Revista Viração - Edição 114 - Jan/Jun 2019

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juventudes plurais.

VOZES DE DENÚNCIA E RESISTÊNCIA

EMPREENDEDORISMO SOCIAL

JUVENTUDES INDÍGENAS URBANAS

EDUCAÇÃO TRANSFORMADORA

O SLAM ESCANCARA OPRESSÕES E MOBILIZA PESSOAS USANDO A POESIA COMO ARMA

JOVENS ESTÃO TRANSFORMANDO REALIDADES COM NEGÓCIOS DE IMPACTO

CONHEÇA A EXPERIÊNCIA DE SER JOVEM INDÍGENA VIVENDO NA CIDADE

É PRECISO ROMPER AS BARREIRAS DA TRANSFOBIA NOS ESPAÇOS EDUCATIVOS


QUEM FAZ A

VIRA PELO BRASIL

CONHEÇA OS VIRAJOVENS EM 9 ESTADOS BRASILEIROS E NO DISTRITO FEDERAL: Belém (PA) Brasília (DF) Curitiba (PR) Guarulhos (SP) Natal (RN) Rio de Janeiro (RJ) Salvador (BA) Santa Maria (RS) São Luís (MA) São Paulo (SP) Vitória (ES)

Esta edição foi financiada por

Organizações parceiras que colaboraram com esta edição

Africanidades – São Paulo (SP) • Auçuba Comunicação e Educomunicação – Recife (PE) • Bloco do Beco – São Paulo (SP) • CAJU (Coletivo de Psicanálise, Adolescência e Juventude) – São Paulo (SP) • CAFRACI (Casa Frei Reginaldo de Acolhida a Criança e ao Idoso) – São Paulo (SP) • Do Morro Produções – São Paulo (SP) • Jornalismo Júnior (ECA – USP) – São Paulo (SP) • Projeto Pindorama (PUC – SP) – São Paulo (SP) • UNAS Heliópolis e Região – São Paulo (SP) • UniPop Instituto Universidade Popular – Belém (PA) • Viração & Jangada - Itália


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EDITORIAL

JUVENTUDES PLURAIS Quantas são as juventudes que semeiam seus sonhos pelo Brasil e pelo mundo? Somos tantas, somos tantos, somos muitos – e diversos. Ou melhor: plurais. A singularidade de cada um é o que nos faz potentes. Mesmo assim, há intersecções e detalhes que nos unem. Nos fazem… jovens! A sede de mudança, a vontade de aprender, uma energia incansável, a resiliência, a criatividade, a capacidade de sonhar grande, o medo de um futuro incerto, a ansiedade de nem sempre se sentir parte, a intensidade de se relacionar e a coragem para ocupar espaços. Infelizmente, nem todo mundo que nasce vai chegar, um dia, a experimentar a juventude. Mas todo mundo que é adulto, um dia já foi jovem. Às vezes, só precisam ser lembrados disso. Nas próximas páginas você vai mergulhar em um diálogo honesto com juventudes de diferentes regiões, culturas, contextos sociais e visões de mundo. Falamos de assuntos importantes – aqueles que mobilizam, afligem e empolgam essa galera! É um panorama sobre a pluralidade da experiência juvenil, construído por diferentes perspectivas e olhares. Esta edição, financiada pelo FUMCAD (Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente), é um convite a lançar um olhar interessado, comprometido e solidário às histórias de adolescentes e jovens num Brasil que, muitas vezes, tem lhes virado as costas.

QUEM SOMOS A Viração é uma Organização da Sociedade Civil sem fins lucrativos, criada em março de 2003, que atua nas áreas de educomunicação, juventudes e direitos humanos. Recebe apoio institucional do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), da Ashoka Empreendedores Sociais e do Núcleo de Comunicação e Educação da Universidade de São Paulo. Além de produzir a revista, a Viração oferece cursos e oficinas em educomunicação, Direitos Humanos, gênero e sexualidade e meio ambiente em escolas, grupos e comunidades em todo o Brasil.

Para a produção da revista, contamos com a participação dos conselhos editoriais jovens de diferentes estados, que reúnem representantes de escolas públicas e particulares, projetos e movimentos sociais. Entre os prêmios conquistados nesses quinze anos, estão o Prêmio Cidadania Mundial, concedido pela Comunidade Bahá’ío, o Prêmio Don Mario Pasini Comunicatore, em Roma (Itália) e o Prêmio Internacional de Educomunicação, concedido pela União Católica Internacional de Imprensa. Paulo Pereira Lima Diretor Executivo da Viração

Apoio institucional


VIAS

MUITAS JUVENTUDES

página 08

EXPRESSAS

EDUCAÇÃO: UM DIREITO, NÃO UM PRIVILÉGIO!

POR UMA EDUCAÇÃO TRANSFORMADORA!

página 10

página 12 FAKE NEWS E JUVENTUDE: A IMPORTÂNCIA DA ALFABETIZAÇÃO MIDIÁTICA

DE JOVEM PRA JOVEM

página 22

página 18

COMO É SER JOVEM INDÍGENA VIVENDO NO MEIO URBANO?

JOVENS DE DIREITA: ELES EXISTEM E QUEREM MUDANÇA!

página 24

página 27

JOVENS EM MEDIDA SOCIOEDUCATIVA: O QUE ISSO SIGNIFICA?

página 28

ENTRE PAREDES E MUROS, O “SUJO” TAMBÉM SENTE

SEMPRE NA VIRA MANDA VÊ

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QUE FIGURA

09

GALERA REPÓRTER

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COMO SE FAZ

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IMAGENS QUE VIRAM

20

NO ESCURINHO

38

Rafael Alves da Silva

PRESIDENTA VICE-PRESIDENTE PRIMEIRA-SECRETÁRIA

Rodrigo Bandeira, Vanessa Camargo e Marilda Santos

Áurea Lopes

CONSELHO FISCAL

Paulo Lima

Alexsandro Santos, Aparecida Jurado, Isabel Santos, Leandro Nonato e Vera Lion

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página 36

página 31

REVISTA VIRAÇÃO - ISSN 2236-6806

CONSELHO PEDAGÓGICO

FESTIVAL DO FILME ANARQUISTA E PUNK

O QUE A CIDADE NOS CONTA SOBRE NÓS MESMOS?

Cristina Uchôa

Rodrigo Bandeira, Vanessa Camargo e Marilda Santos

página 32

página 30

RG DA VIRA: CONSELHO EDITORIAL

O MUNDO E AS MENTES

DIRETOR EXECUTIVO COORDENAÇÃO

Elaine Souza EDIÇÃO

Jéssica Rezende EDIÇÃO E REDAÇÃO

Daniel Fagundes, Jéssica Rezende, Juliane Cruz e Sylvio Ayala

Revista Viração • Ano 16 • Edição 114

EQUIPE

Nelson Simplício, Paulo Sousa, Pedro Santana, Raissa Santos, Rapphael de Taranto, Sylvio Ayala e Wanessa Ferro)

Adriana Barbosa, Ana Hindrikson Saran, Cleide Agostinho, Daniel Fagundes, Elisangela Nunes, Jéssica Rezende, Juliane Cruz, Luiza Gianesella, Sylvio Ayala e Thaís Santos

Manuela Ribeiro

COLABORADORES DESTA EDIÇÃO

Paulo Pereira Lima – MTb 27.300

Bahia (Stephanie Oliveira), Itália (Matteo Poda e Luca Kosowski), Mato Grosso do Sul (Vania Correia), Rio de Janeiro (Mariana Assis) e São Paulo (Ana Barreto, Gabriela Barbosa, Dandara, Deborah Neves, Elaine Souza, Evelyn Geovanna, Felipe Bonifacio, Giovanna Feliciano, Jenny Nicassio, Jéssica Rezende, Joyce Serafim, Julia Barbosa, Júlia Vaccari, Juliane Cruz, Kariny Rocha, Kauanny Souza, Lucio Ayala, Luiza Gianesella,

ARTE

JORNALISTA RESPONSÁVEL DIVULGAÇÃO

Equipe Viração CONTATO

contato@viracao.org DOAÇÃO

doacao@viracao.org


O QUE É EDUCOMUNICAÇÃO?

DIGA

LÁ VIRA AMIGO DA VIRA! Desde 2014, a Revista Viração não trabalha mais com assinatura. Ao invés disso, pedimos o seu apoio para a manutenção das nossas atividades. Além da produção de conteúdo por e para jovens, também realizamos encontros de formação em direitos humanos e educomunicação e atividades de mobilização social. Nosso trabalho está sustentado no entendimento de que o adolescente é um sujeito de direitos. A partir da educomunicação e da educação entre pares, impactamos as vidas de milhares de adolescentes e jovens Brasil a fora, considerando suas condições únicas de desenvolvimento. Para apoiar, é só acessar o site www.viracao.org/apoie e seguir as instruções. É tudo online e bem rapidinho! Agora, se você prefere depositar um valor direto na nossa conta, os dados são: Viração Educomunicação Banco do Brasil | Agência: 6501-3 | Conta Corrente: 200.023-7 CNPJ: 11.228.471/0001-78 Apoie a Viração na promoção de direitos, no fortalecimento da participação de adolescentes e jovens e na construção de uma comunicação democrática.

PERDEU ALGUMA EDIÇÃO DA VIRA? NÃO ESQUENTA! Você pode acessar, gratuitamente, as edições anteriores da revista na internet: www.issuu.com/viracao

É comum, nas edições da Vira, encontrar a palavra “educomunicação” ou o termo “educomunicativo”. A educomunicação é um campo de intervenção que surge da inter-relação comunicação/ educação para a transformação social. Dizemos que um projeto ou prática é educomunicativa quando adota em seus processos, especialmente do jovem, o caráter comunicacional, como o diálogo, a horizontalidade de relações e o incentivo à participação, fazendo com que os sujeitos exerçam plenamente o direito humano à expressão e à comunicação, em diferentes âmbitos e contextos. A Viração promove ações educomunicativas por meio da produção midiática, incentivando que adolescentes e jovens produzam reportagens coletivas em diferentes linguagens.

COMO SER UM VIRAJOVEM? Virajovens são os integrantes dos conselhos editoriais jovens da Viração, que produzem conteúdos em suas cidades. O conselho pode ser um coletivo autônomo de jovens ou um grupo ligado a uma entidade, organização, movimento social, escola pública ou privada, que dará apoio para que os virajovens produzam conteúdos. A parceria entre a Vira e entidade é oficializada com um termo de compromisso e com a publicação do logotipo da organização na revista Quer saber mais? Entre em contato com a gente: contato@viracao.org

FACEBOOK.COM/ VIRACAO.EDUCOMUNICACAO

@VIRACAO.OFICIAL Para garantir a igualdade entre os gêneros na linguagem da Vira, onde se lê “o jovem” ou “os jovens”, leia-se também “a jovem” ou “as jovens”, assim como outros substantivos com variação de masculino e feminino.

Mande seus comentários sobre a Vira, dizendo o que achou de nossas reportagens e seções. Suas sugestões são bem-vindas! Escreva para Rua Araújo, 124, 3º andar - CEP 01220-020 - São Paulo (SP) ou para o e-mail: contato@viracao.org


MANDA VÊ

TEXTO JOYCE SERAFIM, VIRAJOVEM DE SÃO PAULO (SP); MATTEO PODA E LUCA KOSOWSKI, VIRAJOVENS DA VIRAÇÃO& JANGADA (ITÁLIA). IMAGEM JÚLIA CAVALCANTE, EVELYN GEOVANNA, GIOVANNA FELICIANO E GABRIELA BARBOSA

A

final, quem são e o que querem os jovens? Tema central desta edição, queremos discutir as pluralidades e diversidades dentro da juventude. Nada mais justo, já que estamos pelo mundo vivendo diferentes experiências, desafiando padrões, sofrendo com preconceitos, repensando marcadores sociais – como raça, gênero, sexualidade, classe, entre outros. A juventude é vivida de diferentes formas, é plural! Pluralidade de vozes e corpos, corações e mentes.

COMO VOCÊ ACHA QUE O

JO V EM É REPRESEN TADO

E, como cidadãos, queremos nosso espaço na sociedade! Queremos ser representados e reconhecidos de forma positiva, ter nossa voz considerada no debate. Queremos ter acesso livre e integral à educação, aprender com os erros da geração anterior para ressignificar, não reproduzir. Somos muitos e temos sede de mudança! Conversamos com jovens de diferentes países para entender melhor como elas e eles acham que a juventude é enxergada pela sociedade. Será que isso muda de acordo com a localização geográfica e a cultura? Confira as respostas a seguir.

NA SOCIEDADE?

