Revista Viração - Edição 31 - Novembro/2006

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Projeto social impresso sem fins lucrativos · Ano 4 · No31 · Novembro de 2006 · R$5,00 · www.revistaviracao.com.br

V iRAÇÃO Mudança,

atitude e

ousadia jovem

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Racismo Edição Especial


Novaes

MAPA da

QUE FIGURA Cartão-Postal Zumbi

Equipe Pedagógica Aparecida Jurado, Auro Lescher, Isabel Santos, Márcia Cunha e Vera Lion Diretor Paulo Pereira Lima

RG

Conselho Editorial Cecília Garcez, Ismar de Oliveira e Izabel Leão (Núcleo de Comunicação e Educação – ECA/USP), Immaculada Lopez, João Pedro Baresi, Mara Luquet, Marcus Fucks e Valdênia Paulino

Editoras Cristina Uchôa (cris@revistaviracao.com.br) Juliana Rocha Barroso (juliana@revistaviracao.com.br) Redação Nathalie Vilarrubia e Thiago Rafael Tomaz Secretaria de redação Pilar Oliva Coordenação e revisão Helena Oliveira Silva – Unicef Colaboradores Ana Bispo, Ana Paula Lisboa, Bernardete Toneto, Carol Lemos, Cícera Gianini, Douglas Lima, Douglas Martins, Eder D. Mendes, Ernesto Zaneti, Fernanda Pompeu, Flávia Peret, Gardene Leão de Castro, Gustavo Barreto, Iara Cavalcante, Immaculada Lopez, Isabel Coutinho, Izabel Leão, Ivo Sousa, Jaqueline Fernandes, Joelma Ambrósio, Lentini, Mabel Botelli, Marana Borges, Marcelo Amorim, Márcio Baraldi, Maria Lúcia da Silva, Mariana Franco Ramos, Nanete Neves, Natália Forcat, Nilton Lopes, Novaes, Osny Luz, Paloma Klisys, Pedro Henrique Silva, Rafael Stemberg, Raika Julie Moisés, Renata Souza, Scheilla Gumes, Stela Guedes Caputo, Sérgio Rizzo, Severino Francisco, Taluana Brisa, Tiago Eloy Zaidan, Ubirajara Barbosa, Uiara Leão, Vânia Medeiros e Vanessa Sant’Anna Consultor de Marketing Thomas Steward Projeto Gráfico IDENTITÀ Adriana Toledo Bergamaschi Marta Mendonça de Almeida Fotolito Digital SANT’ANA Birô Impressão Margraf Jornalista Responsável Paulo Pereira Lima – MTB 27.300 Divulgação Equipe Viração E-mail Redação e Assinatura redacao@revistaviracao.com.br assinatura@revistaviracao.com.br PREÇO DA ASSINATURA ANUAL Assinatura Nova R$ 40,00 Renovação R$ 35,00 De colaboração R$ 50,00 Exterior US$ 35,00

mina

• RACISMO NA INTERNET 06 Na ilusão do anonimato, brasileiros usam a internet para propagar o ódio racial • QUILOMBOS 08 Unicef lança pesquisa sobre comunidades negras do Maranhão

Paulo Pereira Lima

• VAI DAR NAMORO 09 Você namoraria um negro ou uma negra? • A COR DO PECADO 10 Novelas reservam cotas aos negros em papéis estereotipados • IMPRENSA NEGRA 11 Mídia inventa o mundo da fantasia racial • O MEU É PIXAIM, E DAÍ? 12 Jovens negros assumem seu cabelo • SAÚDE NEGRA 14 Conheça as doenças que atingem mais os negros • CAMPO DO PRECONCEITO 16 Além da fama, jogadores também devem lidar com preconceito

Juventude brasileira pede basta ao racismo

• LINHA DO TEMPO 18 Acompanhe as conquistas do negro no Brasil • BRASIL-ÁFRICA 20 Afro-brasileiros e africanos discutem ações para combater o racismo em diversas esferas • AÇÕES AFIRMATIVAS 22 Elas criam oportunidades e incentivam o negro do Brasil a substituir o discurso pela atitude • RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS Crianças que praticam candomblé sofrem preconceito na escola • TRABALHO 27 Número de brancos e negros em vagas de emprego é diferente • DIDÁTICOS? 28 Livros e professores provam que para o ensino da história e cultura afro ainda falta muito • AUTO-ESTIMA 32 Reflita sobre a sua, em teste feito exclusivamente para este especial da Vira

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MANDA VÊ ECA

NO ESCURINHO QUE FIGURA!

VIRALÍNGUA TURMA DA VIRA

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Editorial

QUEM SOMOS

de novembro é uma data que, iração é um projeto social de educomunicação, no Brasil, pode ser comemorada sem fins lucrativos, criado em março de 2003 e filiado em dobro. Desde 1695, o País tem fortes à Associação de Apoio a Meninos e Meninas da Região Sé. razões para chamar atenção sobre ela. O assassinato Recebe apoio institucional da Organização das Nações Unidas do líder negro quilombola Zumbi dos Palmares, para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), do Fundo há 311 anos, marcou o dia como uma data especial das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e da Agência de para todo o Brasil refletir sobre os obstáculos que a Notícias dos Direitos da Infância (Andi). Além de produzir discriminação e o preconceito racial ainda impõem à a revista, oferece cursos e oficinas de capacitação em cidadania de quase metade da população brasileira. comunicação popular feita para jovens, por jovens e com No mundo, no dia 20 de novembro, comemorajovens, em escolas, grupos e comunidades em todo o Brasil. se o aniversário da Convenção dos Direitos Para a produção da revista impressa e eletrônica da Criança. Um documento importante ratificado (www.revistaviracao.com.br), contamos com a participação por 192 países, que prima pela sobrevivência, pelo dos conselhos editoriais jovens de 16 capitais, que reúnem desenvolvimento, pela participação e proteção de representantes de escolas públicas e particulares, projetos cada criança e de cada adolescente, com princípio e movimentos sociais. Entre os prêmios conquistados forte e transversal de não-discriminação. nesses três anos e meio, ganhamos o Prêmio de valorização Ela define as obrigações fundamentais dos países de Iniciativas Culturais, da Secretaria de Cultura do Município de respeitar os direitos de cada criança sem de São Paulo, o Prêmio Don Mario Pasini Comunicatore, qualquer distinção. Assim, nada melhor que, em Roma (Itália), o Prêmio Cidadania Mundial, no Brasil, em todo dia 20 de novembro reflitamos concedido pela Comunidade Bahá’í. sobre a situação e a afirmação dos direitos das E mais: no ranking da Andi, a Viração é a primeira nossas crianças e adolescentes negros. entre as revistas voltadas para jovens. Eles são quase 30 milhões de cidadãos. Participe você também desse projeto. Veja abaixo os e-mails. São as principais vítimas da desigualdade social. Nos espaços urbanos, por exemplo, vemos a luta Paulo Pereira Lima de adolescentes e suas famílias contra a violência Diretor da Revista Viração – MTB 27.300 policial. Uma violência que tem vitimado cotidianamente adolescentes negros e moradores das CONTATOS: comunidades populares. São quase dois adolescenRedação Revista Viração tes negros mortos para cada um branco. AdolescenRua Fernando de Albuquerque, 93 – Conj.3 tes negros são abordados e revista dos pela polícia Consolação – 01309-030 – São Paulo – SP três vezes mais que os brancos. Tel.: (11) 3237-4091 e 9440-5228 O UNICEF tem orgulho de celebrar, com a Revista VIRAÇÃO, esta edição especial sobre racismo. Ela é CONHEÇA OS 16 VIRAJOVENS uma oportunidade de conversar com adolescentes e EM CAPITAIS BRASILEIRAS: jovens sobre um tema que ainda enfrenta resistência. • Belo Horizonte (MG) – mg@revistaviracao.com.br Esperamos com esta edição abrir uma conversa franca • Brasília (DF) – df@revistaviracao.com.br que una a defesa dos direitos da Criança à luta negra, • Campo Grande (MS) – ms@revistaviracao.com.br iniciada por Zumbi, de afirmação da identidade e de • Curitiba (PR) – pr@revistaviracao.com.br garantia dos direitos de cada cidadão. • Fortaleza (CE) – ce@revistaviracao.com.br Marie-Pierre Poirrier • Goiânia (GO) – go@revistaviracao.com.br Representante do UNICEF no Brasil • João Pessoa (PB) – pb@revistaviracao.com.br • Maceió (AL) – al@revistaviracao.com.br VIRAÇÃO • Manaus (AM) – am@revistaviracao.com.br é publicada mensalmente em São Paulo (SP) • Natal (RN) – rn@revistaviracao.com.br pelo Projeto Viração da Associação de Apoio a Meninas • Porto Alegre (RS) – rs@revistaviracao.com.br e Meninos da Região Sé de São Paulo, filiada ao Sindicato • Recife (PE) – pe@revistaviracao.com.br das Empresas Proprietárias de Jornais e Revistas • Rio de Janeiro (RJ) – rj@revistaviracao.com.br de São Paulo; CNPJ (MF) 74.121.880/0003-52; • Salvador (BA) – ba@revistaviracao.com.br Inscrição Estadual: 116.773.830.119; • São Luís (MA) – ma@revistaviracao.com.br Inscrição Municipal: 3.308.838-1 • São Paulo (SP) – sp@revistaviracao.com.br

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ATENDIMENTO AO LEITOR Rua Fernando de Albuquerque, 93 – Conj.3 Consolação – 01309-030 – São Paulo – SP Tel./Fax: (11) 3237-4091 e (11) 9440-7866 HORÁRIO DE ATENDIMENTO das 9 às 13h e das 14 às 18h E-MAIL REDAÇÃO E ASSINATURA redacao@revistaviracao.com.br assinatura@revistaviracao.com.br

Apoio Institucional


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MILTON GONÇALVES – ator

Significa ter delicadeza para tratar de um assunto grotesco e muito cuidado para não se confundir, pois quando você se torna artista, parece que o preconceito acaba, mas, na realidade, ele só está aumentando porque perdeu mais um guerreiro. É saber usar a confiança e o orgulho depositados a favor da comunidade.

TONI GARRIDO – cantor e compositor

Heloisa Pires – escritora

fotos DIVULGAÇÃO

THIAGO TOMAZ e PAULO PEREIRA LIMA, da Redação

IMMACULADA LOPEZ, de São Paulo (SP)

ANA PAULA LISBOA, PATRÍCIA SILVA, VANESSA SANT’ANNA, UIARA LEÃO, ANA BISPO, MABEL BOTELLI e RAIKA JULIE MOISÉS, do Rio de Janeiro (RJ)

NILTON LOPES e VÂNIA MEDEIROS, de Salvador (BA)

No meu trabalho, busco a forma do corpo negro se movimentar e se expressar. Quando crio uma coreografia ou dou uma aula de dança, procuro as referências da minha origem. Existe uma dança afrobrasileira, que muita gente ainda não conhece. Nas tradições e manifestações populares presentes no país, é inegável a origem

Álvaro Santos – bailarino e coreógrafo baiano, diretor do Grupo Okun de Cultura Afro-Brasileira, em São Paulo (SP)

Na descoberta de repertórios que são fantásticos. Nasci em Porto Alegre e passei a infância numa rua onde brincava com os filhos de alemães e italianos. Tinha uma amiga holandesa, brigava com os polacos e sempre tinha que evitar passar perto da casa dos cariocas porque todo mundo dizia que eram batuqueiros. Vejam a dimensão do preconceito. Já minha família, de caras lindas bem pretas, se reunia aos domingos debaixo de uma árvore frondosa pra comer churrasco. Vejam a dimensão das tranças culturais. Minha iniciação científica na universidade foi uma pesquisa sobre os candomblés, então, a literatura que produzo sempre traz positividades de personagens negros. É ou não é um jeito de realizar uma inversão cultural ou virada cultural?

na cultura brasileira

O negro

O assunto é:

É sofrer todos os dias. É sentir muitas vezes como um passarinho se sente numa revoada de outros pássaros. Ser um artista negro é buscar todos os dias, todos os momentos, todos os segundos, sua identidade e o significado de ser um artista negro solitário.

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Sandro Teles – músico e coordenador do projeto Escola de Percussão, Canto e Dança Band’Erê do Ilê Ayê

africana de muitas delas. Então, quando a gente procura a negritude, acho que ao mesmo tempo estamos achando a nossa brasilidade.

