Todos os Gêneros 2020: masculinidades

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Memória e Pesquisa | Itaú Cultural ___ Todos os gêneros: mostra de arte e diversidade / organização Itaú Cultural. 7 ed. – São Paulo : Itaú Cultural, 2020. 18 Mb; PDF Exposição realizada no período de 24 de agosto a 30 de agosto de 2020

ISBN 978-65-990418-4-6 1. Gênero. 2. Afetividade. 3. Masculinidade. 4. Identidade. 5. Sexualidade. 6. Exposição de arte – catálogo. I. Instituto Itaú Cultural. II. Título. CDD 306.76

___ Bibliotecário Jonathan de Brito Faria CRB-8/8697 1


TODOS OS GÊNEROS MOSTRA DE ARTE E DIVERSIDADE

7ª edição São Paulo, 2020

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Coordenação editorial Carlos Costa Edição Thiago Rosenberg Conselho editorial Ana de Fátima Sousa, Carlos Gomes, Galiana Brasil, Regina Medeiros e Tiago Ferraz Projeto gráfico Helga Vaz Produção editorial Victória Pimentel Supervisão de revisão Polyana Lima Revisão Rachel Reis (terceirizada) Colaboraram nesta publicação Airan Albino, Ferréz, Lino Arruda, Luiza Fagá, Marcelino Freire, Mia Couto, Miró da Muribeca, Tiago Mussi e Troche 3


SUMÁRIO 5 9 21 27 33 39 45 51 55 63 69

APRESENTAÇÃO DESDE A FRONTEIRA por Luiza Fagá CARNAVAL NÃO SE PULA SOZINHO por Airan Albino A CARTA (ROUBADA) AO PAI por Tiago Mussi UM CORPO EXTRACORPÓREO por Mia Couto UM HOMEM PRA CHAMAR DE MEU por Lino Arruda PATRIARCADO NO MEU CRUCIFIXO por Ferréz AGORA RECOLHO-ME A MIM por Miró da Muribeca A ÚLTIMA FLOR por Marcelino Freire APENAS DESENHOS MUDOS por Troche PROGRAMAÇÃO DA MOSTRA 4


APRESENTAÇÃO

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Uma armadura protege, mas também limita o acesso àquilo que não oferece risco. Evita cortes e perfurações na pele, mas não permite que essa pele prove todo o mundo de sensações que se estende para além do metal frio. Firme. Matéria bruta que simula a forma humana, a armadura é, do elmo à espora, só na aparência e na palavra uma unidade, uma identidade. Em conjunto, as peças da armadura podem ser comparadas aos muito mais complexos grupos de valores que definem como cada pessoa deve, assim se espera, interpretar o seu meio e se adaptar a ele no que diz respeito aos papéis de gênero. Mulher que é mulher não faz isso, homem que é homem não faz aquilo. Menina gosta de boneca e de menino, menino gosta de futebol e de menina. Nesses casos, as peças da armadura podem ir se ajustando tão precocemente aos contornos da pessoa – ou moldando esses contornos com tanta eficiência ou insistência – a ponto de que esta passa a se confundir com aquelas. E o que se vê de fora é algo como o cavaleiro inexistente do romance homônimo de Italo Calvino: uma armadura sem um corpo dentro dela, que não dorme e, portanto, não sonha, que despreza os humores da carne e que, do âmago vazio, só emite uma voz metálica sempre obediente a um apanhado de regras que a precede em tempo e compreensão,

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leis de uma natureza construída. Uma voz que se faz autoritária em nome da autoridade à qual se submete. Todos os Gêneros é uma iniciativa que se propõe a pensar justamente o que não é metal no humano. Anualmente, o programa convida o público para pensar questões como identidade de gênero, sexualidade e afetividade – e para celebrar a diversidade – com base em um tema central. Em 2020, em sua sétima edição, o evento explora a noção de masculinidades: um campo ainda povoado por padrões que em tantos sentidos, além dos já citados, emulam a figura da armadura sem corpo, dos homens de lata sem subjetividade. Os conteúdos apresentados nas páginas a seguir, por sua vez, são fundamentalmente marcados por um caráter subjetivo. Antes de ser textos – ensaios, contos, poemas – e desenhos sobre as masculinidades, são pontos de vista sobre elas. Como as próprias masculinidades, esses lugares de onde elas podem ser interpretadas são potencialmente inesgotáveis. Por isso, os olhares reunidos aqui compõem apenas um trajeto possível. Um trajeto que começa onde a América do Sul toca o Pacífico e segue até onde a África mergulha no Índico. Um trajeto que tem como ponto de partida o ponto de vista de uma mulher – talvez a mais justificável das escolhas, uma vez que o relativamente novo processo de autorreflexão do masculino se deve sobretudo aos movimentos idealizados e realizados pelas mulheres. Além desta publicação, Todos os Gêneros promove – entre 24 e 30 de agosto – uma série de conversas e apresentações artísticas. Por causa da pandemia de covid‑19 e da consequente necessidade de isolamento social, a programação desta edição do evento é toda on‑line, com transmissões pelo site do Itaú Cultural, em itaucultural.org.br. A página também reúne materiais ligados às edições anteriores do programa, focadas em temas como a vida soropositiva e o envelhecimento do corpo LGBTQIA+.

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DESDE A FRONTEIRA por Luiza Fagรก

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Notas de um percurso por terrenos das masculinidades.

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“Um território fronteiriço é um lugar vago e indefinido, criado pelo resíduo emocional de uma linde contra natura [um limite não natural]. Está em estado constante de transição. Seus habitantes são os proibidos e os banidos. Aí vivem os atravessados: os vesgos, os perversos, os queer [...]; em resumo, os que cruzam, que passam por cima ou atravessam os limites do ‘normal’.” (Gloria Anzaldúa, em Borderlands/La Frontera)

La Cocha é uma lagoa que fica sobre o Nudo de los Pastos, um nó de montanhas no norte do continente sul‑americano onde os Andes se ramificam, próximo à costa pacífica colombiana e à fronteira do país com o Equador. Nariño, o distrito ao qual La Cocha pertence, é uma região importante de resistência ao uribismo, regime de extrema direita – e aliado ao paramilitarismo e ao narcotráfico – que, direta ou indiretamente, governa a Colômbia desde o início deste século. Em grande medida, a rebeldia nariña se deve à distância geográfica do território em relação ao centro político do país, o que lhe confere certa independência – e, principalmente, à fortaleza indígena quillasinga, que protege o território.

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Há cerca de um ano visitei com a Luna, minha namorada, esse nó vulcânico de montanhas altíssimas, onde o Rio Amazonas nasce e onde as águas do Pacífico tocam as do Atlântico. Ela, colombiana metade bogotana e metade paisa – de Medelín –, sempre me falava com amor desse território que não era seu por direito de berço, mas por filiação afetiva e política. Fizemos um passeio de bote, eu, ela e um senhor simpático que nos conduzia por aquela geografia fria e fértil que se expande ao redor da Lagoa de La Cocha. Durante todo o caminho, ele se dirigia a mim – para perguntar que trajeto faríamos, contar a história da lagoa, negociar preço e jogar conversa fora. Sempre que isso acontecia, eu imediatamente me virava para a Luna e, com os olhos, pedia a ela que traduzisse o que fora dito, já que o sotaque do marinheiro nariño me era incompreensível. Eu respondia em um espanhol de toada argentina e com resquícios de português, revelando minha total “gringuice” e exigindo, outra vez, que a Luna atuasse de tradutora – naquele contexto, o “argentino” era outro idioma. Mas nosso guia insistia em se comunicar comigo, só comigo. Ainda que mal nos entendêssemos e ainda que quem tivesse tanto as perguntas como as respostas fosse a Luna. Eu era a turista óbvia, duplamente estrangeira; ela, não. Nós nos despedimos. A Luna pagou. Ele me deu o troco.

Eu sou uma mulher lésbica. Tenho cabelo curto e uso camisas largas, mas raramente me confundem com um homem. Talvez vez ou outra, quando me veem de costas ou de longe, possam pensar que sou um menino baixinho ou um adolescente pré‑púbere. Mas a confusão nunca resiste à proximidade ou a um par de palavras. Exceto em Nariño. Lá, pela primeira vez, todos se referiam a mim no masculino. A masculinidade, como conceito, não é um absoluto: ela existe em relação à feminilidade. Talvez esse seja o único 11


consenso entre diversas linhas dos estudos de gênero. Na verdade, a crítica feminista propõe a construção inversa – o feminino é que é construído em oposição ao masculino hegemônico, pretensamente universal. Um pouco como, em sociedades racistas, a branquitude se faz invisível, como se só as pessoas racializadas tivessem cor. Porém, parece impossível pensar a masculinidade fora desse binômio, ainda que a aproximação seja crítica. Simone de Beauvoir disse que “não se nasce mulher, torna‑se”, explicitando o caráter cultural – muitas vezes imposto – do gênero sobre o corpo. Judith Butler, por sua vez, denunciou o falso correlato sexo‑gênero‑sexualidade. Segundo ela, é a cultura hegemônica que nos faz crer que a genitália determina, naturalmente, o gênero e as práticas sexuais. Na verdade, essas três coisas são independentes, e o gênero resiste à categorização – não sem conflito, já que sua instabilidade implode a estrutura do regime patriarcal: se o gênero não é fixo, não pode servir de base para um sistema de dominação. Ter sido identificada como um homem pelo marinheiro nariño significou o apagamento da minha companheira; afinal, ele me tratava com uma cumplicidade que não se estendia a ela. Apesar do incômodo que isso nos gerava, aceitamos a ficção, pois assim nos sentíamos mais seguras: a homossexualidade às vezes é um risco. Eu, então, fui convidada a navegar pela camaradagem macha, a “brodagem”, e sobre aquele pequeno barco vi a oposição homem‑mulher ser construída a partir da identificação com um versus a exclusão da outra.