MARCO CALLEGARO 24 ANOS | ITÁLIA

LANGAKAZI CHUMILE 29 ANOS | ÁFRICA DO SUL

Na África do Sul, como você sabe, há uma grande lacuna social. Mas eu penso que nossos jovens, que vêm principalmente da classe média, se integram mais e conectam as comunidades negras às comunidades brancas.

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De forma geral, acho que os jovens são representados como viajantes, apaixonados e abertos para o próximo! São pessoas projetadas para o futuro, mas também concentradas no presente porque gostam de viver experiências de qualquer tipo, se divertir. Mesmo assim, acho que somos pouco considerados na minha sociedade. Faltam políticas que nos ajudem no estudo, no trabalho, a construir uma família e um futuro.


JULY KAPU VARI 22 ANOS | EUA

Eu posso falar principalmente sobre o cenário universitário, onde há algumas organizações de estudantes que são muito ativas. Muitas vezes eles tentam responsabilizar as instituições demonstrando ou mediando com os administradores. E geralmente as associações locais entendem a importância dos jovens e adoram quando os alunos demonstram.

F RANCI ÉLE ARCANJO

14 ANOS | BRASIL

O adolescente na sociedade não tem muito espaço, não consegue dar muito as opiniões. Às vezes somos obrigados a concordar com as “propostas” da sociedade. Hoje em dia, somos vistos como se fôssemos os piores seres humanos, mas a verdade é que não temos espaços para que nossas opiniões sejam escutadas e aceitas. OS JOVENS SÃO MAL REPRESENTADOS!

FLORENCIA GALMES

17 ANOS | ARGENTINA

Acredito que tenho sorte de viver em uma época em que é mais fácil escutar os adolescentes, com as redes sociais e tudo mais. Para a maioria de nós, elas são indispensáveis! É uma fonte de acompanhamento que não se tem em casa, vínculos que nos recordam durante toda nossa vida que não estamos sós. Por isso, se tivesse que adivinhar, diria que o lugar da minha geração é a voz. Nos apoiamos mutuamente para fazer -nos escutar e podemos ver que o resto do mundo está prestando atenção.

TÁ NA MÃO A Revista Viração nasceu com o objetivo de ser um espaço onde a juventude se reconheça e seja representada de forma positiva, participando de todo o processo de produção. Se interessou pelo projeto e quer fazer parte? Envie um e-mail para agenciajovem@viracao.org

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TEXTO VANIA CORREIA, PARCEIRA DA VIRAÇÃO

MUITAS

JU V EN T UDES AS MÚLTIPLAS EXPERIÊNCIAS JUVENIS NOS CONVOCAM A CELEBRAR A DIVERSIDADE E SUPERAR AS DESIGUALDADES

A

legislação brasileira determina que são jovens as pessoas com idade entre 15 e 29 anos de idade1. Sendo que dos 15 aos 18 anos, as cidadãs e cidadãos brasileiros são também considerados adolescentes e resguardados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que protege a população de 0 a 18 anos. Essa delimitação das fronteiras etárias é importante tanto para a formulação de políticas públicas, quanto por prover uma espécie de parâmetro para reconhecimento social e político da juventude. Mas, como veremos ao longo desta edição da Revista Viração, ser adolescente e jovem vai muito além dela. De modo geral, a juventude é o período da vida em que se completa o desenvolvimento físico, psicológico, social; durante o qual se processa a entrada no “mundo adulto”. Mas os sentidos e conteúdos dessa fase da vida estão intimamente ligadas ao contexto social e histórico. Ou seja, a experiência

de ser adolescente e jovem varia de acordo com uma série de condições e contextos nos quais se vive esse momento da vida. Nesse sentido, ao falar sobre jovens, é preciso considerar que tratamos de grupos diversos que, apesar de suas peculiaridades comuns, são marcados por diferenças internas de ordem social, econômica, cultural, de gênero, sexualidade, deficiência, e muitas outras. E é por isso que falamos aqui em juventudes (e adolescências); indicando a diversidade de experiências e manifestações existentes no seio das categorias juventude e adolescência. Ser adolescente ou jovem indígena, branco ou negro. Ser homem, mulher, cisgênero, transgênero, não-binário. Ser gay, hétero, bissexual. Viver em uma zona rural ou urbana. Nascer numa família rica ou pobre. Viver com uma deficiência ou não. Ter depressão, gostar de um estilo de música, ter acesso à educação. Enfim, são muitas as condições que fazem a experiência juvenil diversa.

1 Estatuto da Juventude – Lei 12.852 de agosto de 2013

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O problema é que, muitas vezes, essa diversidade se converte em desigualdade. E determinados grupos de jovens têm menos oportunidades e sofrem mais violações de direitos, a depender da sua classe social, gênero, raça, etc. Por exemplo, no Brasil, um jovem negro tem até três vezes mais chances de ser assassinado do que um branco. As mulheres trans passam, em média, apenas quatro anos na escola. Para garantir que essas e esses jovens realizem toda a sua potência, é preciso superar as representações sociais negativas presentes nas diferentes instituições; enfrentar as violações de direitos a que estão submetidos, como a violência, o desemprego, a pobreza e garantir oportunidades de acesso à educação, cultura, trabalho, saúde e todos os demais direitos.


QUE FIGURA TEXTO MARIANA ASSIS, VIRAJOVEM DO RIO DE JANEIRO (RJ) ILUSTRAÇÃO FLORA POUGY GUAZZELLI

N

ão poderia haver uma tradução mais ilustrativa para a invisibilização da intelectualidade da mulher negra do que a história da escritora Maria Firmina dos Reis. Considerada a primeira romancista abolicionista do Brasil, Firmina teve uma trajetória marcada pelo pioneirismo enquanto escritora do gênero feminino – como precursora da literatura abolicionista e também como fundadora da literatura afro-brasileira. Estudos recentes apontam para o lugar singular que Maria Firmina ocupa em nossa história e cultura, uma vez que transgrediu barreiras sociais, raciais e de gênero e fez da escrita um instrumento de crítica à escravidão. Mas, afinal, quem foi essa mulher revolucionária?

MARIA FIRMINA DOS REIS: A PRIMEIRA

ROMANCISTA BRASILEIRA “ÚRSULA” FOI O PRIMEIRO LIVRO NACIONAL CONTADO PELO PONTO DE VISTA DE PESSOAS EM REGIME DE ESCRAVIDÃO para quem “negro não é animal para se ir montando nele”. Os laços de proximidade que tinha com pessoas escravizadas, como aponta Nascimento de Morais (importante estudioso da vida da escritora), fez com que Firmina desenvolvesse empatia para com cativos que sofriam com as mazelas da escravidão. Em Úrsula (1859), romance de estreia, as personagens escravizadas refletem sobre si mesmas assim como a respeito das violências a que eram submetidas devido ao sistema escravista que as desumanizavam. AO RESTITUIR-LHES A HUMANIDADE, FIRMINA MOSTRA QUE HOMENS E MULHERES NEGROS TÊM

São Luís do Maranhão, 11 de março de 1822. Preta, filha ilegítima de pai negro e mãe branca, Maria Firmina dos Reis era proveniente de uma família de posses modestas. Foi a primeira mulher a ser aprovada em um concurso público no Maranhão para professora de ensino primário. Leonor dos Reis, sua mãe, propôs a ela que fosse buscar seu diploma em um palanquim por escravos de uma tia. A sugestão foi recusada categoricamente por Firmina,

CONSCIÊNCIA SOBRE AS INJUSTIÇAS DA ESCRAVIDÃO, DAS OPRESSÕES DO MANDO SENHORIAL, DO ESTRANHAMENTO DA TERRA ALHEIA, ENFIM, DE SI E DO MUNDO.

Dito isso, fica nítida a potência da literatura produzida por Maria Firmina e, quando se leva em conta o contexto da época, o quanto foi ousada e corajosa. Embora a escritora fosse bem conhecida pelos maranhenses,

tenha conseguido publicar seu livro num cenário que era adverso para mulheres e, em se tratando de mulheres negras, mais excludente ainda, Firmina foi apresentada por alguns jornais da época com distanciamento. “(...) porquanto não seja perfeita, revela muito talento na autora, e mostra que se não lhe faltar animação poderá produzir trabalho de maior mérito”, ponderou o Jornal do Comércio. Firmina publicou também o romance indianista Gupeva (1861), o conto abolicionista A Escrava (1887) e diversos poemas.

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TEXTO GIOVANNA FELICIANO E EVELYN GEOVANNA, VIRAJOVENS DE SÃO PAULO (SP). ILUSTRAÇÃO FREEPIK

EDUCAÇÃO: UM DIREITO,

NÃO UM PRIVILÉGIO! DIANTE DO SENTIMENTO DE FRACASSO ESCOLAR, CAUSADO POR UM SISTEMA DESIGUAL E EXCLUDENTE, PODEMOS ENXERGAR NA EDUCAÇÃO UM MEIO PARA DRIBLAR AS BARREIRAS IMPOSTAS E CONQUISTAR ESPAÇO

A

educação é apontada como um caminho necessário para a concretização dos nossos sonhos, mas por muitas vezes, o sentimento de fracasso diante do ato de estudar se faz presente – construindo uma barreira. Nessa realidade, muitos jovens são arrastados a um desgaste, que pode resultar em um desinteresse pelos estudos.

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Quantas vezes os seus esforços parecem grandes demais? Quantas vezes você já pensou em desistir? E em quantas dessas vezes, apesar de todas as dificuldades e questionamentos, na manhã seguinte você se levantou e foi à luta outra vez? Para início de conversa, vamos dizer três coisas que você não é. Número um: Você não é um caso perdido. Todos nós falhamos, sentimos medo, nos cansamos


e está tudo bem. Número dois: Você não é a opinião que alguém tem sobre você. Aprenda a respeitar seus limites, valorize seu suor e suas conquistas. Número três: Você não é um fracasso. Se você não alcançou todos os seus objetivos, não significa que tudo está perdido; Acredite, você é bom o bastante para tentar novamente. O sentimento de fracasso diante dos estudos pode ter milhares de motivos diferentes como, por exemplo, a não-adaptação à lógica do sistema escolar, as relações conflituosas que podem existir dentro dos espaços educativos e a frustração diante do acesso desigual à educação, que é uma realidade em nosso país. Estes e outros fatores podem fazer com que os espaços educativos percam o sentido para algumas pessoas. Em entrevista concedida à Angelina Teixeira Peralva e Marilia Pontes Sposito, da Universidade de São Paulo, o sociólogo François Dubet afirma que: “De certa forma, por estarmos numa sociedade democrática, a gente considera que todos os alunos têm o mesmo valor, que eles são iguais. Ao mesmo tempo, eles têm obviamente performances desiguais. Porém, a gente sempre lhes explica que se eles não obtiverem bons resultados é porque não trabalharam bastante e, na realidade, isso nem sempre é verdadeiro (...). Nunca se lhes dá realmente os meios de compreender o que lhes

acontece. Só se diz para eles: se você trabalhar mais, terá melhores resultados. Mas eles sabem que isto nem sempre é verdadeiro (....) É o preço de um sistema que é ao mesmo tempo democrático, quer dizer, um sistema em que todo mundo é igual, e meritocrático, isto é, que ordena os valores.” Ao falar de educação, é necessário pensar no contexto em que os sujeitos envolvidos estão inseridos. AS PESSOAS DE CLASSES MAIS BAIXAS QUE VIVEM NOS EXTREMOS DAS CIDADES, POR EXEMPLO, TÊM

necessidades específicas dos jovens, respeitando a diversidade e suas diferentes trajetórias. Este Estatuto também define benefícios oferecidos para estudantes e jovens de baixa renda, como descontos ou gratuidades em transporte público e interestadual, além da entrada em eventos culturais. É importante que nós, enquanto jovens, busquemos conhecer os nossos direitos e busquemos conhecer um instrumento legal de reivindicação para melhorar as condições de vida. Somente desta forma poderemos nos apropriar desta discussão.

MENOS ACESSO A ESPAÇOS EDUCATIVOS DO QUE AQUELAS QUE VIVEM EM BAIRROS CENTRAIS. Isso gera diferenças gigantescas entre os dois grupos, que vão desde a qualidade do ensino até a infraestrutura das escolas e a disponibilidade de professores. O sistema escolar, dentro da lógica meritocrática, é excludente – visto que as oportunidades de acesso à educação não são iguais. Ou seja, as performances dos jovens enquanto estudantes também não são. A ideia de fracasso escolar pode estar diretamente relacionada com as condições oferecidas pelo contexto social, não exatamente por incapacidade ou desinteresse.