O homem, desde os primórdios é um ser competitivo e que sempre precisou se afirmar dentro de seu clã. Para o Brasil, um caminho promissor seria investir na formação cidadã das crianças e jovens ao mesmo passo que se investiria num projeto de promoção da “consciência universal” sobre o “diferente”, sobre o “inusitado”. Num projeto de desmitificação dos “padrões de beleza” da indústria dos cosméticos, da moda, da publicidade e afins. A necessidade básica é a educação para a formação dos bons valores humanos que promovam uma transformação social positiva, ainda que a passos curtos! Precisamos aprender a celebrar a diversidade humana, já que a harmonia não vem da harmonia. A harmonia vem da diferença!

Marc Van Loo – dançarino e coordenador do Bombelêla Dance Company

Acredito que é preciso muito tempo pra mudar esse cenário de racismo que existe no Brasil. É um problema histórico. É questão de décadas. Acho que existem coisas que podem amenizar, eliminar a diferença social. A gente luta todo dia para isso e a arte pode ajudar, porque você consegue formar a força que existe dentro dos negros. O trabalho que eu faço com a minha música vai nesse sentido. Acredito que é dentro da arte que a gente pode fazer mudanças, fazer a revolução.

Nega Gizza, rapper e integrante da Central Única das Favelas (CUFA), do Rio de Janeiro (RJ)

Passa pela arte, pela cultura sempre. Mas acredito muito forte também na reparação. Tudo deve estar muito junto, a educação, a reparação e a arte para diminuir, se não excluir de vez, a discriminação racial e o racismo da nossa sociedade. É necessário que todos, brancos e negros conheçam a nossa história e é melhor ainda fazer isso com arte.

Não é só a questão do negro que me aflige. O que me preocupa 24 horas é a questão da injustiça com o ser humano. Na época do sucesso e da repercussão do filme Xica da Silva, saiu uma reportagem na revista Vogue dizendo que a atriz escolhida para representar a Xica da Silva era uma negra feia, porém exótica. Embora eu não seja uma pessoa vaidosa, me perguntava por que eles me expunham de maneira tão agressiva. Hoje, eu vivencio o respeito, o reconhecimento da minha militância e do meu trabalho artístico. A única briga que vou ter que comprar de agora em diante é a questão do salário. Isso é dado estatístico: o homem ganha mais do que a mulher, o homem branco ganha mais do que o homem negro, a mulher branca ganha mais que a mulher negra.

Zezé Motta – atriz e fundadora do Centro Brasileiro de Informação e Documento do Artista Negro (CIDAN)

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um crime Impunidade, não. Racismo na internet causa indignação e até processo judicial

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JULIANA ROCHA BARROSO, da Redação

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Imagens das comunidades da UERJ que se opuseram às demonstrações de intolerância na internet

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racismo pode se infiltrar em qualquer meio. Cenário de crimes cibernéticos, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) é exemplo disso. Luís Felipe Quaresma Corbett, 29 anos, cursa Ciências Sociais na Universidade e desde 2004, quando a comunidade no Orkut da UERJ foi tomada por perfis racistas, ele e um grupo de alunos iniciaram um movimento de repúdio ao racismo e à homofobia. “Tentávamos debater e derrubar os argumentos, mas era muito difícil, pois o moderador da comunidade, na época, apagava todos as nossas mensagens, num claro apoio aos racistas e homofóbicos”, conta. Felipe cita o aluno Eduardo Chueri como um dos grandes estimuladores do racismo na universidade. “Ele participa de diversas comunidades anti-cotas, mas seu enfoque é sempre na difamação e na diminuição dos alunos cotistas, tanto do ponto de vista intelectual quanto moral”, justifica. Felipe conta que algumas comunidades racistas se disfarçam de anti-cotas, como a Contra Cotas, a Entrei Sem Cotas na Faculdade e a Cotas para Analfabetos. Rodrigo Marinho, 20 anos, teve a idéia de criar a comunidade “MODER@DORES-UERJ” como alternativa à que existia. Ele ingressará na Universidade no ano que vem pelo sistema de cotas e foi alvo direto dos agressores. “Pensava que num ambiente universitário, em nenhum momento tais reações e comportamentos ocorreriam. Foi algo que me deixou bastante surpreso”, revela.

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Outro universitário e sua turma são personagens de uma trama ainda mais contundente. Marcelo Valle Silveira Mello, do curso de Letras da Universidade de Brasília (UnB), foi denunciado pelo Ministério Público do Distrito Federal com base na Lei 7.716/89, por crime de racismo no Orkut. É a primeira vez que a Justiça número 88 aparece no apelido de brasileira leva um acusado de racismo ao banco dos réus. muitos racistas na internet, porMas o caso não acaba aí. A Agência Afroétnica de Notícias que é uma alusão a “HH” (o H é a oita(Afropress), única com foco na temática racial e étnica no país, divulgou o nome de Marcelo no fim de 2005 e, desde então, vem va letra do alfabeto). “HH” são as inirecebendo mensagens racistas e neonazistas, que ameaçam inclusiciais de “Hi, Hitler”. ve a integridade pessoal do editor, Dojival Vieira, e sua esposa. O “14” também é comum, porque “Ficamos fora do ar durante quase uma semana. Achamos que faz referência ao dia da aprovação de transferindo para um provedor de uma grande empresa seria uma duas das três “Leis de Nuremberg” garantia de segurança. Foi um engano, continuamos a ser atacados. que tornavam o racismo oficial na Isso para uma agência de notícias é fatal”, conta Dojival. Alemanha governada por Hitler – Marcelo pode pegar de 2 a 5 anos de cadeia para cada delito: 14 de setembro de 1935. Em chats racismo, apologia do ódio racial via internet. A Afropress, por sua vez, e comunidades, usuários utilizam busca mais segurança. Está hospedada no provedor da Rede de Informações do Terceiro Setor (Rede Rits), que tem tido uma postura de aperfeio “14-88” como cumprimento ou çoamento técnico, dificultando cada vez mais os ataques. senha de identificação para atestar Dos 180 milhões de brasileiros, cerca de 30 milhões têm acesso à se o outro usuário é mesmo neointernet. Considerada por muitos como privada e anônima, a rede tem sido nazista. Isso porque há nessas cousada para a disseminação do ódio racial, de gênero e sexual, a prática da munidades alguns anti-nazistas inpornografia infantil e da pedofilia. Desde 2005, um grupo de profissionais filtrados, para denunciar depois. de Direito e Informática se uniu para detectar e combater esses crimes, Esses detalhes foram observados o que ainda não era feito sistematicamente no país. É essa a proposta pela antropóloga paulistana Adriana da SaferNet Brasil, organização pioneira dedicada à defesa e à promoDias, 35 anos, que pesquisa crimes de ção dos Direitos Humanos na Sociedade da Informação. Antes, existia apenas ações isoladas de algumas organizações que eventualmente ódio na internet há quatro anos. Como recebiam denúncias e não sabiam para onde encaminhá-las. trabalho de conclusão do curso de graFormada por seis pessoas, a SaferNet Brasil “rastreia as denúnduação na Universidade de Campinas cias e redige as notícias-crime, que são encaminhadas às auto(Unicamp), ela escreveu Links de Ódio: o ridades”, explica Thiago Tavares Nunes de Oliveira, um dos Racismo, o revisionismo e o neonazismo fundadores e presidente da entidade, que atua na base na Internet, em 2005. Adriana continua a pesdo voluntariado e é mantida pelos próprios fundadores. quisa no mestrado em Antropologia Social na “Já foram produzidas mais de 600 páginas de notíciasUnicamp, agora analisando também as formas de crime apenas neste ano”, explica Thiago. Das 188.553 anti-racismo na internet. denúncias recebidas entre 30 de janeiro de 2006 e 10 de outubro de 2006, 30.221 foram de racismo e neonazismo (16,1%); as demais dizem respeito à pedofilia e outros crimes.

FIQUE POR DENTRO

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tá na mão • SaferNet Brasil www.denunciar.org.br • MPF – DigiDenúncia www.prsp.mpf.gov.br/digidenuncia.htm • Afropress www.afropress.com • Comunidade original da UERJ www.orkut.com/Community.aspx?cmm=23394 • Comunidade criada em resposta www.orkut.com/Community.aspx?cmm=8008347 • Comunidade WEBjustice, QG da Diversidade www.orkut.com/Community.aspx?cmm=730618 • Comunidade Etnografia do Virtual www.orkut.com/Community.aspx?cmm=19030151

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pra ler na net...

Neonazismo, Negacionismo e Extremismo Político. Livro digital, de P. S.Vizentini, disponível em www.derechos.org/ nizkor/brazil/libros/neonazis/ index.html

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A vida no

Em novembro, Unicef lança pesquisa sobre a situação das crianças e dos adolescentes das comunidades rurais do Maranhão. Evasão escolar é um dos principais problemas

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MARCELO AMORIM, do Virajovem São Luís (MA)

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as comunidades de descendentes de antigos quilombos no Estado do Maranhão, alguns dados sobre crianças e adolescentes preocupam, segundo o relatório A situação de Crianças e Adolescentes nos Povos Excluídos – Comunidades AB Remanescentes de Quilombos o NE iv u Arq do Maranhão. O estudo mostra que mais da metade das crianças e adolescentes largam a escola antes mesmo do fim do Ensino Fundamental. E mesmo os que continuam estudando, não sentem estímulo para terminar o Ensino Médio.

Mais da metade das crianças e adolescentes largam as escola antes do final do Ensino Médio O estudo foi encomendado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e realizado entre agosto de 2002 e abril de 2003, nos municípios de ItapecurúMirim (comunidades de Santa Joana, Santa Maria dos Pretos e Morros) e Codó (comunidades de Centro do Expedito, Barro Vermelho e Santo Antonio dos Pretos). Coordenado pelo professor-doutor do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Carlos Benedito Rodrigues da Silva, e por uma equipe de pesquisadores do próprio NEAB e do Centro de Cultura Negra do Maranhão, a pesquisa envolveu os moradores das comunidades negras. “Quanto maior a série escolar, maior é a evasão”, diz o relatório. Em geral, as crianças e adolescentes param de estudar no segundo ano do Ensino Médio. Isso sem contar os que nunca tiveram acesso à escola na região. Uma em cada três crianças de até sete anos

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nunca pisou numa sala de aula. Entre as que têm de 7 a 17 anos, uma em cada oito ficou fora da escola. O caminho para a escola, para essas crianças, é muito difícil. Literalmente. Em geral, as escolas ficam muito longe de suas casas e, lembre-se, no interior do Maranhão, não há ruas ou, no caso delas, estradas asfaltadas para facilitar a longa caminhada. Para aqueles persistentes que chegam à escola, as coisas parecem não ajudar: os conteúdos não levam em conta a cultura dessas crianças. Os professores, pouco preparados, às vezes nem têm condições mínimas de dar aula. Muitas classes são “multiseriadas”: um único professor dá aula para turmas de diferentes séries ao mesmo tempo, misturadas numa mesma sala. Ou seja, o “nível de aprendizado é muito baixo”, denuncia o relatório do Unicef. Além disso, a necessidade de trabalho B EA influi muito para os adolescentes abanN o uiv Arq donarem a escola. “Muitas crianças e adolescentes, mesmo freqüentando a escola, precisam trabalhar nas roças para ajudar aos pais, limitando ainda mais suas possibilidades de educação”, observa Carlos Benedito sobre a evasão escolar. O estudo analisa, ainda, fatores como a baixa resistência a doenças, provavelmente devido à falta de estrutura generalizada para a moradia na região. Setenta por cento dos donos de residências declaram utilizar, como banheiro, “o mato”. Para Carlos Benedito, a situação em que se encontram esses jovens é resultado da falta de prioridade do governo com aquelas populações historicamente discriminadas. “Passados mais de cem anos da abolição da escravidão, os negros brasileiros estão longe de ver seus direitos reconhecidos.”

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tá na mão Saiba mais sobre os antigos quilombos na pág. 31

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Com orgulho e sem preconceito PILAR OLIVA, da Redação

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ocê namoraria um negro ou uma negra? Para muitos jovens, essa pergunta não traz nenhum conflito, como para Isabel e Ernesto. Mas não se pode fechar os olhos para o preconceito

que existe em parte da sociedade. Tanto que o tema já motivou escritores, cineastas e outros artistas em suas obras. Isabel é negra. Ernesto é branco. O namoro já dura mais de dois anos...

Ele

Ela

Meu nome é Ernesto Zaneti, tenho 16 anos. Sou de São Paulo (SP), tenho 3 irmãos (2 mulheres e um homem). Estou cursando o 2o colegial na Escola Capitão Pedro Monteiro do Amaral, na zona norte da cidade. Namoro uma menina negra há 2 anos e 2 meses. Antes dela, nunca tive nenhuma namorada negra, mas raça nunca me importou. Na minha família já teve pessoas de cor diferente. Entre amigos e família nunca teve nenhum preconceito, pelo menos não que eu saiba, mas eu também nunca me importei. As pessoas que estavam e estão a minha volta sempre me aceitaram e acharam normal o namoro. Eu nunca sofri nenhuma situação de preconceito, talvez seja por isso que a raça nunca interferiu no nosso relacionamento, nós vivemos muito bem. Nosso amor é bem maior do que qualquer tipo de preconceito.

