL

A Declaração Universal dos Direitos Humanos é um marco da luta pelos direitos de todas as pessoas do mundo. Adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas – encontro que reúne representantes dos países membros – é o documento mais traduzido na Terra, inspirando diversos registros legais de muitas nações, como a Constituição Brasileira de 1988. Apesar de ter sido combinada a ampla divulgação deste documento, principalmente nas escolas e em outros espaços de educação, muitas pessoas desconhecem seu conteúdo, seus impactos e a quem se destina. Você sabia que os Declaração Universal dos Direitos Humanos se trata de um pacto para que todo mundo tenha os mesmos direitos? Mas se as pessoas não sabem da existência, se é de difícil acesso pela linguagem, como eles podem ser garantidos?

16

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

Pensando nesse desafio, a juventude do projeto Literatura e Direitos Humanos: Para ler, ver e contar teve a ideia de reescrever, artigo por artigo, todo o documento em uma linguagem acessível. Esse processo foi de muita conversa e colaboração. Teve quem contou com a ajuda dos pais, das mães ou de outros membros da família. Já outras pessoas trocaram ideias com os amigos e amigas. Alguns deram um salve nos colegas de escola e de trabalho para que ajudassem na reescrita. O envolvimento de todas essas pessoas foi para que o resultado final fosse o mais acessível e plural possível.

REESCRITA DOS ARTIGOS:

Juventude do projeto Literatura e Direitos Humanos: Para ler, ver e contar (Alef de Paula Santos; Duda Pimentel; Julia Silva Gomes; Gabriel Feitosa do Nascimento Neto; Lizandra Stephany Santana Santos; Mayara Leite de Melo; Natalia Milagre Elias; Renata Herondina dos Santos; Vitor de Sousa Bittencourt; Vanessa Nunes Pereira) com participação especial de Yago Alexandre Inácio e Ysabella Angelos Inácio.


ARTIGO 1º:

Todo ser humano nasce livre e com consciência, possuindo os mesmos direitos, devendo agir de forma afetiva com os outros.

ARTIGO 12º:

Ninguém sofrerá intervenção em sua casa, família ou vida pessoal. Todos temos direito a proteção contra qualquer interferência ou ataque.

ARTIGO 2º:

Todo ser humano pode usufruir de todos os direitos presentes neste documento, independente da raça, classe, sexo, gênero, orientação sexual, nacionalidade, religião, opinião política, etc. Não se deve distinguir também com base na condição política, jurídica ou internacional de cada país em que a pessoa vive. ARTIGO 3°:

Todo ser humano tem direito de viver em liberdade. Também tem o direito à segurança. ARTIGO 4º:

Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; o tráfico de escravos e a escravidão é proibida.

ARTIGO 13º:

Todas as pessoas têm a liberdade de ir e vir dentro do país. Todas as pessoas podem deixar seu país e qualquer outro. ARTIGO 14º:

Todas as pessoas vítimas de perseguição podem procurar e desfrutar moradia em outros países. Esse direito não funciona no caso de perseguição motivada por crimes de direito comum – como, por exemplo, para pessoas consideradas culpadas por crimes contra a paz e contra a humanidade; pois essas vão contras os princípios das Nações Unidas. ARTIGO 15º:

ARTIGO 5º:

Ninguém poderá sofrer tortura e nem receber tratamentos cruéis, humilhantes ou desumanos.

Todas as pessoas têm direito a nacionalidade – ou seja, de possuir direitos garantidos dentro do país. Nenhuma pessoa terá sua nacionalidade injustamente privada e nem terá que mudar de nacionalidade.

ARTIGO 6º:

Todos nós temos o direito de ser reconhecidos como pessoa perante a lei independente de qualquer coisa.

ARTIGO 16º:

Todas e todos temos direitos perante a lei. Se sofrermos qualquer tipo de discriminação, temos o direito à justiça porque somos um cidadão como todos os outros e merecemos igualdade de direitos.

Exatamente todas as pessoas de maior idade podem se casar. O direito de ter uma família cabe para todas e todos. Da mesma forma que os fins dessas relações também são de direito de todas as pessoas. Ninguém pode obrigar ninguém a se casar. Todos os formatos de família têm o direito à proteção das pessoas ao seu redor e do governo.

ARTIGO 8º:

ARTIGO 17º:

ARTIGO 7º:

Todo mundo pode buscar seus direitos por meio da justiça, quando algum direito é violado.

Todo mundo tem o direito de comprar terras, sozinho ou com mais pessoas. Ninguém pode, do nada, tirar os bens das pessoas.

ARTIGO 9º:

Ninguém será preso sem antes passar por um processo judicial. Se não for a julgamento, não pode ser mantido preso ou exilado. ARTIGO 10º:

Todo ser humano tem direito a um julgamento justo. ARTIGO 11º:

Todo ser humano é inocente até que se prove o contrário. Ninguém poderá ser acusado de nada que não exista nas leis. Também não será dada pena maior do que o que já está determinado.

ARTIGO 18º:

Todas as pessoas podem escolher suas religiões e pensar o que quiserem, desde que não desrespeitem ou ataquem as das demais. Também têm o direito de mudar de religião e de pensamentos; podendo mostrar, praticar suas religiões e falar sobre o que acreditam – seja ensinando outras pessoas, realizando as cerimônias ou observando (em público ou não). Esse direito serve para todas as religiões.

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

17


ARTIGO 19º:

ARTIGO 24º:

ARTIGO 20º:

ARTIGO 25º:

Todas as pessoas têm o direito à liberdade de fala; este direito inclui poder procurar, receber e passar informações sem barreiras.

Todas as pessoas têm direito à liberdade de reunião e harmonia. Não somos obrigados a participar de associações. ARTIGO 21°:

Todas as pessoas têm o direito de participar do governo do país – diretamente ou por representantes escolhidos em eleições. Todas as pessoas têm o direito de entrada ao acesso público do país. A vontade do povo faz a autoridade; essa vontade é feita por meio de eleições frequentes, por voto secreto ou por meios que se garanta a liberdade. ARTIGO 22º:

Todo ser humano tem o direito ao desenvolvimento econômico, social e cultural dignos – indispensáveis para o seu desenvolvimento. ARTIGO 23º:

Todo ser humano tem direito ao trabalho e você pode escolher com o que quer trabalhar. Esse trabalho deve ser justo e satisfatório, pois você precisa se sentir bem. O salário que você recebe deve ser o mesmo de todos aqueles que fazem a mesma função que a sua. Você tem direito ao horário de almoço, deve trabalhar 8h por dia; não ultrapassando as 44 horas semanais (na regulamentação brasileira). Mas, caso aconteça, você precisa receber a mais por isso, a chamada hora extra. Suas férias devem ser pagas, o seu local de trabalho precisa ser seguro e te dar os materiais e equipamentos necessários para sua função. Se algo não estiver sendo cumprido ou ocorra algo que não concorde, você tem o direito de cobrar melhorias e mudanças, sendo permitido a organização dos trabalhadores ou por meio do sindicato. O seu trabalho deve garantir que você viva bem, se alimente bem, consiga pagar suas contas, que sua moradia seja confortável e segura, e que você possa sair para passear onde quiser.

Todo ser humano tem direito ao descanso e ao lazer. Precisa existir um limite de horas trabalhadas e, inclusive, você deve receber por suas férias.

Todo ser humano, contando sua família, tem direito a um bom padrão de vida. Que possa ter saúde, bem-estar, comida, roupa, casa, cuidados médicos e serviços sociais; mesmo em caso de desemprego ou que esteja impedido de trabalhar por algum motivo. A mamãe e o bebê têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas de um casamento ou não, têm os mesmos direitos. ARTIGO 26°:

Toda pessoa tem direito à Educação gratuita e de qualidade, desde pequena (na Educação Infantil) até quando já pode fazer as coisas sozinho (Ensino Médio e Superior). A educação escolar deve garantir uma autonomia condizente com a dignidade humana; fortalecendo, assim, o respeito pelos direitos humanos. O Ensino não deverá discriminar ou marginalizar qualquer gênero ou grupo racial e religioso e também quem não tem religião. Estas ações fortalecem as atividades das Nações Unidas a favor da Paz. Os responsáveis legais pela criança e adolescente – mães, pais, avós, irmãos ou tios – devem participar e acompanhar a educação. ARTIGO 27º:

Toda pessoa tem o direito de usar a arte para se expressar e contribuir para os bens culturais – seja escrevendo, pintando, criando, esculpindo, cantando, dançando ou inventando. Toda pessoa é dona de sua arte e tudo aquilo que vem dela. ARTIGO 28º:

Todos e todas têm o direito à paz e a garantia dos direitos estabelecidos nesta declaração. ARTIGO 29º:

Todos têm deveres com nossas comunidades. Cumprindo seus deveres, têm seus direitos garantidos. ARTIGO 30º:

Os direitos e garantias apresentados na declaração não podem ser usados para destruir ou atacar qualquer direito fundamental.