A educação é um direito de todos, não um privilégio de poucos. O Estatuto da Juventude (lei aprovada em 2013), faz com que direitos já previstos na Constituição (como o acesso à educação, ao trabalho, à saúde e à cultura) sejam aprofundados para atender as

Vale ressaltar que não há governo democrático sem controle social – uma forma de compartilhamento do poder de decisão entre o Estado e a sociedade sobre as políticas, mas também um instrumento ou uma expressão da democracia e da cidadania. Enquanto sociedade, não devemos permitir que a educação seja uma barreira, mas sim a chave para abrir as portas. Cabe a nós, enquanto jovens, participar social e politicamente na luta pela garantia de nossos direitos. Nosso posicionamento importa – e muito! Ter conhecimento a respeito do que acontece ao nosso redor é a melhor arma para lutar contra esse sistema que insiste em oprimir. Assim como disse Paulo Freire, “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. Lembre-se: as pessoas podem tirar tudo de você, menos o seu conhecimento!

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TEXTO PAULO SOUSA, VIRAJOVEM DE SÃO PAULO (SP)

POR UMA EDUCAÇÃO T RANS FORMADORA! A EVASÃO ESCOLAR É UMA REALIDADE NA TRAJETÓRIA DE MUITAS PESSOAS TRANS. COMO MUDAR ISSO?

Olá! Eu sou o Paulo Sousa e estou contribuindo pela terceira vez para a Revista Viração. Além de participar da Agência Jovem de Notícias e do projeto Jovens Comunicadores, fui educando de mais dois projetos aqui da Vira. Foram eles: a Escola de Cidadania para Adolescentes (ECA), onde rolou formações sobre políticas para as juventudes, direitos humanos e participação jovem e o Pra brilhar, projeto voltado para homens gays, em que discutimos temáticas voltadas às nossas experiências e saúde, tendo a perspectiva interseccional de raça, classe e gênero como temática transversal.

O

acesso que as pessoas transgênero têm à educação é uma pauta que merece um olhar mais atento, um ouvir mais aguçado. Muitas discussões são necessárias para dar um fim à tática transfóbica de exclusão desses sujeitos de diversos lugares da sociedade, e, principalmente, projetar espaços onde as suas vozes sejam ouvidas – para que possam compartilhar conosco seus medos e anseios.

A EXPECTATIVA DE VIDA DAS PESSOAS TRANS, NO BRASIL, É DE 35 ANOS – 6 ANOS A MAIS DO QUE O ESTATUTO DA JUVENTUDE CONSIDERA COMO JOVEM (29) – ENQUANTO A DAS PESSOAS CISGÊNERO, PRINCIPALMENTE

reconhece como cisgênero1, ao trazer esse debate não estou no meu lugar de fala – algo que me preocupa muito na hora de escrever. Quando não estamos falando de vivências que o grupo ao qual pertencemos passa, corremos o risco de tomar as problemáticas de toda uma população e transformar em apenas um objeto a ser mostrado do jeito que quisermos, sem que de fato retratemos a situação da melhor forma. Assim sendo, é necessário primeiro ouvir atentamente o que as pessoas que vivem as situações de opressão falam para poder nos engajar e também pautar essas questões, sempre trazendo suas vozes em evidência.

BRANCAS E QUE VIVEM EM BOAS CONDIÇÕES SOCIOECONÔMICAS, É, EM MÉDIA, DE 75 ANOS.

Pensar o papel da educação na transformação dessa realidade, vivida sobretudo pela juventude, é urgente. Mesmo sendo parte da comunidade LGBTIA, por ser um homem bissexual que se

Ao resolver abordar este tema nesta edição da revista, conversei com pessoas trans e travestis em busca de entender melhor sobre o acesso ao ambiente acadêmico e seus vínculos com esse espaço. Desta forma, pude compreender o que o ensino demanda em suas várias esferas – tanto nas falhas visíveis referente às políticas de

1 Cisgênero são as pessoas que não sentem a necessidade de transicionar.

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inclusão, quanto em relação às medidas que devem ser aplicadas. Trouxe, então, para essa matéria as vozes de Robeyoncé Lima, Erica Malunguinho e Furya da Noyte. Busquei saber um pouco sobre como rolou a transição; processo que apesar de individual, se torna um ato político de forma gigantesca dentro dessa sociedade transfóbica. Além disso, perguntei sobre a experiência de cada uma dentro do ambiente escolar – principalmente no ensino médio, que, para mim e para tantos outros jovens LGBTIA, é um ambiente opressor. Perguntei à Robeyoncé Lima – 30 anos, travesti, advogada e co-deputada do Estado de Pernambuco pelas Juntas – como foi para ela passar por esse ambiente educacional sendo uma travesti e qual foi a base principal para terminar o ensino médio e cursar a faculdade, trajetória de vida que a leva ser contra as estatísticas, pois muitas pessoas trans e travestis desistem ou são expulsas da escola e acabam não chegando a terminar o ensino médio, sequer cursar uma faculdade. Se liga na resposta! – “Em termos de educação, ambiente institucional e educacional, eu posso – em primeiro lugar – dizer que tive o acolhimento na família, que infelizmente muitas outras meninas não tiveram e são expulsas de casa, inclusive. Elas se evadem do ambiente escolar, mas a verdade é que o sistema acaba por fazer esse processo de

exclusão. Então, é fundamental esse apoio da família. Para que eu conseguisse me formar, assim me tornar advogada, e chegar nesse âmbito do espaço institucional como co-deputada, o apoio familiar foi fundamental, pois eu estaria em muitas outras possibilidades – ou na maior das possibilidades em que a sociedade nos coloca, que são as esquinas da prostituição. Em relação à prática de aprendizagem em coletivo e evasão, as questões maiores são: A gente não vai querer estar numa escola em que a gente não é respeitada pelo nome social, e também não vamos querer estar numa escola em que não nos deixam usar o banheiro pela identidade de gênero.’’ Erica Malunguinho – travesti, preta e deputada do Estado de São Paulo – revelou que a sua transição só ocorreu após a escola. Falou também sobre as pessoas que são trans e não realizam a transição de gênero por se sentirem encolhidas pela opressão do ambiente escolar. – ‘’Nesse espaço de formação que é a escola, eu fui socializada como um gay. Essa foi a forma em que a sociedade tentou me enquadrar para dizer que apenas isso era possível. A normatividade não enxerga e nem observa a sujeita trans dentro de um processo de formação na escola! E isso é extremamente visível, pois existem muitas pessoas transgênero que estão dentro desses espaços – só não estão de saia/calça fazendo o binarismo, ou podendo utilizar aquilo. Afinal,

A GENTE ACABA SUPORTANDO ESSAS VIOLÊNCIAS DO SISTEMA ATÉ UM CERTO MOMENTO. E, POR ISSO, ACABAMOS CRIANDO TÁTICAS DE SOBREVIVÊNCIA, PARA NOS ADAPTAR AOS LUGARES EM QUE OCUPAMOS NESSE PROCESSO”.

Furya é estudante, tem 18 anos e se reconhece como travesti nãobinária, está cursando o terceiro ano do ensino médio no ensino público e compartilhou conosco quais são suas expectativas para o futuro referente às problemáticas que enfrenta hoje. – “Minha expectativa para nós no espaço acadêmico começa de agora, com as pessoas trans, travestis e de gênero não-binário impondo respeito. Acredito que abre um lugar para as próximas gerações referente às demandas serem fora desse princípio básico que é a busca por respeito num lugar que promove a educação – tanto numa escola, quanto numa universidade”.

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GALERA REPÓRTER TEXTO MARIANA ASSIS, VIRAJOVEM DO RIO DE JANEIRO (RJ) E GIOVANNA FELICIANO, VIRAJOVEM DE SÃO PAULO (SP) IMAGENS EVELYN GEOVANNA E GIOVANNA FELICIANO

O SLAM E A IMPORTÂNCIA DE OUVIR A JUVENTUDE COMPETIÇÃO DE POESIA FALADA DESPONTA COMO INSTRUMENTO DE RESISTÊNCIA E LUTA CONTRA OPRESSÃO AOS GRUPOS MARGINALIZADOS

A

plateia faz barulho – sentimos na pele o efeito das palavras que há poucos instantes saíram da boca de uma poeta. Ao redor, compreensão, pessoas que reconhecem semelhanças nas próprias histórias ao escutar o que está sendo dito. Com olhos e ouvidos atentos, todos esperam ansiosos pelas próximas palavras…

Estamos diante de mais uma apresentação de Slam, competição de poesia falada que tem despontado como instrumento de resistência e compartilhamento de reflexões sobre temas pungentes na sociedade. Essa edição é a fase nacional do campeonato, o Slam BR. Os e as poetas que, entre tantos, se classificaram na etapa final do Slam local que frequentam durante o ano todo e depois na etapa Estadual se encontram para disputar uma vaga na próxima edição da Copa do Mundo de Slam, que é anual e acontece na França. Os Slams são espaços de livre pensamento, de livre expressão poética e da coexistência de uma pluralidade de vivências e vozes, em que muitos jovens têm se visto como poetas – verbalizando sentimentos e denunciando as diversas violências sofridas pelos grupos historicamente oprimidos e invisibilizados aos quais pertencem. Conversamos com algumas e alguns poetas que participaram dessa edição do Slam BR para refletir sobre a importância da cena; trazendo as vozes de Emmanuel Moreira, Patrícia Meira, Tawane Theodoro e Dudu Neves para este texto.

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ORIGEM DO SLAM No ano de 1984, em Chicago, nasceu o Poetry Slam. Um operário da construção civil e também poeta, chamado Marc Kelly Smith, uniu-se a um grupo de artistas, em um bar, dando origem a um evento chamado Uptown Poetry Slam, considerado o primeiro Slam da história. Esse evento, então, tornou-se um movimento que tem como principal característica a popularização da poesia enquanto potente instrumento de externação dos sentimentos, disponível a quem quiser se valer dela. Se traduzida ao pé da letra, vinda do inglês, a palavra Slam significa “batida de poesia” – tendo como origem uma expressão utilizada no baseball, esporte de gosto comum entre as pessoas que frequentavam o bar onde o Slam surgiu. Há 10 anos, essa batalha de letras e performance chegava ao Brasil, trazida por Roberta Estrela D’Alva, que criou o ZAP!SLAM (ou Zona Autônoma da Palavra), considerado o primeiro Slam brasileiro na cidade de São Paulo.

A competição consiste em declamações de poesias de forma ritmada, numa atmosfera em que política, arte, entretenimento e jogo viabilizam que questões inquietantes sejam apresentadas e discutidas. AS PERFORMANCES DAS POESIAS, ALÉM DE PARTIREM DO PRINCÍPIO INDIVIDUAL DE EXPRESSÃO DE QUEM AS ESCREVE, SÃO COMPARTILHADAS SOB O OBJETIVO DE DESPERTAR UMA TOMADA DE CONSCIÊNCIA E ATÉ MESMO DE AÇÃO POLÍTICA EM QUEM AS ESCUTA. O movimento

toma forma na expressão. “Falar do Slam, para mim, é falar um pouco do que eu tô revestido hoje, né? Eu acho que toda bicha, todo preto, toda mulher passa por uma fase de se descobrir enquanto ser humano e as minhas munições para essa descoberta foram as poesias que o Slam me

proporcionou. Conseguir chegar no Slam, numa etapa nacional, estar entre um dos melhores poetas do Brasil, para mim foi um mérito. E esse mérito todo eu dou à comunidade LGBTIA, a todos os pretos. Porque foi assim, nessa vibe de começar a escrever pela minha luta, porque eu resisto, que eu entrei no Slam. Então, eu acho que o Slam hoje, para mim, significa força, resistência.” – nos disse Emmanuel Moreira, jovem de 18 anos que veio da Paraíba para participar do Slam BR.