Meu nome é Isabel Cristina Pires Coutinho, tenho 15 anos. Nasci na cidade de São Paulo (SP). Tenho 5 irmãs por parte de mãe e 3 adotivos por parte de pai. Estudo na Escola Capitão Pedro Monteiro do Amaral, estou no 1o ano do colegial. Já namorei um cara branco antes do meu namorado Ernesto. Eu me sinto mais atraída por brancos, mas nada contra negros. Na minha família, já teve outros casais de brancos com negros como por exemplo, meus avós maternos. Nunca enfrentei nenhum problema em relação a preconceito por causa do meu relacionamento, mas sei que existem muitos, também nunca enfrentei nenhum problema com a minha família por namorar um branco, nós estamos juntos há 2 anos e 2 meses e nunca tivemos conversas sobre terminar o relacionamento por causa de preconceito. Nós nos amamos muito e, graças a Deus, o preconceito nunca foi um problema para nós.

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ADIVINHE QUEM VEM PARA JANTAR

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A sinopse do filme, de 1967, já diz muito: “Casal de ricos brancos entra em choque quando sua filha Joey anuncia que está noiva de John Prentice, um doutor conceituado, de boa base financeira, apaixonado, porém, negro”.

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A COR DO PECADO

tá na mão

No auge das discussões por ações afirmativas, a Globo lançou em 2004 a novela A Cor do Pecado, em que Taís Araújo, a mocinha, disputava o amor do galã Reynaldo Gianecchini com a vilã Giovana Antonelli. Apesar de colocar em cena nomes que estavam em alta, na época, a novela foi criticada por caricaturar, do “lado do mal”, quem tinha preconceito racial.

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Nas págs. 10 e 11, a Vira traz material especial sobre a mídia e o racismo. Confira! nº 31 · Ano 4 · Revista ViRAÇÃO

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Negados na telinha Em entrevista à Vira, cineasta trata a questão racial nas telenovelas brasileiras e no cinema GUSTAVO BARRETO e RENATA SOUZA, do Virajovem Rio (RJ)

Como você enxerga o racismo na visão do brasileiro? Como tomar consciência desse racismo? – A cultura brasileira, no seu inconsciente, é profundamente racista. No cinema, onde eu trabalho e enfoco mais, a chamada sutileza do racismo brasileiro se apóia no elemento estético. É a questão que permanece e que é a mais difícil de ser atacada porque, no final do século 19, fim da escravidão, no momento em que a elite brasileira decidiu branquear o Brasil, foi criada uma ideologia do branqueamento. Como essa política de branqueamento se dá hoje? – Fundamentalmente nas mídias. Permanece que o modelo europeu é o processo civilizatório mais avançado. Quando você assiste à televisão brasileira ou ao cinema brasileiro, você vai ver muito claramente que o branco é escolhido para representar o modelo de beleza, o mais elegante. Não é à toa que a televisão brasileira resiste a oferecer bons papéis a negros e que, só há dois ou três anos, a Rede Globo conseguiu oferecer um papel de protago-

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utor do livro e do filme A Negação do Brasil, o cineasta Joel Zito de Araújo defende que a história real dos negros e de seu papel ativo nos fatos da História do Brasil são normalmente escondidos na televisão e no cinema.

Telenovelas reproduzem estereótipos e a idéia de que os brancos são os salvadores dos negros

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nista a uma atriz negra pela primeira vez em 50 anos em telenovela. Não é à toa que essa rede tem uma enorme dificuldade de ter núcleos familiares negros nas suas telenovelas. É natural nas novelas que os casais sejam brancos. É a persistência da idéia do branqueamento. Como a telenovela opera com a história em relação aos negros e com a construção dessa visão? – Os elementos que estão presentes nesta história, digamos, “oficial”, contada através da telenovela, típico do horário das seis horas, são montados a partir de alguns arquétipos fundamentais da sociedade brasileira. O mais fundamental deles é o arquétipo da Princesa Isabel, dos brancos como os salvadores dos negros, como está nessa novela das seis atual. Inclusive, isso se transporta para o presente. Se você ver a Regina Duarte na novela Páginas da Vida, na sua relação com o filho negro, ela é a Princesa Isabel. É a reafirmação simbólica através

de uma história dramatúrgica, feita num momento em que você senta na poltrona para relaxar e se divertir. Tem-se a dificuldade de contar a história da Abolição a partir dos heróis negros que a fizeram. Parece que ela foi produto de alguns brancos que estavam antenados com uma Europa e que não aceitavam mais a escravidão, eram bondosos e não aceitavam a exploração dos negros. No entanto, a telenovela não mostra a quantidade de quilombos que existem no Brasil. A nossa ação é para acabar com essa idéia de que no Brasil os brancos nunca foram racistas. Mas eles sempre foram racistas, eles continuam racistas. O fato deles negarem que são racistas não significa que o deixaram de ser.

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Imprensa tem cor: branca Como os meios de comunicação tratam os afro-brasileiros

TALUANA BRISA TEODORO, PILAR OLIVA, BERNARDETE TONETO e DOUGLAS LIMA DOS SANTOS, do Virajovem São Paulo

“A

imprensa é racista no que escreve, fala e exibe.” A constatação, em tom categórico, é de quem entende do assunto: o jornalista Juarez da Silva Xavier, diretor do curso de Comunicação Social da Universidade Cidade de São Paulo, na capital paulista. Juarez sabe o que diz. Um dos poucos doutores negros no Estado – obteve o título pela Universidade de São Paulo (USP) – e representante da União de Negros pela Igualdade (Unegro), ele conhece, na teoria e na prática, o preconceito que mancha a história da imprensa brasileira. “Em um mundo de faz de conta, a mídia das elites nega a existência do racismo e manipula as informações para se perpetuar no poder, ao mesmo tempo em que fecha as portas das redações e agências aos profissionais negros”, diz. Uma redação aberta aos negros é a da revista Raça Brasil, publicada há 10 anos pela Editora Símbolo. Cópia abrasileirada da revista Ebony, dos Estados Unidos, a Raça Brasil tornou-se sucesso de vendagem ao trazer modelos negros na capa e nas reportagens que enfocam principalmente a beleza e o sucesso da população afrodescendente. Raça Brasil nasceu no berço da publicidade, depois da divulgação dos resultados da pesquisa

Qual é o pente que te penteia?, realizada em 1997 pela empresa Grottera Comunicação. A amostragem, feita em 22 Estados, revelou que havia um grande mercado consumidor, formado por negros integrantes de 1,7 milhão de famílias, com alto nível de escolaridade (45% de colegial completo e 34% de superior) e renda familiar média pouco acima de 2 mil dólares mensais. “A idéia inicial era fazer uma revista para despertar a auto-estima da comunidade negra”, lembra o editor Fran Oliveira. Reportagens e artigos de comportamento, informação geral e entretenimento, Raça Brasil opta por abordar indiretamente – e nunca na capa – temas como racismo e exclusão social. O editor da publicação define: “A palavra da revista é sucesso”. Nem todo leitor aprova a realidade dourada mostrada por Raça Brasil. “Não gosto do estilo. É uma revista para a classe média”, opina Jean Karlo Oliveira de Souza, 29 anos, de Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo. A avaliação é a mesma feita pela pesquisadora maranhense Marinildes Martins, que trabalha no Consórcio Social da Juventude Quilombola de Alcântara (MA). Ela estudou a representação do negro na mídia. Em sua pesquisa, apresentada no 4o Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, em Salvador, em setembro de 2006, Marinildes mostra que Raça Brasil valoriza a imagem mas não discute o racismo e a discriminação cotidiana. Ou seja, até mesmo na mídia étnica, o Brasil é apresentado como exemplo de democracia racial. Será?

Fotos: Arquivo Viração

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Meu cabelo NILTON LOPES e VÂNIA MEDEIROS, do Virajovem de Salvador (BA), NATHALIE VILARRUBIA, PILAR OLIVA e PAULO PEREIRA LIMA, da Redação

Não importa o estilo de cabelo afro, o que a galera quer é valorizar o natural

bombou!

B

lack power, rastafari, dread lock, trança nagô. Você deve estar se perguntando “o que quer dizer tudo isso?” Calma, são apenas tipos de penteados afro que vêm se tornando populares entre os jovens e adolescentes negros, mas também conquistando os brancos e virando moda nacional. Os baianos Ronald Assis, 18 anos, e Clécia Queiroz, de 17, estão nessa. “Tem três anos que eu uso meu cabelo como dread e trança; agora parti pro black”, diz Ronald, aluno do 2o ano do Ensino Médio do colégio estadual Barros Barreto. Ele começou a usar estilo afro porque viu outros negros na TV usando. “Na adolescência, minha família sempre reprimiu, minha avó dizia que era ridículo. Ridículo por quê? Porque eu assumo que meu cabelo é duro, crespo ou como se queira chamar?”. A parada de Clécia agora são as tranças. “Uso porque acho bonito. Se eu gostasse, alisaria meu cabelo sem nenhum problema, mas acho que não combina. Eu tenho várias colegas que usam tranças e não se consideram negras”, conta ela, que cursa o 2o ano no colégio Manoel Novais.

Thiago, William, Cristiane e Sérgio: cabelo bom, sim senhor!

PRA ENTENDER Pilar Oliva

Black power: usado pelos negros dos Estados Unidos para valorizar a estética negra Dread lock: tranças feita com lã Rastafari: tranças feitas com cera de abelha, usadas por Bob Marley

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Trança nagô: ou trança raiz, é aquela feita rente ao couro cabeludo

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BONECA TRANÇADA Mara começou brincando de fazer tranças nas bonecas quando criança. Depois, passou a trançar a galera de casa, e foi aí que descobriu que amava trabalhar com cabelos. Tanto é que ela realiza desfiles de tranças em seu salão, o Mara Fashion Tranças. “Faço o desfile porque quero mostrar meu trabalho e também para mostrar para a sociedade que não é só o negro que fica bem de tranças ou outro estilo afro.” Concorda Alexandra Abrahão, que tem um salão no centro da capital paulista. “Não é só por que é uma cultura negra que os brancos não podem usar”, diz ela, que atende muitos jovens brancos querendo seguir a moda afro-brasileira. Super conhecida na Cidade de Deus e em outras regiões do Rio de Janeiro, a cabeleireira Nilza Ramos acredita que a onda de valorização do cabelo afro não vai sair nunca de moda. “Essa tendência só vai melhorar a auto-estima dos negros, que estão valorizando seus cabelos naturais”.

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NADA DE BRIGAR COM ELE

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esde os tempos de criança, a jornalista Neusa Baptista Pinto, 31 anos, via-se incomodada com as expressões de preconceito que ouvia na escola: “cabelo ruim, cabelo de bombril, esponja, piaçava”. De personagem de brincadeiras de muito mau gosto à personagem de um livro que leva a refletir sobre a beleza negra a partir do cabelo, é isso a que ela se propõe em Cabelo Ruim?, lançado em setembro deste ano. Nascida em Lençóis Paulista (SP), Neuza mora hoje em Cuiabá (MT) e é integrante do Instituto de Mulheres Negras, em Mato Grosso. Leva o assunto tão a sério que iniciou mestrado no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal da Bahia, sendo que seu projeto de dissertação “trata das representações sociais do cabelo entre mulheres negras”. O que a levou a escrever o livro Cabelo Ruim? A história vem da minha experiência de vida, minha e das pessoas próximas, irmãs, colegas, que enfrentaram ou enfrentam o preconceito em relação ao cabelo crespo. Mas, diferente da historinha do livro, onde as três meninas começam um processo bem legal de aceitação em relação ao cabelo, eu não vivi essa ‘virada’ assim tão cedo. Tinha raiva do meu cabelo até uns dias atrás. O livro serve para mostrar para a criança que pode ser diferente, que seu cabelo não é ruim. Se tivesse tido a oportunidade de ler uma historinha como esta quando era criança, talvez tivesse sido mais feliz. Divulgação

Na periferia de São Paulo, outros jovens também passam a valorizar os cabelos naturais. É o caso de Thyago Silveira, 23 anos, Wiliam Goés, 20, Cristiane Marques, 21, Sérgio Cordeiro de Oliveira, 24, clientes da cabeleireira afro Mara Regina dos Santos conhecida por fazer tranças na zona norte na cidade. “O negro se identificou com esse lado que foi ofuscado pela cultura branca”, protesta Thyago. Ele também conta que quando o negro assume seu cabelo natural, ele se torna único em vários lugares, a começar pela escola. Por outro lado, William diz que há muita rejeição e a galera passa a ser motivo de chacota. Seu irmão, por exemplo, foi tão ridicularizado na escola por deixar o cabelo crescer que teve que cortar.