A Luna e eu nos conhecemos em outra fronteira sul‑americana: Buenos Aires, cidade à beira do Rio da Prata onde incorporei ao meu guarda‑roupas as camisas largas e ao meu espanhol o sotaque porteño – gentilício referente a quem nasce naquele porto. Lá, também, aprendi a ser torta, que literalmente significa 12


“lésbica”, mas que não é o mesmo que ser “sapatão”, que não é igual a ser “caminhoneira”, nem “fancha”, nem “bolacha” etc. No livro Ética Tortillera, Virginia Cano diz que “as classificações com que nos diferenciamos modalizam nosso olho lésbico, quer dizer, nosso modo de ver e habitar este mundo. Nesse sentido, possibilitam experiências, expressões, desejos e matizes. Conformam a possibilidade de nos narrarmos, nomearmos e também de nos fantasiarmos”. De fato, em Buenos Aires, muitos nos fantasiamos. João tem uns olhos pretos que parecem mais novos que o resto do corpo – é como a Teresa do Manuel Bandeira, de quem “os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse”, mas ao contrário. Os olhos do João nascem o tempo todo e denunciam que o ar ranzinza que ele insiste em fingir é só um teatro. O João morava cruzando a rua, e com ele dividi as camisas largas e um cotidiano repleto de alegrias minúsculas no bairro de San Telmo, um dos mais antigos da cidade e com alta concentração de migrantes como nós. O João gostava das festas e eu das prévias, dos “esquentas”; eu gostava de tomar cerveja, ele preferia gin; suas noites quase sempre eram mais longas que as minhas. Enquanto eu aprendia a ser torta, ele aprendia a ser puto (“homem gay” em porteño). A masculinidade, como João a descreve, está em traços como a barba, o jeito de andar, de sentar‑se com as pernas abertas, e também em uma certa brutalidade nas relações – que talvez se traduza nesse ar ranzinza que sinto tão descolado dos seus olhos. João nasceu em São Bento do Sul, município catarinense que por poucos quilômetros de mata e um rio não pertence ao Paraná, e até hoje se enfrenta com esse modelo de “macho” em seu próprio corpo quando volta para lá. Sem querer, engrossa a voz e endurece o vocabulário. Sua homossexualidade já faz tempo não é segredo, mas a homofobia contra os mais “afeminados” é maior. Afinal, não é o mesmo ser “gay” e ser “bixa” Eu tomava cerveja, o João tomava gin e o Mario fernet – um 13


destilado com ervas que se mistura com refrigerante. Paisa como a Luna e vizinho de bairro como o João, quando chegamos a Buenos Aires ele já morava lá havia muitos anos. Já tinha um jeito meio porteño de falar e um tipo de compreensão do território que, acho, só os migrantes conseguem ter – que passa pelo corpo, mas não deixa de ser consciente. O Mario tem um jeito bonito de fumar tabaco, não sei se é porque seus dedos longos têm uma delicadeza firme ao sustentar o cigarro ou se é porque, a cada trago seu, todo o tempo se suspende. Ele fuma enquanto me conta como foi violenta a imposição da masculinidade hegemônica sobre seu corpo e como essa hegemonia foi inventada na “revolucionária” França de meados dos 1700, imbuída do pensamento nacionalista, republicano e burguês de então – foi Rousseau, em Emilio, ou Da Educação, quem atribuiu ao homem o espaço público e à mulher o doméstico, e projetou o novo ideal de cidadão francês. O constante tragar e soltar fumaça confere ao que o Mario diz um ritmo cheio de pausas: “Essa performance da masculinidade é meio uma marca [traga] social de tortura; [solta] no meu caso, por exemplo”. E segue: “a construção da minha masculinidade se deu sobretudo na adolescência. Eu me lembro de me espelhar em gente cool, gente que era mais aceita no meu entorno social. Pegava um pouco de cada uma dessas pessoas para construir minha própria performance, que era uma combinação de expressões faciais, gestos, jeito de se vestir, a voz grave. Era, inclusive, uma energia mais relaxada. Quando penso no privilégio que é ser homem e branco, penso nessa soltura. Acho que, quanto mais solto você é, mais ‘macho’, também. É um grande 14


privilégio sobre o corpo, uma segurança que nem todos os corpos compartilham. E essa tranquilidade se apoia no poder, um poder que o homem branco de classe média tem. Pessoalmente, não acho que eu seja assim tão solto, porque não sinto esse tipo de poder em mim. Não sou heterossexual, então esse poder não me corresponde. E talvez eu nem o queira”.

Também na Argentina entendi o potencial filosófico do pensamento jurídico quando aliado ao ativismo. A Lei de Identidade de Gênero – impulsionada pelo movimento LGBTQIA+ organizado em uma Frente Nacional e assinada em 2012 por Cristina Kirchner – garante às pessoas trans não só o reconhecimento de sua identidade, mas também seu “livre desenvolvimento pessoal” e “trato digno”. Diferentemente do que acontece no Brasil, lá, além da mudança do nome de registro, estão legalizadas as intervenções físicas hormonais e cirúrgicas com base apenas na autopercepção do sujeito – quer dizer, sem a mediação de um psiquiatra: um avanço imenso no caminho da despatologização da transgeneridade. Em 2016, enquanto eu aportava em Buenos Aires, em São Paulo Ierê visitava psiquiatras. Lembro‑me que me contava como, durante as consultas, performava o homem hegemônico – usava roupas mais neutras, teatralizava uma seriedade, uma dureza – para que a palavra médica decidisse sobre sua “disforia de gênero”. E como ria disso. Afinal, nunca se identificou assim. Para ele, ser trans sempre foi mais. Além disso, a identidade não é estática e autodefinir‑se é um processo. Nenhum processo cabe em um diagnóstico. “A minha referência de masculinidade é o meu pai, foi muito bonito como ele chegou – e ainda chega. Com dor ou com alegria, estou mais parecido com ele. E isso não é efeito da testosterona, é mais um processo de internalização, de mimetização. Mas não

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para aí. Ser trans, para mim, também significa uma renegociação constante do que é considerado masculino ou feminino. Chega um momento em que você vai ‘não entendendo’ o que é uma coisa e o que é a outra, e as nomeações vão caindo.” Ir desentendendo; assim no gerúndio. Quando nos vimos pela primeira vez depois do início do tratamento hormonal, reparei em como seu corpo se expandia de um jeito diferente, mais relaxado. Naquele momento, não relacionei essa soltura com o poder de que falou o Mario. Hoje, pergunto para Ierê como interpreta seu processo. “Eu, para exercer a masculinidade, achava que tinha que levantar o peito, endurecer as costas. Me abrir. E, ao mesmo tempo, seguir com força e segurança. A masculinidade cis‑heteronormativa não tem obrigação de agradar; por outro lado, homem não pode errar. Então tem um paradoxo aí. Tem uma coisa preguiçosa nesse relaxamento, uma coisa não cooperativa, tipo: ‘meu espaço já está garantido, então não tenho que olhar para fora’. E tem também uma pressão para que esse espaço não se desestabilize. A masculinidade hegemônica parece não gostar de encontrar aquilo que desconhece, nem o sujeito desconhecido dentro de seu lar – tipo o amigo do filho no café da manhã. Numa casa com traços patriarcais, um convidado é sempre um estranho, está sempre abaixo da família. Os outros são sempre os outros.” Sinto que Ierê fez uma viagem em arco; aproximou‑se do terreno hegemônico da masculinidade e aportou sem ancorar. Voltou para alto‑mar trazendo consigo alguns signos que agora compõem seu vocabulário próprio, desconforme e inconformado. “Esse negócio de ter que dizer em qual ‘sou’ eu me encaixo é um troço chato e difícil! É contraditório, mas foi fazendo a transição que eu percebi o quanto sou mulher. Só que eu gosto dessas roupas, desse corpo. E adoro ter barba. Então eu pergunto: por que não posso reassumir o gênero feminino e manter a barba?”

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A lógica clássica é um dos grandes paradigmas do pensamento ocidental branco. Há três princípios básicos que raramente questionamos, já que, de tão assimilados, costumam ser confundidos com a própria natureza. São os princípios da identidade (A = A, ou: “tudo é idêntico a si mesmo”), da não contradição (“A é B” e “A não é B” são postulados mutuamente exclusivos) e do terceiro excluído (A ou é igual a B ou é diferente de B). Em outras palavras: o que é, é; e, se é, não pode não ser. Além disso, entre o ser e o não ser não há nada. Esses princípios são a base de alguns lugares‑comuns referentes ao gênero: ou se é homem ou se é mulher, não há gradação – e tampouco poderia existir mulher de barba. O pensamento queer discorda. Gloria Anzaldúa nasceu no sul do Texas, em uma cidade que toca o México – o sul do sul do norte. Filha de latinos emigrados, mas cidadã estadunidense, seu território é a fronteira. Poeta, escreveu em espanhol chicano – uma mescla do idioma com o inglês. Intelectual ativista, defendeu a mestiçagem como posicionamento político e as línguas fronteiriças não vernaculares – o próprio espanhol chicano, ou o tex‑mex, por exemplo – como discurso identitário. Uma identidade que não é mais exclusivamente latina nem se conforma em ser estadunidense. Lésbica, reivindicou o termo queer – que, literalmente, significa “estranho”, “desviante” – para se autodefinir. Gloria pensa sobre o gênero como pensa sobre a língua e a geografia: desde um espaço fronteiriço. No livro Borderlands/La Frontera, ela diz: “Há algo emocionante em ser, ao mesmo tempo, macho e fêmea, ter entrada a ambos os mundos. Diferentemente do que afirmam certos dogmas da psiquiatria, as pessoas ‘metade e metade’ não sofrem confusão sobre sua identidade sexual ou sobre seu gênero. Se sofremos, é por uma dualidade absolutamente despótica que assegura que só podemos ser uma coisa ou outra. Afirma que a

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natureza humana é limitada e não pode evoluir a algo melhor. Mas eu, como outras pessoas queer, sou duas pessoas em um corpo, masculino e feminino. Eu sou a encarnação do hieros gamos: a reunião em uma mesma entidade de atributos opostos”.