O CORPO COMO TEXTO Cada Slam é único, pois a organização do movimento acontece de forma orgânica e em ambientes diferentes, com pessoas diferentes. Logo, uma pluralidade de vivências se reflete nas poesias. Quanto às regras, em geral, as apresentações podem durar até 3 minutos. Caso o slammer ultrapasse este limite de tempo, sofre uma punição: na qual perde pontos nas notas que os jurados, que costumam ser pessoas da própria plateia, aferem. Alguns Slams se diferenciam por propor apresentações mais curtas, como o Menor Slam do Mundo, que acontece no centro da cidade de São Paulo e na fase final determina que as apresentações sejam de até um segundo. Enquanto faz a performance, o poeta precisa valer-se do tempo da melhor maneira possível, visando, é claro, passar a mensagem da poesia de forma

Tawane Theodoro

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Dudu Neves

3 minutos que eu tô ali no palco recitando uma poesia, eu me sinto viva. O Slam para mim é bem mais que resistência, é a alma do poeta exposta à mesa.” – relato de Patrícia Meira, poeta, slammer, escritora e moradora da Zona Leste de São Paulo. O corpo do poeta é o instrumento que adorna o texto que vai ser lido. A voz funciona como meio de verbalização e, junto aos movimentos dos braços, gestos, olhares, silêncios compõem a poesia. Com esta mistura de expressões faciais e corporais, o poeta expõe o que há de mais visceral nas ideias e nos sentimentos de quem escreve.

compreensível e instigante. Não é permitido o uso de instrumentos ou adereços, para que assim a poesia e a interpretação sejam o maior destaque. A performance do slammer é fundamental justamente por compor o poema. Como se trata de uma competição de poesia falada, este fator é determinante para gerar impacto no público e nos jurados. “O Slam veio ressignificando a minha vida, porque quando comecei a batalhar, eu estava em depressão. QUANDO RECITEI PELA PRIMEIRA VEZ, EU VENCI A BATALHA QUE ESTAVA PARTICIPANDO. A POESIA VEIO ME CURANDO DA DEPRESSÃO. FOI PELO SLAM QUE EU NÃO ME

“O Slam é um movimento que permitiu que eu conseguisse externalizar tudo o que eu sentia, porque EU SEMPRE FUI UMA PESSOA MUITO FECHADA E A POESIA MARGINAL, DE MANEIRA GERAL, FEZ COM

MUITAS BATALHAS ACONTECEM

QUE EU ME ABRISSE MAIS. A

NAS RUAS, AO AR LIVRE. ESSA

IMPORTÂNCIA DO SLAM PRA

ESCOLHA TEM UM OBJETIVO

MIM É A FALA.” – afirma Tawane

BEM DECLARADO: DESPERTAR

Theodoro, 20 anos, poeta, slammer e moradora da Zona Sul de São Paulo.

O INTERESSE DE QUEM PASSAR PELO EVENTO. ASSIM SENDO, O HORÁRIO, O LUGAR E O FORMATO VISAM OCUPAR

A ideia de partilha que o ato da fala proporciona ganha o papel de compartilhar perspectivas de diferentes realidades no momento em que a poesia é declamada. O tom da escrita dos Slams é baseado na vida real. Dessa forma, o ambiente propício, confortável e aberto à escuta, possibilita que realidades historicamente ocultadas possam ser apresentadas e discutidas.

VI MAIS INVISÍVEL. Sabe, a cada

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A RUA COMO PALCO As batalhas de poesias são celebradas em numerosas comunidades ao redor do mundo e vem se alastrando por todo o Brasil com enorme repercussão, sobretudo entre o público jovem e pertencente a grupos sociais marginalizados. Atualmente, já são contabilizadas mais de 150 comunidades espalhadas em 18 estados brasileiros. Grupos como o Slam das Minas, Slam Resistência, Slam da Guilhermina e tantos outros pelo Brasil despontam na cena cultural independente e fazem da rua espaço de resistência.

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ESPAÇOS APARENTEMENTE IMPENSÁVEIS PARA TAL EMPREITADA. O Slam da

Guilhermina e o Slam Tiquatira, por exemplo, acontecem ao lado de estações do metrô. Desse modo, ali, ao lado de um espaço tão movimentado, realiza-se um movimento artístico, cultural e político que, no mínimo, entretém quem se depara com toda essa energia.


mesmos direitos. A voz é um deles. Na obra, a filósofa comenta que falar é existir, ser escutado. Teriam as minorias essa garantia? O lugar de fala é marcado por fatores estruturais e não por questões individuais. Ou seja, é compreender que a fala de todos os grupos sociais são importantes, justamente porque comungam vivências comuns reservadas à sua localização social (a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado, por exemplo) e que, por isso, a construção de um projeto social justo e igualitário é inimaginável se não tiver a contribuição destas pessoas.  Patrícia Meira

SLAM E LUGAR DE FALA No livro O que é lugar de fala?, a filósofa Djamila Ribeiro, bestseller da Flip 2018, traz como um dos pontos de debate da obra o “discurso” – isto é, a manifestação do imaginário social que reflete controle e poder. Em outras palavras, seria um regime social que dita o que é certo, errado e, principalmente, quem está autorizado a falar. E quem estaria habilitado a falar numa sociedade machista, racista e patriarcal como é a brasileira?

Um dos maiores e mais impressionantes poderes que temos é a palavra. A palavra vem acompanhada por uma série de fatores: o tom da voz, a respiração, o ritmo em que é dita, o olhar, os gestos, a emoção sentida ali, diante de todos os olhares que a acompanham. TEM A VER COM OLHAR PARA

O Slam abarca discursos historicamente ignorados. Assim, dá o devido valor às perspectivas periféricas sobre angústias, alegrias e anseios de quem nunca foi ouvido. É a escuta, o envolvimento que faz muitos slammers dizerem que, no final das contas, “slam é lugar de fala”. “A importância do Slam para mim é me dar a voz. E com essa voz, eu posso tentar dar voz para outros pretos e outras pretas, tá ligado? E tão ali outras bichas pretas também resistindo. É UMA VOZ QUE EU TENHO E, COM

DENTRO, COM A CORAGEM DE LIDAR COM AS EMOÇÕES, COM A VONTADE INCESSANTE DE COMPARTILHAR O QUE SE PASSA DENTRO DE NÓS. E TAMBÉM COM A NECESSIDADE DE TER SUA VOZ NÃO SÓ OUVIDA, MAS DE UMA VEZ POR TODAS, COMPREENDIDA.

Carregada de um poder muito grande, a voz desses jovens poetas nos presenteia com a liberdade. Liberdade para nos orgulhar da nossa própria história, das nossas próprias características e de modo geral, do próprio nosso ser.

ESSA MINHA VOZ, EU POSSO INSPIRAR OUTRAS A RESISTIR. ISSO É MUITO IMPORTANTE PARA MIM. POR ISSO QUE

TÁ NA MÃO

EU FAÇO PARTE DO SLAM, É

Acompanhe no Instagram o trabalho das e dos poetas entrevistados. Dudu Neves: @dunevesdu Patrícia Meira: @patricia_meira17 Tawane Theodoro: @pretata_

POR ISSO QUE EU TÔ AQUI, É

Assim sendo, esta dinâmica social confere legitimação a um determinado grupo, do mesmo modo que cria os “outros” a este, que não compartilham dos

A IMPORTÂNCIA DE OUVIR AS VOZES DOS JOVENS As rodas de poesia falada têm se tornado cada vez mais populares por todo Brasil, justamente pelo espaço de protagonismo concedido aos jovens que participam delas.

POR ISSO QUE EU VOU ESTAR AMANHÃ LUTANDO DA MESMA FORMA.” disse o poeta e slammer

Dudu Neves, 20 anos, morador do Rio de Janeiro.

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TEXTO FELIPE BONIFACIO, VIRAJOVEM DE OSASCO/SP; STEPHANIE OLIVEIRA, VIRAJOVEM DE SALVADOR/ BA E RAPHAEL DE TARANTO, VIRAJOVEM DE SÃO PAULO/SP

E

m 2018, as notícias brasileiras passaram por uma crise de confiabilidade similar a que foi vivida durante a eleição estadunidense há dois anos, quando Trump saiu vitorioso. O mar de fake news inundou nosso país por meio das redes sociais e, principalmente, pelo WhatsApp. De acordo com o portal mediakix, mais de 55 bilhões de mensagens são enviadas todos os dias e lidas por mais de 250 milhões de usuários ativos em aplicativos de comunicação instantânea. Derrubado e reativado inúmeras vezes pelos juízes brasileiros nos últimos anos, o WhatsApp é utilizado por dois a cada três eleitores e por 90% dos jovens, totalizando 120 milhões de usuários no país. Mas antes de se voltar aos fabricantes de fake news, é necessário olhar para si e questionar: já enviei alguma? Costumo compartilhar matérias sem ler e averiguar sua veracidade? O que fiz quando alguém avisou que a informação era falsa? Mais perigoso do que 18

FAKE NEWS E JU V EN T UDE:

A IMPORTÂNCIA DA ALFABETIZAÇÃO MIDIÁTICA AS REDES SOCIAIS TRANSFORMARAM AS FORMAS DE ENGAJAMENTO POLÍTICO, ESPECIALMENTE ENTRE OS JOVENS. ENTRETANTO, A VELOCIDADE DA COMUNICAÇÃO TRAZ RISCOS COMO A CAPILARIDADE COM QUE NOTÍCIAS FALSAS SE ESPALHAM

inventar uma notícia é contribuir para sua disseminação. Conforme o índice de leitura cai, questiona-se o quanto isso se relaciona com a divulgação de fake news. Em um país onde 44% da população não tem o hábito de ler e 30% nunca comprou um livro, será que o jovem tem as ferramentas necessárias para ir além da manchete sensacionalista e duvidosa? Para utilizar o termo da jornalista Christine Bragale, eles passam por um processo de alfabetização midiática? Com este cenário, somado à crise de representatividade política de nosso país, as fake news e a vontade de pertencer a grupos que afirmam trazer inovação, muitas vezes gera pressão a partir dos posicionamentos individuais. Enquanto se encontra em um tsunami de informações e faltam ferramentas para analisar a veracidade das notícias, a sociedade e os grupos sociais dos quais faz parte agem. Exemplo disso são os inúmeros ataques que ocorreram durante o último processo eleitoral brasileiro

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contra o pensamento crítico e a liberdade de expressão, sob uma falsa bandeira de anseio democrático e libertário. QUEREMOS JOVENS CRÍTICOS E LIVRES PARA DISCORDAR E CONCORDAR COMO BEM ENTENDEREM? OU APENAS OCULTAMOS DO COTIDIANO PENSAMENTOS DIFERENTES DOS NOSSOS? Incentivamos

o diálogo baseado no respeito e no estudo? O quanto nós e o sistema educacional brasileiro promovemos a alfabetização midiática? Ao jovem que se encontra perdido, cabe se debruçar em fontes confiáveis para se aprofundar em diversos modos de pensar e apoiar-se em amigos que respeitam o diálogo entre diferentes. Além disso, é importante ter paciência e selecionar os debates que se pretende participar, tarefas que podem parecer cansativas, mas viáveis e essenciais para a sobrevivência na selva política brasileira.


COMO SE FAZ TEXTO ANA BARRETO, GABRIELA BARBOSA E JULIANE CRUZ, VIRAJOVENS DE SÃO PAULO (SP)

E

se você fosse o autor, a autora ou alguma das personagens daquela ficção que gosta? Já pensou se suas personagens favoritas de mundos fictícios diferentes ou ícones do mundo real pudessem viver outra história? E se você participasse dela? Já desenvolveu teorias sobre obras que conhece? É isso o que quem escreve fanfics faz. A palavra Fanfic é abreviação de Fanfiction, que significa “ficção de fã”, e dá nome a histórias baseadas em obras fictícias ou pessoas do mundo real. Surgiu quando fãs de Star Wars começaram a criar fanzines, na década de 70, com teorias sobre a saga. Os objetivos centrais das histórias são diversos – desde fazer homenagens ao que se é fã até zoar, tal como a fanfic de grande repercussão na internet sobre o casal Faustão e Selena Gomez – que adoramos, #melhorship.

FANFIC: UM UNIVERSO

DE IMAGINAÇÃO E CRIAÇÃO

DESCUBRA COMO O ATO DE LER E DE ESCREVER NARRATIVAS FICCIONAIS VEM CONSTRUINDO REDES ONLINE DE ADOLESCENTES E JOVENS

desenvolver bons conteúdos. Essa postura não se restringe à fanfic, na verdade, né? Muito do que expressamos, principalmente quando adolescentes, não é levado a sério. Nesse universo de ler e escrever narrativas, encontramos a identificação que procuramos com outros seres – reais ou não – para nos formar e nosso potencial de inventar outras realidades é aflorado. Interessante, né? E aí, vamos escrever uma fanfic? Você vai precisar de:

1. Espaço para escrever – seja uma folha de papel e lápis ou suporte digital;

4. Escolha como contar a história: quem narra será uma personagem ou alguém que observa? 5. Muitas fanfics começam situando o espaço onde a história acontece. Qual é o lugar ou situação perfeita para dar o pontapé? 6. Desenvolva a sequência de ações que planejou. Vai sentindo o ritmo da história e, mesmo se a insegurança aparecer, escreva! Você não saberá se a história ficará ruim se não escrever. Ao terminar, revise o texto e, se quiser, compartilhe com a gente pelo e-mail: comunicacao@viracao.org. Quem sabe não publicamos sua fanfic lá no site da Agência Jovem de Notícias?

Vamos propor alguns passos, mas fique à vontade para inverter. Existem diversas formas de escrever uma história! Vamo lá!