Qual a experiência mais marcante de racismo que sofreu? – Foram muitas. Uma delas eu lembrei agora. Eu estudava a 5a ou 6a série do Ensino Fundamental e na aula de educação física os alunos estavam jogando bola antes do início dos exercícios. Uma colega de sala virou-se para mim e disse: “Não dá cabeçada na bola, senão vai furar!”.A gargalhada foi geral. Imagine a humilhação, na frente de todos os colegas... O que acha de o estilo black virar moda, assumido também por muitos brancos? – Acho positivo, mas com ressalvas. Embora esteja sendo usado por muitos, até mesmo em programas de TV de grande audiência, como Malhação e Páginas da Vida, moda é moda. Hoje, o fato de virar moda esvazia o conteúdo político do cabelo. O estilo black power começou a ser utilizado no final dos anos 60 pelos negros americanos com um significado claro: o de valorizar a estética negra, combater e denunciar o racismo. Por outro lado, cantores como o Falcão d’O Rappa, Negra Li, Seu Jorge, Sandra de Sá também estão tornando mais comum o black power, o dread locks, as tranças. Isso sim é positivo, pois a postura destes artistas está sempre associada ao orgulho negro, à crítica social, à politização. nº 31 · Ano 4 · Revista ViRAÇÃO

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As veias abertas do racismo Há doenças que atingem mais a população negra, como a anemia falciforme, desconhecida até por agentes de saúde PAULO PEREIRA LIMA, da Redação

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nchaço nas mãos e nos pés, dores, muitas e fortes dores nos ossos. São esses alguns dos sintomas que Iara Cavalcante de Lima, 10 anos, costuma sentir quando tem crises. “O que mais me deixa triste na escola é quando vejo meus colegas correrem, brincarem à vontade, e eu não poder participar”, diz a menina que está na 4a série, adora Português e fazer ioga. Anderson Alves da Silva, 19 anos, sofre há mais tempo. E a intensidade das dores é tanta que só diminui sob os efeitos de morfina. “Minha última internação foi em setembro. Fiquei 16 dias no hospital”, conta ele que está no 3o ano do Ensino Médio e dividido entre prestar vestibular para Ciências da Computação ou Administração. Iara e Anderson sofrem de anemia falciforme, doença hereditária, incurável, que atinge mais a população negra e provoca alterações nos glóbulos vermelhos (ou hemácias) que assumem a forma de foice. Daí o nome falciforme. Essas hemácias defeituosas se agregam, podendo obstruir a artéria, dificultando a circulação do sangue. A doença é pouco conhecida, tanto pela população em geral como pelos profissionais da saúde, fato que contribui para o diagnóstico tardio, tratamento inadequado e alto índice de mortes. Explicam os pesquisadores que uma provável mutação genética ocorrida na África há milhões de anos pode ser a causa desse tipo de anemia. Atualmente, estima-se que a freqüência da anemia falciforme no Brasil seja de um para cada 1.500 habitantes negros. Além dela, o glaucoma e a hipertensão também atingem mais os negros. “Iara teve a doença diagnosticada corretamente só aos 3 anos. Antes os médicos chegaram a dizer que ela sofria de hepatite e outras doenças”, conta a mãe Vanda Bezerra Cavalcante. TODO MUNDO POR FORA “O atendimento nos postos de saúde são terríveis. Os agentes de saúde não estão preparados, desconhecem a doença e não lhe é dada a devida atenção. Isso é racismo, porque a anemia falciforme ataca mais os negros”, protesta Vanda. De racismo também fala Anderson, que se viu chamado até de “viciado” por enfermeiros quando precisou recorrer à morfina. “A gente passa muito constrangimento. E olha que há muitos outros jovens que reclamam da forma como somos tratados nos hospitais”, diz ele, que há mais de um ano trabalha como voluntário na Associação de Anemia Falciforme do Estado de São Paulo. Pioneira no Brasil e mundo, a entidade foi criada em 1997 e reúne hoje mais de 300 famílias de São Paulo e outros Estados, como Minas Gerais, Bahia, Maranhão e Rio Grande do Sul.

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Ilustração de Iara Cavalcante

CARTA À VIRA Atibaia (SP), outubro de 2006

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ou Iara Cavalcante de Lima, tenho talassemia e anemia falciforme e 10 anos de idade. As coisas ficaram mais difíceis quando meu pai morreu, em janeiro desse ano. A 1a crise forte depois disso, foi na casa de minha amiga, mamãe teve que voltar correndo se São Paulo, onde estava trabalhando. Por causa disso mamãe está desempregada, sem emprego fixo. Estou me esforçando para ajudá-la, evitado as crises, mas isso é um pouco inevitável... Sabe, ver as outras crianças jogando futebol, brincando de pega-pega, pulando corda... eu fico com vontade de brincar também... às vezes alguém fica conversando comigo, às vezes fico sozinha. Quando chega o inverno é inevitável ter crises, por causa do frio. Aí falto muito na escola, se não fossem as minhas notas boas eu teria repetido a 3a série por causa das faltas. Em novembro do ano passado, descobri uma necrose no osso do fêmur (desgaste do osso do fêmur), o que é comum nos falciformes. Tive que ficar de muleta e cadeira de rodas até agosto desse ano, mas sempre que dá crise de dor na perna eu volto a usar cadeira de rodas. A maioria dos meus

Segundo a fundadora e enfermeira Berenice Assumpção Kikuchi, “além de tirar da invisibilidade a doença e o doente, a associação também oferece apoio às famílias e trabalha para a criação de políticas públicas”. Como a inclusão da ane-mia falciforme no teste do pezinho (exame realizado durante a primeira semana de vida do bebê para detectar algumas doenças genéticas), coisa que acontece desde 1998, em São Paulo, e em 2001 foi adotado pelo Governo Federal, por força da mobilização promovida pela associação. “O problema é que foi adotado em apenas doze Estados, no Sul e no Sudeste. Faltam as regiões onde há mais negros, como Nordeste, Norte e Centro-Oeste”, reclama Berenice, empreendedora social

colegas sempre me ajudaram quanto a isso, mas também sofri preconceito e rejeição... Mas apesar disso eu me considero muito feliz. Eu gosto de escrever, já até ganhei um concurso de redação da cidade de São Paulo! Adoro teatro, quando eu crescer pretendo ser atriz, se não der certo escritora e se não der certo professora! Também amo ler, meus colegas da escola me chamam de “CDF” (cabeça de ferro, estudioso, que tira notas boas...)! Também gosto de desenhar, estudar, conversar, tenho um milhão de amigos! Adoro brincar com a minha cachorrinha linda, já tive até namorico de ficar juntos, beijar na bochecha e pegar na mão! Todo dia eu agradeço a Deus por ter uma vida assim, poderia ser pior...

da Ashoka, organização que investe em projetos inovadores. “Foram usados mais critérios políticos que técnicos e, mesmo no governo Lula, que fez muito para a população negra, não avançamos nesse aspecto”, avalia. A anemia falciforme não é o único caso de racismo no campo da saúde. Os resultados da pesquisa Saúde da População Negra: Contribuições para a Promoção da Eqüidade, feita pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa) em 2004, demonstram que a expectativa de vida do negro é, em média, de seis a sete anos menor que a do branco. A aids mata três vezes mais negros que brancos. Mulheres afro-descendentes, de 15 a 49 anos, morrem em conseqüência do parto 2,7 vezes mais que as brancas da mesma faixa etária e condição social no Brasil. O economista carioca Marcelo Paixão, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que participou da pesquisa, foi mais além. Com base em dados do Censo 2000 do Instituto Brasileiro Associação de Anemia de Geografia e Estatística (IBGE), Falciforme do Estado ele calculou que a expectativa de vida da população branca estava de São Paulo na casa dos 73,99 anos, ao passo www.aafesp.org.br que a da negra era de 67,87 anos.

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A tática da diversidade

Dirigentes das Federações de Futebol adotam oficialmente a posição contra o racismo. Mas torcedores e costumes denunciam que o preconceito, às vezes, entra em campo

CRISTINA UCHÔA, da Redação

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a Copa do Mundo, os negros eram maioria na seleção brasileira. Dos 22 convocados, 15 eram negros e, entre os 11 titulares na maior parte dos jogos, apenas os atletas Kaká e Lúcio eram brancos. Durante o Mundial, a Federação Internacional de Futebol (Fifa) promoveu, durante dois dias da competição, a campanha Diga Não ao Racismo, aproveitando a audiência diária de bilhões de espectadores ao redor do mundo para a competição. Uma iniciativa que pretende banir o preconceito racial nos estádios e no mundo, faz parte de uma parceria entre a Fifa e o Unicef. A abertura oficial da campanha foi feita durante o jogo Brasil e França, dois dos times

de fora da África com maior números de jogadores negros. Na Europa, as manifestações contra jogadores negros, latino-americanos ou africanos vêm aumentando. Em setembro, torcedores poloneses ficaram descontentes com a presença de dez jogadores brasileiros entre os titulares de um clube local, o Pogon Szczecin, e tentaram ofender os atletas de todos os jeitos. Passaram dos limites, apelando para o preconceito: imitaram macacos e chegaram a atirar bananas em campo para insultar os brasileiros. O clube encaminhou reclamações

para a Federação Polonesa, mas ainda não se tem notícia de nenhuma punição. Prevenindo-se contra manifestações como essas, em função do futebol europeu, quase todo jogador negro brasileiro se adapta às “regras brancas”. Ao chegar à Europa ou antes mesmo de ir, eles normalmente raspam o cabelo, por exemplo. É quase uma exigência, dizem, nos bastidores. Dos brasileiros, há poucas exceções à regra. Ronaldinho, que deve poucas satisfações por ser o melhor do mundo, é uma delas. Outra é Zé Roberto, que conquistou prestígio na Alemanha depois de oito anos jogando nesse país. Indicado para o prêmio de melhor jogador do mundo, ele, faz a cabeça com um penteado tipicamente afro.

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Fotos: Divulgação

NO PÓDIO

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Daiane dos Santos, segundo o Comitê Olímpico Brasileiro, foi a primeira ginasta no mundo a executar o salto duplo twist carpado, considerado de alta dificuldade, o que fez com que ele recebesse o seu nome: Dos Santos. Foi também a primeira atleta negra brasileira a ganhar uma me-dalha de ouro em um mundial Ginástica Revistade ViRAÇÃO · Ano 4 · nOlímpica. º 31

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Os estadunidenses Tommie Smith e John Carlos usaram o destaque de chegar em 1o e 3o lugar na competição olímpica de atletismo no México, em 1968, como símbolo de sua vitória contra o racismo. Integrantes do movimento Panteras Negras, eles levantaram o punho ao receberem suas medalhas, durante os momentos destinados às fotos oficiais da premiação.

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Ronaldinho gaúcho foi eleito duas vezes o melhor jogador do mundo e chegou a ser comparado com Pelé, calando a boca de críticos com um futebol que une talento nativo e disciplina tática com muito treinamento.

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DE OLHO NO

Xô,

Racismo!

