Observatório 36 – Direitos culturais: perspectivas no Brasil contemporâneo

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Revista

#36 Direitos culturais: perspectivas no Brasil contemporâneo


Informação e difusão digital | Itaú Cultural­­ Direitos Culturais: perspectivas no Brasil contemporâneo / vários autores. - São Paulo : Itaú Cultural , 2023. (Revista Observatório Itaú Cultural) il. ; PDF.

ISBN: 978-65-88878-82-8 ISSN: 2447-7036 DOI: 10.53343/100521.36

1. Direitos culturais. 2. Direito cultural indígena e quilombola. 3. Cultura digital. 4. Cultura e Tecnologia. I. Itaú Cultural. II. Fundação Itaú. III. Observatório Itaú Cultural. IV. Título. CDD 330 Bibliotecária Ana Luisa Constantino dos Santos CRB-8/10076

contato: observatorio@itaucultural.org.br


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Produção editorial Luciana Araripe

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Produção editorial Luciana Araripe

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Revista Observatório | Direitos culturais: perspectivas no Brasil contemporâneo A edição 36 da Revista Observatório Itaú Cultural, “Direitos culturais: perspectivas no Brasil contemporâneo”, debate sobre o histórico, os avanços e os obstáculos para a garantia dos direitos culturais no país – estes assegurados pela Constituição Federal de 1988. Assim, algumas das perguntas que norteiam a publicação tratam do que são os direitos culturais, quais são os mecanismos que garantem e asseguram o direito cultural no Brasil e, ainda, de como garantir os direitos culturais em um país tão diverso. O tema dos direitos culturais já foi abordado na 11a edição da revista, publicada em 2011. Buscando dar continuidade e sobretudo observando as mudanças, os progressos e os obstáculos no decorrer desse tempo, esta edição 36 pretende pensar o debate sob a ótica do Brasil contemporâneo. Esperamos, assim, lançar novos olhares sobre esse assunto tão fundamental, de modo que artistas, gestores, coletivos, instituições e todos que se preocupam com o tema da cultura possam reconhecer seus direitos. Desejamos a todos uma boa leitura!


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Sumário 6

Apresentação institucional

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Carta ao leitor

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CAPÍTULO 1: DIREITOS CULTURAIS | PERSPECTIVAS CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL

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A cultura nos 35 anos da Constituição Federal: decorrências e desafios

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Diversidade cultural na Constituição: demarcações jurídicas voltadas para a diversidade e para os direitos culturais

Cecília Rabelo

Conversa entre Hédio Silva Jr. e Eloy Terena, com mediação de Cecília Rabelo. Gravação em vídeo

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A proteção internacional dos direitos culturais

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Apropriações indevidas: riscos e disputas na devolução de bens culturais no cenário internacional

Flávia Piovesan e Akemi Kamimura

Anauene Dias Soares

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CAPÍTULO 2: DIREITOS CULTURAIS | PERSPECTIVAS DE POVOS INDÍGENAS E COMUNIDADES TRADICIONAIS

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Entrevista com Samara Pataxó sobre direitos culturais indígenas

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Indenização por direitos culturais: o caso dos danos espirituais do povo indígena M bêngôkre Kayapó

Samara Pataxó em entrevista a Lucas Cravo de Oliveira

Mayalu Txucarramãe e Lucas Cravo

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Obras indígenas: sugestões para evitar apropriação cultural

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Paradoxos e desafios no acesso ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade

Luiza Balthazar

Roberto Porro e Noemi Sakiara Miyasaka Porro

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CAPÍTULO 3: DIREITOS CULTURAIS | PERSPECTIVAS DAS COMUNIDADES AFRO-BRASILEIRAS E DE MATRIZ AFRICANA

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Direitos territoriais quilombolas: coletividade, cultura, tradição e saberes que devemos proteger Vercilene Francisco Dias

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Nosso sagrado: uma história de luta pela identidade cultural, memória e cidadania Jaime Mitropoulos

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CAPÍTULO 4: DIREITOS CULTURAIS | LIBERDADE DE EXPRESSÃO E FOMENTO NA CONTEMPORANEIDADE

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Cultura digital e direitos autorais: da liberdade artística à inteligência artificial Marcos Wachowicz

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Marco da Cultura: uma construção necessária

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Ensaio artístico | Denilson Baniwa

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ANEXO: GLOSSÁRIO SOBRE DIREITOS CULTURAIS

Áurea Carolina de Freitas e Silva, Leonardo Lessa e Carolina Abreu Albuquerque

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Arqueiro digital | Imagem de Denilson Baniwa


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Carta ao leitor Os direitos culturais são nominalmente declarados no artigo 215 da Constituição Federal de 1988: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. Com isso, atribui responsabilidades ao Estado no que diz respeito à cultura, ou seja, produzir instrumentos capazes de efetivar os direitos culturais para toda a sociedade brasileira. Em 2011, o Observatório Itaú Cultural, na 11ª edição de sua revista, trouxe um debate sobre direitos culturais. Naquele momento, como bem colocou o editor Teixeira Coelho em diálogo com o filósofo Norberto Bobbio, nós não estávamos na era dos direitos, mas, sim, na era das expectativas de direitos; com isso, a questão não era necessariamente pessimista, uma vez que, se é verdade que os direitos culturais não estavam sendo efetivados na prática, no mínimo possuíamos no horizonte qual era o desejo e pelo que lutar (COELHO, 2011). Assim, a revista abordava, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, quais seriam esses direitos e as questões jurídicas no Brasil. Passada pouco mais de uma década, retomamos esse tema tão importante para a sociedade brasileira com o lançamento desta edição 36 da Revista Observatório: “Direitos culturais: perspectivas no Brasil contemporâneo”, mas agora com novas questões e novos olhares. Nesse período entre uma edição e outra, observamos o direito à cultura passar por altos e baixos. A fragilidade das instituições e a falta de normativas para leis como a do Plano Nacional de Cultura [PNC (Lei no 12.343/2010)] e a do Sistema Nacional de Cultura [SNC (Emenda Constitucional no 71/2012)], como aponta Cecília Rabelo, advogada e editora da edição 36 da revista, “dificultam a efetivação dos direitos culturais e tornam a política pública de cultura ainda mais sujeita às intempéries das políticas de governo”. Do mesmo modo, a pandemia de covid-19 em 2020 foi também um obstáculo para a criação e a expressão artística em todo o país: a falta de recursos financeiros e as instituições culturais fechadas obrigaram a todos do setor cultural e artístico a se reinventarem; nesse contexto, a Lei Aldir Blanc (Lei no 14.017/2020) foi de suma importância e mostrou como a atuação dos órgãos públicos de cultura é fundamental na efetivação dos direitos culturais. Com isso, a revista busca lançar luz sobre os direitos culturais e a cultura a partir do Brasil contemporâneo, deste país diverso culturalmente e que se pretende verdadeiramente democrático. As discussões perpassam desde a análise da cultura na Constituição Federal de 1988, que completa 35 anos em 2023, até a perspectiva internacional de proteção aos direitos culturais. Outra grande contribuição da publicação para o debate é o olhar voltado para a diversidade cultural brasileira e para comunidades tradicionais no que tange aos direitos culturais, observando as questões relativas aos povos indígenas e quilombolas e às religiões de matriz africana.


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Desse modo, qual é a importância do reconhecimento do direito cultural para a aceitação e o respeito entre os diferentes? Como a cultura pode ser a base para esse elemento comum e agregador, no qual os pilares da sociedade sejam o respeito, a equidade e a promoção da cidadania e, portanto, do bem comum? Essas são algumas das questões que nortearam a revista e que esperamos reverberar entre artistas e gestores culturais, comunidades e coletivos – enfim, entre todos que se preocupem com a cultura e com os direitos a ela associados. Boa leitura, Equipe Observatório Itaú Cultural


CAPÍTULO 1: Direitos culturais |

perspectivas constitucional e internacional

Indifférentes formes de huttes des sauvages Brézilliens | Imagem de Denilson Baniwa


Sem título | Imagem de Denilson Baniwa


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A cultura nos 35 anos da Constituição Federal: decorrências e desafios CECILIA RABELO FAZ UM BALANÇO DAS LEGISLAÇÕES DE CULTURA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 E APONTA A IMPORTÂNCIA DAS POLÍTICAS DE ESTADO PARA PROMOVER DIREITOS CULTURAIS CECILIA RABELO

RESUMO A Constituição Federal de 1988 é a base normativa de todas as demais leis do país. Em relação aos direitos culturais, ela inovou ao prevê-los expressamente em seu texto, além de tê-los elevado à categoria de direitos fundamentais, demonstrando a importância destes para a ordem jurídica nacional. Nestes 35 anos de existência, as disposições previstas na Constituição Federal sobre cultura direcionaram a política pública cultural e moldaram o atual arcabouço normativo acerca do tema. Neste artigo, será analisado o teor da tríade da cultura na Constituição Federal, em seus artigos 215, 216 e 216-A, e as decorrências legislativas a partir da norma constitucional, bem como os desafios ainda existentes para a efetivação dos direitos culturais. 1. CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DIREITOS CULTURAIS: A BUSCA POR UM CONCEITO A Constituição Federal (CF) do Brasil faz 35 anos em 5 de outubro de 2023 e é um marco na história do país. Apelidada de Constituição Cidadã, a norma, que é o fundamento de todo o Estado Democrático de Direito e condiciona todas as demais leis do país, inovou ao dar maior relevância aos denominados direitos fundamentais1, incluindo aí os direitos culturais.

Apesar de ter destinado uma seção específica para a cultura (seção II, no capítulo III – “Da educação, da cultura e do desporto”, no título referente à “Ordem social” – título VIII) e de, pela primeira vez na história constitucional brasileira (CUNHA FILHO, 2018), ter usado a expressão “direitos culturais”, a CF não traz um conceito sobre eles. Essa definição, no entanto, é necessária para dar contorno jurídico ao tema, afinal, não é possível exigir a efetivação de um direito se nem sequer sabemos do que ele é constituído. Na busca por esse conceito, cabe retornar a algumas normas internacionais e entender o que elas trazem de diretriz sobre o tema. Como espécie de direitos humanos2, os direitos culturais estão presentes na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, mas esta não oferece uma definição do termo. Na norma internacional consta apenas uma previsão de que todo ser humano tem o direito de participar da vida cultural da comunidade, de fruir as artes, de participar do progresso científico e de ter garantidos os seus direitos, como autor, à sua criação (art. 27).


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Também no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc), de 1966, não existe uma conceituação. Muito similar às disposições da DUDH, o Pidesc prevê o direito de participar da vida cultural, de desfrutar dos benefícios do progresso científico e de gozar dos direitos sobre a criação, acrescidos de uma previsão mais “impositiva” para que os Estados realizem medidas de conservação, desenvolvimento e difusão da cultura (art. 15). A partir desses marcos normativos, restou aos estudiosos do tema a tarefa de propor conceitos sobre os direitos culturais. Para Teixeira Coelho (2011, p. 8), o principal direito cultural seria o de participar da vida cultural, a qual pode ser definida como um “complexo de proposições e relações que dão pleno sentido à liberdade humana”. Seria, pois, um direito de liberdade que, ao lado do direito de se Apesar de ter destinado uma seção específica beneficiar do progresso científico e dos para a cultura (seção II, no capítulo III – “Da direitos de autor, formaria uma tríade educação, da cultura e do desporto”, no título que permitiu a obtenção de um consenreferente à “Ordem social” – título VIII) e de, so mínimo para a assinatura da DUDH pela primeira vez na história constitucional pelos Estados (COELHO, 2011). brasileira (CUNHA FILHO, 2018), ter usado a expressão “direitos culturais”, a CF não traz um Para José Afonso da Silva (2001), ha- conceito sobre eles. Essa definição, no entanto, veria uma dupla dimensão na expres- é necessária para dar contorno jurídico ao tema, são “direitos culturais”: ela define tanto afinal, não é possível exigir a efetivação uma obrigação estatal de agir para que de um direito se nem sequer sabemos as pessoas tenham acesso à cultura do que ele é constituído. quanto uma faculdade do indivíduo de exigir ações efetivas do Estado para acessar os bens e serviços culturais. Cunha Filho (2021), por sua vez, critica a ideia de que possa existir um direito à cultura, pois isso pressuporia que há povos com e sem cultura, “civilizados” e “não civilizados”, cabendo àqueles levar a cultura a estes, em uma relação de dominação contrária à ideia de dignidade humana. A partir dessa perspectiva, o professor propõe o seguinte conceito para os direitos culturais: Direitos culturais são aqueles relacionados às artes, à memória coletiva e ao fluxo de saberes que asseguram a seus titulares o conhecimento e uso do passado, a interferência ativa no presente e possibilidade de previsão e decisão referentes ao futuro, visando sempre à dignidade da pessoa humana. Encontrado um direito em que esses elementos convivam simultaneamente, embora um em maior escala que os outros, trata-se de um direito cultural (CUNHA FILHO, 2018, p. 28). O conceito dá o contorno jurídico necessário aos direitos culturais, afastando-os da ideia generalizante de que todos os direitos previstos na CF poderiam ser um direito cultural ( já que tudo que o humano cria, inclusive o direito, é fruto da cultura) e dando a especificidade necessária para que eles – os direitos relacionados às artes, à memória coletiva e ao fluxo de saberes – possam ser exigidos, tanto perante o Estado quanto em relação ao particular, quando for o caso.


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2. A TRÍADE DOS DIREITOS CULTURAIS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL Compreendido o conceito de direitos culturais, é possível encontrá-los por todo o texto constitucional. Previsões acerca da liberdade de expressão artística, da proteção aos direitos de autor e sobre patrimônio cultural, por exemplo, estão diluídas na CF, em especial em seu artigo 5o, destinado aos direitos e às garantias fundamentais.

Não obstante, a CF foi precisa ao destinar um lugar específico (seção II, capítulo II, título VIII) para tratar do tema da cultura. Apesar da presença dos direitos culturais ao longo do texto constitucional, são os artigos 215, 216 e 216-A que delineiam as normas voltadas especificamente para o tema cultural, em especial a atuação do Estado em relação à cultura, já que se encontram inseridos em um título destinado aos denominados direitos sociais. Segundo Dirley da Cunha Jr. (2011, p. 739): Os direitos sociais, em suma, são aquelas posições jurídicas que credenciam o indivíduo a exigir do Estado uma postura ativa, no sentido de que este coloque à disposição daquele, prestações de natureza jurídica ou material, consideradas necessárias para implementar as condições fáticas que permitam o efetivo exercício das liberdades fundamentais e que possibilitam realizar a igualização de situações sociais desiguais, proporcionando melhores condições de vida aos desprovidos de recursos materiais. Não se está aqui defendendo uma análise meramente “topográfica” do texto constitucional. A localização de um artigo na CF diz menos sobre ele do que o seu conteúdo normativo. No entanto, a existência de três artigos aglutinados em uma mesma seção, denominada “Da cultura”, ao lado de outros direitos sociais e Não obstante, a CF foi precisa ao destinar um cuja substancialidade remete às artes, à lugar específico (seção II, capítulo II, título memória coletiva e ao fluxo de saberes VIII) para tratar do tema da cultura. Apesar parece querer desenhar uma diretriz da presença dos direitos culturais ao longo constitucional da atuação estatal no do texto constitucional, são os artigos 215, âmbito da cultura. 216 e 216-A que delineiam as normas voltadas especificamente para o tema cultural, Originalmente, a referida seção II era em especial a atuação do Estado em constituída apenas de dois artigos, o relação à cultura, já que se encontram 215 e o 216. Em 2012, a CF foi alterada inseridos em um título destinado aos para a inserção do artigo 216-A (por isso denominados direitos sociais. a presença de dois artigos com a mesma numeração, distinguindo-se pela letra). Ao longo destes 35 anos, o texto foi alterado por mais duas vezes, e várias foram as leis criadas a partir do texto constitucional, buscando dar concretude e efetividade para os direitos culturais. 2.1. Artigo 215 O artigo 215 caput3 tratava (e continua tratando, já que nunca foi alterado), basicamente, sobre dois pontos: o dever estatal de garantir o pleno exercício dos direitos culturais e de dar às pessoas acesso às fontes da cultura nacional, e o de apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais. Trata-se, basicamente, de garantir liberdade de exercício, conferir direito de acesso e fomentar a cultura, três deveres estatais relativos aos direitos culturais.


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No parágrafo 1o, a CF trata sobre patrimônio cultural, antes de defini-lo em seguida, no artigo 216, e atribui ao Estado o dever de proteger as manifestações das culturas populares, indígenas, afro-brasileiras e de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. A determinação expressa desses três grupos manifesta a intenção da norma de ressaltá-los, demonstrando a compreensão do quanto já eram (e ainda são) precarizados e relegados pelo Estado. A intenção é reforçada no parágrafo 2o, que determina que cabe à lei fixar datas comemorativas de alta significância para diferentes grupos étnicos, em uma clara disposição sobre memória coletiva. Essa lei foi criada em 2010 (no 12.345) e, com cinco artigos, determina apenas que o projeto de lei que vise criar datas comemorativas em âmbito nacional deve ser precedido de audiências e consultas públicas, capazes de atestar a alta significância da data para grupos étnicos, mas também para segmentos profissionais, políticos, religiosos e culturais, em uma ampliação que vai além da determinação constitucional. Em 2005, há uma alteração no texto do artigo 215 por meio da Emenda Constitucional (EC) no 48, com a inserção de mais um parágrafo, o 3o, que obriga o Congresso Nacional a criar uma lei estabelecendo o Plano Nacional de Cultura (PNC), uma norma que visa ao desenvolvimento cultural do país e à integração das ações do poder público para a cultura. A previsão constitucional de elaboração do PNC, com duração de dez anos, parece ser um indício da intenção de sistematizar a política pública de cultura, organizando a atuação entre os entes federados. Tal previsão se coaduna com a divisão de competências feita pela própria Constituição Federal, que distribuiu entre União, estados, Distrito Federal e municípios tanto o dever de atuar na cultura (artigo 23, incisos III, IV e V) quanto o de criar leis sobre esse tema (artigo 24, incisos VIII e IX). Segundo a justificativa apresentada para a criação da EC no 484, a criação do PNC, com metas consistentes e eficazes, seria um instrumento de política pública de cultura que permitiria a democratização do acesso aos bens culturais. O PNC foi criado em 2010, por meio da Lei no 12.343, mas não definiu, em seu texto, as metas a serem atingidas no âmbito da política cultural. Ao contrário, estabeleceu diretrizes, estratégias e ações para a criação dessas metas, cuja elaboração foi delegada à coordenação-executiva do PNC [o próprio Ministério da Cultura (MinC)], a partir de subsídios do Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC), para serem publicadas em até 180 dias após a criação da norma. Na prática, a criação das metas não cumpriu nem os requisitos legais nem a intenção legislativa quando da criação da EC no 48/2005. Isso porque, além de terem sido publicadas um ano e meio depois e sem a existência do SNIIC, elas não se mostram “consistentes e eficazes”, parecendo muito mais uma carta de intenções do que um plano mensurável. Cunha Filho (2022), em análise da natureza de cada uma das metas, concluiu que menos de 10% delas são do tipo assertivas, passíveis de serem mensuradas e, por conseguinte, alcançadas, enquanto mais de 90% têm baixa possibilidade de cumprimento, seja pela inviabilidade de mensuração, seja pela dependência de fatores externos à política cultural.


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Para Albino Rubim (2009, p. 61), o PNC, pela força social e política a ele inerente, tende a se transformar, ao longo do texto, em um “amontoado disforme e dispersivo de conteúdos, por vezes repetitivo, das mais distintas reivindicações e visões, sem possibilitar uma estruturação mais orgânica que permita definição de prioridades, imprescindível a um plano consistente”. Além da pouca aplicabilidade das metas do PNC, é interessante notar que a sua obrigatoriedade constitucional se deu em 2005, sete anos antes da Emenda Constitucional no 71/2012, que criaria o Sistema Nacional de Cultura (SNC). O PNC é um dos elementos estruturantes do SNC, já que é a “carta de navegação” dos entes federados para a consecução da política pública de cultura. Qual é o sentido, portanto, de criar o PNC antes de criar o próprio sistema que o resguarda? Segundo Guilherme Varella (2014), a criação desarmoniosa entre PNC e SNC se deu por diversas circunstâncias políticas, tais como a tramitação em épocas diferentes no Congresso Nacional e o fato de cada projeto ter sido conduzido por secretarias diferentes dentro do próprio MinC (SNC pela Secretaria de Articulação Institucional e PNC pela Secretaria de Políticas Culturais), além das mudanças oscilantes na energia dispendida pelo governo federal em cada projeto, que mudava a depender da conjuntura política. A elaboração dissociada entre PNC e SNC parece ser um dos problemas para a efetividade de ambos. Ainda segundo Guilherme Varella (2014, p. 168): O Sistema depende do Plano para fornecer os objetivos culturais e institucionais a serem alcançados através das políticas públicas, o programa cultural que deverá guiar as gestões públicas nos três níveis (federal, estadual e municipal). O Plano depende do Sistema para articular estes níveis, criar os mecanismos burocráticos de repasse e controle de verbas e estabelecer as instâncias de participação social que acompanharão, fiscalizarão e avaliarão a aplicação das políticas. Pela essencialidade de sua imbricação, estes dois mecanismos deveriam ter caminhado juntos desde o início de sua elaboração e tramitação legal. 2.2. Artigo 216 O segundo artigo da seção “Da cultura”, o 216, fala sobre patrimônio cultural, trazendo uma compreensão abrangente do que pode ser caracterizado como tal para fins de proteção jurídica. Independentemente da natureza do bem, se material ou imaterial, individual ou em conjunto, ele poderá ser declarado patrimônio cultural se houver referência à identidade, à ação ou à memória de um ou mais dos diversos grupos formadores da sociedade brasileira. Contrapondo-se à ideia de monumentalidade presente no Decreto-Lei no 25, de 1937, norma de tombamento federal que regia, quase que exclusivamente, a temática do patrimônio cultural até então, a CF se fundamenta no valor de referência para balizar a conceituação de patrimônio cultural. Inês Virgínia Prado Soares (2009) destaca que o uso do valor de referência permite compreender que o poder para conceituar o que seja patrimônio cultural não está no Estado ou em grupos predominantes, mas espalhado por todos os grupos formadores da sociedade brasileira, a depender da referência que esses grupos tenham em relação a determina-


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do bem, em uma nítida concretização da diversidade cultural.

Na prática, a criação das metas não cumpriu nem os requisitos legais nem a intenção legislativa quando da criação da EC no 48/2005. Isso porque, além de terem sido publicadas um ano e meio depois e sem a existência do SNIIC, elas não se mostram “consistentes e eficazes”, parecendo muito mais uma carta de intenções do que um plano mensurável.

Os parágrafos do artigo 216 trazem, em suma, deveres pertinentes ao Estado em relação ao fomento e ao patrimônio cultural, como a proteção por meio de instrumentos acautelatórios como o tombamento e o registro; o dever de gerir a documentação governamental e sua disponibilização ao público; a previsão de qual lei estabelecerá incentivos à produção e ao conhecimento de bens e valores culturais; a punição dos danos e das ameaças ao patrimônio cultural; e o tombamento dos documentos e sítios detentores de reminiscências históricas quilombolas. Sobre os instrumentos acautelatórios, não houve grande avanço legislativo desde 1988. Entre os cinco citados5, apenas o tombamento e a desapropriação, que já existiam à época da promulgação da CF, são regulamentados por lei6. A proteção do patrimônio cultural imaterial, que abrange os modos de fazer, viver e criar, é regulamentada por um decreto do Poder Executivo (no 3.551/2000), tipo normativo frágil, já que pode ser revogado por uma simples decisão de governo sem passar pelo crivo do processo legislativo.