Muitos dizem que a juventude atual não gosta de ler, mas quem acessa algum dos sites de Fanfic percebe que a maior parte dos leitores e escritores conectados em rede é jovem. E alguns que já ouviram falar sobre o gênero têm um pé atrás por isso – como se não fôssemos capazes de

3. Planeje a sequência das ações (início, meio e fim) para costurar o enredo.

TÁ NA MÃO Onde ler fanfics? Wattpad, Spirit Fanfiction e Tumblr são alguns dos sites/ aplicativos em que as pessoas publicam fanfics.

1. Escolha um universo fictício (ou mais), personagem(ns) ou pessoas que admira. 2. Defina o que acontecerá na fanfic. Use as perguntas que te fizemos no primeiro parágrafo para se inspirar!

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Créditos: Gabriela Barbosa, Jenny Nicassio, Kariny Rocha, Evelyn Geovanna e Bruno Samuel

IMAGENS QUE VIRAM

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TEXTO LUIZA GIANESELLA, DA REDAÇÃO ILUSTRAÇÃO RAWPIXEL/ FREEPIK

O

empreendedorismo tem ocupado muitas manchetes e, mais recentemente, tem sido visto como uma possibilidade de afetar positivamente a realidade através dos chamados negócios sociais — nos quais a ideia é melhorar ou facilitar a vida de um número amplo de pessoas de maneira financeiramente sustentável, sem depender de doações ou editais. É claro que, se esses negócios começam a substituir serviços básicos, o empreendedorismo social pode acabar virando uma forma de privatizar tudo — até aquilo que nunca deveria se

DE JOV EM PRA JOV EM

REFLEXÕES SOBRE EMPATIA E EMPODERAMENTO NO EMPREENDEDORISMO SOCIAL

transformar em produto ou serviço. No entanto, quando se voltam à resolução de problemas mais específicos, os negócios sociais têm potencial para oferecer soluções ágeis, inovadoras e adequadas aos seus contextos — muitas vezes, inclusive, em colaboração com o próprio poder público. Muitas empresas inovadoras utilizam uma metodologia conhecida como Design Thinking, que coloca a usuária ou usuário no centro dos processos para garantir que o problema a ser resolvido venha sempre antes da solução. Mais do que ser alguém que tem uma ideia genial, um(a) empreendedor(a) precisa compreender profundamente as necessidades da(o) usuária(o) antes de começar a pensar em possíveis soluções. Não à toa, a primeira fase de um processo de design thinking é a Empatia: colocar-se no lugar da(o) outra(o) para ver a realidade com seus olhos. Embora essa etapa do processo seja importantíssima, passamos apenas rapidamente por ela durante a

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oficina Chama Na Solução, que facilitei no início de dezembro (parte da iniciativa Geração Que Transforma, do UNICEF, implementada no Brasil pela Viração), porque a usuária ou o usuário potencial das soluções propostas pelos jovens praticamente coincidia com as empreendedoras e os empreendedores presentes – jovens de 14 a 24 anos, de diferentes regiões do país, que ao longo de 5 dias de oficina propuseram soluções para problemas que elas(es) mesmas(os) sentiam na pele. Nove equipes colocaram a mão na massa e as ideias em circulação para co-criar seus projetos e cinco delas foram selecionadas para receber um capital-semente de R$4mil e mentoria continuada para tirar suas ideias do papel. Gelson da Silva, 20 anos, morador do bairro de Campo Grande (Rio de Janeiro), foi um dos participantes da oficina e integra o CIJoga, uma das iniciativas selecionadas. Para ele, é central que a própria juventude possa propor soluções para os seus problemas. E ele dá a dica: “Se quiserem achar saídas que já estão sendo pensadas há tempos, tragam os jovens para o centro da elaboração da solução, pois assim conseguirão alternativas cabíveis e efetivas, construídas em


conjunto através do diálogo com uma parte potente da sociedade”. Nós, da Viração, assinamos embaixo dessa ideia desde a nossa fundação. Karen dos Santos, de 16 anos, é moradora de São Miguel Paulista (São Paulo), participou da oficina e integra a Cia. EmQuadro, outra iniciativa contemplada. Em sua fala, resume bem a questão: “SÓ ENTENDE A REALIDADE QUEM A VIVE. EMPATIA É UMA BELA PALAVRA, MAS ESCUTA ATIVA SÃO DUAS PALAVRAS SENSACIONAIS!”

Oxalá a fase da empatia do processo de design thinking se torne cada vez menos necessária, à medida que não apenas as(os) jovens mas também as minorias e populações marginalizadas se apropriem dessas ferramentas tão elitizadas e tomem para si a tarefa de propor e executar soluções para seus problemas. Encurtando a distância entre empreendedores e usuários, talvez consigamos também diminuir algumas desigualdades – que estão na raiz da maior parte dos problemas que nos afetam coletivamente.

CONHEÇA AS INICIATIVAS SELECIONADAS NO CHAMA NA SOLUÇÃO

A de Ajuda Projeto que pretende capacitar jovens para atuarem como instrutoras e instrutores de idiomas e reforço escolar, gerando uma alternativa de renda para quem muitas vezes é rejeitado no mercado de trabalho ou não encontra propósito nos empregos disponíveis. Site: adeajuda.com Facebook: /adeajuda Instagram: @adeajuda Cia. EmQuadro Companhia teatral cujo objetivo é apresentar peças e performances sobre machismo estrutural e empoderamento feminino em escolas públicas e outros espaços de encontro de jovens, seguidas de rodas de conversa e workshops sobre temas relacionados. Facebook: /ciaemquadro Instagram: @ciaemquadro

CIJoga – Caravana Itinerante da Juventude O projeto vai realizar oficinas em escolas e outros espaços de encontro, levando informação sobre possibilidades de participação cidadã e facilitando a proposição de soluções pelos jovens para os problemas por que passam, incluindo-os na sociedade. Facebook: /cijogarj Instagram: @cijogarj Produção Preta Iniciativa que visa facilitar o acesso à formação profissional na área audiovisual para a juventude negra, periférica e LGBT no local onde o jovem já se encontra, diminuindo assim a necessidade de se deslocar até os bairros centrais para participar desse tipo de atividade. Facebook: /producaoPRETA Instagram: @producaopreta Todas Fridas Três das moderadoras da página vão criar campanhas de conscientização e materiais de divulgação sobre gravidez precoce, visando não apenas ajudar na prevenção do fato mas também na inclusão das mães adolescentes na escola, na família e na sociedade. Site: todasfridas.com.br/ Facebook: /todasfridasoficial Instagram: @todasfridasoficial

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TEXTO JULIANE CRUZ E SYLVIO AYALA, DA REDAÇÃO IMAGENS ACERVO PESSOAL E FREEPIK

N

ascido e criado em São Paulo, Pedro Pankararé é um jovem indígena de 19 anos que assume a missão guerreira de proteger sua tribo. Sua aldeia, lugar de reconexão com os ‘encantados’, onde a etnia Pankararé tem cerca de 4.000 membros, fica na Bahia. Atua Brasil afora, principalmente entre São Paulo e Brasília, pelos direitos indígenas — na defesa das culturas nativas, na pressão política por demarcação de terras, na luta por liberdade. Ótimo argumentador e artesão, articula, divulga e educa. Com seu maracá em punho, Pedro compareceu na Viração, onde tivemos uma rica conversa. REVISTA VIRAÇÃO – QUAL A DIFERENÇA DA VIDA DOS JOVENS INDÍGENAS NA ALDEIA E NA CIDADE?

Pedro – Estando na aldeia, você sente uma presença boa... Tá na terra, pisando na areia, dali vem a nossa energia. Aqui é diferente, se eu pisar no chão posso pegar uma doença. Na nossa aldeia a gente canta, dança, pede toda a nossa força. Aqui em São Paulo é complicado, pelo desgaste, pela poluição. Mas nem por isso deixamos de fazer nossas ações.

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COMO É SER JOVEM INDÍGENA VIVENDO NO MEIO URBANO ?

“EU TÔ NO MOVIMENTO DESDE OS MEUS 5 ANOS DE IDADE, FUI CRIADO ASSIM MESMO NA CIDADE”, AFIRMA PEDRO PANKARARÉ

RV – É POSSÍVEL SER FELIZ NO MEIO URBANO?

P – O que me deixa feliz em estar na cidade, cultuando minha cultura, é que ensino outras pessoas. É mais difícil quebrar os preconceitos de pessoas adultas – por isso, trabalho essas questões desde a infância, indo nas escolas. Mostro que indígena não fica batendo a mão na boca, que temos povos mais morenos e outros não, que olho puxado e cabelo liso não determinam todas as etnias. O que faz isso é o sangue. Indígena é aquele que conhece a sua cultura e a vive intensamente. A minha felicidade é ver jovens dizendo: “– Olha, um indígena!” – não índio, indígena! Tem diferença. A palavra índio tem sido usada para ignorar a pluralidade das nossas etnias, como se fôssemos de um único jeito. O certo mesmo é nos chamar de nativos, mas indígenas também vale. RV – O QUE PODEMOS DIZER SOBRE AS CONDIÇÕES EM QUE A JUVENTUDE INDÍGENA URBANA VIVE HOJE?

P – Muitos estão nas universidades para trabalhar com o seu povo, na sua aldeia, ao se formar. Em São Paulo existe o programa Pindorama e as cotas, que abriram vagas

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nas universidades para jovens indígenas. Em relação ao mercado de trabalho, tivemos o apoio da SPDM (Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina), empresa em que trabalhei e onde fizemos o Programa Jovem Aprendiz Indígena. Além disso, a juventude está engajada no nosso movimento. Realizamos eventos para que os jovens que nascem aqui na cidade possam manter sua cultura, sua origem. Por estarmos num lugar que reúne indígenas de várias etnias, participamos de coletivos onde nos unimos e conhecemos as culturas uns dos outros.


RV – COMO O MUNDO MODERNO IMPACTA NAS CULTURAS NATIVAS? O QUE VOCÊ NOS DIZ SOBRE ESSA INTEGRAÇÃO?

P – Tem o lado bom e o ruim. O bom é a troca de tecnologias, para os estudos, para divulgar a cultura, como eu faço. Assim mostramos nossa realidade e até os não-indígenas tem condições de nos apoiar. Por outro lado, muitos indígenas se deixam levar por coisas ruins. Há nativos completamente isolados e, se alguém de fora for até onde estão, levará doenças. ANTES DAS INVASÕES, QUE COMEÇARAM NA COLONIZAÇÃO DO BRASIL, NÃO TÍNHAMOS GRIPES, INFECÇÕES E OUTRAS DOENÇAS. NÃO QUEREMOS

De outra forma, alguns falam que os indígenas que vivem na cidade devem voltar para suas terras, estes devem se calar. Por que não voltam para a Europa, então? Se querem falar assim, terão que parar de tomar banho, de comer banana, batata doce e mandioca, porque tudo isso é de tradição indígena. RV – COMO O ESTADO TEM AGIDO EM RELAÇÃO À PROTEÇÃO DOS POVOS NATIVOS?

P – Desde a colonização até hoje, a gente vem sofrendo ataques. De uns anos para cá, a realidade vinha melhorando. Conseguimos muitas demarcações das nossas terras, sempre lutando, mas agora que entrou esse novo governo a gente não sabe como vai ser.

Queremos que a preservação continue, é o melhor para eles. Segundo o presidente Bolsonaro, todos precisam ser integrados. O plano dele, que está de acordo com os desejos do agronegócio, é tomar as terras, extrair minério e explorar força de trabalho, na verdade.

Mas também há indígenas na política lutando por nós. Na década passada, tivemos Mário Juruna, xavante que ajudou muito os nossos povos, como primeiro deputado federal indígena no Brasil. Agora temos Joênia Wapichana, a primeira mulher indígena deputada federal, que vai lutar e ver o que pode fazer. A extrema direita está no poder, o extremo genocídio vem acontecendo... Tá complicado. Ela estará de frente, vai tomar muita pancada. RV – QUAL A IMPORTÂNCIA DAS DEMARCAÇÕES? P — OS INDÍGENAS PRECISAM DAS SUAS TERRAS, NÃO PARA

QUE ESSAS TRIBOS PASSEM PELO QUE PASSAMOS.

saúde. Os fazendeiros que querem tomar as terras e matar indígenas para ficar com elas agora estão aliados ao Governo Federal.