Nenhuma anedota define um território – muito menos uma fronteira, onde diversas realidades se sobrepõem. O certo é que quando contamos o mundo falamos muito sobre nós mesmos, ainda que sem perceber, e certamente o binarismo – ou é A ou é B – se esconde na minha interpretação das coisas. Além disso, para mim, assim como para o João, o Mario, Ierê, o conceito de masculinidade é inseparável da ideia de poder – e foi isso o que experimentei em La Cocha, naquele barco. Porém, este relato não resume de forma justa uma experiência cheia de nuances, como foi a viagem pelo Nudo de los Pastos. Ainda que todos na região se referissem a mim no masculino, em nenhuma outra situação além daquela no barco isso significou o apagamento da Luna. Talvez, então, possamos pensar no que aconteceu nos Andes de uma maneira mais generosa e menos eurocêntrica. Quiçá, a rebeldia nariña resulte também em uma abordagem mais livre do gênero. E se, simplesmente, não houvesse ali nenhuma busca por coerência entre meu corpo, minha aparência e minha sexualidade? E se, mais que nada, o problema fosse que em espanhol – idioma binário, europeu e herdado a contragosto – faltassem artigos neutros para se referir a mim? Eu, a queer, o ambíguo, o “terceiro excluído” do pensamento clássico; mas, ali naquele território fronteiriço, simplesmente uma forma possível? Ainda que não tenha como sustentá‑la, gosto dessa hipótese, assim como gosto de imaginar uma mulher com barba que escape à iconografia circense.

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Antes de eu morar cruzando a rua do João, de a Cristina Kirchner assinar a Lei de Identidade, de Ierê viajar pelo seu próprio gênero e eu pela minha tortisse, o Thiago já estava. Na verdade, o Thiago sempre esteve. Amigo antigo, dono de um humor áspero e de uma sensibilidade imensa, ele é um homem agridoce. Imagino se, quem sabe, em uma sociedade utópica não patriarcal, o Thiago não seria apenas doce. É como se, por cordialidade, ele sempre guardasse certa distância do mundo. E como se transformasse essa distância em ironia – o humor talvez seja a maior demonstração de afeto socialmente aceita entre homens. Acho – outra vez sem poder nem querer sustentar a hipótese – que o Thiago guarda em si uma infinidade de abraços não dados. Por cordialidade. Em inúmeras mesas de bar falamos sobre sensibilidade e gênero, violência e delicadeza, machismo e amizade. Sobre os limites do toque entre dois amigos. Sobre homens e sobre plantas. “Eu me identifico muito com características da minha mãe – gosto de cuidar da casa, das plantas –, mas acho que isso também integra minha masculinidade, não sinto que seja um conflito, assim como não necessariamente me aproxima de um universo supostamente feminino. Não sei, Lu, talvez eu ainda esteja perto demais de mim mesmo para me ver com distanciamento.” Sinto que sua doçura é inconscientemente dosada à medida da masculinidade. Sinto, também, que, para um homem cis e heterossexual, os contornos que a hegemonia impõe ao próprio corpo quase sempre passam despercebidos. Foi o Thiago quem me provocou a escrever este texto e, desde fora, olhar para o masculino. Eu me questionei sobre qual seria o sentido de eu pôr no papel os contornos da hegemonia – minha posição é disruptiva; como lésbica, recuso‑me a assinar o contrato social do gênero hegemônico. Os imaginários que escolho habitar são os rebeldes e, como Gloria Anzaldúa, me situo sobre a fronteira. E é da fronteira que escrevo. Mas me pareceu um pequeno ato de justiça histórica: as mulheres, as sapas, as bixas, as travestis, xs trans sempre 19


fomos categorizadas e descritas pelo olhar heteronormativo. E, sobretudo, sempre tivemos obrigação de pensar sobre a normatividade. Para nós, os corpos dissidentes, os estudos de gênero não são uma categoria teórica abstrata. Atravessam nosso cotidiano insistentemente; às vezes, é certo, como fonte libertária de prazer, mas quase sempre porque somos violentamente interpeladas. Eu me pergunto, por exemplo, se algum dia Ierê poderá falar sobre seus traços moldados pela testosterona, sua barba feminina, com a mesma leveza com que o Thiago fala de cuidar das plantas. Espero que sim. E também espero que questionar os limites do gênero e reconhecer a riqueza de suas fronteiras deixe de ser um trabalho só dos que não temos escolha. Afinal, estamos todos implicados. Quando falamos de pactos sociais, signos, convenções, cultura, hegemonia, falamos de sujeitos reais. Sujeitos que têm agência e responsabilidade. ___ Luiza Fagá (São Paulo, 1987) é jornalista e cineasta. Dirigiu o documentário Engarrafados e os curtas‑metragens experimentais O Presente É um Animal que Habita o Meu Estômago e Tânato.

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CARNAVAL NÃO SE PULA SOZINHO por Airan Albino __ Nas ruas, passarelas e quadras do Brasil, o Carnaval reúne diferentes falas que contam uma mesma história: a da identidade. No imaginário ligado à festa, as figuras masculinas vão além dos padrões hegemônicos e encontram formas de ser plurais e tornadas possíveis quando o olhar lançado para as pessoas negras é, também ele, negro.

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Rodas de masculinidades são lugares onde histórias são compartilhadas entre homens. Nesses espaços são quebrados vários estereótipos, como os que se enquadram na chamada “caixa do homem” – conceito que, repensado por Tony Porter nos anos 1990, engloba uma série de comportamentos, valores e outros traços supostamente definidores do que é “ser homem”: a hétero e a hipersexualidade, a homotransfobia, a autossuficiência, a agressividade. A partir dessa troca de histórias – por exemplo, a de um filho que vê o pai como um vilão, por causa de sua ausência, mas tenta entendê‑lo ao humanizar sua figura –, paralelos são traçados sobre a experiência do gênero masculino no mundo. A roda de conversa é uma das etapas de um processo de identificação e autoconhecimento. Nela, você se olha através de diferentes discursos, compara‑os com a sua narrativa e cria um pensamento sobre os pontos em comum. Transforma a experiência individual em coletiva. Essa reflexão sobre o seu lugar também pode se dar em outros momentos e contextos. No meu caso, o acesso à subjetividade aconteceu primeiro no Carnaval. Filho de duas pessoas frequentadoras assíduas de quadras de escolas de samba, consigo traçar uma linha temporal com base nos meus carnavais. Porto Alegre, anos 1980, Bambas da Orgia, azul e branco. Meu pai, Adão, era um dos componentes da bateria, e minha mãe, Nilza, gostava 22


de ir aos ensaios da escola. O romance que começou na quadra trouxe ao mundo duas crianças: eu, em 1989, e meu irmão, Zândor, em 1991. Os dois nascidos no mês de dezembro. Na infância, durante ensaios, o reconhecimento de aspectos da corporeidade acontecia enquanto brincávamos pela quadra, correndo de uma ponta a outra. A imaginação e a sensibilidade, minhas e do meu irmão, eram exploradas todas as vezes em que tocavam e cantavam o samba‑enredo – cada repetição trazia uma nova história, pois cada integrante da escola cantava do seu jeito. A religiosidade se apresentava por meio de lendas e mitologias dos orixás. Aprendemos sobre pluralidade olhando grupos heterogêneos na bateria: os sorrisos de quem tocava o tamborim, a velocidade de quem era do repique, a habilidade dos que ficavam com a caixa e a força dos que seguravam um surdo. Na quadra da escola de samba, nós éramos iguais, mesmo sendo plurais. Eu sabia que outros, parecidos comigo, passaram por aquele espaço, havia uma conexão transgeracional naquele lugar. Nilza queria entender o jogo de peso e leveza da roupa de uma baiana. Adão queria liderar as batidas entre os tamborins. Eu queria flertar com minha futura porta‑bandeira, como um mestre‑sala. Zândor queria ter o destaque que a ala dos pandeiros tinha. Nós queríamos envelhecer como os integrantes da velha guarda. Assim eu construí a minha narrativa, guardando essas memórias afetivas e lembrando delas em momentos nem tão felizes. Como jovem negro gaúcho, descobri que meu corpo tem um peso diferente na sociedade, por também frequentar espaços majoritariamente brancos. Na escola particular, entendi que eu não era o padrão, mas, sim, o outro, o exótico – a ponto de ser convidado para tocar pandeiro para outras turmas. Era importante me fortalecer de uma cultura que eu pudesse chamar de minha, porque nesses espaços as histórias compartilhadas tinham a Europa como pano de fundo. A família era italiana, 23


alemã, espanhola, portuguesa ou polonesa. Não tinha resposta melhor do que dizer que eu era parte de uma família carnavalesca.