Já quanto ao “tombamento” dos documentos e sítios detentores de reminiscências históricas quilombolas, não obstante a expressividade da CF ao determinar uma espécie de “proteção automática” a esses bens (é o único momento em que a CF usa a expressão “ficam tombados”), constata-se, 35 anos depois, a existência de apenas um caso registrado após 19887 no âmbito federal: o reconhecimento do Quilombo do Ambrósio, em Minas Gerais. A limitada atuação estatal na proteção dos bens culturais relativos aos quilombos parece destoar da importância dada a estes pelo texto constitucional. O dever de gerir a documentação pública e o seu acesso pela população, por sua vez, foi regulamentado pela Lei de Acesso à Informação (no 12.527/2011), um importante passo para a democratização das informações de interesse público, em especial aquelas relacionadas a períodos ditatoriais, e em nítido alinhamento com o direito à memória coletiva. Já a punição por danos e ameaças ao patrimônio cultural, apesar de concretizada pela Lei de Crimes Ambientais (no 9.605/1998), ainda está longe de proteger esses bens culturais de forma efetiva. Segundo o promotor de Justiça Marcelo Azevedo Maffra, os tipos penais existentes no Brasil, seja no Código Penal (CP) ou na Lei de Crimes Ambientais, não abrangem as diversas condutas danosas ao patrimônio cultural. Em audiência pública realizada na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados8 em maio de 2023, o promotor ressaltou que a ausência de tipo penal específico para o furto de obras de arte, por exemplo, faz com que o furto de uma escultura de Aleijadinho tenha possibilidade de pena muito menor (de um a quatro anos, pois é furto simples previsto no artigo 155 do CP) do que o furto de um botijão de gás (de quatro a dez anos, pois é furto qualificado previsto no artigo 155, parágrafo 7o do CP).


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Em relação ao dever de criar leis de incentivo à produção e ao conhecimento de bens culturais, é possível citar a própria Lei Rouanet9 (no 8.313/9191), a norma mais importante de fomento à cultura do país. Segundo estudo da Fundação Getulio Vargas [FGV (2018)], a cada 1 real investido por meio da Rouanet, é movimentado 1,59 real na economia local, atingindo 68 setores econômicos diferentes e impactando em mais de 49 bilhões de reais a economia nacional. É certo que a lei apresenta problemas práticos em sua execução, como a concentração de recursos em determinadas regiões do país, mas isso não lhe retira o mérito de ter sido – e de continuar a ser – a principal fonte de recursos públicos do setor.

Ao que parece, não houve força política suficiente para inserir uma obrigatoriedade de vinculação de receita ao setor cultural. Até hoje, nenhum dos estados realizou essa vinculação por meio de sua respectiva Constituição Estadual, e não há como obrigálos juridicamente a tanto, já que a CF apenas facultou a possibilidade.

Mais recentemente, em decorrência dos efeitos danosos da pandemia de covid-19, foram promulgadas outras leis de fomento ao setor cultural. A Lei Aldir Blanc (no 14.017/2020), a Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar no 195/2022) e a Lei da Política Nacional Aldir Blanc (no 14.399/2022) destinaram (e destinarão) bilhões de reais para o fomento à cultura, num importante aumento de recursos no setor. O artigo 216 apenas foi alterado em 2003, por meio da EC no 42, que trouxe a possibilidade de os estados e o Distrito Federal vincularem até 0,5% de sua receita tributária líquida aos seus fundos de fomento à cultura, a fim de financiar programas e projetos culturais. É interessante notar que o texto original da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) – que era sobre a reforma tributária da época – nem sequer previa tal disposição, tendo esta sido inserida por meio de proposta do relator, com fundamento em “fortes reivindicações de Estados e da classe artística”10. Ocorre que tal inserção, feita numa PEC que recebeu mais de 400 emendas11, não traz muitos efeitos práticos. A vinculação de receitas tributárias é vedada pela Constituição Federal, sendo permitida apenas se prevista no próprio texto constitucional, como é o caso da saúde (artigo 198, parágrafo 2o) e da educação (artigo 212). A diferença, neste caso, está na coercitividade da previsão constitucional. Nos artigos relacionados à saúde e à educação, há uma imposição de vinculação, ou seja, o recurso deve ir para ações nesses setores. Já na disposição do artigo 216, parágrafo 6o, há apenas uma faculdade, ou seja, é uma decisão facultativa dos estados e do Distrito Federal vincular ou não sua receita ao fundo de cultura. Ao que parece, não houve força política suficiente para inserir uma obrigatoriedade de vinculação de receita ao setor cultural. Até hoje, nenhum dos estados realizou essa vinculação por meio de sua respectiva Constituição Estadual, e não há como obrigá-los juridicamente a tanto, já que a CF apenas facultou a possibilidade. Ainda há projetos de lei12 tramitando no Congresso Nacional que tentam tornar obrigatória a vinculação. 2.3. Artigo 216-A Por fim, o terceiro artigo constitucional da tríade cultural é o 216-A, que traz pela primeira vez a previsão constitucional do SNC. A discussão em torno do SNC não


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se iniciou em 2012. Segundo Clarissa Semensato e Alexandre Barbalho (2020), a ideia de estabelecer um sistema nacional de política cultural já fazia parte do programa de governo do Partido dos Trabalhadores (PT) desde 2002. Dali em diante, o Ministério da Cultura promoveu ações voltadas para a criação e a consolidação desse sistema, por meio da realização de conferências, fóruns e seminários e de propostas legislativas, como a PEC 416/2005, transformada posteriormente na EC 71/2012, que inseriu o 216-A no texto constitucional. O SNC se propõe a ser um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura – democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade – e organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, com o objetivo de promover o desenvolvimento humano, social e econômico por meio do pleno exercício dos direitos culturais. Com princípios estabelecidos e estruturado em nove elementos, tais como conselhos, conferências, planos e sistema de financiamento, o SNC existe desde 2012 na CF, mas nunca chegou a ser regulamentado via lei, em flagrante omissão legislativa da obrigação prevista no parágrafo 3o do artigo 216-A, que diz que a lei federal disporá sobre a regulamentação desse sistema. Importante notar que, apesar de a CF falar em norma federal, ela teria, na verdade, um caráter nacional13, pois seria uma norma geral obrigatória para todos os entes federados. É certo que toda disposição constitucional goza de eficácia jurídica, ou seja, tem força obrigatória e pode ser exigida. Ainda que não tenham sido regulamentados por via legal, os artigos constitucionais podem ser aplicados diretamente pela via judicial, por exemplo, desde que caracterizada a situação prevista na norma (CUNHA JR., 2011). Não obstante, a falta da lei regulamentadora traz prejuízos graves à aplicação prática do SNC. Isso se dá porque os elementos estruturantes do sistema, previstos expressamente no parágrafo 2o da CF, não têm sua configuração determinada. Não há regras, por exemplo, acerca de como será implementado o sistema de financiamento à cultura (inciso VI), como se compõem e quais são as atribuições dos conselhos de cultura (II), quais devem ser os parâmetros para a criação dos planos de cultura (V) ou como se dá a relação interfederativa na execução dessas ações. Essa omissão legislativa faz com que o SNC não exista de forma efetiva, permitindo que cada sistema estadual e municipal de cultura seja criado a partir de regras próprias, configurando seus “elementos estruturantes” da forma como entender mais adequada. Isso se torna ainda mais grave quando se fala de fomento à cultura. União, estados, Distrito Federal e municípios aplicam regras diversas ao repassar recursos públicos para agentes culturais, por meio de procedimentos muitas vezes completamente díspares entre si. As regras de repasse de recurso e prestação de contas de um edital da Agência Nacional do Cinema (Ancine), por exemplo, são absolutamente diferentes das regras de repasse de recursos e prestação de contas aplicadas pela Fundação Nacional de Artes (Funarte), ambas entidades federais. Os editais lançados por estados e municípios também são absolutamente diversos entre si, com


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Essa omissão legislativa faz com que o SNC não exista de forma efetiva, permitindo que cada sistema estadual e municipal de cultura seja criado a partir de regras próprias, configurando seus “elementos estruturantes” da forma como entender mais adequada. Isso se torna ainda mais grave quando se fala de fomento à cultura. União, estados, Distrito Federal e municípios aplicam regras diversas ao repassar recursos públicos para agentes culturais, por meio de procedimentos muitas vezes completamente díspares entre si.

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regras de repasse, seleção e prestação de contas totalmente diferentes e, por vezes, contraditórias.

Não se está aqui falando que toda a política pública de cultura do país deve ser uniforme. A diversidade da cultura brasileira e o tamanho continental do país exigem que a política pública de cultura seja, evidentemente, plural. No entanto, não há motivos para que as regras básicas de configuração de um conselho de cultura, por exemplo, mudem a depender do município no qual ele é criado. Não faz sentido que o poder público se utilize de regras diferentes para realizar o fomento à cultura, visto que a natureza jurídica da ação estatal – fomentar a cultura – não muda se ela é realizada pela União, pelo estado ou pelo município. A falta de uma regulamentação geral causa insegurança jurídica tanto para o gestor público de cultura quanto para os agentes culturais, sentida de forma intensa, por exemplo, na execução da Lei Aldir Blanc (LAB). Foi a primeira vez na história do país que um recurso tão alto foi repassado pela União aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios para fomentar o setor cultural, e o retrato da execução da LAB foi de total insegurança jurídica na aplicação desse recurso, com diversos municípios optando, inclusive, por não recebê-lo. De acordo com um estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [Ipea (2021)], apesar de todos os estados terem recebido recursos da LAB, apenas 75% dos municípios optaram pelo recebimento, e o percentual cai para 66% quando se trata de municípios pequenos, com até 20 mil habitantes. Segundo o estudo, “as transferências não foram acompanhadas de fortalecimento institucional e se submetem a complicadas prestações de contas, ademais de terem sido feitas com legislação de excepcionalidade” (IPEA, 2021). A presença de uma norma geral de estruturação do SNC, com regras claras sobre como deveria funcionar o sistema de financiamento (art. 216, § 2o, inciso VI da CF), por exemplo, poderia ter sido um passo do fortalecimento institucional necessário à execução efetiva da LAB. Percebidos os problemas da ausência de uma lei sobre fomento à cultura no país na execução da LAB, o teor da Lei Paulo Gustavo (LPG), publicada dois anos depois, já se apresenta muito mais prático na tentativa de prever as regras mínimas para a execução do recurso.

Na sequência dessas tentativas de normatização do fomento à cultura, foi publicado o Decreto no 11.453/2023, denominado pelo próprio governo federal de “Decreto do fomento cultural”. Na prática, o decreto dispõe sobre os “mecanismos de fomento do sistema de financiamento à cultura”, citando expressamente o inciso VI do parágrafo 2o do artigo 216-A da Constituição. É uma norma, portanto, restrita à regulamentação de um (o sistema de financiamento) dos nove elementos estruturantes do SNC.


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3. OS DIREITOS CULTURAIS LEVADOS A SÉRIO A diretriz para a atuação estatal na cultura está prevista na tríade composta dos artigos 215, 216 e 216-A da Constituição Federal. Nela é possível encontrar a base normativa para toda e qualquer ação de política pública de cultura no país. Desde o estabelecimento de deveres de fomento à produção, à difusão e à circulação de conhecimento e bens culturais até a proteção do patrimônio cultural, a CF determina o caminho a ser observado para a efetivação dos direitos culturais.

Não obstante a importância dada à cultura e aos direitos culturais pela CF, consagrados como direitos fundamentais, a política pública voltada para a sua efetivação parece confusa e pouco efetiva. A ausência de uma lei regulamentadora do Sistema Nacional de Cultura revela uma omissão em estruturar a política pública de cultura de forma perene, tal qual ocorre com o Sistema Único de Saúde (SUS), por diversas vezes citado como o grande exemplo inspirador para o SNC (MINC, 2011, p. 40). O SUS teve sua lei orgânica (no 8.080/90) e a que regulamenta a participação da comunidade na gestão (no 8.142/90) promulgadas dois anos após sua previsão constitucional. O SNC conta com 11 anos de espera para ter sua norma regulamentadora criada, conferindo o mínimo de configuração aos seus elementos estruturantes, previstos no parágrafo 2o do artigo 216-A da CF, com base em seus princípios básicos, dispostos no parágrafo 1o do mesmo artigo. O único elemento estruturante do SNC existente em forma de lei é o Plano Nacional de Cultura, que, como visto, não atinge o objetivo de ser um plano de ação efetivo para a política pública de cultura do país. A sua reformulação – que, inclusive, deveria ter ocorrido em 2022, mas foi prorrogada pelo governo à época – precisa enfrentar o desafio de ser um plano objetivo, com metas mensuráveis, passíveis de serem alcançadas, e não simplesmente uma carta de intenções.

É fato que o avanço trazido pela Constituição Federal de 1988 foi imenso em relação aos direitos culturais. O arcabouço normativo do direito da cultura a partir da CF é robusto e trouxe uma nova perspectiva de como o Estado deve se portar diante das demandas inerentes aos direitos culturais. Contudo, as fragilidades normativas nas bases estruturais da política pública de cultura do país, tais como a falta de garantia de orçamento mínimo, a ausência de um Sistema Nacional de Cultura estruturado e um Plano Nacional de Cultura pouco objetivo, dificultam a efetivação dos direitos culturais e tornam a política pública de cultura ainda mais sujeita às intempéries das políticas de governo.

É fato que o avanço trazido pela Constituição Federal de 1988 foi imenso em relação aos direitos culturais. O arcabouço normativo do direito da cultura a partir da CF é robusto e trouxe uma nova perspectiva de como o Estado deve se portar diante das demandas inerentes aos direitos culturais. Contudo, as fragilidades normativas nas bases estruturais da política pública de cultura do país, tais como a falta de garantia de orçamento mínimo, a ausência de um Sistema Nacional de Cultura estruturado e um Plano Nacional de Cultura pouco objetivo, dificultam a efetivação dos direitos culturais e tornam a política pública de cultura ainda mais sujeita às intempéries das políticas de governo.


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É preciso levar os direitos culturais a sério. E isso depende da construção de bases normativas para sua efetivação nos moldes determinados pela Constituição Federal. Sem isso, continuaremos a executar a política pública de cultura de forma fragmentada, intermitente, como política de governo, e não de Estado, sem a institucionalidade inerente à fundamentalidade dos direitos culturais. CECILIA RABELO é advogada no BRA Advocacia Artística e Cultural. Associada fundadora e expresidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). Mestre em direito constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor). Especialista em gestão e políticas culturais pela Universidade de Girona (Espanha) e Itaú Cultural. Especialista em direito público pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Certificada em copyright pela Universidade Harvard (Estados Unidos).

3. É a “cabeça” do artigo, o texto que

NOTAS 1. Direitos fundamentais são, em suma, direitos humanos previstos na Constituição Federal. A presença dos direitos humanos na Constituição de um país, tornando-os, portanto, fundamentais, dá a eles a coercitividade necessária para serem exigidos perante o Estado, que, por sua vez, deve dar a eles uma reforçada proteção jurídica. 2. Direitos humanos são aqueles inerentes à condição humana, que todo indivíduo tem pelo simples fato de ser uma pessoa, independentemente de raça, gênero, credo, etnia etc. Embora eles não tenham surgido apenas por causa da Segunda Guerra Mundial, visto que já existiam anteriormente, é certo que esse fato histórico e suas atrocidades culminaram na necessidade de tornar tais direitos expressos em um documento jurídico, pactuado entre os países.

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vem logo após sua numeração. É possível que o artigo seja composto apenas do caput ou de outras partes acessórias que especificam o caput, que são os parágrafos, os incisos e as alíneas. A justificativa encontra-se publicada no Diário da Câmara dos Deputados, com data de 7 de dezembro de 2000, na página 64.790. Disponível em: DCD07DEZ2000VOLI.pdf (camara.gov.br). Acesso em: 23 ago. 2023. Inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação. O Decreto-Lei no 25/37 regula o tombamento e o Decreto no 3.365/41 regula a desapropriação por interesse social, que é o caso da desapropriação para fins de proteção do patrimônio cultural (art. 5o, k e l). O outro caso de “tombamento” de reminiscências quilombolas, que se deu antes da promulgação da CF, em outubro de 1988, é o reconhecimento da Serra da Barriga, região do Quilombo dos Palmares, em Alagoas, por meio do Decreto Federal no 95.855, de 21 de março daquele ano. Disponível em: Legislação referente ao patrimônio cultural brasileiro – Cultura – 23/5/2023 – YouTube. Acesso em 23 ago. 2023.


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9. O nome oficial da Lei Rouanet

é Lei de Criação do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac). O apelido é uma homenagem a Sergio Paulo Rouanet, ex-ministro da Cultura e criador da norma. O Pronac é estruturado em três frentes de fomento: o Fundo Nacional de Cultura (FNC), os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficarts) e o incentivo fiscal. Tendo em vista os poucos recursos do FNC e a não criação dos Ficarts (existe apenas um), o incentivo fiscal acabou prevalecendo sobre os demais, tornando-se quase que “sinônimo” da Rouanet 10. Ver a p. 122 do seguinte texto: Microsoft Word – Temp38.DOC (camara.leg.br). Acesso em: 23 ago. 2023. 11. Emendas são alterações ao projeto de lei inicial. São propostas por deputados ou senadores e votadas no âmbito do processo legislativo, podendo ser acatadas ou não. 12. PEC 421/14, PEC 324/01, PEC 150/03 e PEC 310/04. 13. Normas federais são aquelas criadas no âmbito do Congresso Nacional. Quando trata apenas de questões atinentes à administração pública federal, como a lei que trata dos servidores públicos federais (Lei no 8.112/1990), por exemplo, a norma é obrigatória apenas para o ente federado União. Já quando uma norma federal trata de questões atinentes às matérias previstas no artigo 24 da CF (matérias de competência legislativa concorrente), ela tem caráter nacional, cabendo o seu cumprimento a todos os entes federados (União, estados, DF e municípios). No âmbito da competência legislativa

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concorrente, cabe à União criar as normas gerais, aos estados e DF as suplementares, e aos municípios as normas locais. REFERÊNCIAS COELHO, Teixeira. Direito cultural no século XXI: expectativa e complexidade. Revista Observatório Itaú Cultural, n. 11, p. 5-14, 2011. CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Afinal, temos ou não “direito à cultura”? Blog do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais – IBDcult, 11 abr. 2021. Disponível em: https://www.ibdcult.org/post/ afinal-temos-ou-n%C3%A3odireito-a-cultura. Acesso em: 23 ago. 2023 CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Plano Nacional de Cultura: análise jurídica da concepção, tramitação e potencialidades. Educação e Pesquisa, [S. l.], v. 48, n. contínuo, p. e244555, 2022. DOI: 10.1590/ S1678-4634202248244555por. Disponível em: https://www. revistas.usp.br/ep/article/ view/205251. Acesso em: 31 mar. 2023. CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Teoria dos direitos culturais: fundamentos e finalidades. São Paulo: Edições Sesc, 2018. CUNHA JR., Dirley da. Curso de direito constitucional. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2011. FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS – FGV (PROJETOS). Impactos econômicos da Lei Rouanet. 2018. IPEA. Políticas sociais: acompanhamento e análise. Diretoria de Estudos e Políticas Sociais. Brasília: Ipea, 2021. Disponível em: https://repositorio. ipea.gov.br/handle/11058/10796. Acesso em: 23 ago. 2023.


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MINISTÉRIO DA CULTURA – MINC. Estruturação, institucionalização e implementação do Sistema Nacional de Cultura. Brasília: MinC, 2011. Disponível em: http://portalsnc.cultura.gov. br/wp-content/uploads/ sites/32/2018/04/DocumentoB%C3%A1sico-do-SNC.pdf. Acesso em: 23 ago. 2023. RUBIM, Albino. Plano Nacional de Cultura em debate. Políticas Culturais em Revista, v. 1, n. 2, p. 59-72, 2009. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index. php/pculturais/article/view/3333. Acesso em: 23 ago. 2023. SEMENSATO, Clarissa Alexandra G.; BARBALHO, Alexandre Almeida. Sistema Nacional de Cultura: um estado da arte da produção acadêmica com foco nos estudos de caso de municípios. PragMATIZES – Revista LatinoAmericana de Estudos em Cultura, Niterói, v. 10, n. 19, p. 350-379, set. 2020.

SILVA, José Afonso da. Ordenação constitucional da cultura. São Paulo: Malheiros, 2001. SOARES, Inês Virgínia Prado. Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009. VARELLA, Guilherme. Plano Nacional de Cultura: direitos e políticas culturais no Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: Azougue, 2014.


Quem com ferro fere com ferro será ferido | Imagem de Denilson Baniwa


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Entrevista – Diversidade e os direitos culturais na Constituição Quando olhamos para a sociedade e para as variadas culturas que compõem o Brasil, deparamo-nos com uma rica diversidade, que na Constituição Federal está declarada como os “diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. No entanto, observamos nos últimos anos ataques e desrespeito com base nas diferenças de raça, crença, etnia, gênero e modos de vida. Isso tem diretamente a ver com o tema dos direitos culturais. Como aponta Eloy Terena, “olhando para a cultura, para as práticas culturais e a sua devida proteção, você vai desaguar justamente na democracia. Nesse regime em que se deve ter o respeito e a convivência das diferenças”, do mesmo modo Hédio Silva Jr. argumenta que, “quando pensamos na valorização da diversidade, isso é uma coisa da democracia brasileira. É uma coisa [com] que a sociedade brasileira precisa se comprometer”. Nesse sentido, para compor a edição 36 da Revista Observatório, convidamos os advogados Hédio Silva Jr. e Eloy Terena para um debate com mediação de Cecília Rabelo a fim de discutir o tópico da diversidade e a sua importância para a defesa dos direitos culturais e, consequentemente, para a democracia brasileira. Divididos em cinco blocos, os debates tratam de marcadores constitucionais relacionados ao pluralismo cultural, abordam a questão do patrimônio e a importância do Judiciário na garantia dos direitos culturais, e, por fim, discutem o horizonte atual e futuro desse tema. Hédio Silva Jr. é ogã, advogado e coordenador-executivo do Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras (Idafro). Eloy Terena é jurista indígena e atualmente é secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Cecília Rabelo é advogada e membra fundadora do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). CONFIRA OS BLOCOS DO DEBATE: • bloco 1 – A institucionalidade dos direitos culturais e o pluralismo cultural no Brasil; • bloco 2 – Patrimônio cultural a partir dos povos indígenas e das comunidades afro-brasileiras; • bloco 3 – O Judiciário na garantia dos direitos culturais; • bloco 4 – O Judiciário na garantia dos direitos culturais (continuação); • bloco 5 – Direitos culturais: o antes, o agora e o futuro.

acesse o conteúdo pelo QR Code ou pelo link: https:// www.itaucultural.org. br/secoes/observatorio-itau-cultural/ diversidade-direitos-cultura-constituicao


Tupi or not tupi, that´s the question | Imagem de Denilson Baniwa


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A proteção internacional dos direitos culturais FLÁVIA PIOVESAN E AKEMI KAMIMURA RECUPERAM O HISTÓRICO DA PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS CULTURAIS E SUAS RELAÇÕES COM AS COMUNIDADES INDÍGENAS FLÁVIA PIOVESAN E AKEMI KAMIMURA

RESUMO A proteção internacional dos direitos culturais vem sendo consolidada sob a perspectiva dos direitos humanos por meio de instrumentos normativos internacionais e mecanismos de proteção nos âmbitos global e regional interamericano. O artigo apresentará os principais avanços da proteção internacional dos direitos culturais a partir do desenvolvimento histórico do processo de afirmação desses direitos e suas diversas dimensões. INTRODUÇÃO Sob a ótica dos direitos humanos, a proteção internacional dos direitos culturais tem como marco inicial a Declaração Universal dos Direitos Humanos [DUDH (1948)]. É a partir dela que passam a ser adotados relevantes instrumentos normativos e mecanismos de monitoramento e promoção dos direitos culturais, seja no âmbito global, seja no âmbito do sistema interamericano.

Ambiciona este artigo enfocar os mais relevantes marcos protetivos dos direitos culturais nos sistemas global e regional interamericano, seus avanços e suas perspectivas. PROTEÇÃO DOS DIREITOS CULTURAIS NO SISTEMA GLOBAL A proteção dos direitos culturais no âmbito do sistema das Nações Unidas é assegurada por meio de instrumentos normativos e mecanismos de monitoramento e promoção dos direitos humanos. Nesse sentido, destacam-se a DUDH, de 1948, e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc), de 1966, assim como as recomendações gerais do Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Comitê Desc).