Antes, para conseguir a demarcação de terra era preciso passar pela FUNAI, que fazia parte do Ministério da Justiça. Agora, fará parte do Ministério da Agricultura – o que significa passar pelo aval do agronegócio, que só pensa em dinheiro e suja as terras com venenos [agrotóxicos] que fazem mal à

Pedro Pankararé   reconectando os   encantados

EXPLORAR — NOSSO ALIMENTO E NOSSA FORÇA VEM DE LÁ. POR ISSO, A DEMARCAÇÃO É UM DOS PONTOS PRINCIPAIS DA NOSSA LUTA. A gente não quer

que a agropecuária destrua as áreas conservadas e muito menos que tudo vire prédio como em São Paulo. A vivência da terra é muito importante.

Maracá, o instrumento sagrado

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Evento anual de reunião dos   povos indígenas, em Osasco/SP

Comunidade Pankararé

Além disso, as relações com fazendeiros são conflituosas e violentas. Aqui, na camisa que estou vestindo hoje, tá escrito “Ângelo Pereira Xavier”, que é uma das nossas lideranças cacique. Ele foi fuzilado por fazendeiros porque estava nos defendendo, demarcou nossa terra com sangue. A gente só foi conseguir a demarcação oficial no ano 2000, mas já vínhamos lutando por ela há décadas e de lá até aqui ainda não conseguimos retirar todos os invasores da nossa aldeia. Já era difícil, mas agora que a demarcação das terras passou pra Agricultura, temos medo desses fazendeiros que saíram quererem voltar pra nos massacrar. Como aconteceu com os Pankararus quando conquistaram a reintegração de posse, avisaram que a área estava demarcada, mas os fazendeiros não acreditaram e não saíram. A polícia foi lá e os retirou. Ficaram bravos, tacaram fogo na UBS, na igreja, na escola. Isso pode parecer distante, mas aconteceu em 2018 – ano passado.

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RV – QUAIS SÃO AS ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA PARA O FUTURO?

P – A gente sobrevive há mais de 500 anos e não vai ser agora que vamos nos acabar. Devemos lutar muito, pedir pro Criador nos proteger na nossa batalha. Ele quem deu a terra pra gente cuidar, pra preservar. Não pra desmatar nossa floresta – acabando com ela, acabamos com a gente. Temos um conselho municipal indígena aqui em São Paulo onde reunimos várias lideranças de vários povos. Ali lutamos, fazemos leis, vamos nas escolas ensinar nossas culturas. E a APIB, que é a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. No mês de abril vamos a Brasília, todos os indígenas, no chamado Acampamento Terra Livre – em que ficamos uns dias, levamos nossas questões e reivindicamos as demarcações. Com o Bolsonaro provavelmente será mais difícil – ele disse em campanha que não demarcará mais nenhum centímetro de terra.

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A gente tá se unindo com os quilombolas, os LGBT, os negros, as mulheres e fortalecendo nossa cultura. Muitos falam: ninguém solta a mão de ninguém! É importante isso, estamos na luta por direitos nossos. Para nós, o que espero é que todos os indígenas vivam nas suas terras, que não precisem sair de suas aldeias e vir para a cidade por causa das dificuldades; que venham apenas para adquirir outros saberes. O que eu quero é que possamos ter liberdade na nossa aldeia, para cultuar e viver a nossa cultura.

TÁ NA MÃO Página de Pedro Pankararé: http://bit.ly/pedropankarare.


TEXTO JÉSSICA REZENDE, DA REDAÇÃO FOTO ACERVO PESSOAL

Q

uando se pensa em juventude, quais imagens surgem na cabeça? Provavelmente, de revolucionários. Isso não é de hoje – mas será que existe alguém desta faixa etária que se identifica com uma agenda mais conservadora? Conversamos com Leonardo Gomes, estudante do último semestre de Economia, residente da Zona Leste de São Paulo, um jovem de direita autodeclarado. Veja o que ele nos contou! #1 COMO VOCÊ PERCEBEU SEU POSICIONAMENTO POLÍTICO?

Tive o exemplo do meu avô – dono de um boteco que fez seu sustento até se aposentar. Ele me ensinou que tudo o que conseguimos é batalhando. Tem também meu pai, que começou a trabalhar aos 9 anos. Eles me ensinaram o que é o mérito do trabalho. Mas comecei como a maioria, no Facebook. #2 COMO REAGEM QUANDO VOCÊ SE DECLARA UM JOVEM DE DIREITA?

A maioria não gosta, mas consigo lidar bem com essa questão. Hoje, dentro do meu ciclo de amizades, 70% das pessoas são de direita. Já parei de frequentar uma igreja pelo excesso de “esquerdismo”. Não digo que fui julgado, mas colocado de lado. Me sinto assim em relação a outros jovens que

JOV ENS DE DIREITA: ELES EXISTEM

E QUEREM MUDANÇA!

UMA JUVENTUDE LIBERAL NA ECONOMIA E CONSERVADORA NOS COSTUMES. ONDE ESTÃO E O QUE PENSAM ESSES JOVENS?

ficaram bem intolerantes de 2014 pra cá. Acredito que foi uma guerra pra todos, né? #3 PARA VOCÊ, QUAL A IMPORTÂNCIA DE MANIFESTAR SEUS IDEAIS?

É um outro ponto de vista. Ideias servem para ser debatidas, mostradas… até para conhecer coisas novas, melhores soluções. Acredito que até hoje o socialismo não deu certo em lugar nenhum no mundo. Então, mostrar o outro lado é (no mínimo) lógico. #4 COMO A JUVENTUDE DE DIREITA SE ORGANIZA E ATUA – NA PRÁTICA?

A maioria acaba sendo online com informações do Youtube, livros. Já fui chamado para participar do Direita São Paulo, MBL e do PSL, mas não tenho interesse em entrar pra política. Hoje sou independente e criador de duas páginas no Facebook. A Direita Elegante é a mais famosa. Além disso, sou editor de mais umas 10. Juntas, devem ter mais de 100 mil curtidas. Eu basicamente divulgo memes, vídeos e o máximo de conhecimento.

se sentindo o “mais mais” e só sai briga. Acho que o lugar certo para isso seriam as universidades, mas lá não existe diálogo. Sempre que eu entro em um debate com professores, por exemplo, não é um debate do mesmo nível. Eles já têm mais conhecimento e o problema é que a grande maioria é esquerda, o que não facilita o diálogo com a gente, do outro lado. Eu criei a Direita Elegante exatamente pra mostrar que nós temos conteúdo e não apenas raiva. Sei que muitos têm raiva e fui a fim de mudar esse movimento! O Brasil está passando por milhares de problemas: na educação, segurança, saúde. E isso os dois lados conseguem ver...

#5 É POSSÍVEL UM DIÁLOGO PRODUTIVO ENTRE OS JOVENS DE DIREITA E ESQUERDA? SE SIM, COMO VOCÊ ACHA QUE ESSA PONTE PODERIA SER FEITA?

Acredito que sim, mas só se for pessoalmente. Pela internet só existe guerra e na guerra não existe diálogo. A maioria fica

Leonardo Gomes e Pondé

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JOVENS EM MEDIDA

SOCIOEDUCAT IVA:

O QUE ISSO SIGNIFICA? POR MEIO DE ATIVIDADES E AÇÕES, ADOLESCENTES ACUSADOS DE COMETER ATOS INFRACIONAIS PODEM TER NOVAS PERSPECTIVAS DE VIDA TEXTO ELAINE SOUZA, DA REDAÇÃO

O Estatuto da criança e do adolescente (ECA ) compreende criança como aqueles que têm 12 anos incompletos e como adolescentes toda pessoa entre 12 e 18 anos de idade. Esse estatuto é fruto de lutas da sociedade civil organizada, a fim de estabelecer acordos e combinados para proteção de crianças e adolescentes, considerando-as como sujeitos de direitos, que têm vontades e necessidades como toda pessoa humana. Na perspectiva do direito, o estatuto prevê diversas proteções às crianças e adolescentes, incluindo as medidas que devem ser aplicadas aos adolescentes que cometem ato infracional. Estas medidas são chamadas de socioeducativas. Mas o que é ato infracional? O ECA considera como ato infracional “toda conduta descrita como crime ou contravenção penal”. A mesma lei também considera que “são penalmente inimputáveis” os menores de

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dezoito anos – isso quer dizer que toda pessoa menor de 18 anos não têm a capacidade de responder pelo ato praticado como teria um adulto, portanto estão sujeitos às medidas socioeducativas. São elas que responsabilizam os adolescentes face ao ato infracional praticado, de forma a contribuir com o acesso a direitos e processos que caminham para a ressignificação de projetos de vida pessoal e social. As medidas socioeducativas, que não podem ser confundidas com medidas penais previstas no sistema prisional para adultos, são descritas no estatuto como: “medida socioeducativa privada de liberdade” e “medida socioeducativa em meio aberto de Liberdade Assistida (LA) e de prestação de Serviço à Comunidade (PSC)”. Os serviços de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto de Liberdade Assistida (LA) e de Proteção de Serviço à Comunidade (PSC),


Vem da Natureza Fumaça, legaliza, cheiro de mato queimado. Quem vem da natureza, os ‘bico ta bolado’

compõem a rede de serviços socioassistenciais do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), que no município de São Paulo são executados por meio de parceria entre organizações sociais e o Estado. E como as medidas socioeducativas acontecem na prática? Buscando dar concretude ao SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), que determina como deve funcionar o atendimento em medida socioeducativa. Os adolescentes constroem junto aos profissionais do serviço de medida socioeducativa (assistentes sociais, psicólogos e/ou pedagogos) um plano de atendimento individual, onde são traçados combinados e atividades socioeducativas para os adolescentes – como oficinas de diferentes linguagens artísticas (dança, música, poesia, grafite) e oficinas de cidadania. No MSE Grajaú, os adolescentes que participam da oficina de “Rimas e Poesia”, escreveram essa letra (no box ao lado) e compartilharam com a Viração.

Minha quebrada e roots Favela está mil volts Pra relaxar, queimar um chá depois Os bicos tumultuam Chamam a viatura Os moleques tá ligeiro Se brotar é fuga. Vão querer forjar, querem me ferrar Nessa caminhada, só Deus pra me guardar Bola mais um fino Fumaça pro ar Fico chapado mas não deixo a desejar. Se vem da natureza é paz você tá ligado Apartamento mais um e convoca os aliados Nada de mais pra ser fora da lei Queima os neurônios, mas isso eu já sei. Feio é chegar chapado, quebrando tudo Destruindo a família, eu que vagabundo? Querem me julgar, só sabem criticar Chega nas ideias pra nóis desenrolar Um bom lugar se constrói com humildade Isso é de lei, já disse o Sabotagem Favela tá lazer, escuta o proceder Nóis é cachorro louco, não vem pagar pra ver Isso não é apologia É só rima dos ‘cria’ Cotidiano da periferia Quebrada é selva, mato pra todo lado Nóis tá bolado e os inimigos estão fardados Respeito a nossa lei Filosofia Bob Marley Uma manga rosa pra ficar suave Não ligo que me olhem da cabeça aos pés Não farão minha cabeça e nem chegarão aos pés Não preciso de ambições, uma coisa eu quero muito Humanidade unida Brancos e negros juntos Chamam de idiota quem fuma maconha, Chamam de gênio o inventor da bomba atômica.

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TEXTO JENNY NICASSIO, JÚLIA VACCARI, PEDRO SANTANA E WANESSA FERRO, VIRAJOVENS DE SÃO PAULO (SP)

ENTRE PAREDES E MUROS, O “SUJO” TAMBÉM SENTE

C

omo você manifesta o que pensa? Alguns recorrem às linguagens artísticas. Entre elas, aquela que é vista, mas muitas vezes incompreendida e pode carregar muitos significados: o pixo. DECIFRE A INTERVENÇÃO DA JOVEM PIXADORA SUJA NOS ESPAÇOS PÚBLICOS DA CIDADE DE SÃO PAULO Além de adrenalina e autopromoção, muitas vezes o pixo acompanha pixo contra a propriedade privada, pixação tendo um teor ideológico críticas ao governo e à sociedade, antimachista e antifascista, nem contra o capitalismo, contra o partindo principalmente de pessoas Estado, contra qualquer e todo todos seguem. Alguns fazem que nunca conseguem expor o só por adrenalina. Acontecem tipo de opressão e pela estética do que pensam ou não se sentem à casos de machismo, assim como pixo, que vai contra tudo aquilo vontade para fazê-lo nos espaços em todos os outros lugares da considerado como padrão de predestinados, que lhes são negados beleza. sociedade. Fora essas situações, de diversas formas. E, se você nunca têm muito respeito dentro do é ouvido, pode acabar acreditando movimento. RV – COMO VOCÊ VÊ A REAÇÃO DAS que não precisa falar, aprisionando PESSOAS AO PIXO? aquilo que pensa. O pixo subverte S – Causa incômodo – ou porque é essa lógica. Conversamos com uma preciso se esforçar para entender, O que te leva a pixar? jovem de 16 anos que encontrou na Será que é porque sempre te ou porque muitos se incomodam pixação o meio de se expressar, seu mais com a pixação que com fazem aprisionar codinome é Suja. Que na sala de aula te impediram outras questões mais importantes; de falar como, por exemplo, a desigualdade Conta pra nós no Brasil. Meu pixo é sobre essa REVISTA VIRAÇÃO – QUANDO VOCÊ Pra você revolta. As pessoas deveriam COMEÇOU A PIXAR? Seu pixo é arte que ninguém vê? tentar entender porque jogamos Suja – Foi em contrapartida ao É seu grito no vazio tinta na parede cometendo tal programa “Cidade Linda”, de João Para parar de se esconder ato de “vandalismo”. OS PIXOS Dória, ex-prefeito de São Paulo, em Conta pra gente que vários grafittis e pixos foram DIZEM COISAS QUE NINGUÉM SE O que seu pixo diz sobre você? apagados pela cidade. Depois ESFORÇA PARA ENTENDER, MAS assisti um documentário e fui me QUE ESTÃO BEM ALI. Jenny Nicassio interessando mais. RV – O QUE SEU PIXO DIZ SOBRE VOCÊ?