18

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116


COMO SE FAZ TEXTO ALEF DE PAULA SANTOS E VITOR DE SOUZA BITTENCOURT, MEDIADORES DE LEITURA NAS BIBLIOTECAS COMUNITÁRIAS CAMINHOS DA LEITURA E ESPAÇO JOVEM ALEXANDRE ARAÚJO CHAVES. VIRAJOVENS DE SÃO PAULO (SP). IMAGEM RAWPIXEL

COMO SE FAZ UM SARAU? UMA MANIFESTAÇÃO ARTÍSTICA QUE ABRE PORTAS PARA A QBRADA.

A

ntes de começarmos, o que é um sarau? Se formos pesquisar no dicionário, veremos que se trata de uma reunião noturna, com o intuito de ouvir música e dançar. Mas também pode ser um encontro com uma finalidade literária. Ambos estão corretos. Um sarau nada mais é do que um evento cultural com o objetivo de criar um ambiente para que as pessoas se expressem ou se manifestem artisticamente de alguma maneira.

Esse evento era bem comum no século XIX entre burgueses europeus, que se encontravam simplesmente para dançar, conversar e beber vinho. Com o passar dos tempos, ele se tornou comum entre a burguesia do Brasil também. MAIS RECENTEMENTE, A PERIFERIA SE APROPRIOU DESSA IDEIA PARA PROMOVER EVENTOS CULTURAIS E PROMOVER LITERATURA PARA A QUEBRADA. Hoje, podemos ver

vários saraus por toda parte, disseminando a literatura para jovens, por meio do Slam (uma batalha de poesia), música, arte e troca de vivências, que são muito importantes para um bom convívio na comunidade. As pessoas da quebrada, além de prestigiar, são as que fazem esses eventos acontecerem também.

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

19


E COMO PODEMOS FAZER UM SARAU? Podemos começar escolhendo um local em que você possa receber as pessoas para que elas se apresentem. Por exemplo, uma praça na sua quebrada, um bar, um restaurante em que ocorrem apresentações ou até mesmo alguma garagem. Logo após encontrar esse espaço, está na hora de ir atrás de pessoas que queiram cantar, apresentar alguma dança ou poesia, ou simplesmente demonstrar algo envolvendo arte. Podemos encontrar essas pessoas pela internet ou simplesmente ir em escolas e procurar alunos que queiram participar de alguma forma. Feito tudo isso, você já pode marcar uma data para que o seu sarau aconteça e se preparar para que as pessoas se surpreendam com um evento que enriquece, mentalmente e fisicamente, e que pode mudar muitas vidas por meio da literatura e da arte.

O QUE NÃO PODE FALTAR EM UM SARAU? Agora que sabemos como fazer um sarau, por que não deixá-lo mais interessante e divertido? Para isso, vamos começar com um tema que seja atrativo para todos, desde os mais jovens até os que têm mais idade. Pode parecer difícil à primeira vista, mas saiba que existem muitos temas que podemos utilizar, como por exemplo: o racismo, a desigualdade no tratamento dado pela sociedade para um homem ou uma mulher, como a literatura chega na periferia, entre muitos outros que são importantes e que com certeza podem render um momento de reflexão e de entretenimento para quem estiver no seu sarau. Escolhido um bom tema, não esqueça de garantir uma boa representatividade, seja para as mulheres, para os negros, para crianças e para os mais velhos. Ninguém pode ficar de fora. Abra para que todos possam falar, possam ler um trecho de um livro ou uma poesia e, claro, para cantar. Afinal, um sarau sem música não é um sarau de verdade!

A ARTE LIBERTA!

Registre os melhores momentos do seu sarau e manda pra gente! comunicacao@viracao.org

20

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

COMO A INTERNET E AS REDES SOCIAIS PODEM AJUDAR NUM SARAU? Um exemplo de como as redes sociais podem ajudar num sarau é que as dicas acima foram todas sugestões dadas por amigos das redes sociais, por meio de uma enquete com a pergunta: “O que não pode faltar em um sarau?”. De lá vieram sugestões como essa, da amiga Cibele Joaninha, no Facebook:

Essa é só uma das formas que as redes sociais podem ajudar. Mas a maior ajuda é na divulgação. Afinal, por serem muito utilizadas diariamente, as redes sociais se tornam o melhor meio para divulgar o seu sarau. Para atrair as pessoas, você vai precisar de um convite que chame a atenção, com uma arte que traga o nome do seu sarau. Lembre-se de que quanto mais pessoas divulgarem, melhor. Então, você pode chamar os seus amigos para ajudar a compartilhar o seu convite. Dito tudo isso, boa sorte com seu sarau!


TEXTO POR DANYLO PAULO*

ZINE: UMA

MANIFESTAÇÃO LITERÁRIA ESPÉCIE DE REVISTA INDEPENDENTE, FANZINES SÃO FEITOS COM COLAGENS, DESENHOS OU IMAGENS – TUDO DE FORMA ARTESANAL!

C

onheci o mundo dos fanzines e das publicações independentes quando era adolescente, por volta de 13 ou 14 anos. Fortemente influenciado pela contracultura punk e principalmente pelos anarcopunks, estava conhecendo a sonoridade punk rock e fiquei muito entusiasmado ao ver que não se tratava apenas de um estilo musical; mas de uma cultura que engloba publicações independentes, estética, leitura, posicionamento político, ativismo de rua e música. Desde criança, eu já gostava de histórias em quadrinhos e, ao conhecer o universo dos fanzines, comecei a aplicar na prática minhas influências de desenhos e escrita. Tudo somado à ideologia punk, que traz a ideia do faça você mesmo. É interessante perceber que a produção de fanzines se dá de diferentes formas – a depender do contexto social e histórico – uma vez que é uma arte muito livre e expansiva, podendo funcionar como meio de protesto. Durante os anos da ditadura militar, a publicação de fanzines foi bem expressiva dentro da cena de arte independente, já

que a maioria dos veículos de mídia estava sob influência do regime ou sofria com cassações e fechamentos. Diversos artistas passaram a se comunicar por meio de fanzines. A maior parte era enviada por correio ou de forma clandestina. Com a chegada da sonoridade punk rock no Brasil, no final dos anos 1970 (mais precisamente de 77 a 79), muitos jovens que já ouviam rock passaram a se identificar com a estética punk e a produzir seus próprios materiais. É possível ver em alguns documentários – como, por exemplo, “Botinada”, “Guidable” (a verdadeira história do Ratos de Porão) e “Aos Berros” – que os fanzines foram e ainda são uma das principais formas de expressão artística e de protesto que a juventude do movimento punk utilizou… Além da música, é claro! Contudo, os fanzines não ficaram relegados apenas a esse grupo. Diversas outras culturas utilizaram e utilizam os fanzines para veicular suas ideias. A cultura hip hop, tanto nos Estados Unidos, quanto no Brasil, utilizou fanzines e publicações

independentes para divulgar shows, entrevistar grupos e disseminar ideias. Mesmo assim, muitas pessoas ainda têm um olhar que diminui a importância do fanzine. Como diz uma poetisa e produtora de fanzines, cujo trabalho gosto muito, Thina Curtis: “As pessoas ainda veem o fanzine como primo pobre das histórias em quadrinhos”. Eu complementaria dizendo que ambos são irmãos – podem e devem estar lado a lado. Relaciono também a história dos fanzines com a mitologia da fênix que ressurge das cinzas. Se prestarmos atenção, de dois ou três anos pra cá, tem acontecido um “boom” de feiras de arte impressa independente. Quase todo mês esses eventos acontecem em algum canto do estado de São Paulo ou do Brasil. Outro fator que contribuiu muito para recolocar os fanzines em evidência foi o surgimento do movimento de saraus periféricos e slams (batalhas de poesia falada). As poetisas e os poetas enxergaram no fanzine o canal ideal para expressarem sua arte, fazendo poemas curtos, longos ou concretos.

* Produtor de eventos culturais, poeta e fanzineiro. Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

21


Em uma volta rápida pelo centro de São Paulo, pela Praça Roosevelt, pela Avenida Paulista ou Praça da Sé é bem possível encontrar um artista vendendo seu fanzine. Na maior parte das vezes, no esquema “pague o quanto vale a arte”. E é importante dizer que muita gente não usa a expressão “vender fanzines”, mas sim “manguear fanzines”. Se não me engano, essa gíria vem da vivência dos artistas de rua que viajam pelo mundo e pelo Brasil pedindo carona. Vejo e sinto os fanzines como uma espécie de arte marginal, que durante muito tempo só era conhecida por pessoas de ambientes independentes. Porém, atualmente é possível ver grandes centros acadêmicos usando desta arte para trabalhar educomunicação, poesia, desenho e outras linguagens. Ou seja, a academia começou, ainda que timidamente, a ver os fanzines como arte. Isso certamente se dá pela popularidade que esta linguagem artística alcançou nesse momento.