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PALOMA KLISYS Luiz Peres Lentini

Saiba sobre seus direitos e deveres, garantidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente

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desejo de domínio, controle e opressão que toda criança e adolescente têm a: gerou absurdos históricos como a escravidão, “participar da vida familiar e comunitária, o holocausto, o apartheid, além de grupos de sem discriminação” (Art16). Também vale destacar extermínio especializados em promover genocídios a Lei 9.459, que complementou a Lei 7.716, definindo e aniquilar pessoas, baseados na falsa crença de que punições para crimes de racismo. Se em alguma situaexistem raças superiores e inferiores de seres humanos, ção você se sentir coagido ou desrespeitado lembre-se: não é coisa do milênio passado. Em plena manhã de acordo com a legislação, recusar ou impedir acesso do século 21, a intolerância e a dificuldade de lidar com a estabelecimento comercial, negando-se a servir, diferenças constituem grandes desafios para a construatender ou receber cliente ou comprador; recusar, ção de uma cultura de paz. Apesar de muitos progressos negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em conquistados pela militância dos participantes do estabelecimento de ensino público ou privado de qualMovimento Negro, do Movimento GLBT, do Movimento quer grau; impedir o acesso ou recusar atendimento em de Mulheres e de outros grupos historicamente discrimirestaurantes, bares, confeitarias, ou locais semelhantes nados, seria hipócrita afirmar que o Brasil é um país abertos ao público; impedir o acesso às entradas sociais onde o racismo não existe. Existe, é crime, se revela em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou em situações cotidianas, é um comportamento que pode escada de acesso aos mesmos; impedir o acesso ou uso ser extremamente sutil e violento e deve ser combatido. de transportes públicos, como aviões, navios barcas, Existe uma série de mecanismos legais, nacionais barcos, ônibus, trens, metrô ou qualquer outro meio e internacionais, que podem ser instrumentos úteis de transporte concedido, por motivos de raça, cor nessa batalha. A Declaração Universal dos Direitos ou crença – são crimes e você não precisa ficar calado. Humanos defende que todos os seres humanos podem invocar os direitos e as Paloma é escritora, autora de Drogas: liberdades: “sem distinção alguma Qual é o barato e Do Avesso ao Direito de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação”. • No site YouTube (www.youtube.com), você pode encontrar O Estatuto da Criança e do vídeos feitos por pessoas comuns que falam sobre esse assunto. Adolescente reafirma o conteúdo Confira alguns bem bacanas nos links abaixo: da Declaração e garante o direito www.youtube.com/watch?v=sLrWjhvCoW8 à integridade e o direito à liberdade www.youtube.com/watch?v=eSZAwgYL9TY&mode=related&search= que, compreendem o direito que

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www.youtube.com/watch?v=I45gi2_NQpE nº 31 · Ano 4 · Revista ViRAÇÃO

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Tempos século 17

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Lei Áurea Cedendo a pressões de abolicionistas e de industriais, que defendiam cada vez mais o uso de trabalhadores assalariados (que pudessem também pagar pelas mercadorias que queriam vender), a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea (1888), que proibia oficialmente a prática da escravidão no Brasil.

Reprodução

Rotas de tráfico Apesar de muita gente ensinar que “os escravos vieram para o Brasil no início da colonização”, é importante lembrar que o século 16 marcou apenas o início da prática de trazer negros para trabalho forçado no Brasil. O tráfico foi um negócio bastante lucrativo para mercadores até o século 19.

Zumbi dos Palmares Um dos principais líderes do movimento negro contra a escravidão, Zumbi (16551695) foi um dos negros que não só fugiu de seus “donos”, mas ajudou a organizar a fuga de muitos outros escravos, fazendo do Fernanda Sucupira Quilombo dos Palmares uma espécie de quartel-general da luta de resistência contra a escravidão, ajudando também a proteger e criar uma comunidade com qualidade de vida para os foragidos das propriedades brancas. Reprodução

Início do Tráfico de Escravos para o Brasil “Ele era arrastado pelo pombeiro – mercador africano de escravos – para a praia, onde seria resgatado em troca de tabaco, aguardente e bugigangas. Metido no navio, era deitado no meio de outros cem, para ocupar, por meios e meio, o exíguo espaço do seu tamanho, mal comendo, mal cagando ali mesmo, no meio da fedentina mais hedionda.”

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Lei do Sexagenário Espertos, os senhores de engenho registravam seus escravos como se tivessem nascido bem antes de 1871, quando veio a Lei do Ventre Livre. Viam-se nessa época muitos escravos jovens registrados como se tivessem 50, 60 anos de idade. Para combater essa fraude, os defensores do abolicionismo conseguiram aprovar mais uma lei, a do Sexagenário (1885), que, desta vez, beneficiava com a liberdade os escravos mais velhos, acima de 60 ou 65 anos, dependendo do caso. Negros com mais de 60 anos mesmo eram poucos, pois a expectativa de vida dos escravos era baixa – em torno de 30, no máximo 40 anos.

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século 20 Movimento Negro Unificado Militantes do movimento negro, exilados do Brasil pelo envolvimento com outros movimentos contra a ditadura militar nos anos 70, voltam ao país depois da Anistia e se unem para formar o Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978.

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Foca Lisbo

Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial No mundo, mais que no Brasil, cresciam os movimentos pela dignidade do negro. O problema foi levado à Organização das Nações Unidas (ONU), que registrou seu compromisso em promover a eliminação de todas as formas de discriminação, por meio da assinatura de uma Convenção Internacional, em 1966. Jesus Carlos

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Dia da Consciência Negra Movimentos negros brasileiros conseguem a criação do Dia da Consciência Negra, em 1971. Após muita discussão, os grupos definiram a data comemorativa no dia 20 de novembro, que marca a morte do líder quilombola Zumbi dos Palmares, contrariando expectativas de definir o dia 13 de maio, que celebra a Lei Áurea.

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Lei de Cotas Começa a ser discutido no Congresso Nacional o projeto de lei que institui cotas étnicas para o acesso às universidades brasileiras, em 1999. A sociedade se envolve num discurso esquentado sobre o assunto.


resistência Movimentos Quilombolas Assim como o tráfico de escravos, o movimento de resistência e a nãoaceitação da condição de mercadoria foi uma cultura que também durou séculos. Costuma-se falar apenas na época do Quilombo dos Palmares, no século 17, mas a prática de fugir para os quilombos se estendeu até os últimos anos e mesmo depois da abolição da escravatura no país. Por isso existem, hoje, 2.228 comunidades quilombolas no país, de acordo com o mais recente levantamento, divulgado em maio de 2005 pela Universidade de Brasília.

Lei do Ventre Livre Com a pressão dos abolicionistas, o governo concedeu, pela aprovação da Lei do Ventre Livre, em 1871, a condição de livre aos negros nascidos a partir de então. Mesmo assim, o dono da mãe do bebê Reprodução ainda podia conseguir que a criança ficasse sob seu domínio até os 21 anos de idade. Os senhores de escravos, que já se preocupavam pouco com as condições de saúde dos negros, passaram a nem cuidar das condições dos partos das negras – a mortalidade infantil entre os negros chegou a 50% nessa época.

Farroupilha Os gaúchos foram pioneiros na prática de chamar negros para compor seu grupo de luta, nas batalhas da Revolução Farroupilha (1836-1844). Os “lanceiros negros” que atuaram com o Exército manejando lanças (os brancos não lhes davam armas de fogo na mão). Ganharam sua liberdade depois das lutas, quase meio século antes da abolição da escravatura.

Reprodução

século 19

Lei Eusébio de Queiroz O movimento abolicionista negociou e conseguiu pelo menos acabar com a vinda de mais escravos negros para o Brasil, com a Lei Eusébio de Queiroz, de 1850. Lei de Terras Preparando-se para as mudanças que viriam, o governo e a elite se prepararam para não ter que dividir as terras do país: aprovaram a Lei de Terras (Lei 601/1850), que só permitia que alguém se apropriasse de qualquer terreno mediante registro regular. Isso prejudicou as camadas populares e os negros libertados que, dali para frente, mesmo que não fossem dependentes de algum fazendeiro, não conseguiriam tomar posse de seu próprio pedaço de terra.

Reprodução

Guerra do Paraguai Com pouco contingente no Exército, o Brasil convocou negros a lutarem pelas Forças Armadas oficiais na Guerra do Paraguai (1864-1870), mediante promessa de alforria (carta de libertação). Cerca de 90 mil negros morreram em batalha; os outros voltaram e começaram a se instalar na periferia do Rio de Janeiro.

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Fernanda Sucupira

História da África na Escola Congresso Nacional aprova a Lei 10639/2003 que altera o conteúdo programático nas escolas, exigindo a inclusão de elementos da cultura afro e da história da África e dos afrodescendentes nos assuntos tratados em sala-de-aula.

século 21

Criação da SEPPIR Por meio da Lei 10678/ 2003, o governo federal cria a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), órgão especial do governo, equiparada à Secretaria de Direitos Humanos, para cuidar de diminuir as discriminações.

Agência Brasil

Estatuto da Igualdade Racial Assim como existe o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso, parlamentares vêem necessidade de criar um Estatuto da Igualdade Racial e o apresentam no Congresso Nacional, como Projeto de Lei 3198/2000. O texto prevê medidas de proteção a grupos étnicos considerados vulneráveis.

Foca Lisboa

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Demarcação de Terras Quilombolas Por meio do Decreto 4887/ 2003, descendentes de povos quilombolas conseguem o direito de Fernanda Sucupira viverem nas terras que ocupam por tradição. As terras começam a ser identificadas e demarcadas, assim como é feito com terras indígenas – ou seja, não sem muita briga, mesmo que a lei garanta o direito a um pedaço de terra.

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Cecilia Bastos

Brasil de frente pra África S

eparados pelo oceano Atlântico, mas unidos pelo trágico passado da escravidão, afro-brasileiros e africanos estão cada vez mais próximos e buscam discutir ações concretas para combater o racismo em diversas esferas. É o que estão conseguindo mostrar iniciativas de governos e organizações sociais. Veja nessas páginas algumas delas, em que crianças, adolescentes e jovens participaram ativamente.

Brasil encontra África Cecilia Bastos

Izabel Leão, de São Paulo (SP)

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erca de 60 alunos de escolas do município de São Paulo realizaram a cobertura on-line do Encontro Internacional África-Brasil – Igualdade racial, um desafio para a mídia, realizado na capital paulista, em outubro de 2005. Eles integram o Projeto Educom.rádio, do Núcleo de Comunicação e Educação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (NCE/USP), que promoveu o evento em parceria com o Serviço Social do Comércio (Sesc) e Instituto Internacional de Jornalismo e Comunicação (IIJC), de Genebra (Suíça). “Na escola, meus colegas me chamam de leite azedo”, contouTiago Premiano, de 10 anos, da Escola Municipal de Ensino Fundamental Ulisses Silveira Guimarães, quando questionado se já havia sofrido discriminação. Ele e seus colegas não apenas conduziram as mesas-redondas, mas também se encarregaram da cobertura das atividades e transmitiram ao vivo através de um site especialmente criado para divulgar as notícias, o www.saoluis.org/africabrasil. O evento constatou e sugeriu que os meios de comunicação não estão preparados para difundir, sem preconceitos e estereótipos, a grande diversidade das culturas no mundo contemporâneo. No encerramento, também traçou um protocolo de intenções, “para aprofundar as relações Brasil-África a partir da sociedade civil. Já existe um esforço feito pelo governo federal, mas a sociedade civil está muito distante do problema”, explicou o professor Ismar de Oliveira Soares, coordenador do NCE/USP. Segundo ele, esta foi a primeira vez que a cobertura jornalística de um evento de repercussão internacional foi feita por jovens e adolescentes, em sua maioria afrodescendentes. Núcleo de Comunicação e Educação (NCE/USP) www.usp.br/nce/africabrasil/paginas/release.htm

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As Américas se encontram Rachel Quintiliano

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conteceu de 26 a 28 de julho de 2006, em Brasília (DF), a Conferência Regional das Américas, que teve como grande objetivo promover um diálogo entre os representantes dos governos e da sociedade civil dos 21 países presentes, com destaque para as experiências e lições aprendidas pós 3a Conferência Mundial Contra o Racismo, realizada em Durban, na África do Sul, em 2001. O evento teve a cobertura jornalística feita pela agência Notícias Contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, projeto promovido pela Fundação Friedrich Ebert e o Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI). Jovens comunicadores produziram e publiRevista 4 · nº 31 caramViRAÇÃO várias· Ano reportagens e entrevistas.

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Durante a cerimônia de abertura, as autoridades ressaltaram a necessidade de avaliar os processos que estão em curso. Para a ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), a Conferência das Américas se constitui em “um importante momento de avaliação e levantamento de desafios a serem enfrentados em todas as esferas de luta contra o racismo”. Doudou Diène, relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre as formas contemporâneas de racismo, apontou o sucesso do Brasil no combate ao racismo como uma condição importante para a transformação de todo o continente.

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Dirce Carrion

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Projeto Olhares Cruzados

Olhares Cruzados: Brasil-Senegal projeto Olhares Cruzados, buscando identificar raízes culturais comuns e promover o conhecimento recíproco entre crianças brasileiras, africanas e de países fruto da diáspora africana, tem viabilizado o intercâmbio de fotografias, cartas, desenhos, vídeos, brinquedos, instrumentos musicais e objetos de arte produzidos por crianças Diáspora: deslodo Brasil, da África e do camento incentivaCaribe em oficinas de imado ou forçado gem e criatividade. O mais recente aconteceu entre crianças e adolescentes do quilombo São Lourenço, em Pernambuco, e de Dalar e Ilha de Gorée, no Senegal. O projeto contou com o patrocínio do Ministério das Relações Exteriores e da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Orientados durante oficinas pelo artista pernambucano Sérgio Ferreira da Silva, as crianças e os adolescentes senegaleses produziram máscaras e fotografias sobre a sua realidade e enviaram para os colegas brasileiros, que, por sua vez, participaram de oficinas de vídeo e foto do cineas-

PRA ENTENDER

tá na mão Projeto Olhares Cruzados www.olharescruzados.org

Diferente de 2001, a conferência deste ano abriu maior espaço para as discussões relacionadas com os povos indígenas, as juventudes, as religiões de origem africana e Cecilia Bastos trouxe também à tona as reivindicações do movimento GLBTT sobre livre orientação sexual e combate à homofobia.

tá na mão Notícias Contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas www.noticiascontraracismo.blogspot.com

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Jovens participam de oficinas e conferências entre Brasil e África

ta senegalês Samba Saar, e de oficinas de brinquedo do artesão senegalês Babacar Dywara. O resultado dessas atividades viraram exposição, que está sendo lançada em Dakar, neste mês de novembro, e um documentário apresentado durante a 2a Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora, realizada em Salvador, em julho deste ano.