Mesmo com as proporções continentais do Brasil, é possível traçar paralelos sobre as experiências negras em certas cidades. Entretanto, ser negro é diferente em cada região do país; o contexto em que a pessoa está inserida vai mostrar a ela como é feita a sua leitura. Alguns nordestinos brancos descobrem que são lidos como negros pela sociedade a partir da convivência com sulistas e sudestinos, por exemplo. O ponto em comum entre essas experiências é a surpresa ao ver um semelhante num lugar de destaque, de beleza, de orgulho. Em depoimento para o documentário Candeia, de Luiz Antonio Pilar, Nei Lopes conta: “Lembro que, aos 10 anos de idade, assisti pela primeira vez a uma escola de samba. Eu morava no Irajá, assisti a um desfile da Portela, numa segunda‑feira de Carnaval. [...] No dia seguinte ao desfile principal, as escolas iam reverenciar o comércio de sua localidade. [...] Aquilo foi um impacto tão grande na minha vida, na minha infância, principalmente pelo fato de que os garotos da minha idade que saíam na escola naquela época saíam vestidos de ‘homens de bem’, como se caracterizava naquela época: terno, gravata, chapéu, luvas nas mãos e uma bengalinha embaixo do braço. Quando vi aquilo, disse: ‘eu quero ser isso!’”. Gilberto Gil, por sua vez, narra o seguinte episódio no livro Filhos de Gandhy, de Christian Cravo: “Três rapazes, altos, atléticos e sorridentes, saíam de um daqueles becos cheios de Carnaval. Eu passava por ali na hora e não pude me furtar a observá‑los, tão vibrante e comovente era a cena. Eles estavam vestidos com seus lençóis arriados sobre as cinturas, os turbantes nas cabeças, as contas cruzadas sobre os peitos nus – e que peitos! Pareciam três atletas saídos de um daqueles estádios colossais na Antiga Grécia. Fiquei extasiado e comovido. Era Carnaval na 24


Bahia, 2017. Os Filhos de Gandhy já me comovem desde a infância, mas aquela cena me arremessava para um futuro no tempo ou, quem sabe, fora dele. Aqueles três rapazes eram a encarnação transfigurada de um sonho de menino, agora num planeta Terra redimido pelo encantamento e pela beleza”. Por fim, no livro Na Minha Pele, Lázaro Ramos recorda: “Quando eu tinha entre 8 e 10 anos, o Carnaval por vezes me assustava. Provavelmente porque eu ficava do lado de fora das cordas, no meio da pipoca. Mas também me trazia uma sensação de pertencimento, mesmo quando suas cordas e camarotes me diziam que aquela festa não era tão minha assim. Eu me encontrava na alegria e no entrosamento das pessoas que caminhavam pelas avenidas envoltas em mortalhas e confetes. [...] Aos 12 anos fui levado por meu pai para o Campo Grande, na área central onde os blocos passavam. Lá, entre muito suor, cerveja, beijos e colares do Gandhy, algo penetrou minha pele sem que eu notasse. Tímido, eu não me permitia dançar. [...] Foi nesse dia que ouvi algumas das músicas que me fizeram ter um pouco mais de amor por mim mesmo. O Ilê Aiyê passou e cantou: ‘Me diz que sou ridículo/ Nos teus olhos sou mal visto/ Diz até tenho má índole/ Mas no fundo/ Tu me achas bonito, lindo!/ Ilê Aiyê’”. Hoje, Nei Lopes, Gilberto Gil e Lázaro Ramos são grandes referências culturais brasileiras, para além de sua negritude. Os três também foram crianças que tiveram pessoas‑espelho que os fizeram refletir sobre o seu lugar no mundo. Todos os relatos se passam durante carnavais; são histórias que têm suas características próprias mas, ao mesmo tempo, coexistem – porque aconteceram no momento certo de cada narrativa.

A conversa em roda ajuda a entender a importância de um processo, seja ele qual for. Diferentes falas acabam se cruzando porque contam histórias semelhantes, o que significa que, embora a trajetória de uma pessoa seja única, ela não está sozinha. A 25


descoberta da negritude em um Carnaval: múltiplas pessoas podem compartilhar desse sentimento. Especialmente para pessoas pretas, revisitar as memórias é difícil por causa da dor, mas existe beleza também. Encontrar essa memória afetiva nos ajuda no processo de humanização. Na minha linha do tempo há um episódio de choro de alegria ao ver a Portela desfilar falando de amor, um pedido de paz em meio ao tapete dos Filhos de Gandhy e uma caminhada pelo Curuzu vendo o Ilê Aiyê passar. Tenho a certeza de que não estava sozinho nesses momentos. O Carnaval é uma expressão popular de conhecimento e de encontro com a ancestralidade, é onde se anda para a frente, retornando para si. ___ Airan Albino (Rio Grande do Sul, 1989) é jornalista com atuação nos campos da cultura e das questões de identidade racial. É cofundador do grupo MilTons, que desenvolve ações focadas na reflexão das masculinidades negras.

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A CARTA (ROUBADA) AO PAI por Tiago Mussi __ Como a figura paterna – presente ou ausente, amada ou temida – se faz legado?

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“Aquilo que herdaste de teus pais, conquista‑o para fazê‑lo teu”, diz Fausto, personagem da tragédia homônima de Goethe, em passagem que Freud lembrou ao tratar do tema do legado em Totem e Tabu. Todavia, a herança pode ser recebida não apenas em seu aspecto positivo, mas também no negativo. Assim, posso me identificar com a imagem de meu pai, amando‑o tanto que me torno semelhante a ele, ou, ao contrário, renegá‑la, transformando‑me em outro, ainda que com a marca dele. Ao falar de sua relação com seu pai, Jacques tem que se apoiar na sua memória e sabe que toda lembrança não é apenas deformação, mas também invenção. Os histéricos sofrem de reminiscências, dizia Freud. Jacques diria que os escritores também sofrem do mesmo mal. Sendo, no entanto, psicanalista e escritor, ele sabe que essa dupla filiação não é um revés, mas antes uma vantagem. Não ignora que todo ensaio, desde Montaigne, é um apanhado de ficções do Eu – narrativas que o Eu desfia para recontar a si mesmo o mundo. E todo escritor sabe do caráter verídico da ficção. Jacques não queria falar da relação com seu pai como alguém que faz um ensaio sobre psicanálise. Antes, preferiria a forma livre de um romance, um romance de formação, aquele que 28


acompanha os desenvolvimentos moral e psicológico de um personagem desde a infância até os anos de maturidade. Quem sabe a narrativa ideal se situasse justamente num espaço entre o ensaio e o romance, onde houvesse lugar para elementos tanto autobiográficos quanto ficcionais. Para bem exercer seu ofício de psicanalista, Jacques não deve se desvelar por completo. Assim, optou por um relato autoficcional. Uma narrativa que contém outra narrativa dentro de si – uma mise en abyme, nas palavras do escritor francês André Gide.

Até os 6 anos de idade, Jacques quase nada sabia dos amores de seu pai. Emílio ainda era casado quando começou a se relacionar com Cléo, com quem tivera primeiro Jacques e, agora, sua irmã caçula. Quando soube do nascimento da menina, a primeira mulher, que já se esforçara o bastante para ignorar a existência do filho ilegítimo do marido, não pôde mais tolerar tamanha traição, dando um fim ao casamento. Sem ter para onde ir, Emílio levou a amante que acabara de dar à luz para a casa dela e, a pretexto de cuidar de Cléo, de Jacques e da filha recém‑nascida, não foi embora dali. Jacques não sabe dizer ao certo, mas foi por volta dessa época que lhe adveio a noção de que a meia‑irmã do primeiro casamento de seu pai nascera apenas um mês antes dele, no mesmo ano de 1973. Contudo, os amores de seu pai não terminaram por aí. Mal sua mãe havia parido, seu pai estava em vias de seduzir a melhor amiga dela, com quem viria a ter um rumoroso caso. Jacques se lembra da vez em que a mãe o tirou da cama no meio da noite, colocou o bebê na cadeirinha do banco traseiro do carro, e os três partiram em direção à casa de campo da família, onde Emílio foi surpreendido pela mulher em fúria, uma Medeia prestes a destruir não só o amante, mas também a prole. Ao longo dos anos seguintes, passou pelas mãos cirúrgicas de Emílio uma sucessão de mulheres que sucumbiam ao charme 29


daquele Casanova de província que exercia a sedução como sucedâneo da medicina. Muito atento e sensível ao que se passava ao seu redor, Jacques não deixava de reparar na virilidade e no grande poder de atração que seu pai exercia sobre as mulheres, como também no sofrimento e no imenso desamparo em que sua mãe se via lançada a cada nova infidelidade daquele homem. Assim, escolado nas declinações do narcisismo e do masoquismo desde tenra idade, era natural que ele procurasse controlar o que fora vivido passivamente em relação aos pais, assumindo no futuro um papel ativo no tocante à vivência desprazerosa. Por isso, não foi casual que se encaminhasse à psicanálise, primeiro para se tratar, depois para cuidar dos outros. Ao se reaproximar do sentimento de desprazer, agora como profissional, adquiria domínio sobre ele, o que lhe permitia lidar com a ainda viva impressão de modo mais completo do que se apenas ficasse submetido a ela. Anos mais tarde, cumprindo a quarentena imposta a todo candidato a analista no divã do doutor Roberto Loewenstein, médico com quem fez sua análise de formação, ele compreendeu subitamente que teve a infância roubada. Durante uma sessão, o analista de Jacques, tão vaidoso quanto seu próprio pai, lhe contou sobre um seminário que ensinaria naquele ano e ao qual daria o nome de A Carta Roubada – título tomado de empréstimo a um conto de Edgar Allan Poe. Enquanto o analista versava sobre o complexo de Édipo em Poe, associado a tendências sádicas e necrofílicas, Jacques se dedicava a analisar os próprios sonhos. Na véspera, sonhara que Emílio havia comido todos os seus filhos, salvo ele, assim como o titã Cronos, deus do Tempo, comera os seus. Acordou em pânico. E foi justamente a partir da análise da transferência – processo no curso do qual o analisando transfere para o analista suas atitudes e sentimentos provenientes de outros objetos de amor, como Ida Bauer faz em relação a Freud em O Caso Dora – que Jacques se deu conta dos afetos amorosos e ao mesmo tempo hostis, da ambivalência em relação ao pai durante a infância. Ao 30


contar o sonho a Loewenstein, recebeu uma passagem de A Divina Comédia em que os lânguidos filhos do Conde Ugolino se oferecem ao esfomeado pai como banquete. No decurso da análise, alguns aspectos da transferência – a agressividade latente, o desejo parricida, o medo, a culpa, assim como as identificações e contraidentificações daí resultantes – vão revelar a incidência da figura paterna sobre a sua masculinidade e, em última instância, a dos filhos em geral.