Fanzines ‘Demência Coletiva nº01’   e ‘Distopia Zine nº01’ fortalecem    s artistas independentes.

Basicamente, o fanzine pode ser feito por qualquer pessoa de qualquer idade. Pode ser com colagens de revistas velhas, apenas escrito e desenhado, etc. Como disse antes, é uma arte bem livre e expansiva que não se prende a regras.

TÁ NA MÃO!

Zines: a única regra é – liberdade para criar!

O Danylo indicou alguns nomes de artistas que influenciaram bastante no seu processo de se tornar um fanzineiro. Anota aí: Antonio Bivar, Thina Curtis, Gastão Moreira, Ariel Invasor (Invasores de Cérebro), Jhonny Revolta e Redson (Cólera). Se quiser trocar uma ideia com ele, é só mandar um e-mail para danylopaulosilva@yahoo.com.br

22

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116


COMO SE FAZ

COMO SE FAZ:

FANZINE Q

TEXTO GABRIEL RAZO

ESPÉCIE DE REVISTA INDEPENDENTE, FANZINES SÃO FEITOS COM COLAGENS, DESENHOS OU IMAGENS – TUDO DE FORMA ARTESANAL!

ue tal você criar um zine e espalhar sua mensagem pelo mundo? No verso desta página, você poderá escrever poemas, contos, desenhar, colar... ou seja, soltar a imaginação e produzir algo bem legal em formato de fanzine. Mas como fazer isso? É só seguir o passo a passo de como produzir o seu. Vamos lá?

PASSO 1:

IMAGENS ADAPTADO DE GABRIELA SAKATA NA REVISTA CAPITOLINA

Recorte essa folha na linha pontilhada (ou pegue alguma folha A4)

PASSO 2: Dobrando

VOCÊ VAI PRECISAR:

Desta folha (ou de uma folha A4, caso não queira cortar esta aqui); Uma tesoura ou estilete; Materiais para fazer arte; como lápis, canetinhas, recortes de jornais/ revistas, tintas e/ou qualquer outro que quiser!

PASSO 3: Cortando

Ideias para o conteúdo do zine; considerando que ele terá capa, verso e 6 páginas internas.

PASSO 4: Montando

Agora é só preencher as páginas com o conteúdo da sua escolha. Vale escrever, desenhar, fazer uma colagem ou o que mais você imaginar. Depois, se você quiser, dá até pra fazer algumas cópias e espalhar sua arte pelo mundo! Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

23


LIBERTE AS IDEIAS: FAÇA SEU FANZINE!


IMAGENS QUE VIRAM

“SE ESSA CAPA FOSSE MINHA” Nosso processo de construção das imagens surgiu através de três livros que marcaram nossa jornada no projeto Literatura e Direitos Humanos: Para ler, ver e contar, foram eles: Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, que retrata a escravidão de forma clara e objetiva sem romantizar ou modificar os acontecimentos do passado; Sejamos todos feministas, de Chimamanda Ngozi Adichie, um famoso discurso que fala sobre como o feminismo deve ser uma luta de todas as pessoas e, por fim, Meu crespo é de rainha, de bell hooks, que exalta a beleza de cabelos crespos e cacheados, ensinando as crianças – e pessoas mais velhas também – a amarem seus cabelos.

TEXTO DUDA PIMENTEL, MEDIADORA DA BIBLIOTECA COMUNITÁRIA ADEMIR DOS SANTOS

CRÉDITOS DAS FOTOS IDEALIZAÇÃO: DUDA PIMENTEL, LIZANDRA STEPHANY SANTANA SANTOS, NATALIA MILAGRE ELIAS E VANESSA NUNES PEREIRA

MODELOS: DUDA PIMENTEL, NATALIA MILAGRE ELIAS, VANESSA NUNES PEREIRA FOTOGRAFIA: GABRIEL RAZO, VIRAJOVENS DE SÃO PAULO (SP).

Ao escolhermos esses livros para fazer uma releitura de suas capas, queríamos retratar o empoderamento feminino, a desigualdade de gênero e a escravidão – mostrando de forma explícita e impactante nossas perspectivas sobre essas grandes obras, escritas por grandes autoras.

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

25


IMAGENS QUE VIRAM

26

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116


IMAGENS QUE VIRAM

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

27


ME ME

V EJO NO QUE VEJO, LEIO NO QUE LEMOS

1

A BIBLIODIVERSIDADE DO ACERVO DAS BIBLIOTECAS COMUNITÁRIAS.

H

á mais de 20 anos, a norteamericana Audre Lorde publicava o poema Bons espelhos não são baratos, que demoraria a ser traduzido para o português, mas cujos sentidos já eram conhecidos e anunciados há bastante tempo por aqui.

TEXTO BEL SANTOS MAYER2 FOTO JULIANA MONTEIRO CARRASCOZA

Facilitando formações na área de Direitos Humanos e Relações de Gênero e Raça, incorporei à reflexão sobre o “Direito humano à literatura” o direito humano à identidade na diversidade e na humanidade, ou seja, o direito de ver-se no que lê. E assim, junto à Rede LiteraSampa, tenho buscado, a partir do conceito de bibliodiversidade, constituir um acervo que dialogue com jovens mediadores/as de leitura das bibliotecas comunitárias, que por sua vez dialogam com crianças, jovens e adultos, leitores/as e não-leitores/as. Pela mediação de leitura, promovem o encontro com livros, histórias, personagens, metáforas, espelhos.

O título faz referência a oficinas ministradas por Bel Santos Mayer para diferentes públicos. Parte deste artigo foi publicado em Diversidade no Brasil, AHK – Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha, 2019. 2 Bel Santos Mayer é coordenadora do Ibeac desde 1997 e coordenou o projeto Literatura e Direitos Humanos: para ler, ver e contar. 1

28

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116


POR MEIO DA LITERATURA TEMOS (RE)CONSTRUÍDO UMA IMAGEM JUSTA DE NÓS MESMOS/AS, QUESTIONANDO E SUBSTITUINDO OS “VIDROS DE DISTORÇÕES” QUE NOS INVISIBILIZAM E NOS IMPÕEM UMA FEIURA. Pela

bibliodiversidade, buscamos disseminar o direito de sermos diferentes, de termos nossas vivências periféricas, nossas histórias familiares, dramas e conquistas coletivas no imaginário do leitor/a. Temos promovido o direito a “gostar mais de nós mesmos/as”3 e o direito humano a ler e contar o mundo, também, a partir das margens, dos becos e vielas das cidades. De um lado, temos trabalhado com a literatura universal, patrimônio da humanidade referenciada como cânone literário. Para Achille Mbembe, seria “uma enorme perda nos apartar daquilo que contribuímos para que existisse(...) O desafio é habitar vários mundos e formas diversas de inteligibilidade ao mesmo tempo, não em um gesto de rejeição gratuita, mas de vaivém, que autoriza a articulação de um pensamento de travessia, da circulação” (O fardo da raça, p.6, N-1 edições, 2019). De outro lado, lemos a literatura nascida de mãos calejadas, com personagens negros/as, indígenas, trabalhadores/as braçais que incluem as suas batalhas cotidianas, o direito a ver-se no presente e no futuro; o direito ao sonho, como escreveria Carolina

Maria de Jesus: “Fiz o café e fui carregar água. Olhei o céu, a Estrela Dalva já estava no céu. Como é horrível pisar na lama. As horas que sou feliz é quando estou residindo nos castelos imaginários” (Quarto de Despejo, Ed. Ática, 2001, p. 144). PARA QUE A BIBLIODIVERSIDADE SEJA MAIS QUE UMA IDEIA, É NECESSÁRIO QUE TODA A CADEIA CRIATIVA, PRODUTIVA, DISTRIBUTIVA E MEDIADORA DO LIVRO SE ENVOLVA SERIAMENTE COM ELA. É necessário que uma

maior diversidade de autores/as escrevam/ilustrem a diversidade do nosso país e encontrem espaço para serem publicados/ as em um universo mais amplo de editoras de diferentes portes para que possam chegar às mãos de bibliotecários/as e mediadores/ as de leitura de vários cantos do Brasil e aos olhos e ouvidos dos leitores/as e não-leitores/as. Tudo assim emendado e sem vírgulas, mesmo. Precisamos de políticas públicas e de práticas sensíveis e responsáveis à produção de “bons espelhos”, ao invés de sairmos distribuindo “espelhos que mentem”.