África em Salvador O

utro evento que teve a cobertura feita por jovens afro-brasileiros e africanos foi a 2ª Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora, realizada em Salvador (BA), de 12 a 15 de julho de 2006. O encontro foi marcado pelo lançamento da Declaração de Salvador, onde ressalta que “as comunidades de origem africana enfrentam dificuldades de variadas naturezas em seus países e um real encontro da diáspora com suas raízes ancestrais tem papel fundamental na superação dessas dificuldades, podendo os governos e a sociedade civil contribuir para as soluções por meio de uma maior consciência da cultura africana”. Declara ainda que a concretização do chamado “Renascimento Africano” é elemento essencial para que o século 21 inicie uma era em que todos os povos e países tenham acesso à riqueza e à cultura, em pleno respeito da dignidade, dos direitos e dos valores das crianças, mulheres, idosos e homens de todas as etnias e crenças. Durante o evento, comunicadores afro-brasileiros participaram da Ciranda Afro, iniciativa promovida pela Ciranda Internacional da Informação Independente em parceria com diversas entidades, como Agentes de Pastoral Negros do Brasil, Instituto do Negro Padre Batista e Instituto Paulo Freire. A experiência deu certo e o próximo evento a ser coberto será o 6o Fórum Social Mundial, em Nairóbi, no Quênia, em janeiro de 2007.

tá na mão Ciranda Afro www.ciranda.net/spip/rubrique10.html nº 31 · Ano 4 · Revista ViRAÇÃO

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Giorgio D´onofrio

Nas universidades, menos de 5% dos estudantes são negros, segundo IBGE

e u q Por não?! O Brasil assume que há discriminação racial, adota ações afirmativas, e elas já mostram resultados

CICERA GIANINI, DOUGLAS MARTINS, RAFAEL STEMBERG e NANETE NEVES, do Virajovem São Paulo; THIAGO TOMAZ, da Redação

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xemplo de superação, Álvaro Roberto Pires é negro, paulistano, criado pela mãe, empregada doméstica, e o avô, mestre de obras. Nos anos 80, vindo de um frágil ensino público, ele procurou emprego na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, onde conseguiu uma bolsa de estudos em Sociologia. Esforçado, terminou o curso e, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), concluiu o mestrado, seguido do doutorado ainda na PUC. “Por que não?”, era o seu lema. O mesmo que o fez disputar vaga de professor na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Aprovado, há nove anos vive no segundo Estado brasileiro com maior número de negros (80%). Ele começou tarde, mas sua carreira foi meteórica. De professor substituto chegou a diretor do departamento de pós-graduação da UFMA, cargo que ocupa. “Sempre procurei estar preparado para não perder oportunidades”, diz, tornando-se um modelo de postura positiva para outros negros, que procuram fugir de um discurso derrotista e ressentido. Segundo o Artigo 3 do Estatuto da Igualdade Racial (Projeto de Lei em discussão no Congresso): “É dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro,

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Ilustração de Júlio César Clemente Amaro Ilustração de Juliano Souza

independente da etnia, raça ou cor de pele, o direito à participação na comunidade, especialmente nas atividades política, econômica, empresarial, educacional, cultural e esportiva, defendendo sua dignidade e seus valores religiosos e culturais.” Essa é uma tarefa do Estado, e isso é regra mundial. Historicamente, entretanto, a segregação racial incomodou tanta gente que, em 1966, nos Estados Unidos, surgiu o movimento de direitos civis que se espalhou pelo país e, por fim, acabou promovendo mudanças reais. Desde então, políticas de ações afirmativas começaram a ser desenvolvidas por todo planeta, passando a envolver Canadá, África do Sul e Austrália. Porém, 40 anos depois, ainda existe muito a fazer para que, de fato, programas governamentais ou privados, leis e orientações sejam colocados em vigor na sociedade. No Brasil, medidas concretas só começaram a surgir nos anos 1980, como a criação do Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra, em 1982, em São Paulo. Isso torna a nossa discussão ainda recente. Desde então, tanto aqui como nos Estados Unidos, foram estabelecidas metas de inserção do negro na sociedade.

No Brasil, as cotas são instrumentos de uma política de ação afirmativa no Congresso e nasceram com o Projeto de Lei em 1999 de uma deputada do Maranhão, propondo que as universidades públicas reservassem 50% de suas vagas para os alunos selecionados por prova, tendo como base o Coeficiente de Rendimento (CR). Um projeto substitutivo veio a seguir para melhor definir os critérios. Assim, a luta era para garantir também que a metade das vagas de qualquer estabelecimento superior público fosse destinada aos alunos do Ensino Médio da rede pública e que se declarem negros ou indígenas. Quem abriu a questão foi a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) ao criar, em 1991, o Programa de Políticas da Cor na Educação Brasileira (PPCor), com a intenção de destacar negros no núcleo universitário, até então pouco representativos. Sua principal bandeira é discutir o tema e criar na população a sensibi-

Ilustração de Macister

UMA HISTÓRIA QUE SE IMPÕE

RACISMO?! O que é isso?! Taluana Brisa

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acismo?! Tema que não existe no Brasil, afinal as coisas aqui já estão decididas, pois favela é lugar de “preto”, pobre e bandido. Não é?! Esconder as coisas embaixo do pano é uma característica dos brasileiros, por esse mesmo motivo é que preconceito contra raças é um tema velado no nosso país. Analisando a situação de um outro ângulo, encontram-se fatores que comprovam a dissimulação de preconceito. É só ir às universidades para ver: quantos negros estão lá? E nas periferias, porque a maior parte da população é negra? Isso sem contar os presídios de todo esse país “abençoado”. Depois de tantos fatos, você ainda se deparar com a afirmação: “Eu não sou Preconceituoso!” Pensando bem, talvez isso até seja verdade, pois a história e suas justificativas estão aí para quê? Com todos esses dados, contradição é a palavra que define esse país, com vários povos e tanta mistura, mas que ainda assim prefere ser hipócrita a ponto de negar veementemente a base fundamental para a sua dissimulada democracia. E assim segue-se a vida, presídios lotados de negros suspeitos, periferia afro-descendente ou quase negra submissa a uma política repleta de brancos chiquérrimos e hipócritas, enquanto a filosofia da favela contínua sendo “homem tem que ter uma amante” e “tô feia, mas tô na moda”. Tudo bem, afinal, o som é de “preto, de favelado, mas quando toca ninguém fica parado!” Taluana Brisa, do Virajovem São Paulo (SP)

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Paulo Pereira Lima

lidade de que existe exclusão racial no Brasil. Esse programa produziu uma série de eventos envolvendo a participação de 16 Estados, que levaram o governo a colocar em prática 11 projetos. Em 2003, a UERJ foi pioneira entre as universidades públicas ao incluir cotas para negros no quadro de calouros. Outra opção para estudantes de baixa renda é o Programa Universidade para Todos (ProUni), que atingiu desde sua implantação, em 2004, cerca de 250 mil estudantes. Para ter acesso, o jovem deve ter estudado durante o Ensino Médio em colégio público, comprovar renda familiar inferior a um salário e meio (bolsa integral) e até três salários (bolsa parcial), e prestar o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Do total de vagas, 45% são dirigidas à população afro-descendente. O ProUni quer ampliar o número de estudantes brasileiros no ensino privado, através de verbas do governo que garantem a reserva das vagas nessas instituições, alinhado com o Plano Nacional de Educação (PNE), cuja meta é inserir, até 2011, 30% da população de 18 a 24 anos no ensino superior. Parte dessas bolsas são reservadas para pessoas com deficiência, pardos, indígenas e negros auto-declarados. Mas parte da sociedade, que questiona o potencial dos alunos de escolas públicas, onde o ensino é comprovadamente de baixa qualidade, argumenta que estes jovens não conseguiriam acompanhar o conteúdo das aulas, o que poderia resultar, a curto prazo, no enfraquecimento do ensino superior. Dados levantados pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas comprovaram, contudo, que mais de 90%

Giorgio D´onofrio

Na Universidade Zumbi dos Palmares, em São Paulo, 50% das vagas são para negros

UNIVERSIDADE PARA NEGROS

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fato de estudar em um local onde a maioria é negra não faz com que me sinta diferente. Sou contra as cotas para negros, deveria ter é cota para pobre.” Até ali o assunto divide opiniões. “O preconceito existe e a sociedade tenta camuflar. Sou a favor das cotas, pois, futuramente, veremos no mercado grandes profissionais negros em postos que hoje são ocupados por brancos”, diz a estudante Fernanda da Silva Santos, 27 anos. Já o professor de contabilidades Eduardo Caristo acha que todos têm a mesma capacidade intelectual de ingressar na universidade, porém a desigualdade vem da má distribuição de renda no País, que gera desigualdade e falta de oportunidades. io

ansado de esperar uma decisão concreta do governo sobre a implantação das cotas, o sociólogo José Vicente, 45 anos, resolveu agir por conta própria e, num projeto audacioso, e a exemplo do que já existe nos Estados Unidos, construiu, em 2004, a primeira faculdade onde 50% das vagas são destinadas para pessoas que se declaram negros ou pobres. Hoje, dos 600 alunos matriculados na Universidade Zumbi dos Palmares (Unipalmares), apenas 14% se declaram brancos. Todos os alunos têm direito à bolsa de 50%, desde que tenham uma freqüência mínima de aulas. Dos seus alunos, 87% vêm de escolas públicas, e nem todos ingressaram pelas vantagens aos negros. É o caso de Gilce Maria, 21 anos, do 2o ano, que optou pela faculdade devido ao preço. “Atravesso a cidade para chegar na Luz, mas é o que dá para pagar, já que não consegui entrar em uma universidade pública”, comenta a garota, que se declara branca. “O

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RACISMO ASSUMIDO Até pouco tempo, não se admitia que havia racismo no Brasil. Agora é legítimo admitir que ele ainda se manifesta em variadas situações. Katucha Rodrigues Bento, aluna do 4o ano da Faculdade de Sociologia e Política de São Paulo, pesquisou o assunto para seu trabalho de conclusão de curso intitulado Balada de Preto e Balada de Branco: Manifestações de racismo nas festas de São Paulo. O estudo, que foi apresentado em setembro no 4o Congresso de Pesquisadores Negros, em Salvador (BA), levou 10 meses para ser elaborado e ouviu jovens que freqüentam baladas de brancos e de negros em bairros nobres da capital paulista. Com ele, Katucha chegou a duas constatações: que o negro se apropria de um espaço que considera seu, e nele se sente à vontade e reconhecido pela cor, e que o racismo também existe em ambientes descontraídos como baladas e festas, onde algumas pessoas ainda são discriminadas.

ARCO-ÍRIS DA ESCOLHA

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ranco, preto, pardo? O quesito cor é uma informação tão importante quanto sexo, idade, residência ou nacionalidade. “A partir do diagnóstico da realidade, fica mais fácil definir prioridades, anotar recursos financeiros, humanos e identificar necessidades”, afirma Fernanda Lopes, pesquisadora no Núcleo de Estudos para Prevenção de Aids da USP e coordenadora das ações de saúde do Programa de Combate ao Racismo Institucional, ligado ao governo britânico. Assim que a pergunta foi colocada no censo escolar, em 2005, muitos jovens ficaram perdidos, pois faltou explicação sobre a diferença de algumas expressões como negro, pardo ou preto. Segundo frei David Raimundo dos Santos, os movimentos negros e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) entraram em um acordo. “Toda vez que o IBGE fala de negro, ele está se referindo a preto e pardo. Quando fala de preto é só preto, sem envolvimento de pardos, e quando fala de pardos é só pardos”, explica o frade franciscano, fundador da Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro). Os jovens continuam achando que o quesito cor de alguma forma é preconceito, mais que isso, não sabem nem do que se trata. “Acho errado, não é com a minha raça, minha cor que eles têm que se preocupar, e sim com o que eu tenho a oferecer”, diz o estudante Luiz Renato da Silva Falcão, 15 anos. A medida existe em outros países como Estados Unidos, Venezuela, Colômbia, Peru e Equador. A diferença diz respeito apenas às categorias. Fica a pergunta: é possível a sociedade brasileira se responsabilizar pela desigualdade gerada na história? Se a resposta for positiva, temos que enfrentar a desigualdade. Esse é o raciocínio de Ricardo Henriques, secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), do Ministério da Educação e Cultura (MEC). “Nos últimos quatro anos, criamos vários programas preocupados com a questão do racismo emergencial. Isso nunca aconteceu na história do MEC. Essa ações vão desde a formação dos professores até a produção de material didático prevista na Lei 10.639, que obriga o ensino de África e da cultura afro-brasileira nas escolas.”