A DUDH consagra, em seu artigo 27, o direito de toda pessoa a livremente tomar parte na vida cultural da comunidade, a fruir as artes e a participar no progresso científico e nos benefícios dele resultantes. Enuncia, ainda, o direito à proteção dos interesses morais e materiais relacionados à produção científica, literária ou artística de sua autoria. Em plena harmonia com a DUDH, o Pidesc, tratado internacional com força jurídica vinculante, adotado em 1966 e ratificado pelo Estado brasileiro em 1992, estabelece, em seu artigo 15, o direito de cada indivíduo de participar da vida cultural, de desfrutar do progresso científico e suas aplicações e de beneficiar-se da prote-


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ção dos interesses morais e materiais decorrentes da produção científica, literária ou artística de que seja autor. O Pidesc também prevê medidas a serem adotadas pelos Estados-partes para assegurar o pleno exercício desse direito, inclusive ações necessárias à conservação, ao desenvolvimento e à difusão da ciência e da cultura, assim como o respeito à liberdade indispensável à pesquisa científica e à atividade criativa. Ele reconhece os benefícios que derivam do fomento e ressalta a importância da cooperação e das relações internacionais no domínio da ciência e da cultura. Em 2006, o Comitê Desc, na qualidade de órgão de monitoramento do Pidesc, em seu Comentário Geral no 17, tratou sobre o direito de todos se beneficiarem da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística de que sejam autores. O direito humano de beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes da produção científica, literária ou artística salvaguarda a relação entre a pessoa autora e sua criação, O direito humano de beneficiar-se da proteção assim como entre povos, comunidades e dos interesses morais e materiais decorrentes outros grupos em relação ao patrimônio da produção científica, literária ou artística cultural coletivo. salvaguarda a relação entre a pessoa autora e sua criação, assim como entre povos, Em 2010, em seu Comentário Geral no comunidades e outros grupos em relação 21, sobre o direito de todos de participar ao patrimônio cultural coletivo da vida cultural, o Comitê Desc ressaltou a inter-relação do direito de participar na vida cultural com outros direitos humanos. Destacou que, para sua realização, são necessárias medidas negativas e positivas da parte do Estado. De um lado, é necessário que o Estado-parte se abstenha de fazer algo, a fim de que se assegure a não ingerência estatal no exercício das práticas culturais e no acesso aos bens culturais. De outro, é necessário que o Estado tome medidas positivas para a implementação desse direito, garantindo condições prévias para participar na vida cultural, promover, facilitar e dar acesso aos bens culturais e também preservá-los. O Comitê Desc assinalou que a decisão de uma pessoa de exercer ou não o direito de participar na vida cultural, individualmente ou em associação com outras pessoas, é uma escolha cultural e, como tal, deve ser reconhecida, respeitada e protegida com base na igualdade – o que é especialmente importante para os povos indígenas, que têm direito, coletivo e individual, ao pleno gozo dos direitos humanos. Para a plena realização do direito de participar na vida cultural com igualdade e sem discriminação, são condições necessárias: disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade, adaptabilidade e idoneidade (adequação ou aceitação cultural). O Comitê Desc também enfatizou medidas para coibir a discriminação e propiciar tratamento igualitário, com ênfase nas comunidades e pessoas que requerem proteção especial (como as mulheres, as crianças, os idosos, as pessoas com deficiência, os migrantes e os povos indígenas). Endossou, ainda, a importância da diversidade cultural e do direito de participar da vida cultural. Em 2020, no Comentário Geral no 25, sobre ciência e direitos econômicos, sociais e culturais, o Comitê Desc teve como foco principal o direito de todas as pessoas de


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desfrutarem dos benefícios do progresso científico e suas aplicações. O Comitê Desc mencionou a definição utilizada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) para ciência, ressaltando que ciência (abrangendo ciências naturais e sociais) se refere ao processo que segue certa metodologia e ao resultado do processo (conhecimento e aplicação). O conhecimento deve ser considerado ciência somente se for baseado na investigação crítica e estiver aberto à falsificação e à testabilidade. Para o comitê, não pode ser considerado ciência o conhecimento que se baseia unicamente na tradição, na revelação ou na autoridade, sem o possível contraste com a razão e a experiência, ou que é imune a qualquer falsificabilidade ou verificação intersubjetiva. O direito de toda pessoa a participar da vida cultural inclui o direito a participar do progresso da ciência e em decisões relativas à sua direção.

Para a plena realização do direito de participar na vida cultural com igualdade e sem discriminação, são condições necessárias: disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade, adaptabilidade e idoneidade (adequação ou aceitação cultural)

Segundo o Comitê Desc, o direito de participar e usufruir dos benefícios do progresso científico e suas aplicações tem elementos relacionados e essenciais: disponibilidade, acessibilidade para todas as pessoas sem discriminação, qualidade, aceitabilidade e a proteção da liberdade de pesquisa científica. O comitê também estabelece obrigações para os Estados e especial proteção para grupos específicos, como mulheres, pessoas com deficiência, povos indígenas e conhecimento tradicional. Ressalta, ainda, temas relevantes como participação e transparência, participação e princípio da precaução, pesquisa científica privada e propriedade intelectual, interdependência com outros direitos, riscos e promessas de tecnologias emergentes. Em 2023, em seu Comentário Geral no 26, sobre terras e direitos econômicos, sociais e culturais, o Comitê Desc destaca que o acesso seguro e equitativo ao uso e ao controle da terra pode ter implicações para uma gama de direitos estabelecidos no Pidesc, entre eles o de participar da vida cultural. Isso se dá por causa do significado espiritual ou religioso particular da terra para diversas comunidades, algo especialmente relevante para povos indígenas e camponeses, bem como para outras comunidades locais que vivem estilos de vida tradicionais. Além dos instrumentos protetivos internacionais destacados, vale citar as principais normativas da Unesco que protegem e promovem os direitos culturais. Nesse âmbito, cabe inicialmente mencionar a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural1, de 1972, que entrou em vigor em 1975. Essa convenção alerta, em seu preâmbulo, para a deterioração ou o desaparecimento de um bem do patrimônio cultural e natural, o que constitui um “empobrecimento nefasto do patrimônio de todos os povos do mundo”, e estabelece medidas para a proteção nacional e internacional do patrimônio cultural e natural. Já a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial2, de 2003, entrou em vigor em 2006. Em seu artigo 2o, a convenção estabelece que o “patrimônio cultural imaterial” se manifesta em particular nos seguintes âmbitos: a) tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do patrimônio cul-


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tural imaterial; b) artes de espetáculo; c) usos sociais, rituais e atos festivos; d) conhecimentos e usos relacionados com a natureza e o universo; e) técnicas artesanais tradicionais. Por fim, destaca-se a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais3, de 2005, que entrou em vigor em 2007, sendo precedida pela Declaração Universal da Unesco sobre Diversidade Cultural, de 2001. A convenção afirma que a diversidade cultural constitui um patrimônio comum da humanidade que deve ser valorizado e preservado em benefício de todos. Ela ressalta que a diversidade cultural se fortalece mediante a livre circulação de ideias e se nutre dos intercâmbios e das interações constantes entre as culturas. Considera, ainda, a importância da diversidade cultural para a plena realização dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, já que a cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço e que essa diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade das identidades e nas expressões culturais dos povos e das sociedades que formam a humanidade. PROTEÇÃO DOS DIREITOS CULTURAIS NO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS No âmbito do regional interamericano, destacam-se normativas e mecanismos de monitoramento, assim como casos emblemáticos da Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão jurisdicional do sistema interamericano.Os direitos culturais são protegidos de forma genérica pelo artigo 26 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e reconhecidos expressamente pelo Protocolo de San Salvador (PSS).

Em seu artigo 14, o PSS consagra o diA Corte IDH enfatiza a obrigação estatal reito à cultura, ressaltando que os Esde adotar as medidas especiais necessárias tados-partes reconhecem o direito de para salvaguardar as culturas e o meio toda pessoa aos benefícios da cultura, o ambiente dos povos indígenas, e também o que inclui: participar da vida cultural e direito desses povos de decidir sobre suas artística da comunidade; gozar dos bepróprias prioridades no que concerne nefícios do progresso científico e tecnoao processo de desenvolvimento lógico; e beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais em virtude de produções científicas, literárias ou artísticas de sua autoria. O protocolo destaca medidas a serem adotadas pelos Estados-partes para assegurar esse direito e implementar seu pleno exercício, com ênfase nas medidas necessárias para conservação, desenvolvimento e divulgação da ciência, da cultura e da arte. Ele ressalta, ainda, o compromisso dos Estados-partes de incentivar maior cooperação internacional em campos científicos, artísticos e culturais, assim como seu compromisso de respeitar a liberdade indispensável para pesquisa científica e atividade criadora. Em 2010, foi instituído o Grupo de Trabalho do Protocolo de San Salvador (GT PSS)4, para analisar relatórios nacionais, conforme o artigo 19 do PSS. Em 2011, o GT PSS apresentou proposta de indicadores para mensurar o cumprimento progressivo dos direitos contidos no protocolo, contemplando indicadores estruturais, de processo e de resultados, em relação à recepção do direito, ao contexto financeiro básico e a compromissos orçamentários, capacidades estatais,


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igualdade e não discriminação, acesso à informação pública e participação, e acesso à justiça. No âmbito da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), os direitos culturais têm sido desenvolvidos especialmente sob a ótica dos direitos dos povos indígenas, por meio do reconhecimento do vínculo entre seu direito à propriedade coletiva e a preservação de suas características e tradições culturais. No “Caso da Comunidade Indígena Yakye Axa vs. Paraguai” 5, a Corte IDH salienta a relação especial que os povos indígenas têm com suas terras e sua relação com direitos culturais: Estados devem ter em conta que os direitos territoriais indígenas incluem um conceito mais amplo e diferente que está relacionado com o direito coletivo à sobrevivência como povo organizado, com o controle de seu habitat como uma condição necessária para a reprodução de sua cultura, para seu próprio desenvolvimento e para levar a cabo seus planos de vida. A propriedade sobre a terra garante que os membros das comunidades indígenas conservem seu patrimônio cultural6. A Corte IDH também destaca que a garantia do direito à propriedade comunitária dos povos indígenas deve levar em consideração que a terra está estreitamente relacionada com a cultura e as práticas tradicionais dos povos indígenas, como suas tradições e expressões orais, costumes, línguas, artes e rituais, seus conhecimentos tradicionais e usos relacionados com a natureza, artes culinárias, direito costumeiro, vestimenta, filosofia e valores7. A corte ressalta que “a estreita relação que os indígenas mantêm com a terra deve de ser reconhecida e compreendida como a base fundamental de sua cultura, vida espiritual, integridade, sobrevivência econômica e sua preservação e transmissão às futuras gerações”8. No caso “Povo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Equador”9, a Corte IDH reconhece a estreita vinculação entre território e tradições, costumes, línguas, artes, rituais, conhecimentos e outros aspectos da identidade dos povos indígenas, transmitindo de geração em geração esse patrimônio cultural imaterial em função de seu entorno, sua integração com a natureza e sua história. Para a Corte IDH, “o direito à identidade cultural é um direito fundamental e de natureza coletiva das comunidades indígenas, que deve ser respeitado numa sociedade multicultural, pluralista e democrática”10. O documento afirma que a intervenção e a destruição de seu patrimônio cultural implicam uma grave falta de respeito à identidade social e cultural, a seus costumes, tradições e cosmovisão, assim como à conservação das características próprias de sua cultura e de seu modo de viver, gerando grande preocupação, tristeza e sofrimento entre essas comunidades. No “Caso comunidades indígenas miembros de la Asociación Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) vs. Argentina”11, a Corte IDH destacou que o direito de participar da vida cultural inclui o direito à identidade cultural e, retomando normativas da Unesco e do Comentário Geral no 21 do Comitê Desc, ressaltou que “o direito à identidade cultural tutela a liberdade das pessoas, inclusive atuando de maneira


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associada ou comunitária, a identificar-se com uma ou várias sociedades, comunidades, ou grupos sociais, a seguir uma forma ou estilo de vida vinculado à cultura a que pertence e a participar do desenvolvimento da mesma”12, protegendo características distintivas do grupo social sem implicar a negação do caráter histórico, dinâmico e evolutivo da cultura. O documento reforça que os Estados devem respeitar e proteger o patrimônio cultural de todos os grupos e comunidades, em especial de pessoas e grupos desfavorecidos e marginalizados, nas políticas e nos programas ambientais e de desenvolvimento econômico. Em relação aos povos indígenas em particular, entre outros direitos, a Corte IDH enfatiza a obrigação estatal de adotar as medidas especiais necessárias para salvaguardar as culturas e o meio ambiente dos povos indígenas, e também o direito desses povos de decidir sobre suas próprias prioridades no que concerne ao processo de desenvolvimento, na medida em que este possa vir a afetar suas vidas e as terras que ocupam ou utilizam de alguma maneira. CONCLUSÃO Sob a perspectiva dos direitos humanos, este estudo objetivou enfocar o processo de desenvolvimento da proteção internacional dos direitos culturais.

Concebidos como direito humano uniOs direitos culturais são indivisíveis, versal pela Declaração Universal de inter-relacionados e interdependentes, 1948, os direitos culturais compreenpossuindo particularidades quanto aos povos dem o direito de participar livremente indígenas e às comunidades tradicionais, para da vida cultural, de fruir das artes e de os quais a identidade cultural tem vínculos participar do progresso científico e de específicos com outros direitos, como o da seus benefícios. A partir do Pidesc de propriedade comunal da terra 1966, os direitos culturais têm fortalecido o seu grau de proteção, por meio do dever dos Estados de adotar medidas para a conservação, o desenvolvimento e a difusão da ciência e da cultura, incluindo a cooperação internacional, com plena observância da liberdade à pesquisa científica e à atividade criadora. Os Comentários Gerais do Comitê Desc nos 17, 21, 25 e 26 desenvolvem, avançam e aprimoram a proteção aos direitos culturais. Esses avanços são ampliados, ainda, por meio das principais normativas da Unesco que protegem e promovem direitos culturais, com destaque para a proteção do patrimônio mundial, cultural e natural, a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial e a proteção e a promoção da diversidade das expressões culturais. Ao sistema global de proteção soma-se o sistema regional interamericano, convergindo para o fortalecimento da proteção dos direitos culturais. Nesse sentido, este estudo destacou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969, e o Protocolo de San Salvador, de 1988, ambos ratificados pelo Estado brasileiro e em absoluta harmonia com os parâmetros protetivos do sistema global. Como foi analisado, o sistema interamericano contribui significativamente para o fortalecimento da proteção dos direitos culturais por meio dos indicadores para mensurar o cumprimento progressivo dos direitos enunciados no Protocolo de San Salvador. Além dos instrumentos e dos indicadores, a jurisprudência interamericana tem sido referência internacional na proteção dos direitos dos povos indígenas, com destaque para a


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proteção de seus direitos culturais. Deste modo, os direitos culturais são protegidos nas esferas global, regional e local, que reforçam e fortalecem umas às outras no sentido de assegurar a melhor e mais efetiva proteção aos direitos culturais. Em relação aos demais direitos, os direitos culturais são indivisíveis, inter-relacionados e interdependentes, possuindo particularidades quanto aos povos indígenas e às comunidades tradicionais, para os quais a identidade cultural tem vínculos específicos com outros direitos, como o da propriedade comunal da terra. Uma vez disposto em linha temporal, o processo de afirmação dos direitos culturais e de suas diversas dimensões traz como marcos as normativas internacionais e os mecanismos criados para sua proteção, com especial atenção aos povos indígenas. Que essa linha possa se expandir ao longo do tempo, com mais avanços que assegurem a efetiva proteção e promoção dos direitos culturais e seu pleno exercício por todas as pessoas, comunidades e sociedades, com respeito à diversidade e levando em consideração o patrimônio cultural e as gerações presentes, passadas e futuras. Gráfico 1: Linha do tempo 1948

Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH)

1966

1969

1970

Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc)

Convenção Americana sobre Direitos Humanos [CADH (Pacto de San José da Costa Rica)]

Unesco – Convenção Relativa às Medidas a Serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedades Ilícitas dos Bens Culturais

1972

1988

2003

2005

Unesco – Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural

Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais [Protocolo de San Salvador (PSS)]

Unesco – Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial

Unesco – Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais Corte IDH – “Caso da Comunidade Indígena Yakye Axa vs. Paraguai”

2006

2010

Comitê Desc – Comentário Geral no 17, sobre o direito de todos de se beneficiarem da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística de que sejam autores

Organização dos Estados Americanos (OEA) – Instituído o grupo de trabalho (GT) para analisar relatórios nacionais previstos no artigo 19 do PSS

2011

GT PSS – Proposta de indicadores para mensurar o progresso dos Desc estabelecidos no PSS

Comitê Desc – Comentário Geral no 21, sobre o direito de todos de participar da vida cultural

2012

2020

2023

Corte IDH – Caso “Povo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Equador”

Corte IDH – “Caso comunidades indígenas miembros de la Asociación Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) vs. Argentina”

Comitê Desc – Comentário Geral no 26, sobre terras e direitos econômicos, sociais e culturais

Comitê Desc – Comentário Geral no 25, sobre ciência e direitos econômicos, sociais e culturais


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FLÁVIA PIOVESAN é professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), com estudos de pósdoutoramento na Universidade Harvard, na Universidade de Oxford e no Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law. Foi vice-presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

4. Para mais informações, consultar:

AKEMI KAMIMURA é advogada, especialista e mestre em direitos humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em direitos humanos e mulheres pela Universidade do Chile. NOTAS 1. Disponível em (espanhol): https:// www.unesco.org/es/legal-affairs/ convention-concerning-protectionworld-cultural-and-naturalheritage. Acesso em: 14 ago. 2023. 2. Disponível em (espanhol): https:// www.unesco.org/es/legal-affairs/ convention-safeguardingintangible-cultural-heritage. Acesso em: 14 ago. 2023. 3. Disponível em (espanhol): https:// www.unesco.org/es/legal-affairs/ convention-protection-andpromotion-diversity-culturalexpressions?hub=66535. Acesso em: 14 ago. 2023.

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https://www.oas.org/es/sadye/ inclusion-social/protocolo-ssv/ grupo-trabajo.asp. Acesso em: 14 ago. 2023. 5. CORTE IDH. Caso da Comunidade Indígena Yakye Axa vs. Paraguai – sentença de 17 de junho de 2005. Disponível em: https:// www.corteidh.or.cr/docs/casos/ articulos/seriec_125_por.pdf. 6. Ibidem, parágrafo 146. 7. Ibidem, parágrafo 154. 8. Ibidem, parágrafo 131. 9. CORTE IDH. Povo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Equador – sentença de 27 de junho de 2012. Disponível em: https:// www.corteidh.or.cr/docs/casos/ articulos/seriec_245_por.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023. 10. Ibidem, parágrafo 217. 11. CORTE IDH. Caso comunidades indígenas miembros de la Asociación Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) vs. Argentina – sentencia de 6 de febrero de 2020. Disponível em: https:// www.corteidh.or.cr/docs/casos/ articulos/seriec_400_esp.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023. 12. Ibidem, parágrafo 240.


Voyeur | Imagem de Denilson Baniwa


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Apropriações indevidas: riscos e disputas na devolução de bens culturais no cenário internacional ANAUENE DIAS SOARES ABORDA OS MEIOS ALTERNATIVOS PARA A DEVOLUÇÃO DE APROPRIAÇÕES INDEVIDAS DO PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO ANAUENE DIAS SOARES

RESUMO Tanto o direito doméstico quanto o internacional têm se demonstrado insuficientes para coibir a apropriação indevida de bens culturais e para possibilitar as suas devidas devoluções ao local de origem, visto que essas transações sofrem influências de políticas internacionais dos Estados e de outros atores, como museus e universidades, como aconteceu com o fóssil brasileiro Ubirajara jubatus, que se encontrava no Museu de História Natural de Karlsruhe, na Alemanha. APROPRIAÇÕES INDEVIDAS DO PATRIMÔNIO CULTURAL E SUAS DEVOLUÇÕES O fluxo de patrimônio cultural que seguiu de ex-colônias e territórios considerados hoje como países em desenvolvimento para museus e instituições culturais públicas e privadas localizadas em países denominados desenvolvidos é reflexo da expansão do imperialismo. Após o ciclo de independência das décadas de 1950 e 1960, os novos Estados começaram a questionar (FORREST, 2002) a forma como se deu essa apropriação, iniciando, em muitos casos, uma disputa para reaver seus patrimônios culturais.

O liame lógico entre apropriação indevida e devolução de patrimônio cultural é mais que evidente. Se a apropriação dos bens se deu ilegalmente, há a obrigação de devolvê-los. Portanto, qualquer Estado responsável por um ato internacionalmente ilegal é obrigado, em primeiro lugar, a restabelecer a situação que teria existido se o ato não tivesse ocorrido (SHAW, 2017). Diante dessas práticas indevidas, podem-se identificar algumas das várias causas das expropriações e remessas internacionais, tais como o tráfico ilícito, que pode se dar por furto, roubo, exportação, importação, escavação, remoção ou transferências não autorizadas, pilhagem em tempo de guerra ou, ainda, por apropriação ou comércio entre traficantes em tempos de colonização ou ocupação (FORREST, 2002). Assim, o primeiro a ser resolvido é se a aquisição foi ou não lícita e que efeito isso tem sobre o princípio da devolução (CORNU; RENOLD, 2010).


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No contexto da colonização, por exemplo, visto que a questão da ilegalidade da apropriação não se coloca em confronto com as legislações nacionais e internacionais em vigor na época, o risco de não ocorrer a devolução é ainda maior. Nesses casos, a devolução de bens tende a se basear na necessidade de restituir o patrimônio cultural insubstituível a quem os criou não por se tratar de um ato ilegal, mas sim indevido. Já no caso das exportações ilegais, os bens são devolvidos ao Estado de origem sem que surja a questão da propriedade. Como corretamente afirmado por Pomian (2007, p. 17, tradução livre): o que está por trás do renovado interesse na restituição de propriedade cultural nas últimas décadas é apenas uma tentativa de compensar o passado, que toca em questões históricas pendentes, como a colonização europeia, a Segunda Guerra Mundial e a discriminação contra os povos indígenas. Como forma de elucidar também sua contribuição nos conflitos de devolução dos bens, mesmo que não haja um tratamento uniforme nos textos jurídicos, o esclarecimento do uso de terminologias atinentes à devolução de bens culturais ao possuidor ou proprietário original exige uma diferenciação entre os termos restituição, retorno e repatriação abordados por Wojciech Kowalski (2005). O termo restituição é atualmente usado principalmente para os bens culturais pilhados em tempos de guerra ou para os bens culturais roubados, sempre denotando, segundo Kowalski (2005), uma situação ilegal. Já o retorno é mais usado para bens culturais que foram deslocados em benefício do poder colonial e devolvidos ao seu país de origem e, também, para os casos de exportação ilegal. Em ambas as situações, o retorno depende mais da noção de território, enquanto a restituição, no sentido técnico, pressupõe que haja um destinatário identificado. No que se refere à repatriação, trata-se de uma forma específica de restituição, cujo destino pode variar: quer para o país a que pertence o bem cultural, quer para a etnia que o possui. O termo é mais frequentemente usado no contexto de reivindicações de povos indígenas. Com o intuito de mitigar essas apropriações indevidas, irregulares ou ilegais, cita-se a Red List brasileira do Conselho Internacional de Museus (Icom), que é uma lista de bens culturais nacionais em risco diante do tráfico ilícito do patrimônio cultural. Ela foi lançada em fevereiro de 2023 e contou com a coordenação técnica da autora do presente artigo. Na lista, podem-se encontrar cinco categorias de bens culturais, a saber: bens arqueológicos, paleontológicos, etnológicos, religiosos e bibliográficos. Caso profissionais atuantes na área de patrimônio cultural ou mesmo quaisquer cidadãos suspeitem de alguma evasão ou alienação indevida de algum bem, eles poderão verificar na lista se o objeto é parte dessa seleção e comunicar sua suspeita às autoridades competentes, conforme indicado no documento. RISCOS NORMATIVOS E ESTATAIS NAS DEVOLUÇÕES DE BENS CULTURAIS Sabe-se que, mais por questões de política, países do Sul Global são membros da Convenção da Unesco de 1970, em sua grande maioria sem reservas de artigos (quando artigos de um tratado internacional não são recepcionados por determinado país). Em contrapartida, por puro reflexo das colonizações, países do Norte


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Global, como os da União Europeia e os da América do Norte, internalizaram a referida convenção com reservas de artigos ou nem sequer dela fazem parte. Há, ademais, a má interpretação da normativa internacional e o aproveitamento de lacunas legais para afirmar a posse de um bem – ou a resistência colonialista em devolvê-lo pautada pelo princípio de que “a lei não retroage”. No entanto, o Comitê Intergovernamental para a Promoção de Retorno de Bens Culturais aos Países de Origem ou Sua Restituição em Caso de Apropriação Ilícita, de 1978, foi criado para encorajar as negociações bilaterais e ajudar os países nos casos em que as convenções não possam ser aplicadas (artigo 4o, parágrafo 1o). Para corroborar as normativas internacionais, o glossário do Museum Security Network, de 2010, elucida que “[...] a devolução de um bem cultural pertencente a uma coleção de museu dar-se-á para uma parte que seja considerada o verdadeiro proprietário ou possuidor tradicional [...]” (tradução livre). Ao não serem compelidos a devolver tais bens, os museus europeus, principalmente, atuam apenas como agentes do mercado e do Estado, confirmando, assim, os privilégios das “nações” e instituições. Em relação aos critérios usados nas políticas internacionais de proteção do patrimônio cultural, os estudos comparados entre os Estados-partes das convenções da Unesco, o Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (Unidroit) e as decisões das cortes e câmaras de arbitragem em Haia são predominantemente de visão ocidental, devido ao fato de a própria Organização das Nações Unidas (ONU) ser em sua maioria constituída por países ocidentais e pelos ditos países desenvolvidos, responsáveis pela deliberação e pela elaboração da normativa internacional (BENHAMOU, 2016). Mesmo no caso de uma abordagem – muitas vezes influenciada pelo protecionismo eurocêntrico, ocidental – que primasse pela proteção de bens culturais pelo simples fato de engendrarem uma importância per se, independentemente da sua relevância para qualquer ser ou comunidade humana, seria ainda possível verificar o reconhecimento de um valor intrínseco, de uma certa dignidade cultural (SOARES; MARTINS, 2014). Por outro lado, soluções alternativas e plurais, em um contexto pós-colonialista, poderiam assegurar maior efetividade das normas e instituições internacionais que protejam o patrimônio cultural de um dado Estado.