“É uma perda de tempo odiar um espelho ou seu reflexo em vez de interromper a mão que constrói o vidro de distorções discretas o suficiente para passarem despercebidas (...) ou se você conseguir ver que o espelho mente você estilhaça o vidro escolhendo outra cegueira e mãos cortadas e indefesas. Porque ao mesmo tempo descendo a rua um fazedor de espelhos sorri criando e transformando novos espelhos que mentem vendendo-nos novos palhaços com desconto.” (Audre Lorde, Bons espelhos não são baratos, 1997)

O termo faz referência ao livro Gostando mais de nós mesmos: 17 perguntas e respostas sobre discriminação racial e autoestima, do Instituto Amma Psiqué e Negriture, Ed. Quilombhoje, 1996. 3

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

29


LUGAR DE FALA:

DAS PALAVRAS À HUMANIZAÇÃO NA LITERATURA, TAL COMO NOS DIREITOS, IMPORTA CONSTRUIR A IGUALDADE.

TEXTO DJALMA NANDO COMUNISTA GÓES1, MEDIADOR NA BIBLIOTECA COMUNITÁRIA SOLANO TRINDADE. FOTO JULIANA MONTEIRO CARRASCOZA

N

o pós-guerra, mulheres de diferentes países contribuíram para introduzir questões de gênero, antes marginalizadas, na formulação dos princípios que regem o que se convencionou chamar de direitos humanos. Essa participação foi fundamental para que se garantisse imprimir igualdade de gênero à Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Tematizada desde o início, a igualdade de gênero permeia os 30 artigos da declaração e propôs ao mundo uma nova forma de ver as mulheres: como sujeitos integrais e subjetivos, não mais como reflexo masculino. TAL COMO AS MULHERES SE DESTACARAM NA LUTA PELOS DIREITOS HUMANOS NO PÓS-GUERRA A PARTIR DA PERSPECTIVA

Entre as contribuições, a educadora e escritora indiana Hansa Mehta retificou a representação dos seres humanos a partir do gênero masculino ao sugerir que, já no primeiro artigo, se substituísse a formulação “TODOS OS HOMENS NASCEM LIVRES E IGUAIS” POR “TODOS OS SERES HUMANOS NASCEM LIVRES E IGUAIS”.

DE ENFRENTAMENTO DAS DESIGUALDADES SOCIAIS, ATUALMENTE NA LITERATURA OCORRE SEMELHANTE SITUAÇÃO.

A literatura hegemônica – aquela que nos apresentam e que nos parece tão distante – vem com as marcas da branquitude e da masculinidade europeia.

Sociólogo, mestre em educação, militante do Coletivo de Esquerda Força Ativa e do Fórum Hip Hop. 1

30

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116


Relegando às mulheres, principalmente não-brancas, personagens secundários, como expoentes e portadoras daquilo que degrada o humano; e aos homens brancos, a imagem de portadores da honra, da moral e dos bons costumes.

Esse fazer literário impregnado de Direitos Humanos foi o que levou o Ibeac a propor que adolescentes e jovens que frequentam ou participam de espaços comunitários e alternativos de leitura (sejam bibliotecas ou ações desse tipo) participassem desse ler, ver e contar. A

No Brasil e em outros países de todo o mundo, as mulheres estão mudando o cenário literário significativamente. SURGE UMA

LITERATURA BRASILEIRA

LITERATURA COM LUGAR

SITUA EM UM LUGAR DE FALA

DE FALA – mulheres como

EM QUE A PALAVRA AMPLIA

produtoras e autoras falando de experiências da vida material em sociedade nos romances, contos, crônicas, poesias, entre outros gêneros textuais.

A VEZ E VOZ DAQUELAS E

Essa literatura com lugar de fala não se refere apenas à quebra do muro da desigualdade de gênero, pois acontece de forma interseccional – classe, raça, entre outros marcadores sociais, também atravessam os escritos. Não somente nos gêneros literários as mulheres pretas e periféricas aparecem como elemento principal, mas também na organização e concretização de ações literárias, como mediação de leitura, saraus, slams, contação de histórias e organização de redes de bibliotecas comunitárias.

2

CONTEMPORÂNEA, UMEDECIDA COM OS VALORES DOS DIREITOS HUMANOS, SE

DAQUELES INVISIBILIZADOS SOCIALMENTE.

O projeto Literatura & Direitos Humanos: Para ler, ver e contar põe em contato adolescentes das regiões periféricas da cidade de São Paulo com o universo da leitura. Nele, a literatura se constitui como instrumento de desmascaramento da realidade social, pois as obras indicadas por escritores como Cuti, Camila Dias, Ana Maria Gonçalves, entre outros, ao explicitar situações de restrições de direitos, machismo, sexismo, violências contra crianças, adolescentes, jovens e mulheres, bem como o racismo estrutural, expõem a situação de recorrentes violações dos Direitos Humanos neste país.

As atividades de leitura e escrita com os adolescentes e jovens produzem o amálgama entre a Literatura e os Direitos Humanos, forjando-os em instrumento mobilizador “para ler, ver e contar”. Nas palavras de Antônio Cândido2, “a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo, ela nos organiza, nos liberta do caos e, portanto, nos humaniza”.

CÂNDIDO, Antônio. Vários Escritos. São Paulo – Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre Azul, 2004, p. 186.

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

31


TEXTO MARCIA CUNHA*

PRAZEROSA DIFICULDADE DE A

ESCOLHER UM LIVRO NA INDECISÃO PARA ESCOLHER UMA LEITURA, BASTA A INDICAÇÃO DE ALGUÉM QUE ADMIRAMOS PARA ACABAR COM AS DÚVIDAS E MERGULHAR SEM MEDO EM UMA NOVA HISTÓRIA. LUIZ CUTI

Q

uando vamos a um lugar bonito, sempre desejamos que nossas pessoas mais queridas estivessem com a gente. Queremos dividir o encantamento, ouvi-las sobre a mesma paisagem. Indicar um livro também é um pouco assim. A seguir, leia trechos de cartas de seis pessoas dedicadas às letras, escritas aos jovens do projeto Literatura e Direitos Humanos: Para Ler, Ver e Contar. Elas acompanharam indicações de leitura que, por sua vez, foram orientadas pela garantia de diversidade: autoras negras e autores negros, clássicos e contemporâneos, prosa e verso, entre outros.

Escritor, poeta e dramaturgo. Um dos criadores do jornal literário Jornegro e da série Cadernos Negros. Participou da fundação do grupo Quilombhoje, no qual se manteve até 1993. “Fazendo um contraponto à urgência, à pressa, à banalidade, mais que nunca o livro se tornou a grande ferramenta da libertação pessoal. (...) Toda obra escrita é um ambiente fechado para o qual, cada uma tem a chave certa. Esta chave é a nossa postura, composta de expectativas prévias. Com a chave errada não conseguimos adentrar plenamente aquele ambiente de signos, ficamos a meio caminho. Cada modalidade textual pressupõe, pela sua configuração interna, a flexibilização receptiva do leitor. O texto é um Outro, que exige previamente um abraço de entrega à especificidade formal que apresenta”.

INDICAÇÕES DE CUTI

1. Americanah – Chimamanda Ngozi Adichie / 2. Cachorro velho – Teresa Cárdenas / 3. A maldição de Canaan – Romeu Crusoé / 4. Um defeito de cor – Ana Maria Gonçalves / 5. O livro dos negros – Laurence Hill / 6. Zenzele: uma carta para minha filha – J. Nozipo Maraire / 7. Memória da noite revisitada e outros poemas – Abelardo Rodrigues / 8. A ilha da chuva e do vento – Simone Schwarz-Bart / 9. Guarda pra mim: poemas – Éle Semog / 10. Um limite entre nós. – August Wilson

* Socióloga, com atuação em sistematização de projetos sociais.

32

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116


CAMILLA DIAS DOMINGUES Assistente social, mediadora de leitura e influenciadora digital. “Em minha trajetória, alguns livros fizeram parte do meu percurso e de minha construção enquanto leitora e o mais importante, enquanto ser social. Me humanizaram, tornaram-me mais solidária, desenvolveram em mim sentimentos de empatia, respeito, tolerância e amor ao próximo. A literatura ficcional tem esse poder de representar a realidade de forma muito verossímil, retirando elementos do mundo real e trazendo-os para as narrativas, que se transformam em vivências que nos transformam e nos inspiram”.