No Édipo, o menino não apenas odeia, mas ama tanto o pai a ponto de se apropriar de uma característica dele para então fazê‑la sua, como uma carta de amor extraviada – diz‑se de uma carta que não foi entregue ou reclamada, que ela sofre: en souffrance, em francês – a que lemos como se ela nos tivesse sido endereçada, aumentando a estima por nós mesmos, na medida em que imaginamos que é à nossa pessoa a quem as palavras se destinam, e não a outra. No percurso que conduz à masculinidade, cuja meta fundamental é se identificar com a figura do pai, o menino assume a virilidade do genitor. Devido ao temor da castração imposta pelo pai, é preferível preservar o falo, a função simbólica representada pelo pênis, renunciando ao amor pela mãe. Assim sendo, torna‑se forte e viril à imagem do pai, virilidade esta que Stephen Dedalus não herdará de Leopold Bloom, seu pai espiritual. Aliás, Ulisses, de James Joyce, era o livro de cabeceira de Jacques. Se, por um lado, as pulsões na infância podem ser revertidas em seu oposto na vida adulta, passando da atividade à passividade, correlatas dos pares sadismo‑masoquismo e voyeurismo‑exibicionismo, por outro, as mesmas pulsões que um dia habitaram a criança podem ter também outros destinos, como o retorno sobre o próprio sujeito – ser atormentado, ser olhado – daquilo que foi suscitado no outro – atormentar, olhar –, o recalque e a sublimação. Se toda arte é uma forma de sublimação,

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ou seja, a modificação de impulsos originalmente sexuais para fins considerados mais elevados, como poderia ser concebida a obsessão do pintor Francis Bacon pela figura do papa (pai?) Inocêncio X senão como a transformação de impulsos destinados na origem ao pai, objeto do amor primeiro? Certamente não é casual a série de retratos a que Bacon se dedicou ao longo da carreira, apropriando‑se da imagem do papa desenhado primeiro por Velázquez, elevando a figura majestática às raias do paroxismo, do sublime espiritual ao profano da matéria. Enfim, mais do que masculino e feminino, talvez devêssemos usar o par ativo e passivo para nos referirmos à concepção da sexualidade, pois nem sempre há correspondência entre atividade e masculinidade, bem como passividade e feminilidade – o que nos leva à questão fundamental da bissexualidade psíquica e de seus avatares. Jacques sonha uma última vez antes de dar sua análise de formação por encerrada. No sonho, que mais parecia uma tela de Bacon, ele era subjugado por seu pai sobre a relva. Prestes a vencê‑lo, Emílio o penetrava. Antes de despertar, ele diz: “Como pôde fazer isso comigo, pai?”. Na próxima sessão, adentra o consultório de Loewenstein e decide interromper sua análise de forma intempestiva, nada mais que uma forma simbólica de matar o pai. Na realidade, ele ignorava que agia como uma criança que, pretendendo se vingar do pai, dava apenas um tiro no pé. Naquele mesmo ano, na universidade onde lecionava, Jacques apresentou um seminário sobre psicanálise chamado A Carta (Roubada) ao Pai, que recebeu maior afluência que o de seu antigo analista. Melhor faria se tivesse escolhido como tema a questão freudiana da análise terminável e interminável. ___ Tiago Mussi (Rio de Janeiro, 1974) é psicanalista e escritor. Publicou o romance Tão Fútil e de Tão Mínima Importância.

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UM CORPO EXTRACORPÓREO por Mia Couto __ Toques podem expressar sentimentos, alertar quem está em perigo, curar ou aliviar dores do corpo e do que parece ir além dele. Apesar disso, ao menos no contexto brasileiro, para muitos homens – cisgêneros e heterossexuais, em especial – o contato físico é quase sinônimo de contato sexual, e o toque é permitido sobretudo em situações de erotismo, quando não de competição ou violência. Mas o corpo de fato vai para além dele, e suas formas de ser, estar e interagir também se relacionam com a fisiologia de um organismo maior, cultural.

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Como todos os países, Moçambique é um território de certezas e enganos. De fato, não existe neste mundo país que não revele e esconda muitos países. A arte de ser nação é a de um costureiro que junta e inventa panos numa única aparência. O meu país não é diferente. O que é seguramente único nele é o mosaico de culturas e de línguas e de religiosidades que mora dentro das suas fronteiras. São mais de 25, todas elas vivas, todas elas fabricando o cotidiano de 30 milhões de moçambicanos. E o que confere especificidade é o tempo recente em que essa diversidade é obrigada a dormir sob uma mesma bandeira. Fez, no dia 25 de junho deste 2020, 45 anos que Moçambique se tornou independente. Nas minhas andanças de biólogo vou circulando por entre essa diversidade de cosmogonias. E vejo, com prazer, como essas outras lógicas resistem a um cosmopolitismo uniformizante. São bem diversas as concepções de corpo, de identidade e de intimidade. São distintas entre Moçambique e o resto do mundo. E são distintas dentro do espaço moçambicano. A covid‑19 evidenciou algumas dessas diferenças. A imposição do distanciamento físico entrou em choque, de fato, com culturas que são profundamente gregárias e corporais. Muitos moçambicanos não vão à praia simplesmente para desfrutarem de um espaço aberto e arejado. Vão à praia para ficarem juntos. Para se verem, falarem, celebrarem a vida. A ida à praia é um ritual de proximidade. Por essa razão, as medidas de restrição da covid‑19 34


tiveram de ser explícitas e extremas: pode‑se passear ao longo das praias, com máscara. Mas é interdito estar na praia. Os rituais de saudação ilustram de forma clara essa corporalidade. Os moçambicanos não apertam as mãos apenas no momento em que se saúdam. Enquanto demora a conversa, as mãos ficam nas mãos do interlocutor. Andar de mãos dadas não é uma prerrogativa das mulheres. Dois homens podem fazê‑lo sem nenhuma inibição. Numa sociedade que é ainda bastante homofóbica, essa intimidade pública é socialmente aceita. Recordo‑me de que há uns anos fui com o meu filho mais velho para um parque de fauna que se localiza numa região muito remota no sul de Moçambique. Encontramos no meio do parque um caçador eremita que nos levou a ver bichos e nos contou histórias de caça. Convidei‑o para que viesse jantar no nosso acampamento. Já era tarde – e ali, no mato, faz‑se tarde assim que termina o jantar –, o meu filho veio anunciar que estava cansado e que se ia retirar. Despedi‑me dele como sempre faço. Essa despedida incomodou o nosso hóspede, que me perguntou se não iríamos partilhar a mesma tenda. Confirmei que sim, e apontei para o pequeno abrigo junto à fogueira. O velho Nguezi advertiu: “nunca diga adeus a quem vai dormir ao seu lado”. Quis saber o porquê. E ele estranhou a minha curiosidade. “Algum de vocês se vai embora?”, perguntou. Naquela altura, repensei algo que fazia mecanicamente todas as noites em minha casa: despedia‑me de quem, afinal, não chegava a sair do meu lado. A advertência de Nguezi podia traduzir uma simples diferença na etiqueta social. Mas era bem mais do que isso. Era evidente que tínhamos modos diferentes de definir a fronteira entre a presença e a ausência. Na cultura daquela região, aquele que adormeceu permanece tão presente como quem está desperto. Quem dorme ao nosso lado mantém‑se

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conosco porque está sonhando. E os sonhos são uma manifestação tão concreta como a consciência. Quando adormecemos ou quando desmaiamos, afirmamos figuradamente que nos “apagamos”. Apagamo‑nos como sucede a uma lâmpada, a um aparelho elétrico. De alguém que está distraído ou desinteressado dizemos que “não está ligado”. Assumimos enfim o nosso parentesco com um dispositivo mecânico, munido de um botão que o liga e desliga. Essa concepção era estranha para o caçador e para todos os que partilham a sua visão do mundo. Para eles, o mundo e o indivíduo são ambos entidades vivas e vivenciais. Não existem em si mesmos. Eles acontecem uns nos outros.

Há ainda algo que deve ser sublinhado neste texto, que é o primado absoluto da oralidade em Moçambique – mesmo nas zonas urbanas a escrita é um universo de minorias. A voz é parte do corpo. Quando conversam as pessoas tocam‑se. O que assegura a verdade do que foi dito é essa intangível presença que se produz no momento. Não é o que fica escrito que prevalece. É a palavra. As pessoas usam o verbo “sentar” para dizer conversar. Alguém anuncia: “vamos sentar”, e sabe‑se que há um convívio para um encontro que se prolonga sempre mais que se pode imaginar. O cotidiano das cidades é mandado pela lei da urgência. O tempo rural é outro, e a diferença começa nos rituais de saudação. Cada uma das pessoas que se visita tem o seu tempo para fazer desfilar uma longa lista de cumprimentos. Quer‑se saber dos parentes, próximos e afastados. Quer‑se saber da chuva, das colheitas, das visitas. E essa demorada encenação acontece enquanto os dois interlocutores se mantêm de mãos dadas. No final, aquele ou aquela que chegou proclama: “agora, sim, agora eu já cheguei”.