Branco (

) Preto (

) Pardo (

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Projeto Olhares Cruzados

dos alunos bolsistas ficaram em condições de aprovação em pelo menos 75% das disciplinas, uma média acima do comum nos cursos superiores. “Estamos vivendo um momento bastante intenso, em que setores ligados a movimentos sociais questionam se é papel de governo colocar em prática as políticas de cotas e estimular as universidades públicas a terem essa diretriz como prioridade. Esse debate é bastante caloroso e, para mim, quem usa esse argumento se coloca na contramão da história, mas também considero que ele reflete bem o que é o Brasil”, diz a ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial para a Igualdade Racial (SEPPIR). Ela vai mais além: “Desde a abolição da escravidão, a população negra ficou à deriva, somando-se à população indígena, e jamais foram incorporadas como cidadãos. Por isso credito essas reações contrárias às cotas como fruto desse pensamento elitizado e europeu, que não considera a realidade brasileira tal como ela é”. Matilde acredita que se nada mudar, as universidades públicas continuarão sendo aproveitadas somente pelos jovens da classe média para cima. “Pobres, negros e indígenas, nunca terão a inserção nas universidades que ajudam a construir.”

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Joyce dos Santos, 13 anos: “Na escola minto pra não ser discriminada”

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Crianças de candomblé são discriminadas na escola

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STELA GUEDES CAPUTO

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icardo Nery hoje tem 18 anos e, aos dois, já exercia a função de convocar os orixás no terreiro no de sua avó, Palmira de Iansã, na Baixada Fluminense, periferia do Rio de Janeiro. Assim como ele, milhares de outras crianças e adolescentes freqüentam os terreiros. Todos possuem pelo menos duas coisas em comum. A primeira é orgulho de pertencer ao candomblé, religião afro-descendente que cultua os orixás (as divindades). A segunda é que quase todos, para não serem discriminados na escola, dizem ser católicos. Ricardo já foi chamado de “filho do Diabo”, por uma professora. A amiga Joyce dos Santos, também do candomblé, aos 13 anos dizia: “Tenho orgulho de minha religião, mas na escola minto pra não ser discriminada pelos colegas e professores. Na rua já me apontaram dizendo: ‘macumba é coisa de negro!’”. O racismo em nossa sociedade tem muitas faces, e o pior é que elas se naturalizam. O problema da discriminação religiosa sofrida por praticantes do candomblé, incluindo crianças adeptas, é antigo, mas, com certeza, foi agravado no Rio quando, em setembro de 2000, em franco desacordo com a Lei de Diretrizes Básicas (que não prevê o ensino religioso confessional), o governo estadual implantou a Lei 3.459 e estabeleceu o ensino religioso confessional nas escolas públicas. Em janeiro de 2004, por concurso, 500 professores

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foram contratados. Nenhum deles do candomblé. O preconceito está oficializado no currículo. A Coordenação de Ensino Religioso do Rio de Janeiro diz que a meta é que professores católicos ensinem a alunos católicos e professores evangélicos a evangélicos, por isso o ensino é confessional. O que a escola ganha com essa segregação? O Estado do Rio de Janeiro desafia a Constituição Federal que determina um Estado laico, separado das Igrejas. Oficializa a discriminação religiosa e racial porque mesmo que crianças brancas pratiquem candomblé, a religião dos orixás é parte fundamental de culturas afro-descendentes. E, ainda, despreza e sabota o esforço que milhares de educadores e educadoras fazem na busca por uma educação multicultural crítica, que respeite e celebre a diversidade desse País. Se ficarmos calados, ao invés de conseguir reverter o que acontece no Rio, o vexame desse Estado ganhará mais adeptos.

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Stela Guedes Caputo é jornalista, doutora em Educação, há 14 anos pesquisa o cotidiano de crianças que praticam candomblé no Rio de Janeiro e integra o Grupo de Estudos sobre Cotidiano, Educação e Culturas da Pontifícia Universidade Católica do Rio (stelaguedescaputo@hotmail.com)

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“Querem um negro menos negro”

No mercado de trabalho, os negros levam a pior com os critérios de seleção de quem está nos cargos de comando CRISTINA UCHÔA, da Redação

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ão é imaginação nem mania de perseguição. Há uma grande diferença entre o número de brancos e negros ocupando vagas de empregos nos diferentes setores da sociedade. Segundo alguns dados da última Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a porcentagem de negros e pardos entre pessoas que têm hoje alguma ocupação é de 42%, menos da metade do total. Os outros 58% dos profissionais que têm alguma ocupação são brancos. “A ação do movimento negro busca mudar essa situação de disparidade no mercado de trabalho. Mas a sociedade brasileira é racista”, avalia Maria Aparecida da Silva Bento, pesquisadora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), em São Paulo, que promove a conscientização do empresário para a inclusão do negro no mercado de trabalho. Cida, como é conhecida, não fala para simplesmente recriminar essa atitude, mas para alertar que há, no meio empresarial, a presença de um racismo que influi a decisão de quem contrata, e que nem é percebido. “É impressionante como os procedimentos mínimos estão impregnados de racismo. É o que chamamos de racismo institucional. Perpassa todas as regras, mesmo as que nem foram feitas para discriminar”, explica Cida.

Acesso ao emprego tem a ver com acesso à educação O problema apontado pela pesquisadora levanta outra grande discussão: o quanto o acesso ao emprego tem a ver com a educação, e o quanto o negro tem menos acesso à escola. Os dados do IBGE são contundentes: a maioria (54,5%) dos negros e pardos com mais de 10 anos de idade passaram no máximo sete anos estudando, enquanto uma maioria (mais de 61%) dos brancos têm pelo menos oito anos de estudo. Esses dados foram especialmente analisados pelos pesquisadores

Ana Lúcia Sabóia e João Sabóia, no estudo que foi concluído em outubro deste ano Brancos, Pretos e Pardos no Mercado de Trabalho no Brasil – Um Estudo sobre Desigualdades. Mas o problema da capacitação vai ainda além do acesso à educação. De acordo com Cida, no meio empresarial a resistência à inclusão do negro está além da exigência de competência mínima. Exige-se, ainda, um perfil cultural igual ao que a empresa já tem. “É como o que acontece com a mulher: você pega uma empresa masculina que vai começar a incluir mulheres; eles vão contratar a executiva mais masculina, mais impessoal... um homem de saia, porque é o perfil de profissional que eles estão acostumados”, compara Cida. “A mesma coisa acontece com o negro. Ele tem que ser o menos negro possível, tem que ter características ‘brancas’ para se alinhar com o perfil da empresa”. Concluindo: “eles querem um negro o menos negro possível”.

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Se liga! Tem muito mais sobre esse assunto no site www.revistaviracao.com.br Confira!

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A maioria dos livros didáticos são escritos por brancos, dedicam pouco espaço à história dos negros e trazem muitos preconceitos

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MARANA BORGES, de São Paulo (SP)

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paulistana Camila Ferreira, 16 anos, não se lembra muito bem a última vez que ouviu falar sobre a história dos negros na sala de aula. “Deve ser umas duas vezes por ano”, diz. Já a paraibana Isabel da Silva, 13 anos, protesta porque nos livros didáticos “aparecemos sempre como escravos, com figuras depreciativas, tirando nossa verdadeira história de grandes realizações”. Ora, mas a Lei 10.639, de janeiro de 2003, não tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana? Pois é, mas ela esbarra num problema aparentemente simples: os livros didáticos. As duas estudantes não encontram muita – ou quase nenhuma – referência aos negros nos livros que usam na escola. E quando encontram são conteúdos carregados de preconceitos.

NEGRA RAIZ Ensino da História e Cultura da África e dos afro-brasileiros nas escolas é lei desde 2003. Você sabia? Isabel Santos

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ertamente, você já estudou o período colonial, o tráfico negreiro, a história da escravidão no Brasil. Alguma vez, porém, você teve um professor que contou a história da África? Como era o continente africano antes de saquearem seus diamantes e seqüestrarem sua população? Como eles viviam? Quais eram as culturas de seus países? Como essas culturas influenciaram o nosso jeito de pensar, falar, vestir, dançar? Pode ser que você nunca tenha estudado as formas que os negros e negras, africanos ou

nascidos no Brasil, utilizaram para enfrentar a escravidão. Você seria capaz de lembrar o nome de um herói, pintor, poeta ou escritor negro dos séculos passados? A história oficial muitas vezes omitiu ou silenciou, as várias histórias daqueles que foram considerados minorias. Sendo assim, nos livros escolares, por anos, os mais de cinco séculos de presença dos africanos no Brasil foram reduzidos a algumas poucas imagens de negros dançando ou sendo açoitados e a peças de museu.

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Kabenguele Munanga, um dos poucos professores negros da Universidade de São Paulo (USP), questiona: “Já viu algum livro didático mostrar que a África é o berço da humanidade, que a civilização egípcia era negra? A África é simplesmente tida como tribo”. A mesma opinião tem Andréia Lisboa, do Ministério da Educação (MEC): “O negro é visto como escravo. Os livros só falam do período da escravidão, não mostram como foi sua história antes e depois da colonização”. Ficam de fora, por exemplo, os movimentos negros que lutam pela cidadania e pela prática das religiões africanas e afro-brasileiras. Isso tem um impacto negativo também sobre a auto-estima dos alunos afrodescendentes, que não se reconhecem nos livros. Nas escolas públicas, a adoção dos livros acontece assim: o MEC avalia centenas de obras, divulga uma lista daquelas que foram aprovadas, e, a partir daí, as escolas escolhem o que adotar. Após a Lei 10.639, o ministério passou a cobrar que os livros didáticos valorizassem a cultura afro-brasileira. Mas esbarrou em outro problema: grande parte dos autores de livros didáticos desconhece a cultura negra. “Como vão elaborar um livro de qualidade, se nem os próprios autores estão preparados?”, questiona Andréia. As editoras precisariam investir em autores especialistas no assunto e, inclusive, em autores negros. “A ausência de autores negros também influencia o conteúdo. São sempre os brancos que falam sobre a história dos negros.” E o problema não pára por aí. A educação é uma rede, tudo está interligado. Não basta o livro trazer conteúdo de qualidade sobre a cultura afro-brasileira e africana. O professor também precisa conhecer o tema para ensiná-lo aos alunos. O caminho é longo, mas iniciativas em todo Brasil já estão surgindo. Uma delas é o curso gratuito de formação em história e cultura afro-brasileira e africana promovido pelo MEC, que já envolveu mais de 25 mil educadores. Pelo visto, temos muito trabalho pela frente.