LETICIA LIESENFELD Professora, atriz e narradora de histórias, coordenadora da pós Narração Artística, d’A Casa Tombada. “Acho que sempre associei a literatura (toda a literatura) aos direitos humanos, nem sei como seria não associar. Pareceme uma ligação intrínseca e permanente. Os livros foram até hoje o que mais me faz aderir ao mundo e ao outro (e talvez a mim mesma), criar um tipo profundo e verdadeiro de (con)tato! (...) As possibilidades se mostram infinitas, e isso aconchega e inquieta ao mesmo tempo. Eles acolhem os mais variados tipos de reflexão. Nós cabemos todos na literatura, há lugar mesmo para as nossas versões apenas inventadas ou sonhadas”.

INDICAÇÕES DE CAMILLA

INDICAÇÕES DE

DIAS DOMINGUES

LETICIA LIESENFELD

1. Persépolis – Marjane Satrapi / 2. Para poder viver – Yeonmi Park / 3. Passarinha – Kathryn Erskine / 4. Por lugares incríveis – Jennifer Niven / 5. Meu crespo é de rainha – Bell Hooks / 6. Kindred – Laços de sangue – Octavia E. Butler / 7. Heroínas Negras Brasileiras – Jarid Arraes / 8. O ódio que você semeiaAngie Thomas / 9. Esperança para voar – Rutendo Tavengerwei / 10. A bolsa amarela – Lygia Bojunga

1. O Conto da Aia – Margaret Atwood / 2. Frankenstein – Mary Shelley / 3. Um amor Feliz – Wislawa Szymborska / 4. As Mulheres Devem Chorar… ou – Virginia Woolf / 5. O Compromisso – Herta Müller / 6. O Processo – Franz Kafka / 7. Ensaio sobre a Cegueira – José Saramago / 8. As Cidades Invisíveis – Ítalo Calvino / 9. Como Curar um Fanático – Amóz Oz / 10. Admirável Mundo Novo – Aldous Huxley

ANA MARIA GONÇALVES Escritora e publicitária. Autora de Um defeito de cor (Record, 2006), que conquistou o importante Prêmio Casa de Las Américas de melhor romance. “Já perceberam como, nos governos autoritários, escritoras e escritores estão entre as primeiras pessoas a serem perseguidas, demonizadas, atacadas, diminuídas na sua importância? Isso porque lidamos, além de outras coisas, com o despertar da imaginação, esta capacidade humana de pensar outros mundos e outras realidades possíveis. (...) Ao conhecer novos mundos e novas culturas, ao habitar a pele de pessoas completamente diferentes de nós, somos modificados pela experiência e levados a ver os outros quase como vemos a nós mesmos; e nos entendemos como parte de um todo que queremos modificar, melhorar, incentivar. Em dias feios e perigosos como os que estamos vivendo, este é o ponto de partida. E partimos juntos.”

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

33


INDICAÇÕES DE ANA MARIA GONÇALVES

1. Quarto de despejo – Carolina Maria de Jesus / 2. Na minha pele – Lázaro Ramos / 3. Entre o mundo e eu – Ta-Nehisi Coates / 4. Sejamos todos feministas – Chimamanda Ngozi Adichie / 5. O ódio que você semeia – Angie Thomas / 6. Grande Sertão: Veredas – João Guimarães Rosa / 7. Um Exú em Nova York – Cidinha da Silva / 8. Assassinato no Expresso do Oriente – Agatha Christie / 9. A revolução dos bichos – George Orwell / 10. Cidade de Deus – Paulo Lins / Mais um: Poesia completa – Paulo Leminski

ROGÉRIO PEREIRA Diretor da Biblioteca Pública do Estado do Paraná. Autor do livro “Na escuridão, amanhã” (Cosac Naify, 2013). “Para finalizar esta carta um tanto irregular e repleta de silêncios, confesso que me causou certa angústia formular uma lista de apenas dez livros. Gostaria muito de encher páginas e páginas com indicações de autores, contos, romances, poesias, crônicas. Uma lista com falhas e, talvez, equívocos, mas feita com generosidade e otimismo. Sim, na loucura dos dias que jamais se desconectam, que atropelam o silêncio, que destroem a introspecção, acredito que as páginas de um bom livro podem iluminar mãos espalmadas na escuridão. Como tão bem disse William Faulkner: ‘O que a literatura faz é o mesmo que acender um fósforo no campo no meio da noite. Um fósforo não ilumina quase nada, mas nos permite ver quanta escuridão existe ao redor’”

34

INDICAÇÕES DE ROGÉRIO PEREIRA

1. Vidas secas – Graciliano Ramos / 2. Sentimento do mundo – Carlos Drummond de Andrade / 3. Lavoura arcaica – Raduan Nassar / 4. Grande sertão: veredas – João Guimarães Rosa / 5. Memórias póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis / 6. A hora da estrela – Clarice Lispector / 7. O quinze – Rachel de Queiroz / 8. O caderno rosa de Lori Lamby – Hilda Hilst / 9. As meninas – Lygia Fagundes Telles / 10. Bagagem – Adélia Prado

BEL SANTOS Educadora social, facilita processos de criação de Bibliotecas Comunitárias gerenciadas por jovens. Coordena o Programa de Direitos Humanos do IBEAC e é membro do grupo gestor da Rede LiteraSampa. “Vocês podem notar que minhas indicações partiram de alguns critérios: metade mulheres, negros/as, com obras premiadas e 99% vivíssimos/as. Eu queria provocar boas lembranças e bons encontros entre vocês e as obras escolhidas, entre vocês e os/as autores/as. (...) eu queria que vocês lessem textos inesquecíveis, que indicassem para seus colegas, para seus familiares e educadores/as. Eu queria muito, muito mesmo, ver vocês facilitando rodas de conversas com autores/as especiais, olhando em seus olhos

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

e dizendo o quanto suas palavras os/as tocaram. Eu queria, com minhas indicações, que a literatura fosse um dos principais assuntos de seus dias. Eu queria que vocês chorassem, rissem, se irritassem, esperançassem com as palavras que escolhi. Eu vi tudo isto acontecer! Gratidão infinita, meninos e meninas leitores!”

INDICAÇÕES DE BEL SANTOS

1. Um defeito de cor – Ana Maria Gonçalves / 2. Catálogo de Perdas — João Anzanello Carrascoza / 3. O diário de Bitita — Carolina Maria de Jesus / 4. A cidade dorme — Luiz Ruffato / 5. Assim na terra como embaixo da terra — Ana Paula Maia / 6. Olhos d’água — Conceição Evaristo / 7. Varal — Maria Vilani / 8. A resistência — Julián Fuks / 9. Contos crespos – Cuti / 10. O peso do pássaro morto – Aline Bei

TÁ NA MÃO!

Quer ler as cartas na íntegra? Confira a de Rogério Pereira no Jornal Rascunho (http://rascunho. com.br/carta-a-jovens-leitores/). As demais podem ser encontradas na Revista Emília (https:// revistaemilia.com.br/)


SER JOV EM POETA NA PERIFERIA CARREIRA, RESISTÊNCIA, MOBILIZAÇÃO: A POESIA É FERRAMENTA DE MUITOS USOS PARA ESSES ARTISTAS

V

iver de poesia, ser jovem na periferia... o que define essas experiências no cenário de uma metrópole como a paulistana? E se elas estiverem somadas em uma só história? Nós, dois jovens poetas periféricos, escrevemos os relatos abaixo – são dois pontos de vista que apresentam algumas ideias semelhantes e outras singulares. O que é, como é e o que pode fazer um jovem poeta na periferia para ajudar sua quebrada e ao mesmo tempo ganhar um pouco de visibilidade são os temas de que tratamos.

ALEF DE PAULA SANTOS

com que ele coloque em suas poesias todo esse ódio, e fazendo isso ele pode de alguma forma ajudar sua qbrada. Mas como ele pode fazer isso? Essa resposta é bem prática, ele pode ajudar sua qbrada simplesmente com sua voz ativa, fazendo eventos culturais em que outras pessoas que pensam como ele e têm medo de se expressar possam ir e perder esse medo ou timidez, realizando também manifestações artísticas e fazendo com que o povo dessa comunidade acorde de alguma forma e comece a correr atrás de seus direitos sem ter medo de abrir a boca. Até porque é só abrindo a boca que o povo vai desfrutar de algum direito e de algum lazer.