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Fica assim claro que somos mais do que o corpo que trazemos. Somos feitos de histórias, somos feitos de uma teia de relações de parentesco e de vizinhança. Não somos a aranha, somos a teia. Do mesmo modo, a casa não começa nas paredes. Começa no espaço em redor, e essa linha de fronteira nem sempre está visível. Quem chega não bate à porta. Se o fizer é porque já invadiu o espaço da privacidade. Os que chegam devem se anunciar batendo as palmas e devem fazê‑lo para além dessa linha de fronteira. Para quem vem da cidade essa linha é quase sempre invisível. A cidade tem um corpo que se reconhece pelas ruas, pelas esquinas, pelos passeios públicos. Este outro corpo, o da ruralidade, é feito de linhas redondas. A esquina é a árvore. O semáforo é o poço. Os nomes e os números das ruas são aqui nomes de famílias que aqui vivem. O corpo desta gente que se debruça sobre o Índico vai bem para além da sua própria pele. É um oceano. Não se oferece para ser tocado. Mas para ser atravessado. As pessoas vivem‑se. E sonham‑se reciprocamente. Aqui se pode escutar alguém dizendo, sem nenhuma pretensão poética: “estou‑te a doer‑me”. ___ Mia Couto (Moçambique, 1955) é escritor e biólogo. É autor do romance Terra Sonâmbula e do livro de contos O Fio das Missangas, entre outras obras, em prosa e versos.

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UM HOMEM PRA CHAMAR DE MEU __ Uma HQ de Lino Arruda (São Paulo, 1986), pesquisador, artista visual e quadrinista transmasculino. Autor da graphic novel autobiográfica Monstrans: Experimentando Horrormônios, é doutor em literatura, com tese sobre autorrepresentação travesti/trans em zines latino-americanos.

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PATRIARCADO NO MEU CRUCIFIXO __ Um conto de Ferréz (São Paulo, 1975). Autor dos romances Capão Pecado e Manual Prático do Ódio, entre outros livros, explora em seus textos a realidade da periferia paulistana – em especial a do Capão Redondo, na Zona Sul da cidade.

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Parada no ponto de ônibus, tira o pequeno espelho da bolsa, retoca o batom, uma van passa, uma lotação e um motorista que assobia, ela olha de soslaio, lê o adesivo atrás. “Preto Ghóez vive eternamente.” Ela passa pela catraca, senta ao lado de uma senhora que come milho cozido num pratinho de plástico, o ônibus inteiro cheira a milho e manteiga. A casa da amiga está próxima, puxa o sinal, um cara encara suas coxas, ela finge que não nota, desce e entra pela viela, em alguns minutos está na casa de Cleide, sua amiga, sua irmã que não teve. Ela caminha mais um pouco e para na esquina, o iPhone 5 na virilha, short minúsculo desfiado na borda, um topzinho preto que deixa toda a barriga e o piercing à mostra.

Odílio usa óculos, mas na night não, agora é vida loka, pulseira de ouro, colar de platina, camisa polo aberta para aparecer a corrente, relógio da Tag Heuer, pancadão no extremo nas caixas. Odílio para, a boca treme mas ele a contém. Entra aí, novinha, bora dar um rasante? Ela entra, sorri bem tímida, ele dá um beijo no rosto. Qual o nome? Cinthia. Nossa, você é linda.

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Arranca com o carro, as rodas cromadas, o pneu cantando, o povo do Pit Stop grita. Ia embicar no hotel da avenida, ela pousa a mão na sua perna. Bora pro Cheiro de Campo? Com essa carinha, vai rolar de tudo. Claro que bora pro Cheiro. Cinthia entra no quarto. Nossa, com banheira! Pega logo um Red Bull, ele pega uma cerva, tira a camisa, ela olha o peito peludo, os cabelos brancos, o crucifixo de platina. Cheiroso você, amor, qual seu nome? Odílio, princesa. Ele põe a mão no bolso, tira dois comprimidos azuis, joga na boca sem ela ver. Chega perto dela, dá um beijo na boca, chupa a língua com força, ela acha estranho, ele está com sede, agarra, passa a mão na bunda, com força também, depois olha para o rosto, se afasta um pouco, ainda com o gosto dela, dá um tapa na cara dela. O que é isso?, ela fala sem graça, baixinho. Comigo é assim. Na minha cara, não, amor, não gosto. Você tem que gostar? Ela abaixa a cabeça, sente algo quente no seio, um cuspe. Odílio nem faz bico para cuspir, parece até um escarro, ela seca com a mão, passa no short, olha por cima do cabelo, pega o iPhone 5, não é o S, é o comum, toca na tela duas vezes. Odílio tira as calças, agora só a cueca branca e o crucifixo de platina, ela desabotoando o short, ele na terceira cerveja, batem à porta. Quem será? Quem é? Batem mais forte, ele abre rápido, ela levanta a cabeça e deixa de desabotoar o short. Entram dois homens, camiseta preta, pistola na mão, um barbudo, outro jovenzinho. 47


Odílio encosta na parede, os homens fecham a porta, o barbudo pega um celular. Pode colar, é o jack que a gente procurava. Cinthia, parada, começa a chorar baixinho, tampa os peitos com os braços magros. Estuprador filho da puta, na cadeia você acha o seu, vão comer seu cu todo dia. Estru... O que, eu tava aqui com ela, ela... Ela é menor, seu lixo, olha pra ela. Calma, menina, qual seu nome? Jaqueline. Cinthia, você disse que... Cala a boca, velho filho da puta, a menina foi violada, olha aí, Esteve, tira uma foto. O jovenzinho tira o celular, bate uma foto, a menina abaixa a cabeça. Pelo amor de Deus, eu tenho família. Todo mundo tem. Vão enfiar um cabo de vassoura no seu cu. Ih!, vão abrir suas pernas e chutar seu saco até ele ficar maior que sua barriga. Odílio senta no chão, as mãos no rosto. Pasta de dente, enfiam o tubo de pasta de dente no nariz, aí dão um murro e entra tudo rasgando dentro, já vi, o bagulho rebenta tudo. Odílio chora, tira a mão do rosto. Fala baixinho. Não tem um acordo? Acordo? Olha a menina aí, porra, toda fodida, o que você fez com ela? Eu nem encostei, eu não... Você o quê? Você comeu ela toda, fodeu a novinha, agora vai se foder. Por favor, vamos conversar, eu consigo um dinheiro. Os dois homens se olham, o mais novo chega perto de Odílio. Eu não sabia, eu juro. Tá, então vê aí o que consegue, liga aí, porra, não tá mamão sua situação, não. 48


Odílio liga, fala, liga, fala. Consigo trinta mil. Trinta. Olha, tem o delegado nessa fita aí, cada um leva um pedaço, já foi comunicado, entendeu? Não tem como correr assim, fecha em cinquenta pelo menos. Odílio liga, fala, liga. Consegue. E onde tá o dinheiro? Tá na Leste, a gente busca. Porra, aí é longe demais. Não sei, Esteve, vamo grampeá esse cara logo. O barbudo vira as costas. Por favor, vamos lá, me tira dessa. O mais novo olha, faz que tem dó. E a menina? Fodeu, o que vamos fazer com a menina? O policial a deixa pôr o top, e em seguida ela vai ao banheiro lavar o rosto, passa a toalha na altura do seio que tinha sido cuspido, arruma o cabelo e vai saindo, nem olha para trás. Odílio chega em casa, todo mundo acordado. O que aconteceu, pai? O que foi, homem? Nada, preciso do dinheiro, o Márcio deixou aí? Peraí que vou pegar. E também o do cofre do lado da cama. Já vou, mas tudo? Tudo, mulher, anda! Quando Odílio vai entregar o dinheiro, o barbudo recebe uma ligação. O quê? A corrente? Tá, porra. A corrente aí, meu brother. A minha corrente? Sim, manda aí, ou você quer que a gente entre e explique a situação pra sua mulher?

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Os homens saem, param num posto perto, trocam de camisetas, colocam duas polos. Hora de virar cidadão comum. Risos. Em seguida entram na loja do posto, compram energético e uns salgadinhos.

Jaqueline chega naquela sexta‑feira no fluxo, o iPhone 6 na cintura, o piercing novo é um crucifixo de platina. Qual seu nome, novinha? Cinthia, e você, amor?

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AGORA RECOLHO-ME A MIM __ Versos de Miró da Muribeca (Pernambuco, 1960), poeta que tem nas ruas do Recife as fontes e os espaços de circulação de sua obra, também presente em livros publicados de forma independente.

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Masculinidade musical: desculpa, Martinho da Vila, homem que é homem chora quando seu amor vai embora.

Masculinidade na construção civil: ela foi embora, e aí ele pulou do térreo.

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Decisiva masculinidade: tirou a barba de 15 anos jogou fora o paletรณ e seus poemas deu seu cachorro ao vizinho nรฃo fez as malas e partiu.

Absurda masculinidade: o policial perguntou: tรก indo pra onde, boy? Estou voltando, senhor. Foi preso por desacato.

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Forte masculinidade: acordou decidido: não voltaria para casa sem o leite das crianças.

Reflexiva masculinidade: agora recolho-me a mim; o que é mesmo ser homem? Não menstruar, não engravidar, nem dar o peito para o filho mamar. Agora recolho-me a mim.

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A ÚLTIMA FLOR __ Uma prosa de Marcelino Freire (Pernambuco, 1967), romancista, contista, poeta, professor de oficinas de escrita literária e produtor cultural. Desde 1991, vive em São Paulo, onde promove a Balada Literária, evento que reúne artistas de várias áreas de expressão em diferentes espaços da cidade.

