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CARNAVAL NÃO SE PULA SOZINHO

por Airan Albino

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Nas ruas, passarelas e quadras do Brasil, o Carnaval reúne diferentes falas que contam uma mesma história: a da identidade. No imaginário ligado à festa, as figuras masculinas vão além dos padrões hegemônicos e encontram formas de ser plurais e tornadas possíveis quando o olhar lançado para as pessoas negras é, também ele, negro.

Rodas de masculinidades são lugares onde histórias são compartilhadas entre homens. Nesses espaços são quebrados vários estereótipos, como os que se enquadram na chamada “caixa do homem” – conceito que, repensado por Tony Porter nos anos 1990, engloba uma série de comportamentos, valores e outros traços supostamente definidores do que é “ser homem”: a hétero e a hipersexualidade, a homotransfobia, a autossuficiência, a agressividade. A partir dessa troca de histórias – por exemplo, a de um filho que vê o pai como um vilão, por causa de sua ausência, mas tenta entendê-lo ao humanizar sua figura –, paralelos são traçados sobre a experiência do gênero masculino no mundo. A roda de conversa é uma das etapas de um processo de identificação e autoconhecimento. Nela, você se olha através de diferentes discursos, compara-os com a sua narrativa e cria um pensamento sobre os pontos em comum. Transforma a experiência individual em coletiva.

Essa reflexão sobre o seu lugar também pode se dar em outros momentos e contextos. No meu caso, o acesso à subjetividade aconteceu primeiro no Carnaval. Filho de duas pessoas frequentadoras assíduas de quadras de escolas de samba, consigo traçar uma linha temporal com base nos meus carnavais. Porto Alegre, anos 1980, Bambas da Orgia, azul e branco. Meu pai, Adão, era um dos componentes da bateria, e minha mãe, Nilza, gostava

de ir aos ensaios da escola. O romance que começou na quadra trouxe ao mundo duas crianças: eu, em 1989, e meu irmão, Zândor, em 1991. Os dois nascidos no mês de dezembro.

Na infância, durante ensaios, o reconhecimento de aspectos da corporeidade acontecia enquanto brincávamos pela quadra, correndo de uma ponta a outra. A imaginação e a sensibilidade, minhas e do meu irmão, eram exploradas todas as vezes em que tocavam e cantavam o samba-enredo – cada repetição trazia uma nova história, pois cada integrante da escola cantava do seu jeito. A religiosidade se apresentava por meio de lendas e mitologias dos orixás. Aprendemos sobre pluralidade olhando grupos heterogêneos na bateria: os sorrisos de quem tocava o tamborim, a velocidade de quem era do repique, a habilidade dos que ficavam com a caixa e a força dos que seguravam um surdo. Na quadra da escola de samba, nós éramos iguais, mesmo sendo plurais. Eu sabia que outros, parecidos comigo, passaram por aquele espaço, havia uma conexão transgeracional naquele lugar.

Nilza queria entender o jogo de peso e leveza da roupa de uma baiana.

Adão queria liderar as batidas entre os tamborins.

Eu queria flertar com minha futura porta-bandeira, como um mestre-sala.

Zândor queria ter o destaque que a ala dos pandeiros tinha.

Nós queríamos envelhecer como os integrantes da velha guarda.

Assim eu construí a minha narrativa, guardando essas memórias afetivas e lembrando delas em momentos nem tão felizes. Como jovem negro gaúcho, descobri que meu corpo tem um peso diferente na sociedade, por também frequentar espaços majoritariamente brancos. Na escola particular, entendi que eu não era o padrão, mas, sim, o outro, o exótico – a ponto de ser convidado para tocar pandeiro para outras turmas. Era importante me fortalecer de uma cultura que eu pudesse chamar de minha, porque nesses espaços as histórias compartilhadas tinham a Europa como pano de fundo. A família era italiana,

alemã, espanhola, portuguesa ou polonesa. Não tinha resposta melhor do que dizer que eu era parte de uma família carnavalesca.

Mesmo com as proporções continentais do Brasil, é possível traçar paralelos sobre as experiências negras em certas cidades. Entretanto, ser negro é diferente em cada região do país; o contexto em que a pessoa está inserida vai mostrar a ela como é feita a sua leitura. Alguns nordestinos brancos descobrem que são lidos como negros pela sociedade a partir da convivência com sulistas e sudestinos, por exemplo. O ponto em comum entre essas experiências é a surpresa ao ver um semelhante num lugar de destaque, de beleza, de orgulho.