Beleza e valores da cultura afro-brasileira ficam de fora dos livros didáticos

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Colaborou Niédja Ribeiro, do Virajovem João Pessoa (PB)

Por que recontar a história? É comum encontrarmos pessoas buscando a origem da sua família a partir do sobrenome. E aí vão encontrando um bisavô italiano, uma tataravó espanhola... Quando os africanos foram escravizados, seus nomes e sobrenomes foram trocados: perderam o nome africano e receberam um nome português ou espanhol. Por isso é tão difícil para os negros de hoje recuperarem sua história individual. É bem difícil para os “Santos”, “Silva”, “Pereira” reencontrarem seus ascendentes. Para garantir o direito de recuperar a memória, construir uma história coletiva e se orgulhar de ser brasileiro, o presidente Lula assinou a Lei 10.639, que tem provocado muitos debates. Alguns professores, que não aprenderam essa história, sentem-

se despreparados para falar do assunto. Portanto, é essencial que as secretarias de Educação incluam esse tema em sua formação e forneçam material para as escolas. Conhecer a própria história é um direito! Conhecer as histórias dos outros é uma oportunidade de saber mais sobre nós e de entender e construir nosso país. Esperamos que essa lei seja um passo nessa direção. Isabel Santos é pedagoga social, empreendedora social da Ashoka e integrante do Conselho Pedagógico da Vira nº 31 · Ano 4 · Revista ViRAÇÃO

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NO ESCURINHO

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SÉRGIO RIZZO, crítico de cinema

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Cineastas, atores e atrizes negros levam o debate à telona

O filme Cidade de Deus (2002) também recebeu críticas por buscar explicar as origens da violência nas favelas, pesando nas tintas e estigmatizando os seus moradores, como se todos estivessem envolvidos com a tragédia do narcotráfico, quando pesquisas apontam que nem mesmo dois por cento de sua juventude são soldados do morro. No entanto, o filme teve o mérito de permitir que muitos dos atores, até então inexperientes e restritos a seus trabalhos com o Grupo artístico local Nós do Morro, dessem início a carreiras promissoras no próprio cinema e na televisão. Lázaro Ramos talvez seja a melhor encarnação das oportunidades oferecidas a atores negros da nova geração. Em Madame Satã (2002), seu primeiro papel de repercussão, ele interpreta um personagem verídico da noite carioca cuja trajetória, cercada de preconceito, permite que se discuta como se constrói o discurso racista no país. Já em O Homem que Copiava (2003) e Meu Tio Matou um Cara (2004), ambientados em Porto Alegre (RS), os personagens de Ramos se inserem em outro cenário, de classe média, onde a presença de negros é tratada de forma natural. Que se torne igualmente natural nas imagens que consumimos diariamente pelo cinema e pela TV.

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m uma sociedade que ainda trata de maneira velada o seu racismo, como se deve proceder diante de um filme de ficção cujos atores são majoritariamente negros? Será que mencionar o fato ou a simples lembrança já caracteriza discriminação, uma vez que ninguém consideraria que a cor branca de personagens constitui informação relevante? O filme em questão, Filhas do Vento, despertou esse gênero de discussão à época de seu lançamento nos cinemas, em 2005, mas antes disso, ao disputar o Festival de Gramado de 2004, já provocava debates sobre o racismo no Brasil (e, mais especificamente, nos meios de comunicação). O júri de Gramado concedeu ao filme uma cesta de prêmios, inclusive para os seis atores principais, mas uma entrevista de seu presidente a um jornal carioca teria sugerido que foi uma decisão baseada no politicamente correto, como se atores negros com carreira brilhantes como Milton Gonçalves, Ruth de Souza e Léa Garcia só pudessem conquistar prêmios se fossem favorecidos. Os premiados ameaçaram devolver seus troféus, mas, no país da pizza, o presidente do júri pediu desculpas, alegou que foi mal interpretado e tudo ficou por isso mesmo. É provável que o diretor de Filhas do Vento, Joel Zito Araújo, imaginasse que esse tipo de incidente pudesse mesmo ocorrer. Araújo antes dirigiu o documentário A Negação do Brasil vencedor do prestigiado Festival É Tudo Verdade de 2001, e escreveu o livro do mesmo nome e tema, lançado no mesmo período, baseados em pesquisa sobre a presença do negro no cinema e na TV, e sobre a representação preconceituosa que se fez dele ao longo da história. O material, livro e filme, já ilustrava a tese com imagens de sentido inquestionável. Em Filhas do Vento, ele narra com poesia, em torno de um pai autoritário (Milton Gonçalves), a saga de uma família mineira. É um drama familiar que não se propõe a discutir o racismo, mas é claro que ele está lá, sobretudo quando apresenta uma atriz de TV (Ruth de Souza) que enfrenta obstáculos por ser negra. Apesar de tudo, os tempos são outros.

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resistência negra

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inte de Novembro é o Dia Nacional da Consciência Negra. Criado para celebrar a data de morte de Zumbi dos Palmares, símbolo de coragem, resistência, dignidade e luta por justiça social, que poderia ser não só para os afrodescendentes, mas também para todo e qualquer cidadão. Esse herói negro representa o despertar da consciência, em primeiro lugar das populações negras, mas também de todos os brasileiros. Os livros didáticos adotados nas escolas de primeiro e segundo grau avançaram muito pouco, quase nada na direção de uma versão oficial e verdadeira sobre a formação histórica da sociedade, e sobre personagens negros como o Zumbi dos Palmares. Estudos indicam que ele nasceu em 1655 no Quilombo de Palmares, sendo descendente de guerreiros angolanos. Com poucos dias de vida, foi aprisionado pela expedição de Brás da Rocha Cardoso, sendo entregue depois a um padre, conhecido como Antônio Melo que o batizou com o nome de Francisco. Aos 15 anos, se rebelou e voltou para o Quilombo de Palmares, adotando o nome Zumbi. Era um guerreiro e um líder nato. Em pouco tempo, assumiu o comando militar do quilombo. No ano de 1678, rompeu um acordo firmado com as autoridades coloniais e liderou um movimento de rebelião contra os portugueses, numa resistência que durou 14 anos. O poder colonial sentiu-se ameaçado tanto pela organização dos negros do quilombo quanto pelo mito de Zumbi dos Palmares. Na época, esse quilombo era envolvido em uma aura de lenda. De fato, Palmares significava para os negros uma estrutura alternativa em relação à sociedade colonial, fundada na produção do açúcar. No Quilombo de Palmares, os negros cultivavam feijão, mandioca, legumes, cana, frutas e batatas. Chegou a se constituir em uma rede de cidades, minada por armadilhas, que tornavam difícil o acesso dos portugueses. Depois de muitas tentativas, o bandeirante paulista Domingos Jorge Velho, contratado pelo governo de Pernambuco, conseguiu vencer Palmares. Zumbi foi capturado e morto, em 20 de novembro

de 1695. O espírito guerreiro de Zumbi permanece vivo na luta por justiça social, dignidade e direitos humanos. Como diz Chico Science, na canção Monólogo ao pé do ouvido: “São demônios os que destroem o poder bravio da humanidade. Viva Zapata, Viva Sandino, Viva Zumbi e Antônio Conselheiro. Todos os Panteras Negras... Eu tenho certeza: eles cantaram um dia”.

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De olho na auto-estima MARIA LÚCIA DA SILVA

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presentamos para você esse esquema abaixo que quer apenas orientar a reflexão sobre a auto-estima. Ter auto-estima elevada ou rebaixada está relacionado às condições materiais, emocionais e também ao sentimento de pertencimento ligado a questões de gênero, raça/etnia, classe social entre outros.

PESSOA COM AUTO-ESTIMA ELEVADA – Conectada consigo e com o mundo, numa perspectiva mais ampla, integral e equilibrada; – Ocupa-se em conhecer-se; saber qual o seu papel no mundo; – Tem consciência de si, de suas capacidades, potencialidades e limitações; – É cuidadosa com seu corpo e está atenta a seus hábitos – Expressa bem os seus sentimentos.

AUTO-ESTIMA

PESSOA COM AUTO-ESTIMA BAIXA

Nível energético: Força que impulsiona o organismo frente à vida, dotando-o de organização e direção para suas funções e processos cognitivos, motores e emocionais.

– Ignora seu potencial – Desconhece suas verdadeiras necessidades, – Ignora suas motivações, crenças, valores; – Fixada no futuro ou no passado; – Dificuldade de viver a experiência presente; – Condutas auto-destrutiva e/ou desvalorizantes; – Dificuldade de expressar sentimentos; – Pouco cuidado consigo; – Pouca confiança em si; – Dificuldade de identificar seus talentos e de conviver com suas dificuldades.

Nível psicológico: capacidade de experimentar a existência, consciência do próprio potencial, capacidade real de amor próprio incondicional e de conquistar objetivos, apesar de limitações.

BASE = FAMÍLIA

PERFIL – Consciente, confiante, responsável, coerente, expressiva, racional, harmônica, autônoma, verdadeira, produtiva, perseverante, flexível.

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PERFIL

– Os pais e/ou responsáveis são atores principais, constituem-se no espelho através do qual olhamos o mundo; moldam nossa forma de ser através de crenças, valores e costumes; definem estratégias para nossa vinculação com o mundo.

– Inconsciente, desconfiada, irresponsável, incoerente, inexpressiva, irracional, dispersa, dependente, inconstante, rígida, tímida, agressiva.

CONTEXTO FAMILIAR

CONTEXTO FAMILIAR

– Regras são claras, havendo disposição para revisão e modificação das mesmas; – Disposição para buscar o que é melhor para todos; – Comunicação aberta; – Permissão para expressão dos sentimentos; – Interação baseada no amor e não no poder; – Acolhimento das emoções de raiva, tristeza, medo etc; – Objetivos familiares permitem um crescimento saudável e a expressão da escolha e vocação.

– Ausência de regras ou regras confusas, contraditórias ou baseadas em estereótipos; – Não se sabe quem estabelece os critérios das obrigações e onde estão baseados; – Os mandatos são arbitrários, caprichosos e cada um atua de forma independente; – Comunicação caótica; – Relações entre os integrantes baseada no poder; – Estabelecimento de vínculos perversos, onde cada um pressiona de uma forma a conseguir atenção e estímulo; – Cria-se uma rede confusa e intrincada; – Não acolhimento dos sentimentos e emoções.

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Mudança, atitude e ousadia jovem

Natália

Forcat

PROPOSTA DE ATIVIDADE Diante do quadro ao lado, que dá uma visão esquemática do que é auto-estima, sugerimos a seguinte atividade: 1. Escreva qual é a imagem que você tem de si 2. Escreva qual a imagem que você acha que sua família (pais responsáveis, irmãos) tem de você. 3. Compare essas duas imagens e, havendo diferenças, cheque. Vá e pergunte a ele/as qual a imagem que têm de você. 4. Leia o quadro referente ao contexto familiar. Identifique se existe algum aspecto na forma como se relacionam que precise ser conversado. Essa pode ser uma oportunidade para abrir diálogo sobre assuntos que eventualmente vocês o não estão habituados a conversar. 5. Faça esse exercício com seus amigos, professores, conhecidos. Enfim... este pode ser um momento para você conhecer e aprender mais coisas sobre você mesmo. 6. Nessas ocasiões, aproveite para perceber se você: – Sente-se confortável ao receber elogios; – Tem abertura para receber críticas e reconhecer erros; – Consegue falar e agir com tranqüilidade e espontaneidade; – Consegue lidar com as sensações Se liga! Tem muito mais de ansiedade e de insegurança sobre esse assunto no site caso apareçam. www.revistaviracao.com.br Confira!

Vá em frente, não perca essa oportunidade. Você vai ver como sairá fortalecido desta experiência. Maria Lúcia da Silva, psicoterapeuta e coordenadora do Instituto AMMA Psique e Negritude, de São Paulo; gráfico baseado no artigo Auto-estima, de Lic. Renny Yagosesky (www.monografias.com/ trabajos16/autoestima/autoestima.shtml)

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ATRÁS DOS PANOS por Fernanda Pompeu

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arlos Drummond de Andrade poetou no alvo ao escrever os versos: “Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra”. Palavras e expressões não nascem em árvores; nascem da cabeça de pessoas e de comunidades de todas as épocas. O que nos interessa aqui é dar uma sapeada em algumas expressões construídas a partir de preconceitos que, como sabemos, são os pais da discriminação. No Brasil, afora a face visível do racismo contra os negros, existem também faces sutis, escorregadias. Entre elas, figuram expressões com cara de ingênuas, mas nada neutras. Por exemplo, por que o mercado ilegal é conhecido como mercado negro? Por que o câmbio paralelo é também chamado de câmbio negro? Por que uma lista de pessoas malquistas é batizada de lista negra? Por que quando as coisas estão difíceis se diz: a “coisa tá preta”? Ou ainda ao se referir a um ato de difamação de alguém se diz “denegrir” a imagem daquela pessoa... Por que uma pessoa de bom coração tem alma branca? Por que a magia negra é do mal? O Dicionário Houaiss registra as origens das palavras branco e negro. Branco significa brilhante, límpido. Em contrapartida, negro é o que tem a pele escura, sombrio, tenebroso. Também é preciso observar a origem e o significado da palavra “mulata” ou “mulato” que vem de mula, animal estéril. Há dezenas, talvez centenas, de palavras e expressões que têm como pano de fundo o preconceito e as ofensas raciais. O que fazer? Precisamos deixar de usar e orientar para que outros também deixem de usar palavras e expressões com origens ou conotações racistas, sexistas, homofóbicas. O que não se usa no dia-a-dia, acaba indo para o museu da língua. Também é certo que, para saber o que usar e o que evitar, é necessário conhecer melhor a história do Brasil e a língua portuguesa. Conhecimentos que, além de utilíssimos, são saborosos. Fernanda Pompeu é escritora (fernandapompeu@gmail.com)

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Roteiro de Eder D. Mendes – EE Profa Zenaide Pereto Ribeiro Rocha – Mococa (SP)

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