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Aí tem os padrões portugueses. O império romano. A invasão dos bárbaros germânicos. Aí tem o Condado da Galiza. O Reino do Leão e das Astúrias. O Reino de Navarra. Estou cansada, Flor, estou cansada. Tu sabe como eu amo a nossa língua. Aproveitei, aqui, esses dias para reler a gramática. Os dicionários, sabe? Cadê as dicionárias? A gramática é feminina, tá, mas cheia de sujeito, objeto, adjetivo, substantivo, modos diretos, regentes, pronomes, verbos. Tá, tudo bem, sei que eu exagero. Mas não é pelo exagero que a gente chega a algum acerto? Repara: uma reparação? Uma gramática não tinha de ser revista por uma indígena? Um grupo de feministas? Minhas amigas travestis? Olha aqui, fui direto no capítulo sobre gêneros. Tu bem sabe, Flor, desde sempre meu amor por esses estudos. A gente quando estudou junta redação. Lá em casa, no quarto, o giz na mão e as lições. E as poesias. E as prosas.

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Aliás, a literatura é das mulheres. Nota só: crônica. Romance é novela. Música, inspiração. O alfabeto é masculino, mas todas as letras, de A a Z, todas nossas. Um preconceituoso vai dizer que foi a maconha. A erva. Nunca chamo maconha de fumo, cigarro. Chamo de erva, palha, fumaça. Até “poluição” eu aceito. A cidade, a nuvem. Eu agora vou ficar raivosa, ainda mais. Chega. Mas eu estava dizendo, Flor. No capítulo sobre gêneros, nessa nova edição revista e ampliada, ó. Não era a oportunidade de se chamar a atenção? Chega de menino, menina, azul, rosa. Abrir umas explicações. “Sexplicações”, eu digo. Nesses livros todos, todxs, todes. A formação de uma nova família. Não acha? Sabia que antigamente algumas profissões nem feminino tinham? Mestra, médica, advogada, psicóloga, juíza. Não faz tempo passaram a constar dos ensinos. Assassinos. Salário, é o mais baixo ainda. Eu quis ser mestra, com orgulho, muito orgulho. Não fui. Não sou. Sim, desde tanto tempo, desde que eu era criança “anormal”. Eu era chamada de criança anormal. Porque conjugava os verbos de cor. Depois, porque fugi das regras. Das declinações. Outra coisa: os verbos. Presente, futuro, passado. Modo indicativo, imperativo.

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O imperador é quem manda, vê? O Rei, o Caralho. O Dominador. Essa mania de maiúsculas. Tem aquele escritor que escrevia só em minúsculas. Ele disse que era para manter a democracia entre as frases. As frases. Para não haver hierarquia. Deus minúsculo. E para que Deus? Eva nasceu de uma costela uma buceta! Eva nasceu, ah, de uma constelação. É estrela. A gente devia crescer, ser educada, enraizada com a língua da floresta, Flor. A terra, a água. Do ventre de tudo a existência. Tudo gira na nossa barriga, notou? Não é no umbigo. Não estou falando de umbigo, percebe? Vivem dizendo que eu, de uns anos para cá, estou me sentindo superior. E estou. Pronto, estou. Vou radicalizar. Tu compreende. Eu falo de fala. Eu falo de alma. Falo. Falo. Tira esse falo da boca, mulher. Merda. A bosta, a merda. O mar foi uma palavra feminina na sua origem. Em outros idiomas ainda é. Fim, planeta, cometa, fantasma. Era antes “o” árvore. Palavras “transição”.

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Palavras “trans”. Dessas metamorfoses eu gosto, para não dizer que sou extremista. Sim, estou sendo contraditória. E daí? Não se constrói uma história de uma outra maneira. Beleza. Penso em escrever algo sobre “a mar” que foi virando “o mar”. Vai ser bonito. Necessário. “O presidente” só existia assim: veio depois “a presidenta”. Lembra como vieram chiar? Só porque “a presidenta” quis assim ser chamada. Fizeram o quê? Tiraram ela do poder. O poder. Os artigos. Os pronomes possessivos. Não sei. A angústia que eu sinto. Todo dia. Ou melhor: toda hora. Segunda, terça, quarta, quinta, sexta. Só apenas sábado e domingo são “masculinos”. Pensa que ganhamos por isso? Não. Porque o fim de semana, o bem‑bom, é justamente terminado em “o”. Pode rir. É muita loucura. O juízo é masculino, nota? A loucura é feminina. Olha onde nos colocam. Um dia eu me mato. A morte, a morte. Flor, pode me mandar parar. Se tu quiser eu paro, eu paro, Flor. Eu vou escrever ainda sobre isto, se vou. A gente lá nas aulas no meu quarto. Feminino de alfaiate? Alfaiata. De parente? Parenta. Dá saudade. Saudade, por sinal: memória, lembrança. Infância, onde tudo começa. 59


E os contos de fada? Isso porque ainda não cheguei nos contos de fada. Fada, princesa, bruxa. Bruxa nariguda, fada gorda. Os padrões, os velhos padrões, de novo. Portugueses, burgueses, europeus. A África não tem vez, a aldeia. Vê: se a gente vai estudar a língua, não seria uma boa começar falando de uma filosofia mais antiga? Aquela que não ficou nos livros, registrada? A palavra negra, a essência que nos gerou? As aldeias, as cantigas, as danças? Samba não, sambada. A roda. Também nas comunidades indígenas é assim, a roda. A comunhão. A mão. A energia cósmica. A elevação. Mas é tudo para nos colocar para baixo. Por isso vou ficar agora insistindo, bagunçando o senso comum. Eu vou sacudir o pó. A Bíblia. Por que nenhuma mulher, Flor, sentou àquela mesa dos apóstolos? Saca o Afonso? Veio com a seguinte conversa: que tinha mulher lá na santa ceia, sim. Mas estava servindo. Pois bem. Judas foi assassinado, meu bem. Maria foi mãe solteira. Madalena jamais arrependida. Sabia que Cristo foi Cristina? Eu dou uma de besta‑fera. Afonso, com aquele latido necrófilo. Eu esguelo, eu esfolo. Não quero mais conversinha, Flor. Cansei. Para consertar o que aí está só salvando a serpente. A gema do povo, Flor. A gema. 60


Eu, inocente, repetia, com meus olhos de bondade infinita, mas uma bondade que felizmente acabou. Agora a minha bondade virou vingança. Minha lança. Eu dizia, ginasiana, lembra? O português que falamos veio do português menor. Blá‑blá‑blá. Quem nos contou? Que horror! Brasil, palavra que vem do pau‑brasil. Uma poeta de São Paulo já escreveu: que a gente veio do “pau‑branco hegemônico”. Sei lá. “Enfiado a torto e a direito.” “O pau a pique”, “o pau de arara”, “o pau de araque”, “o pau de sebo”, “o pau de selfie”. Pois é. A poeta se chama Luiza Romão. E quem escreveu livros só com iniciais minúsculas foi Valter Hugo Mãe. Mãe, está vendo? Mãe. Tudo é Mãe. Maiúscula só a Mãe. Flor, minha amada, eu sou agora essa rebeldia, sou ainda mais essa revolução, essa luta. Essa guerra. Aí diziam: a guerra é para os homens que saíam, os homens, sobretudo os inocentes, para o campo de batalha. E ninguém falava da guerra das mulheres para construir outros homens menos inocentes, dentro de casa as mães em luto, a dor da falta que alguém faz. Amor. Amor seria mar também, Flor? Amar. Flor, eu te peço desculpas. Baixinho, aqui, mas lá fora é reagir, sabe? Nossa gramática precisa ser mais ativa.

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Reativa. A língua que vem da sola de nossos pés. Dos pés de nosso chão a semente. Só tu, Flor. Só tu me compreende.

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APENAS DESENHOS MUDOS __ Não há palavras no universo poético do artista uruguaio Troche (1976). Talvez por isso, também, ele chegue tão longe – no espaço entre as estrelas, no fundo de uma noite, no esconderijo de uma infância antiga. Também se pensa em outros termos, sem termos, e assim se encerra o trajeto proposto por esta publicação – que, até aqui, celebrou o caráter libertador da palavra. O artista foi consultado quanto ao título desta seção; ele disse não ter sugestões, apenas desenhos mudos.

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PROGRAMAÇÃO __ de 24 a 30 de agosto Por causa da pandemia de covid-19 e da consequente necessidade de isolamento social, todas as atividades desta edição do evento são apresentadas apenas por meio do site do Itaú Cultural (IC) – e não também na sede da organização, como de costume. A classificação indicativa das rodas de conversa e das programações artísticas estará disponível no site do IC nos dias de exibição.


CONVERSAS Encontros previamente gravados. Os registros seguem disponíveis no site e no YouTube do Itaú Cultural após o evento.

24/8

SEGUNDA 19h MESA DE ABERTURA: MASCULINIDADES EM TRÂNSITOS Com Airan Albino, Lino Arruda e Marcelino Freire Mediação Thiago Rosenberg [duração aproximada: 60 minutos]

__ Com autores participantes da publicação de Todos os Gêneros 2020. Airan Albino (Rio Grande do Sul), jornalista com atuação nos campos da cultura e das questões de identidade racial. É cofundador do grupo MilTons, que desenvolve ações focadas na reflexão das masculinidades negras. Lino Arruda (São Paulo), pesquisador, artista visual e quadrinista transmasculino. Autor da graphic novel autobiográfica Monstrans: Experimentando Horrormônios – em finalização com o apoio do programa Rumos Itaú Cultural –, é doutor em literatura com tese sobre autorrepresentação travesti/trans em zines latino-americanos. Marcelino Freire (Pernambuco), escritor. Romancista, contista e poeta, também atua como professor de oficinas de criação literária e como produtor cultural. Desde 1991, vive em São Paulo, onde criou e segue promovendo a Balada Literária, evento que reúne apresentações de artistas de diferentes áreas de expressão em diversos pontos da cidade. 70


Thiago Rosenberg (São Paulo), jornalista. Produtor e editor de conteúdo do Itaú Cultural.