Jovem poeta de Parelheiros, São Paulo (SP)

Por meio de vivência pessoal, percebo que ser um jovem poeta periférico pode ser bastante revoltante. Mas por quê? Simplesmente porque vivemos na periferia e conseguimos enxergar o que se passa lá dentro, como a criminalidade, o abuso policial, a falta de oportunidade em empregos e até mesmo nos estudos. Isso faz a periferia não progredir, faz com que um poeta se revolte de uma forma que faz

GABRIEL FEITOSA NETO

Jovem poeta de Heliópolis, São Paulo (SP)

Ser um jovem poeta na periferia é algo libertador, mas também é algo doloroso. Quando se é um artista independente você encontra muitas dificuldades nesse percurso que chamamos de carreira. Na favela existe muita arte, respiramos arte todos os

TEXTO ALEF DE PAULA SANTOS E GABRIEL FEITOSA NETO, MEDIADORES DE LEITURA NAS BIBLIOTECAS COMUNITÁRIAS CAMINHOS DA LEITURA E DE HELIÓPOLIS. VIRAJOVENS DE SÃO PAULO (SP).

dias. Com um reconhecimento mínimo os artistas da periferia seguem a jornada. Muitos trabalham, estudam e fazem vários e vários eventos sem nenhuma ajuda de custo. O mercado artístico já deu muita grana para os nossos, mas também pressiona, confunde e frustra boa parte de todos que sonham em viver da arte. Para nós, um elogio da vizinha que escuta seu som é muito gratificante, mas todos nós temos necessidades e necessariamente iremos atrás de suprir essas necessidades com um ou dois empregos. E assim, infelizmente, o sonho vai se distanciando. Essa é a profissão mais louca que já vi e é o que eu mais amo fazer. A conclusão é que ser um jovem poeta na periferia tem muitos lados. Uns buscam o reconhecimento, outros querem apenas sentir a arte. Mas, em ambas as opções, poetas são poetas apenas para existir. Isso já é muito – se pensarmos sobre de onde viemos.

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

35


somos criaturas

TEXTO MARIA CELESTE DE SOUZA*

NÓS LEMOS, ELES LEEM

H

á uma queixa insistente sobre o desinteresse dos jovens pela leitura de livros. Discursos correntes afirmam que eles gastam seu tempo nas redes sociais, ouvindo música e buscando a vitória em complicados games. Livros impressos, feitos exclusivamente de tinta sobre papel, não os atraem. Será? PRIMEIRAMENTE, É PRECISO

RELEMBRAR QUE OS JOVENS

BRASILEIROS NÃO COMPÕEM UM GRUPO UNIFORME E QUE AS DIFERENTES

JUVENTUDES TÊM INTERESSES

SE ELES POUCO LEEM, A CULPA NÃO É DE SUA JUVENTUDE. Se

há culpados, eles são adultos. Alguns, acachapados pela injustiça social, passaram da infância à maturidade sem estudar e sem tempo para se perceber e se expressar. Mas há os outros adultos que poderiam, mas não buscaram uma boa forma de compreensão e transformação do mundo. Estes, sem condições de elaborar a opressão que sofrem, acabam deixando vazar a raiva, a insatisfação, ou, desconsolados, anestesiam as dores com as muitas drogas do mundo. No final, muitos adultos não leem e mal compreendem o valor da cultura.

E PREOCUPAÇÕES MUITO

DISTINTOS. O jovem que vive as

POR SORTE, HÁ JOVENS

exigências da realidade descobre muito cedo que as pressões e tensões do mundo têm como contra força algum tipo de expressão. Por isso, reagem às coerções, movimentando-se. Eles dançam, cantam, encenam, pintam grafitam, compõem canções etc. E, claro, não reinventam a roda o tempo todo, porque são inteligentes e porque a cultura é um manancial que encontra frestas em toda parte para se deixar vazar. Assim, os jovens acabam achando formas tradicionais e outras reinventadas de expressão.

QUE LEEM E DESPERTAM ADULTOS E CRIANÇAS PARA ESSA POSSIBILIDADE DE ELABORAÇÃO DE DORES E ALEGRIAS, ORIGEM E ESTEIO DAS LUTAS POR UM MUNDO MAIS JUSTO E SOLIDÁRIO.

E como esses jovens descobrem os livros? Porque alguns adultos os descobriram antes e fazem o possível para que outras pessoas venham a conhecê-los e porque os livros nos encontram, apesar das improbabilidades.

* Graduada em Letras (USP), Mestre e Doutoranda na área de Educação, Linguagem e Psicologia. Faz parte da equipe do projeto “Literatura e Direitos Humanos: para ler, ver e contar”.

36

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116


Nem sempre as relações são possíveis e o leitor desiste da empreitada. Nem sempre as relações terminam e o leitor se mantém fiel, cultivando um amor secreto ou declarado por um livro. Outras vezes o leitor sai da obra à procura do autor, encantado por aquele sujeito capaz de usar as palavras de modo tão singular, quase como se ambos fossem a mesma pessoa. Em todos os casos, o leitor se vê obrigado a falar. Precisa contar que não é mais o mesmo,

compartilhar frases, ideias, modos de ser, lugares visitados. Precisa ser compreendido e reconhecido. A leitura é um trabalho exigente de elaboração de sentidos e depois dela os materiais psíquicos precisam ser organizados e acomodados para dar espaço para a vida e novas experiências. Findada a leitura, o que se vê do mundo pela janela ou na caminhada pela rua está diferente, atravessado, agora, pela linguagem que já não pode ser ignorada.

por essa espécie de afinidade, começam a buscar outros conhecidos comuns: livros lidos, listas de desejos, livros amados, livros odiados, livros sobre os quais ouviram falar sem jamais encontrálos... O lema que parece presidir esses encontros é: “nós lemos, eles leem”. Enfim, como afirma Manguel2 “somos criaturas leitoras, ingerimos palavras, somos feitos de palavras, sabemos que palavras são nosso meio de estar no mundo, e é através das palavras que identificamos nossa realidade e por meio das palavras somos, nós mesmos identificados”.

ro a s a s s ,

Todavia, depois do encontro com uma obra, o leitor se vê envolvido em um estranho relacionamento. Responsável pela animação da realidade elaborada no livro, ele não participa diretamente dela. Vêse envolvido por pessoas e dramas, mas a respeito deles nada pode dizer ou fazer. O narrador não lhe dá atenção e mantém seu discurso página após página. O leitor se vê, em muitos momentos, como o amador: cria e recria o universo do ser amado sem que este jamais lhe seja absolutamente acessível. Padece com a incapacidade de encontrar um sentido definitivo, a tão sonhada completude que toda obra literária parece conter. Claro que uma narrativa tem um ponto final e que a experiência, muitas vezes de intenso envolvimento do leitor, também. Mas a experiência transforma e as transformações não são definitivas e completas. A experiência deixa fios das costuras inacabadas e esses fios enroscam-se em outros, voluntária ou involuntariamente, criando embaraços, figuras, sensações. Eis que o leitor se vê devolvido a sua realidade pessoal não sendo mais o mesmo.

SE O LEITOR ENCONTRA

ALGUÉM COM QUEM FALAR,

UMA COMUNIDADE COMEÇA A SURGIR. Não se trata de

formar um grupo de pessoas que explicarão a obra por meio de análises fundamentadas em estudos especializados. O grupo se comporá de leitores que compartilharão entre si suas experiências de leitura. Orienta esse universo um princípio de igualdade e solidariedade: pessoas conversam com outras e a obra, convidada de honra, circula pelo ambiente dando atenção a um e outro. As pessoas não falam dela, falam de si mesmas. Irmanadas

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

37


TEXTO MARA ESTEVES COSTA* FOTOS JOÃO CLAUDIO DE SENA E DIVULGAÇÃO

Q

uem pensa que as feiras literárias no Brasil se resumem à Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) e às Bienais do Livro das grandes capitais, ou, ainda, que estes espaços são frequentados somente pela classe média alta como vemos propagado por aí, vem se enganando de diversas formas As Bienais do Livro e outras feiras literárias que ocorrem, em sua grande maioria, nas capitais, vêm há alguns anos dando destaque para produções literárias e manifestações

A DESCENTRALIZAÇÃO DAS FEIRAS LITERÁRIAS:

UMA FES TA DO POVO NA CELEBRAÇÃO E NA TROCA, DIVERSOS COLETIVOS ARTÍSTICOS DAS PERIFERIAS VÊM DESENVOLVENDO FESTAS E FEIRAS LITERÁRIAS COM O OBJETIVO DE POPULARIZÁ-LAS.

artísticas produzidas nas periferias de todo o país. No entanto, ainda há uma diversidade de vozes e saberes a serem compartilhados, além de um longo caminho para popularizar estes eventos como espaços de lazer e cultura para a população como um todo. Dada a dimensão territorial do Brasil, a concentração de grandes eventos em poucas cidades nega o acesso a bens culturais, impossibilitando a grande parte da população o acesso ao livro, à leitura e ao convívio mais íntimo com o universo literário que estes encontros proporcionam.

Feiras literárias: um espaço de encontros e trocas potentes!