Por outro lado, soluções alternativas e plurais, em um contexto pós-colonialista, poderiam assegurar maior efetividade das normas e instituições internacionais que protejam o patrimônio cultural de um dado Estado.

A existência de uma rede de tráfico e comercialização de bens culturais é resultado de diferentes fatores: aspectos de natureza jurídica, com ajustes e superação de lacunas legais; as características socioeconômicas das diferentes regiões nas quais estão localizados os patrimônios culturais; recursos humanos e financeiros insuficientes para a atuação adequada dos órgãos/organismos competentes; e a baixa integração entre eles no âmbito nacional e internacional. Além de a exploração econômica dos bens culturais ser outro fator de risco, assim como as ocorrências de furto de exemplares para fins comerciais, essas atividades representam enor-


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me risco para a pesquisa (devido à sua importância científica) e a salvaguarda do patrimônio cultural. Outro ponto a ser considerado, no viés da natureza jurídica, é a diferença normativa entre países. Enquanto no Brasil e em outros países a exploração e a comercialização de determinados bens culturais são proibidas e com previsão em leis (ainda carecem de melhor aplicabilidade e de sua respectiva fiscalização), em outros países a comercialização desses bens é permitida. Essa dicotomia colabora para a incidência do comércio desses bens em sites e casas de leilão virtuais, dificultando ainda mais a fiscalização e gerando uma grande dispersão e dificuldades operacionais e jurídicas quanto ao comércio eletrônico de bens culturais acautelados e/ou proibidos de serem comercializados. Ademais, os países, à luz do direito interno, mesmo que detenham um arcabouço legislativo, seja ele voltado para a proteção do patrimônio cultural ou não, não fazem o devido uso ou aplicabilidade dessas leis. A necessidade de aprimoramento da legislação e, talvez, a criação de normas específicas que disponham sobre a apropriação indevida de bens culturais e suas respectivas devoluções também são mandatórias. Outro aspecto jurídico a ser considerado, inexistente no Brasil, é a definição dos procedimentos de fiscalização e aplicação de sanções administrativas em relação à defesa dos bens culturais. Há, também, o risco representado pelas características socioeconômicas das diferentes regiões nacionais: a desinformação, o desconhecimento da legislação e a ausência de fiscalização e punição – o que facilita o aliciamento da população local nessa rede delituosa –, bem como a insuficiência de recursos humanos e financeiros. As instituições envolvidas na fiscalização, em sua maioria localizadas em Estados do Hemisfério Sul, convivem com a falta de recursos financeiros e humanos e, além de terem um número reduzido de agentes, igualmente demandam, diante da diversidade e das especificidades do patrimônio cultural, uma equipe especializada para apoio nas operações e maior integração entre os órgãos e as entidades envolvidos no combate à apropriação de bens culturais nos países e entre os países. Neste sentido, seria importante estabelecer a interoperabilidade entre os bancos de dados de obras desaparecidas das organizações internacionais e policiais, tais como os da Interpol1, do FBI2 e do Comando Carabinieri per la Tutela del Patrimonio Culturale, da Itália3. Outro grande desafio enfrentado por alguns países, como o Brasil, principalmente no que tange ao âmbito aduaneiro e policial, é ter ou manter uma presença ostensiva ao longo de todas as fronteiras nacionais, considerando também o fator climático. A presença, em ambos os lados fronteiriços, do crime organizado voltado para transportadores, receptadores, depósitos e transportação, bem como a grande variabilidade de tipologias de bens culturais acautelados, dificulta sua identificação pelos órgãos competentes e pela comunidade, fator agravado pela carência de qualificação dos profissionais responsáveis. DISPUTAS NAS DEVOLUÇÕES INTERNACIONAIS DE BENS CULTURAIS A devolução de bens culturais em âmbito internacional sempre esteve atrelada a questões de Estado e à disputa entre países (PERROT, 2005), seja para reivindi-


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car soberania, seja para requerer um bem cultural, como ocorreu na Convenção da Unesco de 1970, mencionada acima. O surgimento de outros atores com direito a reivindicar a propriedade de certos ativos gerou novas características nessas tramitações. A questão de legitimidade desses novos atores para atuar em defesa de seus próprios interesses patrimoniais, principalmente à luz das reivindicações praticadas pelas comunidades indígenas, exige a devolução de seu patrimônio segundo o interesse coletivo. O problema é mais complexo quando o reclamante é uma comunidade. Ainda não existe o reconhecimento legal da propriedade ou posse coletiva de bens móveis culturais não estatais no direito internacional. Na prática, tais reivindicações e devoluções são geralmente feitas por meio do Estado. O patrimônio coletivo implica uma forma diferente de propriedade, que afeta a liberdade de dispor livremente de tais bens (LIXINSKI, 2019). De acordo com o artigo 11 da Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, resolução da ONU, o povo indígena, por exemplo, tem poderes para controlar o uso do seu patrimônio cultural e para “manifestar, praticar, desenvolver e ensinar sua espiritualidade e tradições, costumes e cerimônias religiosas”, o que implica o acesso aos objetos que sustentam essas práticas. O texto, portanto, introduz um O povo indígena, por exemplo, tem poderes mecanismo original no estabelecimenpara controlar o uso do seu patrimônio cultural to de um direito de uso, mas a devolução e para “manifestar, praticar, desenvolver não é obrigatória neste caso. e ensinar sua espiritualidade e tradições, costumes e cerimônias religiosas”, o que Essa possibilidade é mencionada ainda implica o acesso aos objetos que sustentam no artigo 11, que exige que os Estados essas práticas. O texto, portanto, introduz concedam “reparação por meio de meum mecanismo original no estabelecimento canismos eficazes, que podem incluir a de um direito de uso, mas a devolução não devolução, desenvolvida em conjunto é obrigatória neste caso. com os povos indígenas, com relação a seu patrimônio cultural, intelectual, religioso e espiritual apropriado indevidamente”, independentemente de a expropriação ter sido lícita ou não. O respeito por esses direitos pode ser logicamente garantido por meio de trocas e negociações como alternativas à devolução. No caso de bens públicos, na maioria das ocorrências não há necessidade de promulgar uma lei para iniciar o processo de devolução. Uma decisão administrativa é suficiente para assegurar a remoção dos bens públicos ou das coleções, como no caso dos bens arqueológicos e paleontológicos brasileiros, com previsão expressa na Constituição de 1988, de modo que as devoluções possam ser efetuadas sem a necessidade de solicitar autorização ou assinar contratos diretos, prescindindo, inclusive, do uso de canais diplomáticos. Há outro aspecto também a ser considerado: a inalienabilidade de obras e coleções de domínio público, como os bens arqueológicos e paleontológicos brasileiros. A regra de inalienabilidade tem a ver com a utilidade pública do item, uma determinação especial geralmente resultante de uma decisão administrativa ou judicial, e vinculativa até mesmo para o chefe de Estado, que não pode dispor livremente de


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tal bem cultural como um presente a outro Estado (CORNU; RENOLD, 2010). Um exemplo é o caso do fóssil brasileiro Ubirajara jubatus, que saiu ilegalmente do país e se encontra no Museu de História Natural de Karlsruhe, em território alemão4. O governo de Baden-Württemberg argumenta que, apesar de a Convenção da Unesco ser da década de 1970, a Alemanha só se tornou membro dela em 2000, e outra lei doméstica5, Cultural Property Protection Act of 31 July 2016, na seção 32 (1) 1. b), determina que todo material levado para o país antes de 26 de abril de 2007 é considerado como propriedade do país. Como o fóssil brasileiro foi adquirido antes da entrada em vigor na Alemanha dessa convenção da Unesco e importado em conformidade com todas as regulamentações alfandegárias, não caberia sua devolução. No entanto, a legislação alemã não impediria a devolução do fóssil como preceitua o próprio ditame legal da Unesco, pois o país é signatário da convenção desde 19736. Diante disso, após muitas negociações entre o Ministério das Relações Exteriores brasileiro e o Estado alemão, o fóssil Ubirajara foi devolvido ao Brasil, com cerimônia solene no Ministério de Ciências, Tecnologia e Inovação no dia 12 de junho de 2023, e encaminhado na mesma semana para o Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, pertencente à Universidade Regional do Cariri (Urca) e localizado em Santana do Cariri, no Ceará, sob a responsabilidade do professor Allysson Pontes Pinheiro. O retorno do bem cultural nacional está contribuindo de forma significativa para que outras requisições sejam atendidas. Atualmente, segundo Marie Cornu e Marc-André Renold (2010), há uma variedade de termos para a devolução de bens culturais. Os acordos negociados às vezes oferecem soluções complexas, havendo também uma tendência de “afastar” a propriedade da posse. Apesar de algumas soluções evidenciarem a devolução dos bens culturais ou um acordo baseado nela, outras fornecem uma alternativa à devolução sujeita a certas condições, bem como soluções conjuntas. Além disso, várias soluções específicas podem ser adotadas cumulativamente em um caso específico, como se deu, por exemplo, no caso brasileiro da Coleção de Índios Waurà, sendo as partes da controvérsia o Museum der Kulturen Basel versus os Herdeiros Penteado Coelho e o Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP). No caso, Vera Penteado Coelho comprou bens culturais etnológicos brasileiros e os exportou ilegalmente para fora do país. Após a sua morte, em 2000, seu testamento legou os bens culturais ao Museum der Kulturen Basel, na Alemanha. No entanto, na mesma época o museu recebeu uma carta de representantes do povo Uaurá protestando contra o envio de seu patrimônio cultural para o exterior, para longe de si mesmos e das gerações futuras. Com isso, o MAE/USP também contestou o espólio. Apesar disso, somente em 2008 parte da coleção foi doada ao museu universitário. O contrato de doação incluiu cláusulas de cooperação cultural e garantia de acesso à coleção para indígenas e a comunidade científica, bem como a possibilidade de transferência da coleção para um futuro museu dos Uaurá (BRUST, 2009). O objetivo era promover a troca de conhecimentos sobre essa temática e compreender a importância da coleção para os indígenas Uaurá.


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De maneira geral, parece haver um movimento em direção a acordos que não se expressam formalmente em termos de vitória ou derrota, mas que reconhecem a existência de interesses legítimos de ambas as partes. CONCLUSÃO Com base no que foi visto, uma análise comparativa da prática internacional demonstra que existem novos e variados meios alternativos de devolução de bens culturais. A prática nesse campo parece ser orientada por novos princípios éticos que regem a formação de coleções públicas e privadas, já que o patrimônio cultural não é mais adquirido como no passado, mesmo que as apropriações indevidas sejam ainda similares e constantes.

Pode-se observar e destacar uma prática emergente associada ao entendimento de haver uma obrigação com certos valores do patrimônio cultural, incluindo a identificação, a memória e o uso social de um bem cultural. Essas considerações éticas se aproximam da opinio juris necessitatis7, condição necessária para a existência de um costume na comunidade internacional. É por meio de práticas éticas de devolução de bens culturais que um Estado de Direito é formado. ANAUENE DIAS SOARES foi coordenadora da Red List brasileira, do Conselho Internacional de Museus (Icom). É consultora ad hoc da Unesco – combate ao tráfico ilícito de bens culturais. Atua como perita de obras de arte, advogada e consultora jurídica – direito das artes e do patrimônio cultural. Doutoranda em relações internacionais [Universidade de Brasília (UnB)], mestra em ciências no programa Mudança Social e Participação Política [Universidade de São Paulo (USP), 2015], especialista em direito internacional (Cedin, 2016), especialista em restauração de bens móveis [Universidade Politécnica de Valência (UPV), Espanha, 2006], bacharel em direito [Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), 2015] e graduada em artes visuais (USP, 2007). É coordenadora cultural do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), membro do Instituto de Avaliação e Autenticação de Obras de Arte (i3A) e perita registrada na Ordem dos Peritos do Brasil (Operb).

É associada da International Law Association do Brasil (ILA) e da Association of Cultural Heritage Studies (ACHS). Publicou, em 2018, o livro Direito internacional do patrimônio cultural: o tráfico ilícito de bens culturais. NOTAS 1. Ver: https://www.interpol.int/en/ Crimes/Cultural-heritage-crime/ Stolen-Works-of-Art-Database. Acesso em: 12 ago. 2023. 2. Ver: https://artcrimes.fbi.gov/. Acesso em: 12 ago. 2023. 3. Ver: https://www.carabinieri.it/ chi-siamo/oggi/organizzazione/ mobile-e-speciale/comandocarabinieri-per-la-tutela-delpatrimonio-culturale. Acesso em: 12 ago. 2023. 4. Ver mais informações em: https://www.estadao.com.br/ politica/blog-do-fausto-macedo/ devolvam-nossa-galinha/. Acesso em: 12 ago. 2023.


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5. Cultural Property Protection Act of

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CAPÍTULO 2: Direitos culturais | perspectivas

de povos indígenas e comunidades tradicionais

Sem título | Imagem de Denilson Baniwa


Caçadores de ficções coloniais | Imagem de Denilson Baniwa


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Entrevista com Samara Pataxó sobre direitos culturais indígenas CONVERSA ABORDA A IMPORTÂNCIA DA DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS COMO DIREITO CULTURAL E CONDIÇÃO DE SOBREVIVÊNCIA DA HUMANIDADE LUCAS CRAVO DE OLIVEIRA

Os problemas que afetam os povos indígenas atualmente no Brasil tiveram início com a invasão da Coroa portuguesa, em 1500. Os colonizadores que aqui chegaram usurparam e redividiram as terras e os bens que encontraram como se não houvesse povos a habitar tais territórios. Uma diversidade sem igual de povos desapareceu, assim como viu seus direitos serem dilapidados. A consequência dessa violência colonial é sentida ainda hoje ao encararmos a sensibilidade da implementação das políticas públicas direcionadas à proteção dos direitos dos povos indígenas. A seguir, Samara Pataxó, uma jovem advogada que atua no sistema de justiça, nos conta um pouco dessa história, que atravessa os séculos e segue reverberando no tempo presente. O que são as terras indígenas? Quanto à história tida como oficial do Brasil, da qual falamos que não é a história única, considerando que é a história contada pelos vencedores, que fala sobre o descobrimento do Brasil: precisamos voltar a essa história porque, na verdade, foi invasão. A invasão do Brasil pelos colonizadores portugueses e depois por outros – espanhóis e holandeses, por exemplo. Se eles chegaram de alguma forma, se invadiram, é porque já existiam povos que aqui habitavam. Povos originários. Povos nativos. Não só no Brasil, como na América. Considerando a dimensão continental do Brasil, tínhamos várias nações aqui de povos indígenas. Éramos milhões. Fomos sendo reduzidos de acordo com a expansão da colonização. O processo histórico civilizatório e religioso foi culminando no extermínio. Na perda de territórios. De cultura. De língua. Portanto, o que são terras indígenas: é todo o Brasil. Considerando a dimensão continental Toda a América é indígena. Isso tudo do Brasil, tínhamos várias nações aqui aqui é território indígena. Só que hoje, a de povos indígenas. Éramos milhões. partir da compreensão que temos, com os processos históricos que fomos vivenciando pela colonização, pela religião e por outros processos que culminaram no extermínio, também foi necessário assegurar elementos que mantivessem a nossa existência como povos originários e o território. A terra indígena é um elemento essencial para essa continuidade, para esse futuro dos povos indígenas. A terra indígena é um elemento sagrado de continuidade existencial dos povos indígenas. E, hoje, embora a gente não possa reocupar todas


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as áreas que um dia foram nossas, existem áreas que fazem parte dessa história de quem aqui já estava. Por isso falamos que as terras indígenas tradicionalmente ocupadas são as terras que nossos antepassados ocuparam, que têm uma ligação ancestral com a história do meu povo. A história dos povos indígenas é ligada a terras e territórios e a todos os outros elementos que completam aquele território. Terra indígena, do ponto de vista dos povos, é algo sagrado, algo que traz ancestralidade, nossa bagagem histórica, mas também é possível falar delas a partir de conceitos jurídicos. Há uma figura jurídica que a gente encontra em documentos históricos desde a época do Brasil colonial em que se previa o respeito à reserva de terras. Desde a época da legislação das sesmarias até agora, no século XXI, com a Constituição de 1988 e outras normas internacionais. Temos terra que possui significado para nós, povos indígenas; e terra indígena, conceito e natureza jurídica protegida pela legislação nacional e internacional, que é um dos principais direitos pelos quais nós lutamos. Lutar por direitos territoriais não é uma bandeira ideológica, meramente de luta, mas um direito fundamental. Qual é a importância da demarcação das terras indígenas? Essa é uma das principais políticas públicas voltadas para garantir direitos dos povos indígenas. Eu costumo dizer que a demarcação é um dever do Estado como a Constituição prevê. É um direito originário dos povos indígenas para posse e usufruto, mas é um dever do Estado demarcar e protegê-las. Então, não estamos falando de uma política de governo ou de uma demanda social de um movimento social indígena: estamos falando de um direito, de um dever constitucional. Assim, se é um dever, não é uma política de governo. É uma política de Estado. E está na principal norma do país, na Constituição. A importância disso é assegurar direitos aos povos indígenas não no sentido de que “Ah, os povos indígenas têm direiTanto uma declaração em relação tos demais” ou “porque a Constituição a uma situação fática do passado, de todo prevê em um capítulo específico esse um processo histórico, quanto uma direito, colocando os povos indígenas declaração de futuro. numa condição de supermerecedores, numa condição de excepcionalidade”. O que ocorre é que esses direitos estão inseridos em um contexto de reparação histórica. De reconhecimento como povos originários. De garantia do território como condição de vida e subsistência dos povos indígenas. A demarcação de terras indígenas é tanto em relação ao passado, como uma reparação histórica de um reconhecimento de que povos originários aqui já estavam, quanto como uma projeção de futuro de que os indígenas continuem existindo, que continuem tendo seus modos de vida preservados na perspectiva de futuro. A demarcação é esse ato de procedimento administrativo simbólico, porém declaratório de direito. Tanto uma declaração em relação a uma situação fática do passado, de todo um processo histórico, quanto uma declaração de futuro, de que os povos indígenas precisam do território, que ele seja demarcado, protegido, preservado, o bem-estar garantido, e tudo aquilo que o artigo 231, parágrafo 1o traz, mas sobretudo permitir que os povos indígenas continuem existindo. Também é uma declaração de futuro. A gente percebe que, embora seja uma política de Estado, um dever do Estado, de 1988 para cá temos um déficit de demarcação de terras indígenas, embora na década de 1990 tenha sido expressiva a quantidade de terras


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demarcadas. Não é só o governo querer demarcar ou não, mas outros fatores também influenciam nisso: fatores sociais, econômicos, políticos, que acabam esvaziando a política de demarcar terras indígenas. E aí, no meu caso, na minha pesquisa de mestrado, trato a questão da judicialização. Como as demarcações, além das fases de procedimento administrativo que já são complexas e burocráticas, têm uma fase a mais agora, que é a questão de quando o processo demarcatório é levado para ser discutido no Poder Judiciário1. Muitas vezes eternizam os processos de demarcação, por isso que às vezes a gente acaba tendo menos demarcações. Dos anos 2000 em diante, muitos procedimentos de demarcação foram contestados em juízo. Também terras já demarcadas foram e seguem sendo alvos de ações para desfazer demarcações. Então, sobre a questão da demarcação, quando a gente olha hoje para um número talvez menor, não tem como a gente olhar apenas e jogar a culpa no Poder Executivo. A gente também enfrenta governos que encaram essa pauta com mais seriedade ou não, mas há outros atravessamentos, seja por causa da judicialização, que é um dos principais fatores, seja por todo o contexto de racismo e preconceito que impede cada vez mais que a demarcação de terras indígenas ocorra com mais frequência, que seja algo mais recorrente. Qual é a relação entre a demarcação das terras indígenas e os direitos culturais dos povos indígenas? A ligação é total, porque isso vem muito da visão que nós, indígenas, temos sobre o que são nossos territórios e quais são suas dimensões. Quem coloca limites não somos nós, os povos indígenas. São os homens brancos. Ou, hoje em dia, o Estado. Essa outra concepção de viver no mundo capitalista, globalizado, é que cria limites territoriais. Essa noção de limitar territórios não faz parte da nossa vida. Nós ocupávamos tudo isso aqui de dimensão continental. Inclusive não existia nem separação entre o Brasil e outros países da América Latina. Habitávamos transitando por entre os países. Os povos tidos como nômades, na verdade, é porque não existiam limites em relação à nossa sobrevivência nesse contexto. Pensando em resguardar os direitos originários, é a partir daí o momento em A demarcação é necessária para delimitar que se criam limites. Lá na época das essa dimensão territorial. Mas é importante sesmarias, já se dividia o país em regique ela não seja feita de qualquer jeito. ões, em pedaços. Aí as terras indígenas Não é uma demarcação por si só em qualquer também tiveram que ser delimitadas. pedaço de terra. São terras em que existe essa A demarcação é necessária para deliligação ancestral, cosmológica. Por isso, mitar essa dimensão territorial. Mas os direitos culturais são fundamentais para é importante que ela não seja feita de efetivar a contento o direito originário às qualquer jeito. Não é uma demarcação terras tradicionalmente ocupadas por nós, por si só em qualquer pedaço de terra. povos indígenas. São terras em que existe essa ligação ancestral, cosmológica. Por isso, os direitos culturais são fundamentais para efetivar a contento o direito originário às terras tradicionalmente ocupadas por nós, povos indígenas. Não é qualquer pedaço de terra. É necessário levar em consideração a relação que cada povo indígena tem com seu território. Verificar os elementos que compõem a tradicionalidade dessa relação. Por isso a importância dos estudos antropológicos sobre os territórios. E esses elementos da cultura são fundamentais para caracterizar uma terra tradicionalmente ocupada para ser demarcada.