Em depoimento para o documentário Candeia, de Luiz Antonio Pilar, Nei Lopes conta: “Lembro que, aos 10 anos de idade, assisti pela primeira vez a uma escola de samba. Eu morava no Irajá, assisti a um desfile da Portela, numa segunda-feira de Carnaval. [...] No dia seguinte ao desfile principal, as escolas iam reverenciar o comércio de sua localidade. [...] Aquilo foi um impacto tão grande na minha vida, na minha infância, principalmente pelo fato de que os garotos da minha idade que saíam na escola naquela época saíam vestidos de ‘homens de bem’, como se caracterizava naquela época: terno, gravata, chapéu, luvas nas mãos e uma bengalinha embaixo do braço. Quando vi aquilo, disse: ‘eu quero ser isso!’”.

Gilberto Gil, por sua vez, narra o seguinte episódio no livro Filhos de Gandhy, de Christian Cravo: “Três rapazes, altos, atléticos e sorridentes, saíam de um daqueles becos cheios de Carnaval. Eu passava por ali na hora e não pude me furtar a observá-los, tão vibrante e comovente era a cena. Eles estavam vestidos com seus lençóis arriados sobre as cinturas, os turbantes nas cabeças, as contas cruzadas sobre os peitos nus – e que peitos! Pareciam três atletas saídos de um daqueles estádios colossais na Antiga Grécia. Fiquei extasiado e comovido. Era Carnaval na

Bahia, 2017. Os Filhos de Gandhy já me comovem desde a infância, mas aquela cena me arremessava para um futuro no tempo ou, quem sabe, fora dele. Aqueles três rapazes eram a encarnação transfigurada de um sonho de menino, agora num planeta Terra redimido pelo encantamento e pela beleza”.

Por fim, no livro Na Minha Pele, Lázaro Ramos recorda: “Quando eu tinha entre 8 e 10 anos, o Carnaval por vezes me assustava. Provavelmente porque eu ficava do lado de fora das cordas, no meio da pipoca. Mas também me trazia uma sensação de pertencimento, mesmo quando suas cordas e camarotes me diziam que aquela festa não era tão minha assim. Eu me encontrava na alegria e no entrosamento das pessoas que caminhavam pelas avenidas envoltas em mortalhas e confetes. [...] Aos 12 anos fui levado por meu pai para o Campo Grande, na área central onde os blocos passavam. Lá, entre muito suor, cerveja, beijos e colares do Gandhy, algo penetrou minha pele sem que eu notasse. Tímido, eu não me permitia dançar. [...] Foi nesse dia que ouvi algumas das músicas que me fizeram ter um pouco mais de amor por mim mesmo. O Ilê Aiyê passou e cantou: ‘Me diz que sou ridículo/ Nos teus olhos sou mal visto/ Diz até tenho má índole/ Mas no fundo/ Tu me achas bonito, lindo!/ Ilê Aiyê’”.

Hoje, Nei Lopes, Gilberto Gil e Lázaro Ramos são grandes referências culturais brasileiras, para além de sua negritude. Os três também foram crianças que tiveram pessoas-espelho que os fizeram refletir sobre o seu lugar no mundo. Todos os relatos se passam durante carnavais; são histórias que têm suas características próprias mas, ao mesmo tempo, coexistem – porque aconteceram no momento certo de cada narrativa.

A conversa em roda ajuda a entender a importância de um processo, seja ele qual for. Diferentes falas acabam se cruzando porque contam histórias semelhantes, o que significa que, embora a trajetória de uma pessoa seja única, ela não está sozinha. A

descoberta da negritude em um Carnaval: múltiplas pessoas podem compartilhar desse sentimento. Especialmente para pessoas pretas, revisitar as memórias é difícil por causa da dor, mas existe beleza também. Encontrar essa memória afetiva nos ajuda no processo de humanização.

Na minha linha do tempo há um episódio de choro de alegria ao ver a Portela desfilar falando de amor, um pedido de paz em meio ao tapete dos Filhos de Gandhy e uma caminhada pelo Curuzu vendo o Ilê Aiyê passar. Tenho a certeza de que não estava sozinho nesses momentos. O Carnaval é uma expressão popular de conhecimento e de encontro com a ancestralidade, é onde se anda para a frente, retornando para si.

___ Airan Albino (Rio Grande do Sul, 1989) é jornalista com atuação nos campos da cultura e das questões de identidade racial. É cofundador do grupo MilTons, que desenvolve ações focadas na reflexão das masculinidades negras.