É COM VISTAS À AFIRMAÇÃO DE DIREITOS E BASEADOS NA NECESSIDADE DE PARTILHA, CELEBRAÇÃO E TROCA QUE DIVERSOS COLETIVOS ARTÍSTICOS DAS PERIFERIAS VÊM DESENVOLVENDO FESTAS E FEIRAS LITERÁRIAS.

Popularizando estes espaços e também preenchendo lacunas: a ausência de livrarias, bibliotecas, espaços culturais ou entretenimento cultural gratuito e acessível para além daquilo que estes mesmos coletivos já desenvolvem cotidianamente. São movimentos importantes e de impacto ainda não mensurado. O Mapa da Desigualdade de 2019, desenvolvido pela Rede Nossa São Paulo, registrou uma desigualdade no acesso a livros adultos e infantis de até 80% entre os bairros da cidade de São Paulo; número referente à comparação entre os bairros Campo Limpo e Liberdade. Segundo o mesmo estudo, a maioria da população dos bairros periféricos tem menos de 1 livro disponível por pessoa nas bibliotecas municipais.

* Mara Esteves Costa é formada em Letras, atua como educadora popular, mediadora de leitura e produtora cultural no segmento do livro, da leitura e de literatura. Atuou na produção das duas primeiras edições da FELIZS – Feira Literária da Zona Sul. É integrante da coletiva Achadouras de Histórias e coletiva-gestora da Biblioteca Comunitária Djeanne Firmino, localizada na zona sul de São Paulo, que integra a Rede LiteraSampa e a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias. 38

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116


ALÉM DE FACILITAR O ACESSO AO LIVRO E A FRUIÇÃO ARTÍSTICA, A INTENÇÃO DAS FESTAS E FEIRAS LITERÁRIAS

realizadas por conta do empenho da própria comunidade e graças ao apoio de alguns parceiros estratégicos.

É A DE OCUPAR CONCRETA E SUBJETIVAMENTE OS ESPAÇOS OCIOSOS, PRAÇAS, RUAS, EQUIPAMENTOS PÚBLICOS E COMUNITÁRIOS COM A LITERATURA E AS MAIS DIVERSAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS. DAR ÊNFASE À ABUNDÂNCIA DE BELEZAS QUE PRODUZIMOS. Possibilitar

o acesso ao objeto livro, que por tantas décadas foi negado à população, tornando-o, cada vez mais, um bem comum e popular. Não queremos somente shoppings, igrejas e bares. Queremos o direito à cidade de forma irrestrita, à produção e à difusão de conhecimento, à beleza e ao encantamento provocado pelas artes. O direito ao acesso, à produção e à difusão do belo. Em São Paulo, estes eventos e celebrações ocorrem da Sul à Leste. Só na Zona Sul, temos no momento 3 feiras literárias, o que se justifica pela sua dimensão. A FELIZS – Feira Literária da Zona Sul, que está em sua 5ª edição, é organizada pelo Sarau do Binho. A FLIG – Festa Literária do Grajaú, organizada por uma rede de artistas e bibliotecárias do bairro, está em sua 2ª edição. Estreando este ano, a FeLiPa – Feira Literária de Parelheiros, organizada pela Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura, reúne artistas, coletivos e parceiros da cultura daquela região. Vale citar também a Mostra Cultural da Cooperifa que, embora abarque uma diversidade de manifestações culturais, tem o livro e a literatura permeando todas as suas edições, que já vêm ocorrendo há doze anos. Estas ações só são

Na Zona Leste, temos a Festa Literária de São Miguel, que, mesmo sendo organizada diretamente pela Fundação Tide Setubal, procura envolver os coletivos e a produção literária local no processo de curadoria do evento. Além de ter um forte recorte dessa produção em toda a sua programação, a FliPenha, desenvolvida por coletivos e bibliotecários da região, tem há dois anos uma programação bem variada. Por fim, há também a FLICT, que está em sua 4ª edição e teve origem na articulação de coletivos que atuavam no Centro de Formação Cultural Cidade Tiradentes.

de leitura e uma variedade de atividades articuladas pela Biblioteca Comunitária do Coque e por coletivos da região. Já no sertão da Bahia, a celebração literária ocorre na Festa Literária do Paiaiá, no distrito de São José do Paiaiá, realizado pela Biblioteca Comunitária Maria das Neves Prado – mais conhecida como Biblioteca do Paiaiá – reúne mais de 120 mil livros e promove atividades que envolvem os moradores do pequeno distrito de pouco mais de 600 moradores. ESTAS ATIVIDADES TÊM ALGUNS ASPECTOS EM COMUM: ALÉM DE SE TRATAREM DE AÇÕES EM QUE O LIVRO E A LITERATURA SÃO TEMAS TRANSVERSAIS, DERIVAM DA ARTICULAÇÃO EM REDE DE DIVERSOS AGENTES, ESPAÇOS E COLETIVOS CULTURAIS E SOCIAIS.

Estes eventos são organizados por atores sociais: gente comum que cotidianamente atua nestes territórios com atividades relacionadas à formação de leitores e à difusão das artes. SÃO PESSOAS DAS PERIFERIAS E QUE ATUAM NELA, SE RELACIONANDO INTIMAMENTE COM A COMUNIDADE. SABEM, ALÉM DE PRODUZIR E DIFUNDIR A LITERATURA, LER E COMPREENDER AS RELAÇÕES SOCIAIS E AS COMPLEXIDADES DE SEUS TERRITÓRIOS.

A cada ano novas festas e feiras literárias brotam nas periferias, não só de São Paulo, mas de vários cantos do Brasil. O bairro do Coque, na periferia de Recife, em Pernambuco, ocupa suas ruas com rodas de conversa, música, teatro, mediações

Embora seja nítido que as contribuições para alavancar o livro e a leitura como um hábito comum e contribuir com seu valor simbólico na sociedade seja hoje uma tarefa executada majoritariamente por pessoas comuns, os diversos trabalhadores e trabalhadoras que atuam em rede em prol da efetivação dos direitos, é preciso reforçar a responsabilidade do poder público em garantir a continuidade destas ações e fazer cumprir as premissas e diretrizes da Política Nacional de Leitura e Escrita (lei n° 13.696/18), que possui como eixo central a democratização através da descentralização dos recursos e do apoio e fortalecimento das ações em seus municípios e estados. Falta agora os poderes institucionais cumprirem o seu papel.

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

39


NO ESCURINHO

DAS PÁGINAS PARA A T ELA LER O LIVRO OU ASSISTIR AO FILME? OS DOIS!

M

uito se pergunta: “Você preferiu o livro ou o filme?”, mas será que essa é uma comparação justa? A verdade é que uma linguagem artística não apaga a outra ou se sobressai a ela. Mesmo que o filme seja baseado em um livro, é como se as histórias – a escrita e a encenada – fossem diferentes, pois a linguagem é diferente. No livro, estamos nós, nossas vivências e nossa imaginação interpretando aquela narrativa da forma que queremos, mesmo que saibamos que quem a escreveu tinha sua própria versão bem amarradinha na cabeça. Nossas experiências pessoais também interferem na nossa interpretação das histórias contadas. No filme, estamos observando e ouvindo aquilo que quem dirigiu e participou da construção dele pensou. É diferente “montar” uma situação na nossa cabeça sobre uma história lida ou ouvida e ver ou ouvir a construção de outra pessoa a partir daquela mesma história.

40

Tudo isso para dizer que as duas linguagens são ótimas e é direito de todas as pessoas ter acesso ao cinema e à literatura de qualidade. O direito ao lazer é garantido pela Constituição. Vamos usufruir dele lendo livros e assistindo produções audiovisuais! Agora, preparamos duas dicas de livros que viraram filme e série. Ambos retratam como os Direitos Humanos podem ser violados em contextos e aspectos diferentes e os dois formatos trataram do assunto com forte repercussão na grande mídia, indo além do livro.

TEXTO JULIA SILVA GOMES E MAYARA LEITE DE MELO, MEDIADORAS DE LEITURA NO CENTRO CULTURAL D. LEONOR E NA BIBLIOTECA COMUNITÁRIA DJEANNE FIRMINO. VIRAJOVENS DE SÃO PAULO (SP). IMAGENS DIVULGAÇÃO pela polícia. Um dia, Professor conhece Dora e seu irmão Zé Fuinha, que também vivem nas ruas. Ele os leva até o Trapiche, o que provoca os demais garotos, que não estão acostumados à presença de uma garota no local. Pedro consegue acalmar a situação e permite que Dora e o irmão fiquem por algum tempo. Só que, aos poucos, nasce o afeto entre o líder dos Capitães da Areia e a jovem que acabou de integrar o grupo. Como essa história não é um conto de fadas, o final pode surpreender…

CAPITÃES DA AREIA É um filme baseado na obra de Jorge Amado, que conta a história de Pedro Bala, Professor, Gato e Sem Perna, adolescentes que crescem nas ruas de Salvador e vivem em comunidade no Trapiche, junto com outros jovens de idades parecidas. Devido à situação de extrema vulnerabilidade social, eles sobrevivem praticando O filme baseado no livro, homônimo, pequenos roubos, o que faz com que é de 2011 e foi dirigido por Cecília sejam constantemente perseguidos Amado e Guy Gonçalves.