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Então, é essencial observar a tradicionalidade, sobretudo a partir desses aspectos históricos, culturais, de cada povo indígena. Uma coisa depende da outra. A demarcação não pode ser em qualquer lugar. Tem que ter elementos de tradicionalidade. Isso é identificado através de vários fatores. A importância de um rio que passa em determinada área. Isso compõe a tradicionalidade daquele povo. É a importância de um cemitério indígena, um lugar onde se fazem os rituais para enterrar seus mortos. Ou uma árvore sagrada, milenar. Então, é fundamental perceber essa simbologia da cosmovisão indígena. Essa questão que compõe a cultura indígena, A partir do momento em que a gente avança a tradicionalidade indígena, é essencial em direitos e nessa conscientização de lutar para que o ato de demarcar, de constipor eles, ficamos empoderados também para tuir limites, possa ser efetivo e para que conhecer as estruturas, seja o sistema de justiça, a demarcação esteja atenta também seja outras formas institucionais, de modo para não deixar de fora áreas de ocupaque a gente vai aprimorando e reformulando ção tradicional e que trazem esses eleas estratégias de luta. mentos culturais para os povos indígenas. Isso acontece muito no território pataxó. Embora demarcado, ele tem áreas que ficaram de fora da demarcação que foi feita há anos. Até hoje reivindicamos a revisão da demarcação feita ou a constituição de uma nova terra indígena para contemplar essas outras áreas que ficaram de fora e que são sagradas para nós. Não é a demarcação por si só que deve ser feita. Ela tem que ser efetiva. Contemplando toda a cultura indígena e todos os traços de tradicionalidade que ali estão. Como você entende o papel das organizações indígenas na defesa desses direitos culturais? É de extrema importância, porque são as organizações indígenas que são representativas dos povos indígenas. Temos organizações indígenas mais locais, regionais, e organizações indígenas em nível nacional. Então, acaba sendo importante justamente para fazer essas lutas em diferentes escalas. Seja de forma local, regional, nacional ou internacional. Além das fronteiras. É muito importante, porque acaba trazendo mais força para essa pauta de luta. As organizações indígenas servem de interlocutoras entre os conflitos, viabilizam as demandas internas para com o Estado, para com outros apoiadores. Elas atuam para estabelecer diálogo, para buscar a efetividade desses direitos: pressionando quem precisa ser pressionado, denunciando quem precisa ser denunciado. Acredito também que, hoje em dia, pensando em movimento indígena, as organizações indígenas vão se moldando de acordo com o passar do tempo e dos anos. Antigamente, as organizações estavam mais focadas em um contexto micro, como a ida até as sedes da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). A partir do momento em que a gente avança em direitos e nessa conscientização de lutar por eles, ficamos empoderados também para conhecer as estruturas, seja o sistema de justiça, seja outras formas institucionais, de modo que a gente vai aprimorando e reformulando as estratégias de luta. Se antes a estratégia era somente fechar uma estrada BR ou fazer uma manifestação, agora a gente vai pensando em ir além disso. A gente também precisa qualificar os nossos, ter antropólogos, ter advogados, ter representantes políticos, deputados, vereadores, prefeitos, para alargar esse âmbito de militância, de luta.


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E trazer uma luta não apenas de movimento político, mas também uma luta técnica, qualificada, dentro das estruturas de poder. Aí é que está a importância do movimento indígena em se preocupar com a formação e também ser assessorado por advogados e advogadas indígenas. Nesse campo jurídico, em um primeiro momento há a importância das organizações indigenistas e de seus apoiadores não indígenas oferecerem esse suporte, mas cada vez mais o movimento indígena vai se moldando e tendo seu próprio corpo técnico. Temos o exemplo da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e todas as outras que hoje já têm o seu corpo técnico qualificado para lutar de maneira técnica dentro das estruturas que precisam ser movidas para efetivar essas políticas voltadas para povos indígenas. A importância do movimento indígena hoje é essencial para reivindicar esses direitos e lutar pela efetivação. Pensando nos efeitos sobre as populações não indígenas, como você avalia o impacto da demarcação das terras indígenas e da diversidade cultural no planeta? Extremamente importante. As pessoas costumam dizer: “Ah, é direito dos índios, o que isso tem a ver comigo? Nem gosto de índio, nem sei se índio existe”. Aí vem toda uma carga de preconceito e distanciamento que a sociedade em geral tem sobre quem somos, o que queremos, onde estamos. Então, trata-se de uma falta de conhecimento mesmo da sociedade sobre nossas realidades, nossas lutas. Aí vem toda uma carga de preconceito Muitos têm conhecimento raso sobre e distanciamento que a sociedade em geral quem são os povos indígenas. “Se é que tem sobre quem somos, o que queremos, existem indígenas”, é o que pensam. E onde estamos. muito menos se preocupam com a nossa pauta. E, como a nossa pauta de luta principal é pelo território, ela também afeta quem não está nem aí. Afeta toda a humanidade. Temos estudos técnicos, científicos, que comprovam que hoje, no Brasil, as áreas de maior conservação ambiental são áreas protegidas, de reservas e áreas indígenas. É muito aliada essa questão da conservação ambiental que nós fazemos com nossos territórios, e esse é um dos principais ganhos que a sociedade tem em relação a incentivar e lutar para que as terras indígenas sejam demarcadas. Acredito que a conservação dos territórios e das vidas indígenas é algo que contribui para a continuidade existencial não só nossa, mas também da humanidade, porque, para que chegue água limpa às torneiras das pessoas, existem nascentes, e muitas delas estão nos territórios indígenas. Então, para que ainda haja ar para respirar, precisam das árvores, precisam de tudo isso. A questão da conservação ambiental está associada com a demarcação e a proteção dos territórios contra os invasores, as pessoas que desmatam, exploram ilegalmente o garimpo, a extração de madeira, a pesca etc. Preservar lá para que ainda quem está fora do contexto de território indígena consiga sobreviver. É o que os nossos mais velhos, lideranças, têm ecoado: somos a última fronteira de sobrevivência. Nós é que estamos ainda resistindo, segurando, para que não acabe tudo. Se as pessoas não se importam com a luta dos povos indígenas, elas também não se importam com seu futuro, o de seus filhos, netos e de outras gerações. Ser aliado ou pelo menos buscar entender


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a luta dos povos indígenas é também uma garantia de sobrevivência da humanidade. Essa luta não precisa ser feita sozinha. Mesmo que a pessoa não venha, faça manifestação, que não esteja totalmente por dentro das nossas pautas de luta, mas tenha essa consciência de por que, quem somos, onde estamos, e o que queremos. Somos povos indígenas, somos diversos, estamos na luta por nossos territórios, por nossas florestas, por nosso bem-estar, e a gente quer continuar existindo e que outros também coexistam com a gente. Outra questão é que muita gente pensa em povos indígenas, preservação ambiental, focando apenas em floresta. Claro que isso é fundamental. Aí a humanidade volta os olhos para a Amazônia e muitos acham que só há indígenas na Amazônia, mas a gente também fala da questão da conservação ambiental e da demarcação dos territórios indígenas em outros contextos, em outros biomas também. Então, é necessário ser aliado da causa indígena, da luta pelos territórios, também nos outros biomas. Como nós temos falado, o bioma Amazônia não se sustenta sozinho. Tudo precisa estar equilibrado. É necessário proteger também a Mata Atlântica, o Pampa, o Cerrado, a Caatinga, o Pantanal. Precisa estar equilibrado. Obviamente que conhecemos a Amazônia como o “pulmão do Brasil e do mundo”, mas é preciso entender os outros biomas e contextos de luta que nós travamos em nossos territórios para preservar e manter o equilíbrio. Isso é condição de sobrevivência, não só nossa, mas também da humanidade. Há algo mais que gostaria de comentar? Acho que essa questão dos direitos culturais é também nossa condição de sobrevivência. Falo não só do meio ambiente, mas da nossa língua, da nossa forma de se alimentar, da nossa forma de preservar nossas culturas. Para que isso possa ser passado de geração em geração, a gente precisa de várias coisas. Às vezes, a gente acha que só demarcar terra indígena já será o suficiente. Mas não é só demarcar. Não é só fazer de qualquer forma. É necessário que a demarcação continue surtindo seus efeitos de permitir que realmente a gente possa praticar nossos usos, costumes e tradições. Um exemplo, hoje, é a gente ter o território ianomâmi demarcado, mas completamente vulnerável. Os indígenas estão em situação de vulnerabilidade. É uma crise humanitária em relação aos Ianomâmi. Não é só demarcar, fazer o procedimento de demarcação e colocar os limites, mas, sim, é necessário dar condições para que os indígenas vivam ali e que também não tenham outros elementos prejudicados, como a soberania alimentar. Os Ianomâmi são um exemplo disso, com rio poluído e escassez de comida saudável. Isso tudo são atos preparatórios para a morte generalizada de toda uma geração de indígenas, prejudicando modos de vida, saúde, práticas culturais, enfim. Não é só demarcar as terras indígenas, mas também continuar a política de proteger as terras indígenas. De proteger as vidas indígenas. Para proteger também as nossas culturas e o nosso modo de ser e viver. São coisas que se complementam. Não tem como pensá-las isoladamente.


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SAMARA PATAXÓ é doutoranda e mestra em direito, Estado e Constituição pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília (UnB). Especialista em Estado e direito de povos e comunidades tradicionais pela Universidade Federal da Bahia [UFBA (2018)]. Possui graduação em direito pela UFBA (2016). Advogada com atuação nas áreas de direito indigenista e direitos de povos e comunidades tradicionais. Atuou como assessora jurídica das organizações indígenas Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mupoiba), Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) e Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Integra o grupo de trabalho “Direitos indígenas: acesso à Justiça e singularidades processuais”, do Conselho Nacional de Justiça [CNJ (Portaria no 63/2021)]. Atualmente é assessora-chefe de Inclusão e Diversidade da Secretaria-Geral da Presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Universidade Católica do Rio de Janeiro [PUC-Rio (2022-atual)]. Foi advogado no Departamento Jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil [Apib (2020-2023)] e atuou na Secretaria-Geral de Articulação Institucional da Defensoria Pública da União (2018-2020). Pesquisador no campo da história constitucional, tendo interesse nas áreas de interlocução entre o direito, as ciências sociais e a história, com ênfase em abordagens empíricas de pesquisa e nas relações de interlegalidade produzidas a partir da administração institucional de conflitos.

LUCAS CRAVO DE OLIVEIRA é doutorando em direito pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre em direito pela UnB (2020), com período de visita técnica na Universidade Flinders, e graduado em direito pela Universidade Federal Fluminense [UFF (2016)], com período de mobilidade acadêmica na Universidade de Coimbra. Coordena a estratégia de advocacy em energia do Instituto ClimaInfo (2023-atual) e atua como consultor jurídico da Conservação Internacional – Brasil (2021-atual) e da organização indígena Dace (2023-atual). Professor na especialização em direitos e políticas para povos indígenas da Pontifícia

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NOTA 1. Neste caso, Samara Pataxó dá destaque ao fato de que muitas demarcações realizadas no âmbito administrativo, a despeito de seguirem o rito que abre possibilidade de contestação internamente ao procedimento, acabam sendo levadas ao sistema de justiça para um novo questionamento. A situação se agravou desde a criação da tese do marco temporal, a qual determina que os povos indígenas só teriam direito ao seu território tradicional se estivessem na localidade no dia da promulgação da Constituição Federal (5 de outubro de 1988), violando flagrantemente o determinado no texto constitucional de que os direitos territoriais indígenas são originários, não havendo nenhum marco determinado. Atualmente, a matéria está pendente de julgamento sobre a constitucionalidade na tese e sua consequente aplicação de forma generalizável, no âmbito do Recurso Extraordinário no 1.017.365/SC, no Supremo Tribunal Federal (STF).


Aldeia cidade | Imagem de Denilson Baniwa


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Indenização por direitos culturais: o caso dos danos espirituais do povo indígena M bêngôkre Kayapó A REPARAÇÃO DE DANOS ESPIRITUAIS NO ÂMBITO DA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS CULTURAIS DOS POVOS INDÍGENAS É EXPLORADA NO TEXTO DE MAYALU TXUCARRAMÃE E LUCAS CRAVO MAYALU TXUCARRAMÃE E LUCAS CRAVO

RESUMO Este artigo tem por objetivo discutir como as normas brasileiras viabilizam a solução de um conflito sensível no sistema de justiça, no qual diferentes ideias sobre o que é justiça se encontram. Analisamos um caso específico, o processo extrajudicial instaurado depois da queda do voo 1907 da Gol na Terra Indígena Capoto-Jarina, localizada no estado de Mato Grosso. Durante o processo, que durou mais de três anos e acabou por conceder uma indenização especial ao povo indígena M bêngôkre Kayapó, as partes envolvidas chegaram a um acordo sobre os danos culturais, categoria que foi discutida ao longo do processo com outros nomes, como danos sociais ou danos espirituais. INTRODUÇÃO Para esta publicação com o Observatório Itaú Cultural, apresentamos um texto decorrente de trabalhos monográficos que realizamos individualmente, intitulados: i) “Màdkà 737 da Gol, voo 1907: ‘Mekarõ Nhurukwa’ no território M bêngôkre , Terra Indígena Capoto-Jarina – MT”; e ii) “Fronteiras improváveis entre tempos e direitos: constitucionalismo compartilhado entre os sistemas de justiça estatal e M bêngôkre Kayapó no acidente do Gol 1907”. O primeiro foi produzido, apresentado e defendido por Mayalu Kokometi Waurá Txucarramãe (2019) para a conclusão de seu curso de graduação em geografia na Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat). O segundo foi uma dissertação desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília (UnB) por Lucas Cravo de Oliveira (2020). O texto aqui apresentado tem o objetivo de colaborar no debate público acerca das possibilidades colocadas pelo sistema de justiça e pelo constitucionalismo brasileiro quanto a uma abertura normativa para a compreensão de distintos mundos cognitivos ao se administrar um conflito pelo ordenamento jurídico brasileiro. O conflito teve início com a queda de um avião em meio ao território do povo M bêngôkre Kayapó.

Neste estudo de caso, optamos por utilizar instrumentos, orientações e abordagens da história, da geografia e da antropologia para compreender um problema do direito: como esse campo do conhecimento promove uma tentativa de administração de conflito. Tentamos apresentar questões sensíveis e complexas decor-


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rentes do constitucionalismo brasileiro. O mundo real é constantemente mutável, diverso e complexo. O sistema jurídico é convocado para lidar com conflitos que nem sempre foram previstos de forma precisa nas leis existentes. Entender casos inesperados com profundidade requer abordagens que vão além da visão limitada do direito. O documento central que compõe o arquivo relacionado ao caso Gol é o Inquérito Civil (IC) 1.20.004.000070/2016-552. Nele estão incluídos os pareceres técnicos realizados pela perícia antropológica do Ministério Público Federal (MPF), o termo do acordo extrajudicial e o registro das etapas pelas quais esse processo progrediu. O CASO Em 29 de setembro de 2006, a uma altitude de aproximadamente 11 mil metros, ocorreu um acidente incomum no espaço aéreo brasileiro envolvendo a colisão de duas aeronaves. A empresa norte-americana Excel Aire, que operava serviços de táxi aéreo, estava conduzindo um jato modelo Legacy 600 em uma rota comercial doméstica. Na mesma direção, porém em sentido contrário, a companhia Gol Linhas Aéreas S.A. estava operando o voo 1907. A asa do jato rasgou a fuselagem da outra aeronave, resultando em um acidente amplamente divulgado na imprensa nacional e internacional.

Em relação ao jato Legacy, a aeronave não sofreu danos significativos, o que permitiu que continuasse voando até realizar um pouso de emergência em uma base militar próxima à região da colisão, localizada no estado do Pará. No entanto, o avião operado pela Gol, um Boeing 737, caiu em uma área da Floresta Amazônica, próxima ao Rio Xingu, dentro dos limites da Terra Indígena Capoto-Jarina. Infelizmente, todas as pessoas a bordo da aeronave faleceram imediatamente, totalizando 154 vítimas. Para a comunidade indígena M bêngôkre Kayapó, a área afetada pelo acidente se tornou um local sagrado, conhecido como Mekarõ Nhurukwa em sua língua, o que pode ser traduzido aproximadamente como “casa dos espíritos”. Como houve um grande derramamento de sangue no local em decorrência do acidente, o universo espiritual desse povo foi violado, o que ocasionou implicações significativas em sua vida cotidiana. A área afetada, que abrange aproximadamente 1.200 quilômetros quadrados, não pode mais ser habitada, o que demandou a reorganização de uma aldeia próxima ao local do acidente. Atividades como pesca, caça, cultivo e estabelecimento de aldeias não poderão mais ocorrer nessa região. Em 2013, os M bêngôkre Kayapó mobilizaram o MPF para que a Gol retirasse os destroços do avião e reparasse os danos causados. Um inquérito civil público foi instaurado para investigar a responsabilidade da empresa. Após extensas negociações, em março de 2017 um acordo extrajudicial foi firmado, prevendo indenizações tanto materiais quanto imateriais, abrangendo os danos ambientais e culturais. Especificamente, o dano causado à ordem espiritual do povo M bêngôkre Kayapó foi incluído entre os prejuízos a serem compensados. A Gol concordou em pagar uma indenização de 4 milhões de reais, encerrando, assim, suas obrigações perante o povo M bêngôkre Kayapó. Além disso, ficou acordado que a empresa não removeria os destroços do avião, devido aos riscos envolvidos nessa operação, que poderiam causar danos adicionais a outras áreas florestais. As informa-


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ções descritas no caso constam no Termo de Acordo 01/2017 e no Inquérito Civil 1.20.004.000070/2016-552, instaurados pela Procuradoria da República – órgão que integra o MPF –no município de Barra do Garças. Sob uma perspectiva normativa, o ordenamento jurídico brasileiro permite a convergência de diferentes concepções de justiça? Como os atores institucionais lidam com essas questões? Na administração de conflitos desse tipo, os diferentes significados de justiça são tratados de forma equitativa? Ao buscar essa convergência, nem sempre é possível traduzir expectativas de direitos distintas em uma linguagem comum. A PARTICIPAÇÃO INDÍGENA NO RESGATE Devido à gravidade do acidente, ficou claro para todos que a operação de resgate não seria destinada à busca por sobreviventes, mas sim pelos corpos das vítimas. O avião Boeing do voo 1907 da Gol sofreu uma destruição significativa devido à alta velocidade que a aeronave atingiu no momento da queda. É evidente que uma tragédia de tal magnitude afeta até mesmo os oficiais treinados e preparados para lidar com qualquer situação. O mesmo se aplica ao povo M bêngôkre, que vivia na área onde o Boeing caiu. Alessandro Mariano Rodrigues, que participou da operação de resgate junto com os guerreiros indígenas, relata como foi informado sobre o acidente:

Já estava em casa quando Megaron entrou em contato comigo dizendo que seu povo havia avistado “um avião muito grande caindo do céu”, nas mediações da aldeia Piaraçú. Ele me pediu ajuda mais uma vez. Queria saber do ocorrido, se havia ou não alguma aeronave desaparecida naquela região. Tentei contato com o quartel de Alta Floresta, mas não sabiam ainda de nada. Apenas me disseram que um militar da base aérea do Cachimbo havia entrado em contato para saber de alguma ocorrência envolvendo uma aeronave daquele porte, na região de Peixoto de Azevedo (RODRIGUES, 2022, p. 36). Durante uma entrevista realizada para o seu trabalho monográfico, Mayalu Txucarramãe conversou com Mytxan Metuktire, um dos guerreiros indígenas que participaram do resgate, que revelou ter apenas 19 anos na época, sendo o mais jovem entre os experientes indígenas. Ele mencionou que o compadre Megaron, o tio Bedjai – por ele referidos como Megaron Txucarramãe e Bedjai Txucarramãe – e sua mãe não queriam que ele fizesse parte do grupo devido à sua idade. No entanto, ele persistiu e acabou acompanhando o grupo. Após a localização dos destroços, o próximo passo para os militares foi abrir uma clareira na mata para facilitar a entrada da equipe. Enquanto isso, os indígenas se concentraram inicialmente em estabelecer comunicação para buscar possíveis formas de ajuda. Durante 50 dias de operação, os povos indígenas foram fundamentais para realizar as buscas empreendidas após o acidente. Para os indígenas, a maior tragédia já vivenciada pelas comunidades da Terra Indígena Capoto-Jarina deixa um registro na memória coletiva e na própria territorialidade. A área afetada não sofreu alterações desde o acidente, mantendo vestígios que remetem a essa triste ocorrência. A concretização dos direitos indígenas estabelecidos na Constituição brasileira ocorreu devido à ação ativa de diversos atores sociais envolvidos no caso. Foram os


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M bêngôkre Kayapó que mobilizaram a empresa Gol, buscando o respeito ao seu direito cultural, especialmente no que se refere à criação da Mekarõ Nhurukwa, um local sagrado, e as consequências disso. Uma vez criado esse local sagrado, os indígenas não poderiam mais retornar àquela localidade, ficando impedidos de caçar, fazer roçado ou até mesmo morar no lugar, uma vez que ele passou a ser habitado por espíritos que lá permanecerão. Embora esse direito estivesse protegido pelo texto constitucional, a empresa inicialmente se recusou a atender às demandas dos indígenas, o que os levou a procurar o MPF. Com a entrada do procurador Wilson A concretização dos direitos indígenas Assis, foi estabelecido um canal de diá- estabelecidos na Constituição brasileira ocorreu logo entre a Gol e os indígenas. Após vádevido à ação ativa de diversos atores sociais rias reuniões e negociações, a empresa envolvidos no caso. Foram os M bêngôkre concordou em indenizá-los nos termos Kayapó que mobilizaram a empresa Gol, propostos pelos M bêngôkre Kayapó. buscando o respeito ao seu direito cultural, Essa conquista só foi possível devido especialmente no que se refere à criação à atuação das instituições que operam da Mekarõ Nhurukwa, um local sagrado, dentro do sistema de justiça. A Constie as consequências disso tuição, por si só, teria pouco significado além de uma folha de papel (LASSALLE, 1933) sem a ação comprometida desses atores. Sem eles, as instituições se tornariam apenas uma burocracia organizada, sem efetividade real. CONSTITUCIONALISMO EM DEFESA DE DIREITOS INDÍGENAS O caminho para chegar ao acordo extrajudicial aqui empreendido foi diverso. Houve o acidente; houve a perturbação da ordem espiritual da comunidade; houve a tentativa de diálogo pelos povos indígenas com a empresa Gol; houve, por fim, a intervenção do MPF no conflito para tentar chegar a uma solução comum. Com avanços e retrocessos, a negociação para o acordo por danos espirituais, socioculturais ou apenas culturais foi longa e só terminou em março de 2017, com a firmação do acordo que previu uma indenização no valor de 4 milhões de reais ao povo M bêngôkre Kayapó, em razão dos impactos em seu universo espiritual ocasionados pela queda do avião. Em decorrência do acordo, os M bêngôkre Kayapó não podem mais utilizar aquela área, interditada para fins de respeito à Mekarõ Nhurukwa agora criada.

Há conflitos que são potencialmente intratáveis, e a obtenção de um acordo capaz de satisfazer a todas as partes envolvidas dificilmente será alcançada. Neste caso, testemunhamos o esforço do constitucionalismo brasileiro evidenciado pelo artigo 123 da Constituição Federal, que determina que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. O engajamento de atores institucionais em prol do respeito aos direitos indígenas viabilizou que uma solução possível fosse estabelecida para os M bêngôkre Kayapó.


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MAYALU TXUCARRAMÃE possui bacharelado e licenciatura em geografia pela Universidade do Estado de Mato Grosso. Atualmente é secretária-executiva do Conselho Distrital de Saúde Indígena Kaiapó, do Distrito Sanitário Especial Indígena – Kayapó/MT. É neta do líder Cacique Raoni e idealizadora e fundadora do Movimento Mebengokrê Nyre (Movimento Jovens Indígenas).

2023)]. Atuou na Secretaria-Geral de Articulação Institucional da Defensoria Pública da União [DPU (2018-2020)]. Pesquisador no campo da história constitucional, tendo interesse nas áreas de interlocução entre o direito, as ciências sociais e a história, com ênfase nas abordagens empíricas de pesquisa e as relações de interlegalidade produzidas a partir da administração institucional de conflitos socioambientais. Advogado nas áreas de direito constitucional, direitos humanos e direitos indígenas.

LUCAS CRAVO é advogado inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil do Distrito Federal (OAB/DF). Doutorando em direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre em direito, Estado e Constituição pela mesma instituição (2020), com período de visita técnica na Universidade Flinders. Graduado em direito pela Universidade Federal Fluminense [UFF (2016)], com período de mobilidade acadêmica na Universidade de Coimbra. Coordena a estratégia de advocacy em energia do Instituto ClimaInfo (2023-atual). Consultor jurídico no Instituto Amazônia Alerta (2023-atual). Assessor jurídico da organização indígena Munduruku Dace (2023-atual). Professor na especialização em direitos e políticas para povos indígenas da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro [PUC-Rio (2022-atual)]. Foi consultor jurídico da Conservação Internacional – Brasil (2021-2023). Foi advogado no Departamento Jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil [Apib (2020-

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REFERÊNCIAS CRAVO DE OLIVEIRA, Lucas. Fronteiras improváveis entre tempos e direitos: constitucionalismo compartilhado entre os sistemas de justiça estatal e M bêngôkre Kayapó no acidente do Gol 1907. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de Brasília (UnB), Brasília, 2020. LASSALLE, Ferdinand. Que é uma constituição? São Paulo: Edições e Publicações Brasil, 1933. RODRIGUES, Alessandro Mariano. O Kayapó (M tyktire) e o fogo: narrativas e práticas observadas no tempo e no espaço. Ponta Grossa: Atena, 2022. TXUCARRAMÃE, Mayalu Kokometi Waurá. Màdkà 737 da Gol voo 1907: “Mekarõ Nhurukwa” no território M bêngôkre, Terra Indígena Capoto Jarina – MT. Monografia (Licenciatura em Geografia) – Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), Colíder, 2019.