RV – COMO É O CENÁRIO PRAS MINAS?

S – Diz sobre a minha estética, porque a pixação vem da marginalidade, da pobreza, então me identifico. Me considero anarquista,

S – É complicado porque a maioria das pessoas que pixa é homem e muitos desacreditam do nosso potencial. Mesmo o movimento da

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O QUE A CIDADE NOS CONTA SOBRE

NÓS MESMOS?

O PIXO NOSSO DE CADA DIA: ENTRE O REPÚDIO E A LOUVAÇÃO, ENTRE A LIBERDADE E A CONTRAVENÇÃO

TEXTO DEBORAH NEVES, HISTORIADORA*

D

ois mundos que teoricamente não se aproximam: a pixação e o patrimônio cultural. Mas será mesmo? Ambos os campos têm a cidade como plataforma básica de pensar e atuar. Se o patrimônio cultural é constituído por lugares simbólicos para diferentes grupos sociais, que contam a história de pessoas e, com isso, da cidade; a pixação nos mostra aspectos que muitas vezes passam despercebidos. Um prédio abandonado pelos proprietários esperando que o preço do m² suba para então vender mais caro, uma casa tombada que não está sendo cuidada ou um apelo para que “olhem por nóis”. A

DENÚNCIA PODE VIR EM FORMA DE LETRA OU CHAMANDO A ATENÇÃO PARA ESPAÇOS QUE DEVERIAM, POR SI SÓ, SEREM IMPORTANTES, MAS ACABAM ESQUECIDOS. O MESMO ACONTECE COM PESSOAS, QUE SE MISTURAM À PAISAGEM DA CIDADE; SEJA CAMINHANDO, SEJA DORMINDO, PARECE QUE

A CIDADE NOS ACOLHE, MAS TAMBÉM NOS ENGOLE. Fazemos

parte da paisagem, ao mesmo tempo que somos invisíveis perto de sua grandiosidade. O patrimônio tenta nos dar senso de pertencimento nessa imensidão e a pixação nos provoca a pensar sobre o indivíduo, que desaparece anônimo na multidão sem forma. “Não há nada tão invisível como um monumento”, disse Robert Musil. A pixação de alguns lugares da cidade traz indignação, mas antes de tudo, traz visibilidade a esses lugares, estátuas e monumentos que muitas vezes nada dizem a boa parte das pessoas. E essa visibilidade pode ser aprofundada refletindo sobre o que aquele monumento/lugar/ estátua quer nos fazer lembrar. Ele atinge o objetivo? Quem se sente representada(o)? São questões que os profissionais do patrimônio enfrentam todos os dias. São questões que alguns pixadores também se deparam quando vão intervir. Toda pixação é política? É reflexão? Não. Mas pode nos fazer pensar se olharmos pra cidade, e pras pessoas: quais histórias estão sendo contadas aqui?

E quantas vezes paramos pra olhar e ouvir a cidade com cuidado? Para cada detalhe do nosso caminho, cada pessoa que cruzamos nas calçadas – mas o quanto andamos à pé? Ou mesmo de bicicleta? E quando andamos, estamos vendo ou olhando? Ou estamos voltados pras páginas dos livros ou pro celular? As diferentes camadas da cidade só são perceptíveis se estivermos atentos a algo que se perde: o exercício da observação e da escuta. Sem isso, a cidade nos grita sobre nós e sobre ela e não seremos capazes de compreender sequer quem nós somos dentro da Cidade, dentro da História e em nossas próprias vidas. O espaço público e a forma que ele se apresenta dizem muito sobre qual a relação que nós estabelecemos com nosso passado, mas principalmente, com nosso presente. Se as feições múltiplas da cidade não nos agradam, cabe a nós pensarmos porquê, e mais, compreender o que podemos fazer para que mude. A cidade não deve ser um aglomerado de indivíduos, mas um espaço em que nos tornamos um coletivo.

*Trabalha na Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. Revista Viração • Ano 16 • Edição 114

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TEXTO KARINY ROCHA, RAISSA SANTOS, JULIA BARBOSA, KAUANNY SOUZA E DANDARA MOREIRA, VIRAJOVENS DE SÃO PAULO (SP). ILUSTRAÇÃO FREEPIK

S

aúde Mental. Como é afetada? Por quais motivos e razões as pessoas se deprimem? Quando vira doença? Emoções e pensamentos imprevisíveis passam pela cabeça de quem sofre com algum tipo de transtorno mental ou tristeza profunda. Ainda que tente manter o sorriso no rosto, algo não vai bem. A pessoa abalada em sua saúde mental têm que lidar com sentimentos ruins e com o preconceito da sociedade. Muitas vezes a demora para procurar um profissional da área complica ainda mais a situação. Conversamos com a psicóloga Ariane Leal, idealizadora do CAJU (Coletivo Psicanálise, Adolescência e Juventude) para saber mais sobre esses quadros clínicos cercados de tabus e estigmas, sobre doenças como a depressão, que precisam urgentemente de esclarecimento.

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O MUNDO E AS MEN T ES MANTER UMA SAÚDE MENTAL ESTÁVEL DIANTE DAS COMPLICAÇÕES DO COTIDIANO ESTÁ CADA VEZ MAIS DIFÍCIL. COMO OLHAR PARA NÓS MESMOS E PERCEBER QUANDO PRECISAMOS DE AJUDA?

REVISTA VIRAÇÃO – COMO OS DIAS ATUAIS INFLUENCIAM A NOSSA SAÚDE MENTAL?

Ariane – Estamos passando por um momento em que há uma pressão social a qual nos exige que sejamos fortes e competentes, onde temos sempre que corresponder às expectativas dos outros. Nas redes sociais, todos parecem bonitos, felizes, sem preocupações. Há uma ditadura do “ser feliz a qualquer custo”. Dessa forma, é impossível corresponder a tais demandas e não há lugar para nos mostrarmos frágeis, tristes, com preguiça, em dúvida. Isso pode provocar sintomas dos mais diversos que refletem os rígidos ideais da época. Manifestam-se vários sofrimentos – tais quais as depressões, síndromes do pânico, bulimias, anorexia e vícios de todas as ordens.

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RV – COMO EU PERCEBO QUE PRECISO DE AJUDA?

A tristeza e o mal estar são sinais de que precisamos ouvir algo que pede atenção. São processos que fazem parte do nosso autoconhecimento. Quando alguma tristeza ou angústia permanecem e crescem, podemos dizer que há um sofrimento presente e que, às vezes, é muito difícil de lidar sozinho. Nesses momentos, podemos achar que isso não tem tanta importância para os outros, mas é exatamente nessa hora que é necessário dividirmos com alguém de confiança o que se passa com a gente.


RV – DE ONDE SURGEM ESSES SINTOMAS? ELES SÃO DIFERENTES DE ACORDO COM A FAIXA ETÁRIA?

Os sintomas são originados a partir do conflito entre o nosso desejo e nossos ideais, que não podem ser realizados diante das exigências criadas por nós, refletindo também o que a sociedade nos impõe. Em cada momento da vida, esse jogo de forças vai se modificando e pode se manifestar de diferentes maneiras, com mais ou menos flexibilidade diante das demandas. RV – DE QUE FORMA AS PESSOAS PODEM PROCURAR AUXÍLIO PARA LIDAR COM ESSAS QUESTÕES?

Existem serviços de atendimento e profissionais da saúde – como psicólogos, psicanalistas, psiquiatras, assistentes sociais em equipamentos públicos e particulares. RV – EM QUAL MOMENTO A PESSOA DEVE PROCURAR UM (A) PSICÓLOGO (A)?

Em primeiro lugar, é necessário que haja o desejo de fazer terapia. Não necessariamente a pessoa precisa estar em sofrimento. A base do tratamento é a palavra, por isso, cria-se um ambiente favorável para que se possa falar por si mesmo, seja dono da sua palavra. E também se escute. A psicoterapia é um trabalho que visa despertar e potencializar o processo criativo de cada um – sobretudo o de criar e recriar

a própria vida, criar novas possibilidades de enfrentar o sofrimento e afirmar as potências da vida e do crescimento. Acredito que a maioria de nós – tanto quem nunca fez terapia quanto aqueles que já fizeram em algum momento da vida – possivelmente vai se identificar com algumas das situações apontadas abaixo: pressões ligadas às expectativas familiares, mudanças do corpo, pertencer a um grupo social, questões afetivas amorosas, vícios, entre outros. RV – O QUE É O CAJU?

Somos um coletivo de psicanalistas especializado na área de adolescência e juventude. O CAJU surgiu de nossas afinidades clínicas e da aposta na potência do trabalho coletivo. Entendemos que o período de adolescência e juventude não se define apenas por faixa etária e sim por um tipo de inquietação que marca a transição entre a infância e a vida adulta. Nessa fase, cada um precisa inventar/reinventar a si mesmo. A adolescência não mobiliza exclusivamente quem está passando por ela, mas toca e provoca quem está à sua volta, convocando em todos a capacidade de afetar e ser afetado pelo mundo. RV – QUAL O INTUITO DESSE PROJETO?

clínicos individuais ou em grupo, rodas de conversa, Cine Caju e Caju na Escola. RV – AS REDES SOCIAIS (INTERNET) ACABAM SENDO UTILIZADAS PELOS JOVENS PARA FALAR DESSES ASSUNTOS, O QUE ESSA PUBLICIZAÇÃO PODE CAUSAR?

A qualidade e os efeitos dos relacionamentos virtuais ainda é algo que a nossa sociedade vem tentando entender. Principalmente na geração que é adolescente nesses tempos, que aprende a se relacionar já atravessada por esse modo de ser virtual. A procura por interlocução e identificações de jovens através das redes sociais pode ser positiva, no sentido de dar palavra ao que se vive nas relações corpo a corpo e olho no olho. Porém, quando a rede social é a única via encontrada pela pessoa que vive um isolamento afetivo, portanto um sofrimento e, procura jovens também nesse movimento, os riscos podem ser desastrosos. Sem a mediação de um adulto que seja referência de valores e futuro, que possa ajudar a dar esperança ao que se vive, o grupo pode produzir cada vez mais isolamentos individuais levando o sofrimento a dimensões insuportáveis.

TÁ NA MÃO

O CAJU tem 2 objetivos principais: a criação de um espaço de reflexão e pesquisa sobre a juventude e adolescência. E realização de atendimentos

É possível saber mais sobre essas atividades no site: www.cajupsicanalise.com

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Estas foram as pessoas que investiram na potência da juventude e apoiaram a nossa campanha de captação de recursos. Por causa da contribuição de cada um/a, poderemos dar continuidade e agregar maior qualidade aos conteúdos produzidos pelos adolescentes da Agência Jovem de Notícias em 2019. Assim, devolvendo para a Gabi, o Bruno, a Ju, a Joyce e tantos outros jovens talentosos, a possibilidade de assumir o protagonismo da própria história e sonhar com um futuro melhor para as suas vidas! FOI O SEU APOIO QUE TORNOU ESSE SONHO POSSÍVEL. POR ISSO, NOSSA PROFUNDA GRATIDÃO:

ADRIANA DA ROCHA ADRIANA BARBOSA ANA CAROLINA ZAPAROLI ANA SARAN BÁRBARA SMUK CLAUDIA PAOLIELLO EDU PETERLE ELAINE SOUZA ELZA CARVAJAL FERNANDA FARANA IGOR LEME ISABELLA REZENDE JAIR PIRES JÉSSICA REZENDE LUKAS DORACIOTTO MAIKE MAIO MANUELA RIBEIRO NATÁLIA LANITA PAMELA GOYA PAULA BONFATTI RACHEL DANIEL RICARDO ROLIM SELMA REZENDE SUSANA PIÑOL VANIA CORREIA VERA LION

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VOCÊ CONHECE O “PRA BRILHAR”?