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116


ORANGE IS THE NEW BLACK O livro traz as memórias da autora Piper Kerman sobre o ano que passou em um presídio feminino. A obra inspirou a série com o mesmo nome, que teve sete temporadas entre 2013 e 2019. Com um bom emprego e prestes a se casar, Kerman recebe uma visita inesperada da polícia: estava sendo intimada para responder por envolvimento com o tráfico de drogas. A acusação era verdadeira, pois, quando era mais nova, ela havia tido um caso com uma traficante que a convenceu a levar uma maleta de dinheiro para a Europa. Depois do seu julgamento, Kerman é condenada a quinze meses de detenção. No decorrer da história, ela protagoniza e observa casos curiosos, perturbadores, comoventes e engraçados do dia-a-dia do presídio. Sua relação com aquelas mulheres se revela

muito mais complexa do que ela imaginava e, ao mesmo tempo, são muitos os desafios que ela tem que enfrentar para aprender a conviver com as regras e o rigoroso código de conduta do

local. A série revela as alegrias e angústias das presidiárias e mostra a crueldade com que o sistema carcerário as desumaniza e faz com que sejam invisíveis ao mundo exterior.

TÁ NA MÃO!

Já que o assunto é o direito de acesso ao cinema e à literatura, já pensou em fazer um cine debate na sua quebrada? Com apenas 5 passos você consegue! 1- Procure um lugar que possa ser utilizado para essa atividade. Pode ser um local simples, com cadeiras, tapetes, ou tecidos onde as pessoas possam se sentar para assistir ao filme, até mesmo na casa de alguém. 2- Você vai precisar de um projetor, um notebook e um tecido ou parede brancos para servir como tela. Esses materiais podem ser emprestados por escolas ou outros equipamentos educacionais/culturais do seu bairro. Se não forem muitas pessoas, dá até pra usar uma televisão grande! 3- Escolha o filme e o tema que serão assistidos e debatidos. É essencial assistir antes! 4- Convide as pessoas e peça para levarem pipoca e sucos para partilhar durante a atividade. 5- Tente manter as pessoas em roda para que a conversa seja tranquila e todos consigam se enxergar. Peça ajuda ao final da atividade para deixar o espaço em ordem.

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

41


ESCRE VIV ER,

VIVER, SE VER A LITERATURA DE CONCEIÇÃO EVARISTO.

C

onceição Evaristo é uma das principais escritoras da literatura brasileira e afrobrasileira. Traduzida em vários países, vem conquistando cada vez mais leitores. Em 2003, lança o romance Ponciá Vicêncio e, em 2011, o volume de contos Insubmissas lágrimas de mulheres. Em ambos, a autora aborda a discriminação racial, de gênero e de classe. Participa ativamente dos movimentos de valorização da cultura negra. Não é por acaso que tenha publicado seus primeiros escritos, em 1990, na série Cadernos Negros, editada pelo grupo Quilombhoje, que proporciona espaço para divulgação e visibilidade da literatura negra e produção literária das periferias. Mas tudo isso exigiu muito da autora. Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em uma favela de Belo Horizonte (MG) em 1946. Conciliou a vida acadêmica e o trabalho como empregada até concluir seus estudos em 1971, aos 25 anos. Mudou para o Rio de Janeiro na década de 1970. Graduada em Letras pela UFRJ, é doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal

42

Fluminense e trabalhou como professora da rede pública na capital fluminense. Em sua trajetória, Conceição Evaristo desenvolveu a noção de “escrevivência”, com a qual designa um método de investigação e produção de conhecimento a partir da escrita de histórias de vida de mulheres negras, seus corpos negros e narrativas de luta e ancestralidade.

TEXTO RENATA HERONDINA DOS SANTOS, MEDIADORA DE LEITURA NA BIBLIOTECA COMUNITÁRIA CULTURA NO QUINTAL. VIRAJOVENS DE SÃO PAULO (SP).

“(...) NOSSA ESCREVIVÊNCIA NÃO É PARA NINAR “OS DA CASA GRANDE” E SIM PARA INCOMODÁ-LOS EM SEUS SONOS INJUSTOS.”

(Conceição Evaristo, em entrevista ao NEXO Jornal)

palavra, gesto, corporeidade, principalmente dos corpos negros. APRENDER A

O livro e conto Olhos D’Água de Conceição Evaristo vem me acompanhando e sensibilizando. Com ele, estou mergulhando nas profundezas de minhas águas e reconhecendo minhas dores, cicatrizes e o amor marcados pelo tempo, pela minha história. Estou aprendendo a olhar e a refletir sobre as dores, força e sabedoria das mulheres que encontro em seus textos e as que vejo na rua, no trabalho, no meu bairro. Conceição vem me ensinando a ler o que está escrito em cada

“ESCREVIVER” MINHA VIDA

Revista Viração • Ano 17 • Edição 116

SEM MEDO DE SER O QUE SOU, BUSCO FORTALECER A MIM E ÀQUELES E ÀQUELAS QUE ESTÃO “ESCREVIVENDO” SUAS VIDAS TODOS OS DIAS.

E os caminhos estão abertos para que possamos nos reconhecer uns aos outros. Por isso deixo o convite a você leitor, leitora e leitore a abrir caminho para experienciar tudo que Conceição pode ensinar, incomodar e sensibilizar em nós!


Ilustração: Ricardo Cunha

INS T IT UT O BRASILEIRO DE ES T UDOS E APOIO COMUNITÁRIO – IBEAC GESTÃO E COORDENAÇÃO

Bel Santos Mayer e Vera Lion DIRETORIA

Bruna Elage, Edson Alves Feitosa e Fernanda Pompeu

CONSELHEIROS

FORMADORES

Ana Cristina Passarella Bretas, Djalma Lopes Góes (Nando), José Castilho Marques Neto, José Xavier Cortez e Márcia Ferreira Meirelles

Djalma Lopes Góes (Nando) e Maria Celeste

EQUIPE

CONSULADO GERAL DA REPÚBLICA FEDERAL DA ALEMANHA

Cláudia Dias Nogueira, Flávia Kolchraiber, Gabriel Razo da Cunha, Glaucia Araujo, Lidiane Oliveira Santos e Valdirene dos Santos Rocha PROJETO LITERATURA E DIREITOS HUMANOS: PARA LER, VER E CONTAR COORDENAÇÃO

Bel Santos Mayer

SISTEMATIZAÇÃO

Márcia Cunha

Axel Zeidler, Jens Gust, Patrick Hansen e Sophie Allmers REDE DE BIBLIOTECAS COMUNITÁRIAS – LITERASAMPA

BC Ademir dos Santos – Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente • BC Caminhos da Leitura

– Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac) • BC CCDL – Centro Cultural Dona Leonor • BC Cultura no Quintal – Associação Maria Flos Carmeli • BC Djeanne Firmino – Instituto Djeanne Firmino de Artes, Cultura e Educação • BC EJAAC – Espaço Jovem Alexandre Araujo Chaves • BC Mundo dos Livros – Organização Nova Era-Novos Tempos • BC Picadeiro da Leitura – Instituto Criança Cidadã (ICC) • BC Solano Trindade – Coletivo de Esquerda Força Ativa • BC UNAS Heliópolis – UNAS Heliópolis • BE Amorim Lima – Escola Municipal Desembargador Amorim Lima


www.agenciajovem.org

sobre a capa Meu gosto pelas imagens nasceu dos livros. As palavras formaram meu jeito de ver – de me identificar com o que vivo – até que encontrei, na fotografia, um jeito de dizer. É a literatura cumprindo sua função de dialogar com a nossa subjetividade e de permitir as mais diversas leituras de nós mesmos. Quando encontrei, pela primeira vez, os jovens do LiteraSampa, reconhecime em suas escolhas, em seus gestos. Para eles, registrei a imagem de capa desta edição. Para compartilhar e, sobretudo, celebrar estes nossos encontros. O das palavras com as imagens. O da literatura com as nossas vidas. Que o livro continue sendo nosso espaço de refúgio, de acolhimento e de resistência. Juliana Monteiro Carrascoza


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.