Enfim, ‘civilização’ | Imagem de Denilson Baniwa


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Obras indígenas: sugestões para evitar apropriação cultural A URGENTE COMPATIBILIZAÇÃO ENTRE AS FORMAS DE CRIAÇÃO ARTÍSTICA INDÍGENAS E OS MECANISMOS JURÍDICOS DE PROTEÇÃO À SUA ARTE É O TEMA DO ARTIGO DE LUIZA BALTHAZAR LUIZA BALTHAZAR

RESUMO As obras artísticas criadas por povos indígenas no Brasil são objeto de diferentes leis, especialmente as de propriedade intelectual e patrimônio cultural imaterial. Entender os limites de cada sistema é crucial para formular soluções para o problema da apropriação cultural no país. Para isso, é preciso compreender a lógica de produção indígena e pensar sistemas que vão além da lógica de capitalização de obras, considerando a necessidade de valorizar e salvaguardar tanto seu modo de criação quanto seu simbolismo.

Em 2004, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul entendeu – não de forma unânime – que uma famosa joalheria cometera plágio ao lançar uma coleção de joias baseada em artesanato indígena de diferentes comunidades (RIO GRANDE DO SUL, 2004)1. O litígio não envolveu os indígenas. Ele se deu entre a joalheria e uma designer de joias que havia apresentado à empresa uma coleção bastante similar oito anos antes do referido lançamento, mas que foi recusada. Entre os desembargadores que consideraram haver plágio, o entendimento foi de que, embora o artesanato indígena seja, em suas palavras, pertencente ao folclore e ao uso comum, o plágio se deu em relação ao projeto e à pesquisa realizados pela designer. Na tese vencida, o desembargador entendeu que, justamente pelo fato de as duas coleções serem baseadas em desenhos existentes na cultura indígena, não há plágio, pois essa arte circula de forma notória pelo Brasil. Sete anos depois, em outro caso, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) abriu processo (BRASIL, 2013) para atuar em relação ao pedido dos indígenas da comunidade Wajãpi-Apina (Amapá) referente à coleção de papéis de parede idealizada e comercializada por um famoso designer. A linha de papéis de parede foi criada com base na arte kusiwa, típica daquele povo. A comunidade Wajãpi-Apina afirmou, em síntese, que os desenhos são registrados pelo Iphan como patrimônio cultural imaterial e, por isso, para usar a arte gráfica, o designer deveria ter obtido autorização e firmado um contrato com a comunidade para repartir os benefícios. Após negociação, entendeu-se que o designer pagaria a quantia de 150 mil reais, a ser utilizada em um plano de atividades formulado pela comunidade com o intuito de valorizar sua cultura.

Quais direitos os povos indígenas detêm sobre suas criações tradicionais?

A clara diferença de desfecho nesses dois casos leva à pergunta: quais direitos os povos indígenas detêm sobre suas criações tradicionais? Para respondê-la, deve-


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-se analisar o atual sistema de proteção ao patrimônio cultural imaterial no Brasil e como este se relaciona com a propriedade intelectual. Compreendendo os diferentes cenários existentes, torna-se possível idear um sistema mais inclusivo e que considere as peculiaridades dos povos indígenas. A proteção de uma obra pelos direitos autorais gera uma série de direitos morais e patrimoniais a serem exercidos pelo seu autor. Os direitos patrimoniais – incluindo aqui o direito de ser remunerado pela obra – existem desde o momento em que a obra é expressa em qualquer meio, perdurando, em regra, por 70 anos após a morte do autor (BRASIL, 1998, art. 41) ou após a sua publicação (BRASIL, 1998, art. 43 e 44). Passado esse tempo, a obra entra em domínio público. Os direitos morais nascem no mesmo momento, mas não se encerram. Uma obra em domínio público pode, por exemplo, ser retirada de circulação se qualquer forma de utilização implicar uma afronta à reputação e à imagem do autor (BRASIL, 1998, art. 24, VI).

O desafio de conferir proteção autoral a obras tradicionais indígenas recai na dificuldade de identificar os autores ou a data da obra: o sistema autoral não foi criado considerando a lógica indígena.

O desafio de conferir proteção autoral Cabe, portanto, definir quem representaria a obras tradicionais indígenas recai na esse autor – e aqui a intersecção dos direitos dificuldade de identificar os autores ou autorais com a proteção ao patrimônio cultural a data da obra: o sistema autoral não foi imaterial ganha um contorno interessante. criado considerando a lógica indígena. Tentando abarcar essa situação, a lei de direitos autorais afirma que pertencem ao domínio público “as [obras] de autor desconhecido, ressalvada a proteção legal aos conhecimentos étnicos e tradicionais” (BRASIL, 1998, art. 45). Porém, a lei não aprofunda como se daria essa proteção, e o decreto (BRASIL, 2000) que regulamenta o registro do patrimônio cultural imaterial não trata do tema. Historicamente, os estudiosos entendem que a lei não estende o estatuto de domínio público às obras tradicionais e, ainda que o fizesse, os direitos morais do autor persistiriam, pois são imprescritíveis (BALTHAZAR, 2019, p. 132-142). Cabe, portanto, definir quem representaria esse autor – e aqui a intersecção dos direitos autorais com a proteção ao patrimônio cultural imaterial ganha um contorno interessante. O registro de uma prática cultural como patrimônio cultural imaterial é declaratório de sua existência e da sua constituição como patrimônio cultural. Ele não busca reconhecer exclusividade ou remunerar autores, mas preservar e documentar manifestações culturais. Ao fazer o registro, o Iphan documenta a prática por meio de um dossiê e a inclui, a partir disso, em suas ações de salvaguarda de modo a preservar aquela tradição. Apesar de não ser constitutivo de direitos autorais, o registro indica quem são as comunidades que praticam aquela forma de expressão. Tomando como exemplo o registro da arte kusiwa, lê-se no dossiê preparado pelo Iphan que “os Wajãpi do Amapá são, atualmente, 670 pessoas, distribuídas entre 48 aldeias” (IPHAN, 2007). Existe, como se vê, uma delimitação clara do povo que a pratica. Nesse cenário, ainda que se entendesse que as obras estão em domínio público, a especificidade na determinação de quem são os detentores da arte kusiwa facilita


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a defesa de um exercício de direitos morais do autor. Nesse caso, os Wajãpi requereram que a obra fosse retirada de circulação, pois o uso contraria os princípios da comunidade. Cabe aqui trazer alguns conceitos para a compreensão do problema. A apropriação cultural não é uma homenagem ou a valorização de uma arte tradicional: é a utilização da prática cultural de um grupo minorizado por um grupo dominante que, no processo, acaba por esvaziar ou modificar os significados originais dela (WILLIAM, 2019, local. 524). No processo mencionado no início deste texto, os indígenas afirmaram que essa arte é proveniente dos seres que lhes deram origem, como aves e peixes, sendo que os indígenas são guardiões da kusiwa. De acordo com suas crenças, o uso errôneo dessa arte pode deixar os animais descontentes, levando-os, então, a acometer as pessoas com doenças (BRASIL, 2013, fl. 144). Nesse ponto, nota-se que para os indígenas a remuneração não é a única ou principal preocupação. O uso da arte sem compreender seus significados e desrespeitando seu simbolismo é justamente o que causa o conflito e caracteriza a apropriação cultural (WILLIAM, 2019, local. 337).

O uso da arte sem compreender seus significados e desrespeitando seu simbolismo é justamente o que causa o conflito e caracteriza a apropriação cultural.

A partir disso, a incompatibilidade enA incompatibilidade entre a proteção dada tre o sistema criado para a proteção de e a forma de criação indígena favorece obras artísticas e a forma como algumas a exploração indevida da arte tradicional. comunidades entendem a proteção da sua própria arte tradicional fica bastante evidente. Historicamente, o sistema de direitos intelectuais trata do direito de cópia e infração, focado em obras prontas, de autor conhecido e identificado. Ainda que abarque obras em coautoria ou coletivas, ele não abrange a criação comunitária, oral e intergeracional, não necessariamente dotada de um registro escrito e em constante evolução. A aplicação sem adaptações de direitos autorais às obras indígenas pode gerar consequências negativas, como estagnação e submissão das obras à lógica capitalista. Já existem, no ordenamento jurídico brasileiro, direitos intelectuais atribuídos sem identificação de autor. É o caso das indicações geográficas, que podem servir de base para uma lógica de indicação de titularidade e origem sem afastar o caráter cultural das formas de expressão (MERKLE, 2015, p. 55). De forma complementar, o registro do patrimônio cultural imaterial realizado pelo Iphan indica anterioridade, impedindo que outros reivindiquem propriedade intelectual sobre aquelas obras – como se deu no caso da joalheria citado aqui. Cabe ao poder público, atuando por meio de suas diferentes entidades, trabalhar com as comunidades para entender que tipo de proteção existente pode auxiliá-las enquanto coleta conÉ preciso reavaliar os sistemas para adaptar tribuições para um projeto mais amplo o direito às peculiaridades da forma de criação de mudanças legislativas que coíba práe interesses indígenas que vão além ticas de apropriação cultural. da capitalização. A incompatibilidade entre a proteção dada e a forma de criação indígena favorece a exploração indevida da arte tradicional. Ela dificulta o entendimento dos direitos que os povos indígenas detêm sobre suas práticas culturais e artísticas, levan-


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do a decisões conflitantes, como visto no início desta análise. É preciso reavaliar os sistemas para adaptar o direito às peculiaridades da forma de criação e interesses indígenas que vão além da capitalização. Não se pode pensar essas mudanças sem posicionar no centro do debate os próprios povos indígenas, que devem ser protagonistas de qualquer mudança que lhes favoreça. LUIZA BALTHAZAR é graduada em direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e mestra em direito comercial pela Universidade de São Paulo (USP), com pesquisa sobre propriedade intelectual e patrimônio cultural aplicada à proteção de criações de moda. Atua como advogada com experiência nas áreas de propriedade intelectual, proteção de dados pessoais e contratos. NOTAS 1. São identificados modelos das seguintes comunidades indígenas: Muiraquitãs, Wai-Wai, Arumã I, Krixaná, Karajá I, Maiongong, Asurini e Apaial. REFERÊNCIAS BALTHAZAR, Luiza. Proteção à moda como patrimônio cultural e propriedade intelectual. 2019. 238 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Pós-Graduação em Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. BRASIL. Decreto no 3.551, de 4 de agosto de 2000. Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Brasília, 7 ago. 2000.

BRASIL. Iphan. Processo Administrativo no 01424.000082/2011-35. Macapá, 8 jul. 2013. BRASIL. Lei no 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Brasília, 20 fev. 1998. IPHAN. Dossiê técnico: povo Wajãpi. Brasília: Iphan, 2007. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/ uploads/ckfinder/arquivos/Dossie_ wajapi.pdf. Acesso em: 7 maio 2023. MERKLE, Siloá Haynosz. Indicação geográfica e patrimônio cultural sob a ótica do desenvolvimento sustentável: o caso do Vale dos Vinhedos. 2015. 126 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Patrimônio Cultural e Sociedade, Direito, Universidade da Região de Joinville, Joinville, 2015. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Acórdão no 70005218722. Relatora: Desembargadora Mara Larsen Chechi. Porto Alegre, RS, 20 de agosto de 2004. Diário da Justiça, Porto Alegre, 4 nov. 2004. WILLIAM, Rodney. Apropriação cultural. Belo Horizonte: Editora Jandaíra, 2019. (Coleção Feminismos Plurais).


Danse des selvagem | Imagem de Denilson Baniwa


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Paradoxos e desafios no acesso ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade O ARTIGO ABORDA AS COMPLICAÇÕES DA EXPLORAÇÃO ECONÔMICA DO SABER DE COMUNIDADES TRADICIONAIS E OS NECESSÁRIOS DISPOSITIVOS LEGAIS PARA PROTEGÊ-LAS ROBERTO PORRO E NOEMI SAKIARA MIYASAKA PORRO

RESUMO A repartição equitativa de benefícios é o instrumento de reconhecimento atualmente proposto por Estados-membros das Nações Unidas diante da exploração econômica por terceiros da contribuição de povos e comunidades tradicionais à conservação da biodiversidade e dos recursos genéticos. Neste artigo, apresentamos o histórico e discutimos paradoxos e desafios associados à implementação da Lei no 13.123/2015 (Lei da Biodiversidade), destacando as contradições responsáveis pelo fato de seu real cumprimento não ter sido ainda atingido. Direitos coletivos de grupos sociais cujo conhecimento não se constrói como propriedade intelectual não podem ser protegidos por aparato do direito privado.

O ano de 2022 marcou o aniversário de três décadas da II Conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente e o desenvolvimento humano (Rio-92), que priorizou temas como o desenvolvimento sustentável e mecanismos para reverter a degradação ambiental. A partir da Rio-92, incrementa-se a visibilidade da Amazônia nos debates ambientais globais, e o potencial de suas florestas na mitigação dos efeitos negativos das mudanças climáticas. Desde então, o governo brasileiro passa a considerar de forma mais efetiva ações e políticas públicas visando reduzir o desmatamento e reverter dinâmicas socioeconômicas que têm comprometido a conservação da biodiversidade, a provisão de serviços ecossistêmicos e a reprodução social dos povos e das comunidades tradicionais1. Entre as deliberações da Rio-92, destaca-se a assinatura da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo no 2, de 5 de junho de 1992 (BRASIL, 2000), e promulgada pelo Decreto Presidencial no 2.519, de 16 de março de 1998, que fixou em suas disposições o valor econômico e o direito sobre conhecimentos tradicionais2 associados à biodiversidade. A preservação e a manutenção do conhecimento tradicional associado à biodiversidade, assim como a repartição equitativa dos valores referentes a esse conhecimento para com seus detentores, foram fixadas nos termos do artigo 8o, inciso “j” da CDB, que dispõe: Em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à


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utilização sustentável da diversidade biológica, e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a repartição equitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e práticas. O Brasil é considerado a nação com a maior diversidade biológica e, consequentemente, o maior banco genético do mundo, abrigando por volta de 13% das espécies existentes no planeta (FERREIRA; SAMPAIO, 2013). O uso da biodiversidade tem enorme potencial de crescimento, por ser a base da biotecnologia e da bioeconomia, em suas diversas abordagens. Porém, para o Estado e setores do empresariado e da academia, é fundamental que todo o arcabouço normativo relacionado ao uso da biodiversidade seja capaz, ao mesmo tempo, de atrair investimentos e de resguardar os direitos das comunidades locais (BRASIL, 2022; FIORILLO, 2017). Com efeito, a riqueza da biodiversidade brasileira proporciona É fundamental que todo o arcabouço normativo ao país material genético para produção relacionado ao uso da biodiversidade seja capaz, de alimentos, medicamentos, cosmétiao mesmo tempo, de atrair investimentos e de cos e outros materiais biológicos. E as resguardar os direitos das comunidades locais. comunidades que há tempos habitam determinado território possuem conhecimentos sobre propriedades de plantas e manejo de animais, entre outros saberes relacionados a seres vivos, denominados conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético3, que são fonte de inovação para a ciência e a indústria (BENSUSAN, 2015). Conforme argumenta Cunha Filho (2000), essas comunidades não estão mais excluídas da economia nacional nem mais simplesmente localizadas na periferia do sistema socioeconômico mundial, tendo se tornado parceiras frequentes de instituições multilaterais e ONGs transnacionais. A repartição de benefícios (RB), tratada na CDB e aprofundada no Protocolo de Nagoya4, é necessária para reconhecer o valor e o esforço de uma nação em proteger e preservar sua biodiversidade e seus recursos genéticos, além de reconhecer a contribuição de práticas e saberes dos povos e das comunidades tradicionais para essa conservação, para o desenvolvimento tecnológico e para a exploração econômica de produtos oriundos do acesso a esses conhecimentos. A RB pode ser considerada uma questão de justiça para a soberania das nações sobre o seu patrimônio genético e para os povos tradicionais sobre os seus saberes (OLIVEIRA; SILVA, 2016). No Brasil, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) conceitua repartição de benefícios como a divisão dos benefícios provenientes da exploração econômica de produto acabado ou material reprodutivo desenvolvido a partir do acesso a patrimônio genético (PG) ou a conhecimento tradicional associado (CTA), sendo que esse último representa toda “informação ou prática de população indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional sobre as proA RB pode ser considerada uma questão de priedades ou usos diretos ou indiretos justiça para a soberania das nações sobre associados ao PG” (Lei no 13.123/2015, o seu patrimônio genético e para os povos art. 2o, inciso II ). tradicionais sobre os seus saberes. O Brasil foi um dos países pioneiros na implementação de uma lei de acesso ao patrimônio genético, ao conhecimento tradicional associado e à repartição de be-


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nefícios: a Medida Provisória (MP) no 2.186-16, de 2001, alinhada à Convenção sobre Diversidade Biológica. A intenção da MP era evitar a biopirataria e garantir a repartição de benefícios oriundos do uso dessa biodiversidade de forma justa e equitativa. Segundo os usuários, porém, a MP criou barreiras e não viabilizou a repartição de benefícios de forma satisfatória, sendo alvo de críticas de usuários do setor privado e de parte da comunidade científica, que reivindicavam uma legislação com regras mais claras e que proporcionasse segurança jurídica para estimular a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico que faz uso da biodiversidade brasileira. Setores de pesquisa e desenvolvimento consideravam a MP no 2.186-16 prejudicial no que diz respeito à dinâmica das inovações, principalmente as previsões de exigência do Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição de Benefícios (Curb), visto como incompatível com incertezas técnicas, tal como a real viabilidade de obter benefícios a partir do que se pretendia produzir (TÁVORA et al., 2015). No entanto, o grande desafio era a determinação de um sistema de proteção diferente da usualmente conferida à propriedade intelectual (PINTO, 2022). Após cerca de 15 anos de amadurecimento do marco legal, foi sancionada, em 20 de maio de 2015, a Lei no 13.123 (Lei da Biodiversidade), que entrou em vigor no dia 17 de novembro de 2015. Ela objetiva estabelecer mecanismos para conciliar demandas das partes interessadas e envolvidas na geração, provisão e utilização do conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético5, e criar um maior incentivo à bioprospecção, com redução dos custos de transação e uma repartição de benefícios “factível” que resguardasse os interesses e direitos das comunidades tradicionais (TÁVORA et al., 2015, p. 10). A lei alcança todas as atividades realizadas com a biodiversidade brasileira, incluindo pesquisas relacionadas a taxonomia, filogenia, estudos ecológicos, biogeografia e epidemiologia, entre outras (OLIVEIRA; SILVA, 2016). De acordo com a Lei da Biodiversidade, a repartição dos benefícios deve ocorrer somente quando existir a comercialização dos produtos derivados, estando obrigados a repartir benefícios os fabricantes de produto acabado, ou material reprodutivo, cujo componente do PG ou do CTA seja um dos principais elementos de agregação de valor ou apelo comercial do produto. Contudo, para realizar qualquer atividade com a biodiversidade brasileira, a partir de novembro de 2017 passou a ser necessário o cadastro no Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado (SisGen). Posteriormente, devem ser realizados nesse sistema eletrônico os procedimentos de notificação de produto acabado e material reprodutivo. Entre março e junho de 2018, o plenário do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen), presidido pelo MMA, aprovou medidas que simplificam o cumprimento da lei e o preenchimento do cadastro no SisGen. A Lei no 13.123/2015 distingue entre CTA de origem identificável e CTA de origem não identificável, e estabelece a necessidade de consentimento prévio para o acesso e a utilização desse conhecimento somente em relação à primeira categoria, quando é possível a identificação de sua origem e de seus titulares. Visando reduzir dispêndios na etapa inicial de acesso ao CTA, a lei determinou a dispensa do consentimento em relação à segunda categoria. Contudo, essa dispensa não é


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estendida para a obrigação de repartição de eventuais benefícios decorrentes da exploração. Assim, quando o CTA for de origem identificável, será necessária a realização do Acordo de Repartição de Benefícios (ARB), e, quando se tratar de CTA não identificável, haverá o depósito dos valores oriundos de sua exploração no Fundo Nacional de Repartição de Benefícios (FNRB), vinculado ao MMA e instituído pela lei, o qual deverá financiar atividades destinadas à promoção e ao desenvolvimento social, cultural e econômico das comunidades tradicionais. Conforme a categoria prevista de aplicação da lei, a modalidade de repartição de benefícios derivada da exploração econômica de produto acabado ou de material reprodutivo oriundo de acesso a patrimônio genético nacional pode ser de natureza monetária ou não monetária. A modalidade monetária se dá por meio de pagamentos ao FNRB, enquanto a não monetária, via ARB que compreenda projetos de conservação, capacitação de pessoas e distribuição de produtos, entre outros meios, destinados a unidades de conservação ou territórios dos detentores de conhecimento tradicional (tabela 1). No caso de RB monetária, o percentual a ser pago será de 1% fixado ou até 0,1% (por acordo setorial) da receita líquida obtida com a venda do produto acabado ou material reprodutivo. A União será indicada como beneficiária da repartição de benefícios no caso da indicação de acesso apenas ao patrimônio genético. E, no caso de conhecimento tradicional associado, os beneficiários serão os povos indígenas, as comunidades tradicionais e agricultores tradicionais. No caso de exploração econômica de produto ou material reprodutivo originado de conhecimento tradicional associado de origem identificável, além de depósito no FNRB de 0,5% da receita líquida anual, deverá ocorrer ARB com o provedor. Em meados de 2023, a Câmara Setorial dos Detentores debatia no CGen as especificações no uso do FNRB. Tabela 1: Modalidade, destino e montante da repartição de benefícios conforme objeto do acesso Modalidade da repartição de benefícios

Destino e montante da RB

RB monetária

FNRB: 1% da receita líquida (ou até 0,1% por acordo setorial) da venda do produto acabado ou material reprodutivo

RB não monetária

Acordo de Repartição de Benefícios Não Monetária (ARB-NM) com União (entre 0,75% e 1% da receita líquida)

CTA de origem não identificável

RB monetária

FNRB: 1% da receita líquida (ou até 0,1% por acordo setorial) da venda do produto acabado ou material reprodutivo

CTA de origem identificável

Monetária ou não monetária com o provedor + Parcela monetária para o FNRB

ARB com o provedor + 0,5% da receita líquida para o FNRB

Objeto do acesso

PG

Fonte: Brasil/MMA, 2022. Acesso em: mar. 2023.