Parceria da Viração Educomunicação com o Programa de DST/AIDS do município de São Paulo, o projeto oferece formações sobre temas como sexualidade, gênero, direitos humanos e prevenção combinada ao HIV/ AIDS – além de outras infecções sexualmente transmissíveis – com foco nos adolescentes ou jovens gays e trans. A ideia do Pra Brilhar é que a juventude gay da cidade saia munida de informações para si e que possa estender as relações que estabelecem em suas vidas cotidianas! Convidamos os participantes a produzir textos, poesias, vídeos, entre outros materiais educomunicativos que possam servir de ferramenta para a educação entre pares.

Se você está a fim de trabalhar esses conteúdos em sala de aula, coletivos ou com seus colegas, dá uma olhada no nosso site e conheça os nossos materiais. Lá na seção “Faça você mesmo!” você vai acessar vários conteúdos legais! Agora, se você tem entre 16 e 24 anos, mora em São Paulo e tem disponibilidade às sextas-feiras no período da noite para vir ao centro da cidade participar das atividades de formação, fica ligado! Logo menos a gente abre as inscrições para a próxima turma e queremos contar com o maior número possível de adolescentes e jovens diversos. O Pra Brilhar aposta na possibilidade de jovens gays, negros e/ou periféricos, construírem narrativas sobre e para si próprios. Você não vai deixar passar essa oportunidade, né? Vem participar com a gente!

TÁ NA MÃO www.prabrilhar.org http://bit.ly/prabrilharsp contato@prabrilhar.org

Ao longo do projeto, o roteiro das oficinas utilizado pelos educadores do projeto, os materiais produzidos pelas jovens e outros conteúdos informativos são disponibilizados no site do Pra Brilhar – e podem ser acessados a qualquer momento!

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TEXTO LUCIO DALEIRO AYALA, VIRAJOVEM DE SÃO PAULO (SP) ARTE SILVANA MARTINS

O

cinema é uma das mais importantes formas de arte contemporânea. Nos filmes podemos transmitir sentimentos através de diversos elementos de outras artes e técnicas. Da Luz e câmera ao texto e à trilha sonora, cada filme nos conduz a uma viagem completa nas ideias dos autores e na experiência de ver o mundo a partir de outros olhos. Por razões como essas, o cinema (e vídeos em geral) têm se tornado uma ferramenta de ativismo e também uma forma de expressão totalmente livre e independente. Entre 1 e 2 de dezembro de 2018, rolou o 7° Festival do Filme Anarquista e Punk de SP – projeto de festival para mostra de filmes com temáticas anarquistas que tem se tornado cada vez maior e mais colaborativo. Os filmes exibidos nas sessões, muitos recebidos por inscrição

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FESTIVAL DO FILME

ANARQUIS TA E PUNK CINEMA QUE CHAMA PARA A LUTA, PARA A FESTA, PARA A VIVÊNCIA LIBERTÁRIA

voluntária, mostram todo o poder que o ativismo audiovisual tem para manifestar as realidades das nossas batalhas do dia a dia. Dentre elas, estão a luta pela liberdade e pelo direito de manifestação, a luta de classes, do movimento negro, do antifascista e do feminista. Temas que estão presentes na vida de todos os cidadãos do Brasil e do mundo. Desde as primeiras edições, muitos materiais diferentes foram recebidos. Com o tempo, a curadoria foi se flexibilizando para exibir filmes nem tão anarquistas assim, mas que se encaixavam na proposta de ‘anti-arte’ e de ‘façavocê-mesmo’. Avelino Regicida é o curador, co-fundador da Kasa Ajeji e documentarista. Neste ano, a curadoria decidiu retomar a essência das primeiras edições e focar novamente em conteúdos subversivos, materiais muitas

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vezes rejeitados pelos grandes veículos e pelas instituições (espaços) culturais. Os filmes, em sua maioria curtas, foram exibidos em sessões temáticas: “Ficções Libertárias Sobre a Realidade”, “Contra o Genocídio”, “Contracultura Viva” – abordando diversos temas, cada qual com sua peculiaridade. Entre uma sessão e outra, também se abria o espaço para debater sobre os filmes exibidos. No filme “Matar A Luksic”, um dos meus preferidos do festival, tive uma experiência ativista do ponto de vista jovem. O filme, ambientado na cidade de Santiago no Chile traz um misto de ficção e realidade sobre um casal que acompanha as manifestações chilenas contra os escândalos do empresário Andrónico Luksic, dono de uma das maiores fortunas do Chile atualmente. Luksic, presidente


do Grupo Luksic, empresa líder nas áreas de mineração, finanças, alimentos e telemarketing, também envolvido em inúmeros casos de corrupção, fraudes fiscais, tráfico de influência, desmatamento ilegal e até contaminação da água. O filme me chamou a atenção pois o Chile é muito parecido com o Brasil em diversos aspectos. O povo chileno também saiu de uma recente ditadura que deixou resquícios de autoritarismo no país até hoje. O estado chileno também passou por diversas reformas liberais e privatizações parecidas com as que nosso país segue agora e, apesar de defendida como a “expansão da economia chilena”, é notável que a desigualdade social no país ainda é um problema muito contestado pela população. Matar a Luksic é um retrato contemporâneo de um casal ativista que em meio a beijos, sexo e bebidas também está se decifrando politicamente. CHEGAR NA VIDA ADULTA, ALÉM DOS HORMÔNIOS A FLOR DA PELE, É ENCONTRAR SEU LUGAR NO MUNDO – E ISSO ENVOLVE SE POSICIONAR, SE MANIFESTAR, FALAR, CONHECER, ENTENDER NOVAS IDEIAS E CONCEITOS. Por isso Matar a

Luksic é uma ficção libertária sobre a realidade cabendo perfeitamente nesse contexto; principalmente nos aspectos sociais e políticos de 2018 para 2019, tempo de crises, conturbações e de lançamento do filme. A Kasa Ajeji, espaço cedido para o festival, além de sede anarquista punk também é centro de cultura urbana, africana, espaço de cursos, debates e convivência. Ela comporta a Do Morro Produções

Desenhadora das batalhas populares Silvana Martins A Kasa Ajeji é literalmente forrada de ideologia, onde os cartazes de Silvana Martins tomam conta do corredor, da escada, do ambiente, ocupam de fato a área, exatamente como no mote das artes gráficas apresentadas. Exposição fixa e permanente, uma porque é tipo papel de parede, outra porque é conteúdo que já faz parte. O cartaz é o principal meio que a autora encontrou para exprimir suas emoções e pensamentos, ali estão vida periférica, trabalho, machismo, violência, comunidade, racismo, desigualdade, temas pungentes e nervosos de profundo sentido social. Traço poético e espírito guerreiro gritando bonito, nuances, pessoas e cores vivas em uma vasta coleção maravilhosamente engajada. Confira ao vivo!

(um dos coletivos que realiza o festival) e a livraria Africanidades, específica para títulos de mulheres negras. Lá, fui recebido com muito acolhimento em um festival intimista amigável, despretensioso e caloroso. Também curtimos o som ao

vivo do grupo Máfia Africana e Regicidas. Ao longo do dia e da noite, entre filmes, conversas, comidas, sons e debates conheci esse grupo totalmente autônomo, que conseguiu transformar em realidade um festival brasileiro, anarquista e da quebrada.

Outras literaturas A livraria Africanidades funciona como banca mambembe, combatendo o racismo por onde for: eventos, feiras e encontros. Abriu como e-commerce em 2013, hoje tem loja física e itinerante, focada em literatura negra, realizada por mulheres pretas. Ketty Valencio (sócia na Kasa Ajeji) é a mentora e linha de frente, defende a disseminação das memórias esquecidas propositalmente pela história oficial. Boitempo, Morro Grande, Dublinense e Capulana são algumas das editoras que formam o cardápio da Africanidades, juntamente com autores e autoras independentes, é claro. Fanzines, jornais e anarco revistas são bem-vindos. http://www.livrariafricanidades.com.br/ insta: @livrariafricanidades

TÁ NA MÃO Incentivando mais produções audiovisuais anarquistas & punks, exibições, mostras, cineclubes, debates, encontros, reflexões, oficinas técnicas e ações – organizamos também festivais itinerantes em outras cidades. Contatos, conspirações, troca de ideias pelo e-mail: festival@ anarcopunk.org / ou pelo site: anarcopunk.org e anarcopunk.org/festival. A Kasa Ajeji está aberta às segundas (das 12h às 18h), aos sábados (das 12h às 20h) e com horários de visita agendados durante o resto da semana. Fica na Rua Paulo Ravelli, 153 - Vila Nova Cachoeirinha, São Paulo (SP).

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NO ESCURINHO TEXTO NELSON SIMPLÍCIO, CINEASTA E VIRAJOVEM DE SÃO PAULO (SP) IMAGEM DIVULGAÇÃO

INFILTRADO NA KLAN , DIRIGIDO POR SPIKE LEE O PASSADO E O PRESENTE DIALOGAM DE PERTO NESTA OBRA IMPERDÍVEL

P

ara falar sobre Infiltrado na Klan é preciso falar sobre dois tempos: 1915 e 2018. Mas antes de tudo, a trama. Baseado em fatos, conta a história de um policial negro chamado Ron Stallworth (interpretado por John David, filho de Denzel Washington) que monta uma operação para infiltrar-se na Ku Klux Klan com a cooperação de seus colegas policiais brancos. Ao mesmo tempo, fala sobre sua aproximação com as movimentações do Partido dos Panteras Negras no final dos anos 70. Em 1915, estreava “O Nascimento de uma Nação”, uma narrativa épica sobre a Guerra Civil nos EUA. Apesar de ser considerado peça fundamental no desenvolvimento da linguagem do cinema, deve ser lembrado pela propagação de um imaginário racista nos EUA – que ecoa em vários outros cantos do mundo. As cenas desumanizam os personagens negros, interpretados por atores brancos com “blackface”, ao retratá-los como violentos e selvagens. Enquanto isso, a Ku Klux Klan surge de maneira heroica para combatê-los, legitimando a violência racial e exaltando

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a imagem dos supremacistas brancos. O documentário “A 13ª Emenda” defende que há uma responsabilidade na construção do estereótipo do negro como uma ameaça à sociedade (branca) - o que resultou em enforcamentos públicos, pessoas queimadas e execuções policiais sem presunção de inocência ao longo do século. Chegamos em 2018 e surge “Infiltrado na Klan”, dirigido por Spike Lee. Um cineasta negro tem o poder de retratar a KKK pelo cinema - a linguagem por onde se perpetuou a violência de “O Nascimento de uma Nação”. É uma reparação e um acerto de contas. Olho por olho, dente por dente e imagem por imagem. Expõe as fragilidades e impotências dos membros da Klan que contradizem a imagem que os supremacistas brancos criaram para si. É uma prova de como as imagens podem ser (des)construídas por quem conduz as narrativas. Lee também faz o percurso histórico do grupo e seus apoiadores ao associar os discursos e ações dos personagens com acontecimentos recentes dos EUA sob a administração de Donald Trump, expondo a onda crescente de ódio e violência racial no país.

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O diretor faz um jogo de mea culpa com a instituição policial no filme. Ao mesmo tempo que investigam os supremacistas, os diálogos expõem o racismo dentro de sua estrutura. Seja o oficial branco que sente prazer em perseguir e assediar negros, o chefe da delegacia que iguala os Panteras Negras a KKK ou até os colegas de operação do Stallworth que afirmam que os únicos negros relevantes que conhecem são os atletas – reforçando o não-reconhecimento da intelectualidade e da criação artística do negro. “Infiltrado na Klan” catalisa a tensão do conflito racial neste momento nos EUA (e no Brasil) – da mesma forma que firma o lugar atual da cena audiovisual negra no país, que deixou a cadeira de espectador e partiu para a ação, entrando numa disputa de narrativas com o ideário do cinema branco industrial, que demonstra a cada dia mais o preço pela herança escravocrata em contraponto com a riqueza da cultura e da história negra.


Malala Yousafzai (Paquistão) é reconhecida internacionalmente pela defesa dos direitos humanos, das mulheres e do acesso à educação. Em 2012, foi baleada por um terrorista Talibã. Superando um quadro clínico grave, ganhou mais força. Em 2014 - com 17 anos - recebeu o Nobel da Paz pela luta contra a repressão de crianças e jovens, pelo direito à educação. Hoje mora na Inglaterra com a família e percorre o mundo defendendo esta causa.



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