25/8

TERÇA 17h A CONSTRUÇÃO DAS MASCULINIDADES Com Jordhan Lessa, Marcus Boaventura e Sirley Vieira Mediação Guilherme Valadares [duração aproximada: 60 minutos]

__ Jordhan Lessa (Rio de Janeiro), primeiro homem trans publicamente reconhecido da Guarda Municipal da Cidade do Rio de Janeiro, realiza ações como palestras centradas em temas de diversidade e superação. Marcus Boaventura (Bahia), terapeuta com foco na escuta das emoções, atua como facilitador de grupo de homens. Sirley Vieira (Pernambuco), antropólogo, educador e pesquisador no campo de gênero e masculinidades, coordena a Rede de Homens Pela Equidade de Gênero (RHEG) e integra a coordenação colegiada do Instituto Papai e o comitê consultivo do movimento #ElesPorElas, criado pela ONU Mulher. Guilherme Valadares (Minas Gerais), fundador do Papo de Homem, portal de conteúdo e espaço de formação e transformação das masculinidades. Produtor do documentário O Silêncio dos Homens, também integra o comitê do #ElesPorElas.

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26/8

QUARTA 17h PATERNIDADES Com Luis Baron, Orun Santana e Tiago Koch Mediação Viviane Duarte [duração aproximada: 60 minutos]

__ Luis Baron (São Paulo) é pai do Gabriel. Com o objetivo de promover o bem-estar e o aumento da autoestima das pessoas LGBT idosas, criou o Canal Topassado, atualmente presente no Instagram, no Facebook e no Twitter. Também é vice-presidente da ONG Eternamente Sou, que oferece cuidados psicossociais para pessoas LGBT com mais de 50 anos. Orun Santana (Pernambuco) é filho do mestre de capoeira, bailarino e educador Mestre Meia-Noite. Também capoeirista e bailarino, explora a relação entre pai e filho, e entre mestre e discípulo, no espetáculo solo Meia Noite. Atualmente é diretor artístico da Cia. de Dança Daruê Malungo, no Recife. Tiago Koch (São Paulo) é pai da Iara. Naturólogo, criou o projeto Homem Paterno, que realiza cursos, palestras e trabalhos em grupo e individuais para auxiliar homens que desejam imergir no universo da paternidade integral. Viviane Duarte (São Paulo) é fundadora e CEO do Plano Feminino, iniciativa que presta consultoria para empresas e marcas com foco em questões de gênero, raça e diversidade, e presidente do Instituto Plano de Menina, projeto social que busca conectar meninas de comunidades com mulheres de diversas expertises.

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CENAS TEATRAIS Trabalhos disponibilizados no site do Itaú Cultural entre suas datas de estreia e o dia 31 de agosto.

24/8

SEGUNDA 18h30 FILHO HOMEM Um documentário ficcional sobre as diferenças e proximidades entre dois irmãos – um criado para ser homem e outro criado para ser mulher. Violência, amor e a descoberta da transexualidade estão entre os temas abordados em cena. Concepção e atuação Bernardo de Assis [duração aproximada: 11 minutos]

25/8

TERÇA 20h OBORÓ A obra retrata a realidade e a subjetividade de homens negros, marcadas por questões como a hipersexualização do corpo e a busca por perfeição em troca de um lugar ao sol numa sociedade de estrutura racista. Texto Adalberto Neto Direção Rodrigo França Atuação Cridemar Aquino, Drayson Menezzes e Sidney Santiago Kuanza Produção Fábio França e Mery Delmond

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Realização Diverso Cultura e Desenvolvimento [duração aproximada: 40 minutos]

ESPETÁCULOS Trabalhos disponibilizados no site do Itaú Cultural entre suas datas de estreia e o dia 31 de agosto.

26/8

QUARTA 20h BOLA DE FOGO Devidamente trajado, o ator e diretor Fábio Osório Monteiro prepara e frita a massa do acarajé enquanto performa a si próprio e a outros corpos negros. O trabalho explora questões de política, espiritualidade, memória, afeto e ancestralidade. Criação e performance Fábio Osório Monteiro Direção Fábio Osório Monteiro Codireção Leonardo França Colaboração Jorge Alencar e Neto Machado Produção executiva Natália Valério Produtor assistente/contrarregra Gabriel Pedreira Interpretação em Libras Cintia Santos Produção Dimenti Produções Culturais [duração aproximada: 45 minutos]

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27/8

QUINTA 20h BARRELA Encenação do primeiro texto do dramaturgo paulista Plínio Marcos (1935-1999), a peça traz a história real de um menino que, preso por um pequeno delito, foi violentado por companheiros de cela – os quais, mais tarde, foram mortos por ele. O espetáculo discute o estado de exceção que se cria em determinados ambientes e o código de conduta entre criminosos. Texto Plínio Marcos Direção e trilha sonora Mário Bortolotto Elenco Mário Bortolotto, Walter Figueiredo, Marcos Gomes, Nelson Peres, Paulo Jordão (Rodrigo Cordeiro), André Ceccato (Marcos Amaral), Daniel Sato e Alexandre Tigano Iluminação Caetano Vilela Cenário e arte do cartaz André Kitagawa Assistentes de direção Marilia Medina e Gabriela Fortanell Assessoria de imprensa Pombo Correio Fotos Marta Santos [duração aproximada: 55 minutos]

CENAS ENCOMENDADAS Cinco artistas foram convidados para criar cenas para a web a partir da seguinte provocação: “a masculinidade que me deram e a masculinidade que criei”. Os trabalhos entram em cartaz nos dias 28 (Ronaldo Serruya e Elilson) e 29 de agosto (André Vitor Brandão, Odacy Oliveira e Rui Moreira), e podem ser vistos até o dia 30. 75


28/8

SEXTA 20h KADDISH, UMA ORAÇÃO PARA OS HOMENS QUE EU MATEI Partindo da reza tradicional judaica em homenagem aos mortos, que só pode ser recitada pelos filhos homens da pessoa falecida, Ronaldo Serruya ficcionaliza elementos autobiográficos para abordar o modelo masculino judaico-cristão que o formou e a necessidade de matá-lo para afirmar diante do mundo seu corpo queer e que convive com o HIV. Criação, dramaturgia e atuação Ronaldo Serruya Direção e edição de imagens Luiz Fernando Marques C(H)ANCELA 24 Partindo do uso recorrente no Brasil do número 24 – que remete à figura do “veado” e à condição de ser “viado” – como xingamento contra homens gays, o artista encara essa herança vocabular da normatividade hétero-masculina e desdobra em nova performance e texto uma ação-tributo que fez aos 24 anos para um irmão, também homossexual, suicidado com a mesma idade. Criação e performance Elilson [duração aproximada: 30 minutos]

29/8

SÁBADO 20h PARA NÃO DANÇAR EM SEGREDO A obra revisita memórias e construções identitárias de gênero do performer André Vitor Brandão, abordando as problemáticas da construção de uma masculinidade hegemônica no Sertão. O vídeo é um convite para a celebração das masculinidades na dança e um desejo de tornar manifesta a pluralidade imanente dos corpos 76


masculinos, sobretudo aqueles que habitam o Sertão. Roteiro, direção e interpretação André Vitor Brandão Direção de fotografia, montagem e edição Fernando Pereira e Robério Brasileiro Direção de arte Ana Paula Maich Trilha sonora original Gean Ramos Assessoria criativa Jailson Lima Produção Alan Barbosa CORAZA “A couraça era o medo e a vergonha de ser livre. Eu resolvi soltar e liberar minha musculatura para respirar e ser o que sou!” Direção e interpretação Odacy Oliveira Auxiliar de direção Alan Panteón Produção e consultoria artística Valdemir Oliveira Iluminação Alan Panteon e Odacy Oliveira Cenografia Odacy Oliveira e Alan Panteón Filmagem Alan Panteón Paisagem sonora Moncho Bunge NKISI HONGOLÔ – A DIVINDADE DO ARCO-ÍRIS O vídeo propõe uma abordagem da masculinidade como um princípio energético dinâmico, algo que, portanto, pode ser alterado. Neste contexto, os padrões sociais deixam de ser dados para ser construídos e formatados pela individualidade de cada um. Hongolô é um Nkisi – uma divindade – de princípio masculino. Está ligado às mudanças e recebe vários nomes, dependendo do seu local de culto em terras bantos. É também Hongolô que auxilia na comunicação entre os seres humanos e as divindades. Concepção Pablo Bernardo, Ricardo Aleixo e Rui Moreira Câmeras e atuação Rui Moreira e Ricardo Aleixo Concepção de design sonoro Ricardo Aleixo Montagem de vídeo e áudio Pablo Bernardo [duração aproximada: 45 minutos]

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SHOW DE ENCERRAMENTO

30/8

DOMINGO 20h CIEL SANTOS E RICO DALASAM A programação de Todos os Gêneros 2020 fecha com duas apresentações musicais, nas quais diferentes estilos e ritmos dialogam com o universo queer. Primeiro, o rapper paulista Rico Dalasam traz um pocket show do recém‑lançado álbum Dolores Dala Guardião do Alívio, com composições intimistas, baseadas em episódios vividos pelo artista nos últimos anos. Em seguida, o pernambucano Ciel Santos – um brincante de saia e batom, como ele mesmo se denomina – une faixas do disco Enraizado, de 2019, a pontos e loas da cultura popular nordestina. A performance busca desconstruir e ressignificar o discurso heteronormativo bastante presente nessas manifestações culturais. [duração aproximada: 30 minutos]

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