As empresas de pequeno porte, microempresas, microempresários individuais, agricultores tradicionais e suas cooperativas com receita bruta anual igual ou inferior ao estabelecido em legislação pertinente serão excluídos da obrigação de repartir benefícios. É também isento da obrigação de repartir benefícios o fabricante de produto intermediário, utilizado em cadeia produtiva, que o agregará em


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seu processo produtivo, na condição de insumo, excipiente e matéria-prima, para o desenvolvimento de outro produto intermediário ou de produto acabado. Na perspectiva dos usuários de PG e CTA, como o setor empresarial e, em parte, as instituições de pesquisa, uma legislação que pretenda impor medidas para a proteção do patrimônio genético, como é o caso da Lei da Biodiversidade, resulta em carga burocrática (custos) e perdas de competitividade no cenário internacional (prejuízos) superiores a eventuais benefícios que a lei proporcionaria, ao menos no tocante à pesquisa básica, na medida em que sua implementação constituiria um desestímulo ao efetivo desenvolvimento tecnológico e à pesquisa aplicada. Para estes, uma adequada lei sobre a biodiversidade deve proteger tanto os recursos naturais quanto as inovações, de forma que estas possam gerar lucros àqueles diretamente envolvidos (empresas, pesquisadores etc.), ao país e à sociedade, gestando um ciclo virtuoso de incentivo para o desenvolvimento científico, econômico e social (FIGUEIROA et al., 2020). Por outro lado, a efetiva proteção ao conhecimento tradicional associado se mostra como um desafio para o ordenamento jurídico brasileiro, que precisa criar normas que assegurem aos seus verdadeiros titulares o acesso às vantagens advindas da exploração desse conhecimento que compõe o patrimônio cultural imaterial de uma comunidade. Com efeito, as leis nacionais, assim como tratados, frequentemente falham diante da necessidade de estabelecer sistemas de monitoramento e aplicação das normas (FERREIRA; SAMPAIO, 2013). De acordo com Miranda (2018), o marco legal da biodiversidade parece impor a lei em questão com o pretexto de “flexibilizar” normas para incentivar a pesquisa com o patrimônio Associação automática entre conhecimento e genético brasileiro, quando na verdade patrimônio, expressa no termo “conhecimento o objetivo é facilitar a apropriação da tradicional associado a patrimônio genético” biodiversidade nacional por grandes lesa direitos que podem não ser valorados grupos farmacêuticos e agroquímipecuniariamente. cos transnacionais. Assim, o marco se insere em um discurso político para justificar o novo colonialismo biocultural e ratificar o exposto por David Harvey (2005) quanto a estratégias para assegurar direitos monopolistas de propriedade privada mediante leis internacionais de comércio, com destaque para as patentes e os pretensos “direitos de propriedade intelectual”. A Lei no 13.123/2015 teria, portanto, incorporado anseios do setor empresarial com disposições prejudiciais ao direito intelectual coletivo das comunidades tradicionais, o que fragiliza sua proteção quando comparada com a MP no 2.186-16/14. Mais do que isso, nas principais normativas do ordenamento jurídico nacional que tratam do conhecimento tradicional, existe uma associação automática entre conhecimento e patrimônio, expressa no termo “conhecimento tradicional associado a patrimônio genético”. Essa preponderância de uma entre as inúmeras dimensões do conhecimento lesa direitos que podem não ser valorados pecuniariamente, tampouco cedidos, sendo a lesão aos atuais povos e comunidades tradicionais extensiva à humanidade. Embora a noção de patrimônio já tenha evoluído, partindo do sentido estrito vinculado à personalidade do indivíduo para a vinculação a sujeitos coletivos, ainda se faz imprescindível a reflexão crítica no campo


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jurídico antropológico sobre as desigualdades que levam à apropriação excludente desse patrimônio. No atual Estado de direito, aqueles agraciados por relações capitalizadas pelo patrimônio financeiro são também os que mais se beneficiam do patrimônio genético associado ao conhecimento tradicional, como as grandes indústrias farmacêuticas e de cosméticos. A noção de patrimônio é, em sua origem, marcada pelo cunho econômico e pecuniário, tratando-se como extrapatrimonial aquilo que não o é (PORRO et al., 2023). A apropriação indevida de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade pode ocorrer com amparo em direitos de propriedade intelectual como a patente6. Pelo sistema de patentes, o Estado confere ao titular o direito de exploração da tecnologia por um tempo determinado como forma de incentivo à exploração do invento (BARBOSA, 2010). Tal exclusividade por vezes esconde elementos que foram obtidos de maneira irregular para alcançar a tecnologia. A patente, como um direito de propriedade intelectual, descaracteriza o próprio processo de formação do CTA, construído de forma coletiva, sendo insuficiente para uma efetiva proteção dos sistemas de conhecimento (SHIVA, 2001). As patentes dão direito à apropriação privada desse conhecimento e uso exclusivo do produto que ele proporcionar, “[...] um direito de monopólio sobre algo que foi gerado e acumulado ancestralmente, [...] o benefício, para essas comunidades, é coletivo, nunca particular. O que as patentes proporcionam, porém, é a privatização desses conhecimentos” (IADEROZZA, 2015, p. 207). Para evitar que o CTA seja indevidamente apropriado, busca-se um regime no qual direitos intelectuais coPara evitar que o CTA seja indevidamente letivos se sobrepõem a direitos de proapropriado, busca-se um regime no qual priedade intelectual (SANTILLI, 2004; direitos intelectuais coletivos se sobrepõem IADEROZZA, 2015). a direitos de propriedade intelectual. Como agravante, as hipóteses de isenção previstas na Lei no 13.123/2015 em favor do setor empresarial e em detrimento dos povos tradicionais contrariam o direito dos titulares desses conhecimentos (OLIVEIRA, 2016), criando requisitos que dificultam ou até mesmo impossibilitam o acesso das comunidades tradicionais aos benefícios decorrentes da exploração de seu conhecimento. Pode-se, assim, considerar um retrocesso as isenções previstas no artigo 17 da Lei no 13.123/2015 que vinculam a repartição de benefícios a situações específicas e tratam a obrigação de repartição como exceção, já que poucas são as hipóteses em que as comunidades tradicionais terão algum retorno pelo uso de seu conhecimento, o que acaba prejudicando o desenvolvimento dos povos titulares (MOREIRA, 2017). A previsão de “elementos principais de agregação de valor” confere à lei um grau de indeterminação que acaba por comprometer a proteção dos CTAs. Conforme exposto por Pinto (2022), a lei confere imunidade aos elos intermediários da cadeia do produto, estando a obrigação de repartição de benefícios estipulada apenas quanto ao último elo da cadeia produtiva. Em outras palavras, a lei estipula a responsabilidade somente em relação ao último explorador do conhecimento Pode-se, assim, considerar um retrocesso tradicional na cadeia de produção, não as isenções previstas no artigo 17 da Lei no introduzindo qualquer responsabilida13.123/2015 que vinculam a repartição de de subsidiária quanto aos elos intermebenefícios a situações específicas e tratam a diários (OLIVEIRA, 2016), sujeitando o obrigação de repartição como exceção.


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direito das comunidades tradicionais a apenas um eventual resultado final do processo de inovação, o que cria a possibilidade de não haver repartição de benefícios (TÁVORA et al., 2015). Ao analisarem o funcionamento do CGen como aparato coordenador da política de repartição de benefícios, Castro e Santos (2022, p. 15) apontam que a ausência de empoderamento dos grupos tradicionais para influenciar a política resulta em um “ciclo vicioso de rejeição da legitimidade tanto da própria política quanto do CGen para as comunidades tradicionais, que deixam de participar do mesmo e acabam não pressionando para o pagamento da repartição dos benefícios”. É sintomático que, desde a vigência da Lei da Biodiversidade, de 2015, até a data da submissão deste artigo, apenas seis empresas nacionais (e três pessoas físicas) tenham inserido no SisGen notificações de produto acabado referentes a acesso a conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético de flora, obtido de comunidades tradicionais nos nove estados da Amazônia Legal. Em pesquisa na base de dados do SisGen, constatamos que, até março de 2023, foram registradas 716 notificações, sendo que 93% foram inseridas por apenas duas empresas. Dessas notificações, somente 26 registram repartição monetária de benefícios. No caso de acesso apenas a patrimônio genético (da flora), são 1.683 notificações, de 27 empresas (e 7 pessoas físicas), sendo que 75% foram notificações de uma única empresa (tabela 2). Tabela 2: Notificações de produto acabado referentes a acesso a PG e CTA nos estados da Amazônia Legal, considerando patrimônio genético de flora (exceto algas) a partir da vigência da Lei no 13.123/2015 Notificações de produto acabado por modalidade de RB Isenta

Monetária

Não monetária

Total

304

26

386

716

CTA de origem identificável

5

22

386

413

57,7%

CTA de origem não identificável

299

4

0

303

42,3%

Empresa usuária A

0

1

385

386

53,9%

Empresa usuária B

277

0

0

277

38,7%

Objeto de acesso: PG2

230

296

1.157

1.683

Empresa usuária A

7

251

1.007

1.265

75,2%

Empresa usuária B

0

0

122

122

7,2%

Objeto de acesso: PG e CTA

1

%

Notas: (1) Total de usuários para acesso a PG e CTA: seis empresas e três pessoas físicas; (2) Total de usuários para acesso a PG: 27 empresas e 7 pessoas físicas. Fonte: elaborado pelos autores a partir de dados obtidos em: https://sisgen.gov.br/paginas/pubpesqnotificacao.aspx. Acesso em: mar. 2023.

Neste contexto marcado pela dicotomia de narrativas, os próprios grupos sociais dos povos e das comunidades tradicionais que praticam o extrativismo se deparam com necessidades distintas de acordo com situações específicas. Essas necessidades contrastam demandas de um segmento ainda minoritário – mas que já avança em complexas negociações comerciais com empresas adquirentes – com aquelas no âmbito de uma grande maioria de pessoas e famílias cuja inserção no mercado se dá por meio de uma cadeia de valor extremamente injusta. De forma seme-


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lhante, o setor industrial abrange segmentos que desconsideram a relevância da repartição equitativa de benefícios, buscando formas de se posicionar à margem da aplicação da lei, enquanto outros encontram dificuldades para compreender os requerimentos necessários para estar em conformidade com ela. Considerando a atual ênfase direcionada a abordagens de bioeconomia, é preciso que iniciativas relacionadas à repartição equitativa de benefícios a partir do acesso ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade, assim como as barreiras ainda existentes para que tal repartição de benefícios ocorra, sejam mais bem compreendidas e disseminadas para preencher lacunas na produção de conhecimento e potencializar situações em que acordos comerciais efetivamente contribuam para a conservação da biodiversidade e para o fortalecimento de comunidades locais. Sobretudo, é imprescindível considerar que a política em questão se insere num contexto mais amplo, em que as comunidades tradicionais que mais dependem dos recursos da sociobiodiversidade ainda lutam pelo direito ao seu próprio território. Portanto, consideramos que os processos envolvendo direitos referentes a conhecimento tradicional associado a patrimônio genético são parte da luta histórica que esses povos e comunidades travam por seus direitos territoriais.

Processos envolvendo direitos referentes a conhecimento tradicional associado a patrimônio genético são parte da luta histórica que esses povos e comunidades travam por seus direitos territoriais.

ROBERTO PORRO é engenheiro agrônomo e antropólogo, pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental e docente do Programa de Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas da Universidade Federal do Pará (UFPA). NOEMI SAKIARA MIYASAKA PORRO é antropóloga e docente do Programa de Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas da UFPA. NOTAS 1. Diegues et al. (1999) sintetizam o conceito de comunidade tradicional: “[...] grupos humanos diferenciados sob o ponto de vista cultural, que reproduzem historicamente seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base na cooperação social e relações próprias com a natureza. Essa noção refere-se tanto a povos indígenas quanto

a segmentos da população nacional, que desenvolveram modos particulares de existência, adaptados a nichos ecológicos específicos” (DIEGUES et al., 1999, p. 22). O Decreto no 6.040/2007 instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento dos Povos e Comunidades Tradicionais. Em seu artigo 3o, inciso I, adotou-se a seguinte definição para povos e comunidades tradicionais: “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição” (BRASIL, 2007).


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2. Conhecimento tradicional é

6. Conforme definição da

o conhecimento, know-how, habilidades e práticas que são desenvolvidos, sustentados e transmitidos de geração em geração dentro de uma comunidade, muitas vezes formando parte de sua identidade cultural ou espiritual (WIPO, 2015). 3. De acordo com a Lei no 13.123/2015, artigo 2o, inciso I, patrimônio genético consiste em “informação de origem genética de espécies vegetais, animais, microbianas ou espécies de outra natureza, incluindo substâncias oriundas do metabolismo destes seres vivos”. 4. O Protocolo de Nagoya é um acordo complementar à CDB, estabelecido na X conferência das partes (COP), em 2010, e que passou a vigorar em 2014. Fornece uma estrutura legal transparente e estabelece obrigações essenciais para que as partes contratantes tomem medidas em relação ao acesso a recursos genéticos, repartição de benefícios e conformidade, particularmente em situações nas quais os recursos genéticos são transferidos para outro país. A carta de ratificação da participação do Brasil no protocolo foi assinada pelo presidente da República em 4 de março de 2021. 5. A Lei no 13.123/2015, art. 2o, inciso II, define conhecimento tradicional associado como: “informação ou prática de população indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional sobre as propriedades ou usos diretos ou indiretos associada ao patrimônio genético”.

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Organização Mundial de Propriedade Intelectual, a patente é um direito exclusivo por uma invenção, sendo produção ou processo que oferece uma nova solução técnica para um problema. Disponível em: https://www.wipo. int/patents/en/#:~:text=A%20 patent%20is%20an%20 exclusive,public%20in%20a%20 patent%20application.

REFERÊNCIAS BARBOSA, D. B. Tratado da propriedade intelectual: patentes. Ed. Lumen Juris, 2010. BENSUSAN, N. Guia de apoio à regulamentação da Lei 13.123/2015: que dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, sobre a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional e sobre a repartição de benefícios para a conservação e uso sustentável da biodiversidade. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2015. BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Secretaria de Biodiversidade. Patrimônio genético, conhecimento tradicional associado e repartição de benefícios: Lei no 13.123, de 20 de maio de 2015; Decreto no 8.772, de 11 de maio de 2016. 2. ed. Brasília: MMA, 2022. BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Convenção sobre Diversidade Biológica – CDB. Cópia do Decreto Legislativo no 2, de 5 de junho de 1992. Brasília: MMA, 2000. Disponível em: https://www.gov.br/ mma/pt-br/textoconvenoportugus. pdf. Acesso em: 8 ago. 2023.


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CASTRO, B. S. D.; SANTOS, A. C. C. D. Conselho de Gestão do Patrimônio Genético e a coordenação da política de acesso e repartição de benefícios no Brasil. Ambiente & Sociedade, v. 25, p. 1-20, 2022. Disponível em: https://www.scielo. br/j/asoc/a/8KQvbzmVKG9prL7y QcyqW6j/?lang=pt. Acesso em: 8 ago. 2023. CUNHA FILHO, F. H. Direitos culturais com direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro. Brasília: Brasília Jurídica, 2000. DIEGUES, A. C.; ARRUDA, R. S.; SILVA, V. C. D.; FIGOLS, F. A.; ANDRADE, D. Biodiversidade e comunidades tradicionais no Brasil. São Paulo: Nupaub-USP/Probio-MMA/ CNPq, 1999. FERREIRA, S. N.; SAMPAIO, M. J. A. M. (org.). Biodiversidade e conhecimentos tradicionais associados: implementação da legislação de acesso e repartição de benefícios no Brasil. Brasília: SBPC, 2013. Disponível em: http://portal.sbpcnet.org.br/ publicacoes/biodiversidadee-conhecimentos-tradicionaisassociados-implementacao-dalegislacao-de-acesso-e-reparticaode-beneficios-no-brasil/. Acesso em: 8 ago. 2023. FIGUEIROA, R. G.; Guimarães, R. D. L; Azevedo, V. A. D. C. Os impactos da Lei da Biodiversidade na pesquisa. 2020. PIDCC, Aracaju, ano IX, v. 1, n. 2, p. 026-042, jun. 2020. Disponível em: http://pidcc. com.br/br/component/content/ article/2-uncategorised/378os-impactos-da-lei-debiodiversidade-na-pesquisa. Acesso em: 28 jul. 2023.

FIORILLO, C. A. P.; DIÁFERIA, A. Biodiversidade, patrimônio genético e biotecnologia no direito ambiental. 2. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2017. HARVEY, D. A arte da renda: a globalização e a transformação da cultura em commodities. In: Harvey, D. A produção capitalista do espaço. Tradução de Carlos Szlak. São Paulo: Annablume, 2005. p. 219-239. IADEROZZA, F. E. Neoliberalismo, sistema de patentes e a liberalização do biomercado emergente no Brasil na década de 1990: a privatização do conhecimento tradicional e da biodiversidade nacional. 2015. 282 f. Tese (Doutorado em Geografia) – Instituto de Geociências, Unicamp, Campinas, 2015. MIRANDA, J. P. O marco legal da biodiversidade. 1. ed. São Paulo: Editora LiberArs, 2018. MOREIRA, E. C. P. Visão geral da Lei no 13.123/15. In: MOREIRA, E. C. P.; PORRO, N. M.; SILVA, L. A. L. (org.). A “nova” Lei no 13.123/2015 no velho marco legal da biodiversidade: entre retrocessos e violações de direitos socioambientais. São Paulo: Instituto “O Direito por um Planeta Verde”, 2017. p. 66-73. OLIVEIRA, D. R. D.; SILVA, M. Regulamentada a nova Lei da Biodiversidade: desafios e perspectivas para P&D no Brasil. Jornal da Ciência, n. 5.437, 15 jun. 2016. Disponível em: http://www.jornaldaciencia. org.br/edicoes/?url=http%3A// jcnoticias.jornaldaciencia.org. br/25-regulamentada-a-nova-leida-biodiversidade-desafios-eperspectivas-para-pd-no-brasil/. Acesso em: 28 jun. 2023.


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OLIVEIRA, J. V. D. A proibição do retrocesso e a isenção de repartição de benefícios ao ramo empresarial para fins de acesso ao conhecimento tradicional. 2016. 120 f. Dissertação (Mestrado em Direito) -– Universidade Federal do Pará, Belém, 2016. Disponível em: https://repositorio. ufpa.br/bitstream/2011/8727/1/ Dissertacao_ ProibicaoRetrocessoIsencao.pdf. Acesso em: 8 ago. 2023. PINTO, K. P. D. S. Os direitos intelectuais coletivos das comunidades tradicionais: uma análise das hipóteses de isenção previstas nos §§ 1o e 2o do art. 17 da Lei no 13.123/2015. Monografia (Bacharelado em Direito) – Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais, Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), Brasília, 2022. PORRO, N. S. M.; PORRO, R.; SHIRAISHI NETO, J. A gestão neoliberal do conhecimento tradicional associado a patrimônio genético. 2023. Manuscrito não publicado. SANTILLI, J. Conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade: elementos para a construção de um regime jurídico sui generis de proteção. 2004. Disponível em: http://www.anppas. org.br/encontro_anual/encontro2/ GT/GT08/juliana_santilli.pdf. Acesso em: 8 ago. 2023.

SHIVA, V. Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento. Tradução de Laura Cardellini Barbosa de Oliveira. Prefácio de Hugh Lacey e Marcos Barbosa de Oliveira. Petrópolis: Editora Vozes, 2001. TÁVORA, F. L.; FRAXE NETO, H. J.; PÓVOA, L. M. C.; KASSMAYER, K.; SOUZA, L.; PINHEIRO, V. M.; BASILE, F.; CARVALHO, D. D. Comentários à Lei no 13.123, de 20 de maio de 2015: Novo Marco Regulatório do Uso da Biodiversidade. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/Conleg/ Senado, out. 2015 (Texto para Discussão no 184). Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ publicacoes/estudos-legislativos/ tipos-de-estudos/textos-paradiscussao/td184. Acesso em: 28 jul. 2023. WIPO. Intellectual Property and Genetic Resources, Traditional Knowledge and Traditional Cultural Expressions. Geneva, 2015. Disponível em: https://www.wipo. int/edocs/pubdocs/en/wipo_ pub_933_2020.pdf. Acesso em: 28 jul. 2023.


CAPÍTULO 3: Direitos culturais | perspectivas das

comunidades afro-brasileiras e de matriz africana

O antropólogo moderno já nasceu antigo | Imagem de Denilson Baniwa


Cidade nas terras indígenas | Imagem de Denilson Baniwa


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Direitos territoriais quilombolas: coletividade, cultura, tradição e saberes que devemos proteger A IMPORTÂNCIA DA TITULAÇÃO E DA PROTEÇÃO DOS TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS, ESPAÇOS INDISSOCIÁVEIS DE SUA CULTURALIDADE, É ABORDADA POR VERCILENE FRANCISCO DIAS VERCILENE FRANCISCO DIAS

RESUMO Embora as discussões sobre a cultura quilombola não sejam atualmente raras, elas dificilmente são escritas pelos próprios quilombolas. O Brasil é um país de múltiplas e diversas tradições culturais, nas quais as comunidades quilombolas com certeza têm parte. Nascidos da luta e da resistência do povo negro trazido da África para ser escravizado no Brasil, nossos antepassados quilombolas batalharam não só pela liberdade de sua forma de trabalho e do seu corpo, mas também pela liberdade da mente e da alma, pela liberdade de praticar seus cultos e saberes. O quilombo foi e continua sendo um lugar de resistência e culturalidade territorializada, e não há como falar de cultura no Brasil sem abordar a diversidade cultural, os saberes e as tradições dos quilombos. As comunidades quilombolas possuem íntima relação com o território que ocupam e de que fazem uso para sua subsistência e seu modo de vida coletivo. Como sujeitos de direitos culturais, suas formas e manifestações culturais devem ser protegidas e incentivadas.

O direito à cultura, consagrado no Protocolo de San Salvador (PSS)1 e reafirmado em vários instrumentos normativos internacionais, como na Convenção Americana2, na Declaração Americana3 e na Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA)4, estipula o dever do Estado de priorizar o estímulo à cultura para alcançar o desenvolvimento integral da pessoa humana como fundamento da justiça social e da democracia, bem como de reconhecer o compromisso individual e solidário para preservar o patrimônio cultural dos povos, garantindo o direito de participação a setores populacionais excluídos e discriminados na vida cultural. Nessa mesma linha, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância5 destaca mecanismos de prevenção à negação, à inviabilização de acesso, à restrição ou à limitação de direitos individuais ou coletivos referentes à cultura. Já os instrumentos universais, como o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais6, a Declaração Universal dos Direitos Humanos 7, a Convenção sobre os Direitos da Criança8, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres 9 e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial 10, estabelecem que é


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direito de todas as pessoas participar plenamente da vida cultural e do progresso científico em condições de igualdade. Dessa forma, a cultura deve ser tratada como um direito individual e coletivo das comunidades quilombolas, que salvaguarda seus modos de vida de organização e expressões culturais, e protege seus patrimônios materiais e imateriais, assim como seus conhecimentos tradicionais. No entanto, no Brasil as liberdades culturais sofrem limitações pelo racismo estrutural e institucional, deixando comunidades vulnerabilizadas à margem, inviabilizando e limitando seus direitos, que na maioria das vezes são exercidos com resistência, mesmo estando juridicamente assegurados. As comunidades quilombolas, ou simplesmente quilombo, são formadas por grupos sociais remanescentes de pessoas que foram escravizadas, cuja identidade étnica, ancestralidade comum, formas de organização política e social, elementos linguísticos, religiosos e culturais os distinguem do restante da sociedade (Decreto no 4.887/2003 11). São comunidades que desenvolveram processos de resistência para manter e reproduzir seu modo de vida característico em um determinado território, onde puderam praticar suas crenças e manifestações religiosas e culturais sem correr o risco de serem repreendidas por tais práticas tradicionais, proteção que só foi possível encontrar no quilombo. As comunidades quilombolas surgiram da luta do povo negro trazido à força da África para alimentar a mão de obra escrava na expansão e exploração da colônia brasileira, o qual, ao se insurgir e se aquilombar, busca a liberdade que ainda não se efetivou. Na luta pela libertação, o quilombo foi e continua sendo um espaço de resistência e liberdade, liberdade de seguir suas práticas tradicionais, culturais e religiosas ancestrais, que insistem em resistir ao furor do tempo e às investidas do capital.

Grupos sociais remanescentes de pessoas que foram escravizadas, cuja identidade étnica, ancestralidade comum, formas de organização política e social, elementos linguísticos, religiosos e culturais os distinguem do restante da sociedade.

Após o fim formal da escravidão, perpassado um século de silêncio e invisibilidade, em que se buscou efetivar o apagamento da luta e da resistência do povo negro aquilombado, os quilombolas foram enfim reconhecidos como sujeitos de direitos na Constituição de 198812, que não somente reconheceu, no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT)13, o direito dos quilombolas às suas terras tituladas, como também, nos artigos 215 e 216, conferiu-lhes, como grupos formadores da identidade nacional, o exercício do direito de acesso, apoio, valorização, difusão e proteção das manifestações culturais populares. Cabe ressaltar que é na garantia do território quilombola que seus direitos são concretizados, pois o território é espaço necessário para a reprodução cultural, social e econômica, seja ele utilizado de forma permanente ou temporária pelos povos quilombolas. O território é repleto de significado, espaço onde simbolicamente estão impressas nossas memórias de luta e resistência, a base material e imaterial que compõe nossa identidade coletiva. É no território que o cuidado se concretiza, não só de uns para com os outros, mas também no cuidado para com a sustentabilidade da biodiversidade existente: fazendo uso dos recursos naturais


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de forma equilibrada e sustentável, preocupamo-nos com o agora, mas também com o futuro das gerações que vão usufruir do que cuidamos hoje. Contudo, é fato que tamanha diversidade resistiu e resiste em territórios conflitivos, pois o direito ao território titulado ainda não se concretizou para mais de 90% das comunidades quilombolas reconhecidas pelo Estado brasileiro. E isso se dá apesar da garantia constitucional do direito às terras tituladas, sendo a titulação de nossas terras condição necessária para a garantia plena do exercício de nossos direitos territoriais e culturais, assim como o acesso a políticas públicas estruturantes para que o quilombo viabilize a preservação do nosso modo de vida. Das 5.972 localidades quilombolas, conforme dados do censo preliminar de 2019 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)14 divulgados em abril de 2020, somente 3.591 são reconhecidas atualmente pela Fundação Cultural Palmares15. No entanto, apenas 322 títulos foram emitidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)16, referentes a 206 territórios quilombolas e em benefício de 356 comunidades, isso entre os anos de 1995 e 2023. Trata-se, porém, de titulação parcial, ou seja, o órgão emite o título de uma gleba ou de áreas específicas dentro do território, o que não abrange a titulação de todo o território da comunidade. Cabe observar também que uma grande porcentagem das titulações foi feita por órgãos estaduais e que atualmente o Incra conta com um passivo de 1.802 processos abertos para titulação de quilombos17. De acordo com um estudo recente da Organização Terra de Direitos, no atual ritmo, o Brasil levará 2.188 anos para titular todos os territórios quilombolas com processos no Incra 18. Imagem 1: Estimativa de localidades quilombolas recenseáveis segundo grandes regiões e Unidades da Federação (2019) Brasil

5.972

Norte

873

Roraima

Nordeste

3.171

Sudeste

1.359

Sul

Pará Tocantins

0

319

Centro-Oeste

Amapá

73

250 184

Amazonas

866

181

516

Acre

0 Rondônia

Maranhão Piauí Ceará

215 84

183 132

16 1.046

77 Mato Grosso

117 11

Goiás Mato Grosso do Sul

193

Alagoas Sergipe

Minas Gerais

1.021

115

Espírito Santo Rio de Janeiro

São Paulo 40

Paraíba Pernambuco

Bahia

87

86

Rio Grande do Norte

Distrito Federal

45 136

Paraná

70 89 389

Santa Catarina Rio Grande do Sul

Fonte: IBGE, informações em consolidação para o “Censo demográfico 2020”.


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DIREITOS CULTURAIS

Gráfico 1: Quadro geral de comunidades remanescentes de quilombos (CRQs) (2004-2022) CRQs (certidões)

2.929

Nº de CRQs (comunidade

2004

3.591

2005

2006

2007

CRQs

Nº de CRQs

CRQs

Nº de CRQs

CRQs

Nº de CRQs

CRQs

Nº de CRQs

(certidões)

(comunidade)

(certidões)

(comunidade)

(certidões)

(comunidade)

(certidões)

(comunidade)

92

268

327

390

393

408

148

191

2008

2009

2010

2011

CRQs

Nº de CRQs

CRQs

Nº de CRQs

CRQs

Nº de CRQs

CRQs

Nº de CRQs

(certidões)

(comunidade)

(certidões)

(comunidade)

(certidões)

(comunidade)

(certidões)

(comunidade)

126

134

99

101

228

251

200

234

2012

2013

2014

2015

CRQs

Nº de CRQs

CRQs

Nº de CRQs

CRQs

Nº de CRQs

CRQs

Nº de CRQs

(certidões)

(comunidade)

(certidões)

(comunidade)

(certidões)

(comunidade)

(certidões)

(comunidade)

121

144

263

392

154

167

75

97

2016

2017

2018

2019

CRQs

Nº de CRQs

CRQs

Nº de CRQs

CRQs

Nº de CRQs

CRQs

Nº de CRQs

(certidões)

(comunidade)

(certidões)

(comunidade)

(certidões)

(comunidade)

(certidões)

(comunidade)

178

206

130

152

168

204

70

91

2020

2021

2022

CRQs

Nº de CRQs

CRQs

Nº de CRQs

CRQs

Nº de CRQs

(certidões)

(comunidade)

(certidões)

(comunidade)

(certidões)

(comunidade)

29

33

39

39

61

61

Fonte: Fundação Cultural Palmares. Informações atualizadas até 31 de dezembro de 2022. Disponível em: https://www. palmares.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/quadro-geral-por-estados-e-regioes-15-06-2021.pdf.

Gráfico 2: CRQs reconhecidas por região do país 373 2.260

169 Nordeste Norte

595

Centro-Oeste Sudeste Sul

194


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A demora na titulação dos territórios quilombolas é a reprodução do racismo sistêmico que molda a sociedade brasileira e penaliza um povo que por séculos resiste, em territórios inseguros e conflitivos, onde a violência por parte de quem detém o capital não tem limite e ceifa vidas. A desproteção dessas comunidades coloca em risco sua reprodução física, social e cultural, o que constitui uma violação de direitos fundamentais, além de uma grande perda não só para nós quilombolas, mas também para a sociedade brasileira e mundial, tendo em vista que a cultura é elemento fundante para o desenvolvimento socioeconômico dos povos, como bem assevera a Carta Social das Américas 19, e não se limita a simples expressões isoladas, mas faz parte de um processo social criativo no qual as comunidades mantêm suas especificidades e seus propósitos, contribuindo amplamente para o desenvolvimento do mundo como um todo, pois a cultura é patrimônio comum da humanidade, conforme pontua a Declaração sobre a Raça e os Preconceitos Raciais 20, da Unesco.

O quilombo foi e continua sendo um espaço de resistência e liberdade, liberdade de seguir suas práticas tradicionais, culturais e religiosas ancestrais, que insistem em resistir ao furor do tempo e às investidas do capital.

O território é espaço necessário para a Se não há garantia do território protegido, a garantia à cultura quilombola ine- reprodução cultural, social e econômica, seja ele xiste, pois as tradições e culturalidades utilizado de forma permanente ou temporária quilombolas coexistem por meio de seu pelos povos quilombolas. território. É no território que a vida quilombola perpassa os imaginários mais incríveis. Só quem é quilombola sente e por vezes nem consegue explicar qual é o sentimento de pertença que o faz ir tão longe na luta e na busca por medidas protetivas para aquele espaço de saber e partilha.

No quilombo, as expressões culturais podem ser vistas, vividas e sentidas, as histórias de sua origem podem ser ouvidas, principalmente em época de festejos tradicionais, em que a alegria pela chegada tanto dos que precisaram de alguma forma se afastar do território quanto dos visitantes se expressa em uma só comunhão de rezas, danças, fé e culturas. No entanto, a segurança do exercício desses direitos está em risco em decorrência da falta de regularização e proteção dos territórios quilombolas. O território titulado é um direito dos quilombolas, e efetivar a titulação é um dever constitucional do Estado brasileiro, que também deve promover políticas inclusivas de desenvolvimento cultural, implementando programas e planos de preservação e proteção do patrimônio e da diversidade nos terriSe não há garantia do território protegido, a tórios protegidos pelos quilombolas, garantia à cultura quilombola inexiste, pois cujas comunidades precisam ter partias tradições e culturalidades quilombolas cipação ativa nesse processo. coexistem por meio de seu território.


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VERCILENE FRANCISCO DIAS é quilombola do Quilombo Kalunga e advogada popular. Doutoranda em direito pela Universidade de Brasília (UnB), mestra em direito agrário, graduada em direito pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e diplomada em estudo internacional em litígio estratégico em direito indígena pela Pontifícia Universidade Católica do Peru. Coautora do livro Mulheres quilombolas: territórios de existências negras femininas (2020). Atua como assessora jurídica e coordenadora da assessoria jurídica da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).

5. Decreto no 10.932, de 10 de janeiro

NOTAS 1. Protocolo de San Salvador, 1988, artigo 14. Disponível em: https:// www.oas.org/pt/cidh/mandato/ basicos/sansalvador.asp. Acesso em: 5 ago. 2023. 2. Convenção Americana sobre Direitos Humanos, 1969. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/ basicos/portugues/c.convencao_ americana.htm. Acesso em: 5 ago. 2023. 3. Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, 1948. Disponível em: https://www3.paho. org/hr-ecourse-p/assets/_pdf/ Module1/Lesson2/M1_L2_24.pdf. Acesso em 5 ago. 2023. 4. Carta da Organização dos Estados Americanos, 1967. Disponível em: https://www.abert.org. br/web/images/Biblioteca/ Liberdade/CARTA%20DA%20 ORGANIZAO%20DOS%20 ESTADOS%20AMERICANOS.pdf. Acesso em: 22 ago. 2023.

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de 2022. Disponível em: https:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ Ato2019-2022/2022/Decreto/ D10932.htm. Acesso em: 5 ago. 2023. 6. Disponível em: Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales | OHCHR. 7. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/ declaracao-universal-dos-direitoshumanos. Acesso em: 5 ago. 2023. 8. Convenção sobre os Direitos da Criança, 1989. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/ convencao-sobre-os-direitos-dacrianca. Acesso em: 5 ago. 2023. 9. Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, 1979. Disponível em: https://www.unicef. org/brazil/convencao-sobreeliminacao-de-todas-formas-dediscriminacao-contra-mulheres. Acesso em: 5 ago. 2023. 10. Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, 1965. Disponível em: Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial | ACNUDH (ohchr.org). Acesso em: 5 ago. 2023. 11. Decreto no 4.887, de 20 de novembro de 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/decreto/2003/d4887. htm. Acesso em: 5 ago. 2023.


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12. Constituição da República

17. Disponível em: https://www.

Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www. planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 5 ago. 2023. 13. Veja mais sobre o artigo 8o do ADCT em: https://www. ancestralidades.org.br/marcoshistoricos/os-quilombos-naconstituicao-federal-de-1988. 14. Disponível em: https:// dadosgeociencias.ibge.gov.br/ portal/apps/sites/#/indigenas-equilombolas. Acesso em: 5 ago. 2023. 15. Tabelas das comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares. Disponível em: https://www.gov.br/palmares/ pt-br/midias/arquivos-menudepartamentos/dpa/comunidadescertificadas. Acesso em: 22 ago. 2023. 16. Títulos expedidos às comunidades quilombolas. Disponível em: https://www.gov.br/incra/ pt-br/assuntos/governancafundiaria/Andamento_titulacao_ quilombolas_22.03.2023.pdf. Acesso em: 5 ago. 2023.

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gov.br/incra/pt-br/assuntos/ governanca-fundiaria/ processos_regularizao_territorios_ quilombolas_abertos_06.04.2023. pdf. Acesso em: 5 ago. 2023. 18. Disponível em: https:// terradedireitos.org.br/noticias/ noticias/no-atual-ritmo-brasillevara-2188-anos-para-titulartodos-os-territorios-quilombolascom-processos-no-incra/23871. Acesso em: 5 ago. 2023. 19. Carta Social das Américas. Disponível em: https://1library. org/article/a-carta-social-dasam%C3%A9ricas-csa-documentosglobais.q7wnx1oz. Acesso em: 22 ago. 2023. 20. Declaração sobre a Raça e os Preconceitos Raciais, 1978. Disponível em: https://www. oas.org/dil/port/1978%20 Declara%C3%A7%C3%A3o%20 sobre%20Ra%C3%A7a%20e%20 Preconceitos%20Raciais.pdf. Acesso em: 5 ago. 2023.


Antes sertão hoje centrão | Imagem de Denilson Baniwa


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Nosso sagrado: uma história de luta pela identidade cultural, memória e cidadania JAIME MITROPOULOS DISCUTE A IMPORTÂNCIA DA REPARAÇÃO CULTURAL COMO FORMA DE DEFESA DIANTE DO RACISMO INSTITUCIONALIZADO CONTRA AS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS JAIME MITROPOULOS

RESUMO A partir da mudança do nome da coleção Nosso sagrado, patrimônio tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1938, o artigo trata de questões relativas à conscientização, à mobilização e à participação comunitária, a memória, identidade e bens culturais como instrumentos de transformação social. Além disso, aborda o tema da reparação em face do racismo religioso institucional praticado pelo Estado brasileiro contra as religiões afro-brasileiras durante a Primeira República e o Estado Novo.

Em 21 de março de 2023, Dia Internacional de Combate à Discriminação Racial e Dia Nacional das Tradições de Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) anunciou que o acervo Magia negra, constituído de centenas de peças litúrgicas de religiões afro-brasileiras apreendidas pela polícia entre 1890 e 1945, agora tem novo nome: coleção Nosso sagrado1. O acervo já havia sido transferido do Museu da Polícia do Rio de Janeiro para o Museu da República em 2020, após décadas de lutas travadas por comunidades de axé e de um inquérito civil instaurado pelo Ministério Público Federal (MPF). A transferência da guarda e a mudança de nome constituem medidas reparatórias importantes para a promoção da diversidade cultural e o enfrentamento do racismo religioso. Além disso, elas evidenciam a evolução do tratamento dispensado ao patrimônio cultural das comunidades afro-brasileiras. O CONTEXTO RACISTA DAS APREENSÕES Em 1880, uma carta redigida pelo então diretor do Museu Nacional começou a firmar uma parceria com a Secretaria de Polícia da Corte. Ladislau de Souza afirmara que a coleção africana do Museu Nacional, composta de peças apreendidas nas chamadas casas de dar fortuna2, serviriam para preparar melhor os policiais (ALMEIDA, 2017). Com o mesmo objetivo, três décadas depois a polícia teria seu próprio museu. Afinal de contas, nem a Proclamação da República e tampouco o advento do Estado laico impediram o Estado brasileiro de perpetrar sistêmica perseguição às religiões de matrizes afro-brasileiras.


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Marcos Bretas (1997a, p. 24) explica que, embora fosse vedado ao poder público criar distinções por motivos religiosos, as forças policiais adotavam estratégias para levar adiante o processo de civilização de uma sociedade que se pretendia branqueada (CHALHOUB, 2001). O historiador também ressalta que, nas primeiras décadas da República, a polícia selecionava quem era ou não cidadão merecedor de respeito (BRETAS, 1997b, p. 22). No início do século XX, com efeito, reformas aparelharam a corporação para que ela cumprisse com eficiência ainda maior a tarefa de filtrar práticas enquadradas no que foi considerado feitiçaria e “baixo-espiritismo”. Foi nesse ambiente que, em 1910, instalado no imponente Palácio da Polícia, na Rua da Relação, na então capital da República, começou a funcionar o Museu da Polícia (PATRASSO, 2015). Assim, durante a Primeira República, sob influência do racismo científico, que reforçava no imaginário coletivo a ideologia de uma supremacia racial cujas repercussões abrangiam os âmbitos cultural, político e religioso (DA SILVEIRA, 2000, p. 90), institucionalizou-se e naturalizou-se a suposta inferioridade de africanos e de suas respectivas culturas e religiosidades, como lembra Abdias Nascimento (2017, p. 82). Depois, obcecado pela ideia de forjar uma identidade nacional que emulava uma sociedade homogênea (OLIVEIRA, 2015, p. 17), o Estado Novo continuou agindo para desmantelar candomblés e afins sob a alegação de que eram “coisas perigosas e que deveriam ser extintas” (FRANCESCHI, 2010, p. 94). Os estudos de Valquíria Velasco (2019) e Nathália de Oliveira (2020) evidenciam as prisões e apreensões de objetos litúrgicos realizadas em cada um desses períodos. O acervo foi tombado e batizado em 1938, ou seja, no contexto desse paradigma da repressão (HERTZMAN, 20133 apud PEREIRA, 2020, p. 13). Embora a coleção tombada tenha permanecido presa durante décadas no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro, a luta contínua por seu resgate por parte de uma resistente comunidade jamais esmoreceu4. NOVOS PARADIGMAS DA CIDADANIA Nos termos da Constituição Federal de 1988, a República brasileira tem como fundamento a dignidade humana, do qual decorrem o exercício da cidadania e o livre exercício das liberdades. Nesse cenário, cumpre ao Estado apoiar, incentivar e valorizar a difusão das diversas manifestações culturais, assegurando acesso às suas diversas fontes, de modo a garantir a diversidade cultural e a pluralidade religiosa.

Sobre esse aspecto, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (2013) explicita que a “intolerância” se manifesta através da violência, marginalização e exclusão que denotam “desrespeito, rejeição ou desprezo à dignidade, características, convicções ou opiniões de pessoas por serem diferentes ou contrárias”. Por sua vez, de acordo com a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2005), “a proteção e a promoção da diversidade das expressões culturais pressupõem o reconhecimento da igual dignidade e o respeito por todas as culturas, incluindo as das pessoas pertencentes a minorias”.


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Vale observar que a promoção do patrimônio cultural afro-brasileiro transcende o tombamento de terreiros e de igrejas nas quais se estabeleceram irmandades católicas de negros e pardos, os registros de bens imateriais, como as matrizes do samba, ou, ainda, a criação de um museu da herança ou diáspora africana. As ações de preservação e promoção do patrimônio cultural abarcam ações afirmativas que objetivam assegurar o direito à memória, à identidade e à educação inclusiva.

As ações de preservação e promoção do patrimônio cultural abarcam ações afirmativas que objetivam assegurar o direito à memória, à identidade e à educação inclusiva.

A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), através da Declaração de Budapeste (2002), aponta que a proteção do patrimônio cultural deve buscar o “equilíbrio entre a conservação e o desenvolvimento socioeconômico sustentável através de atividades adequadas para a qualidade de vida das comunidades”. Nesse mesmo sentido, a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (1972) e a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (2003) reconhecem os benefícios da transformação social mediante a garantia do desenvolvimento sustentável baseado no protagonismo da comunidade. Já o artigo 4o do Estatuto da Igualdade Racial (Lei no 12.288/2010) exemplifica as ações por meio das quais a população negra atua para modificar estruturas e eliminar obstáculos históricos, socioculturais e institucionais que impedem sua representação nas esferas pública e privada. Faz-se imprescindível, portanto, a conscientização, a participação e a mobilização da comunidade, sem a qual não é possível transmitir a identidade cultural e as lutas para preservação de seus modos de vida (ALMEIDA, 2022). Quanto a esse ponto, é relevante frisar que a transferência da guarda e a mudança de nome da coleção Nosso sagrado são frutos da iniciativa da sociedade civil, que, liderada por Mãe Meninazinha de Oxum, integra o grupo de gestão compartilhada das peças. Tais alterações objetivam promover a produção e a transmissão de conhecimentos a partir dos sujeitos de direitos que precisam retomar a narrativa de suas histórias. Afinal, a Nosso sagrado pertence à coA população negra atua para modificar munidade de axé! Com efeito, de acordo estruturas e eliminar obstáculos históricos, com Kwame Appiah (1997, p. 157-164), socioculturais e institucionais que impedem sua os objetos litúrgicos estão umbilicalrepresentação nas esferas pública e privada. mente ligados à memória e à ancestralidade de uma comunidade que tem maneiras próprias de compreender o mundo (THEODORO, 2009, p. 225) e que se expressa através de um rico sistema filosófico (LOPES, 2005, p. 19). É preciso, pois, compreender todas as dimensões da luta comunitária pelo seu direito de autodeterminação, que abrange o direito de resgatar a identidade capturada e a possibilidade de corrigir processos culturais que perpetuam a marginalização.


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Sendo assim, ao cobrar do Iphan a mudança do nome da coleção, o MPF apontou que as apreensões e o batismo do acervo ocorreram em períodos de repressão nos quais o Estado categorizava e perseguia as religiosidades de matrizes afro-brasileiras. Tratava-se de uma clara estratégia para manter a subordinação das religiões afro-brasileiras, associando-as a práticas maléficas, ao mesmo tempo que permitia que membros da estrutura autoritária do Estado tivessem “a satisfação narcísica de se sentirem completos” (MOREIRA, 2020, p. 654). Diante desse paradigma, a necessidade de livrar o acervo tombado de abordagens que perpetuavam a discriminação e o discurso de ódio fez-se urgente, uma vez que a reprodução de estigmas e estereótipos transgeracionais continuava prolongando a inferiorização e determinando que os adeptos das religiões afro-brasileiras deveriam se “comportar de acordo com as expectativas criadas e lugares socialmente atribuídos a elas” pelo Estado (MOREIRA, 2020, p. 656).

Conscientização, a participação e a mobilização da comunidade, sem a qual não é possível transmitir a identidade cultural e as lutas para preservação de seus modos de vida.

CONCLUSÃO: PERSPECTIVAS Hoje, superado o sinistro hiato de retrocessos culturais5, é fundamental reafirmar que um dos objetivos da República é construir uma sociedade livre, justa e solidária, com a erradicação de discriminações odiosas baseadas, entre outras idiossincrasias, na cor da pele e na orientação religiosa. Isso se mostra inviável na ausência de reconciliação e de reparações decorrentes das sistêmicas violações perpetradas pelo Estado ao longo do tempo. Vale enfatizar que o dever de reparação integral exige a adoção de medidas capazes de impedir a repetição das violações, o que tem o potencial de transformar estruturas e gerar um efeito dissuasório para o enfrentamento do racismo religioso ainda hoje praticado no Brasil (SIQUEIRA, 2017).

A Nosso sagrado agora tem nome escolhido pelos donos de suas próprias hisEstado e sociedade possam assegurar o tórias. Repleta de representatividade e diálogo intercultural e em que todos possam portando referências à luta pela idenexercer seus direitos de forma plena tidade cultural e pela memória de coe em igualdade de condições. munidades que tiveram seus direitos vilipendiados durante tanto tempo, a coleção é hoje salvaguardada pelo Museu da República. Espera-se que a mudança de paradigma ajude a transformar estruturas e a vislumbrar um horizonte melhor no qual Estado e sociedade possam assegurar o diálogo intercultural e em que todos possam exercer seus direitos de forma plena e em igualdade de condições.


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JAIME MITROPOULOS é procurador da República, procurador regional dos direitos do cidadão no Rio de Janeiro, titular do 20o Ofício do Meio Ambiente e Patrimônio Cultural na Procuradoria da República no Rio de Janeiro e integrante do Grupo de Trabalho Liberdades de Consciência, Crença e Expressão, da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão [Ministério Público Federal (MPF)].

REFERÊNCIAS ALMEIDA, Carolina Cabral Ribeiro. Da polícia ao museu. A formação da coleção africana do Museu Nacional na última década da escravidão. 2017. 205 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2017. ALMEIDA, Rosiane Rodrigues de. A luta por um “modo de vida”: enfrentamento ao racismo religioso no Brasil. Niterói: Eduff, 2022. APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. BRETAS, Marcos Luiz. Ordem na cidade. O exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro, 1907- 1930. Rio de Janeiro: Rocco, 1997a. BRETAS, Marcos Luiz. A guerra nas ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997b. DA SILVEIRA, Renato. Os selvagens e a massa: papel do racismo científico na montagem da hegemonia ocidental. Afro-Ásia, Salvador, n. 23, p. 87-144, 2000. DOI: 10.9771/aa. v0i23.20980. FRANCESCHI, Humberto M. Samba de sambar do Estácio: de 1928 a 1931. São Paulo: Instituto Moreira Sales, 2010. LOPES, Nei. Kitábu. O livro do saber e do espírito negro-africanos. Rio de Janeiro: Ed. Senac Rio, 2005.

NOTAS 1. Ver: https://artsandculture. google.com/story/ mwWx9m6ZCuqk5A?hl=pt-BR. Acesso em: 2 ago. 2023. 2. Segundo Eduardo Possidonio (2015, p. 15), “casas religiosas, ao longo da segunda metade do século XIX, eram vistas pelas autoridades e por jornalistas como casas de dar fortuna, ou seja, local onde se buscava a sorte fácil”. 3. HERTZMAN, Marc. Making Samba: A New History of Race and Music in Brazil. Durham: Duke University Press, 2013. 4. A luta rendeu a obra Liberte o nosso sagrado (2017), da produtora Quiprocó Filmes. 5. Cite-se, por exemplo, que em 2020 um ex-secretário nacional de Cultura declamou trechos de Joseph Goebbels enquanto pretendia lançar um plano de uniformização da cultura nacional.

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MOREIRA, Adilson José. Tratado de direito antidiscriminatório. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020. NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 1. reimpr. da 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2017. OLIVEIRA, Nathália Fernandes de. A repressão às religiões de matriz afro-brasileiras no Estado Novo (1937-1945). 2015. 173 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015. PATRASSO, André Luís de Almeida. A Escola de Polícia do Rio de Janeiro: ciência, identificação e educação profissional (1912-1918). 2015. 135 f. Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da Saúde) – Casa de Oswaldo Cruz – Fiocruz, Rio de Janeiro, 2015. PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. A cidade que dança: clubes e bailes negros no Rio de Janeiro (1881-1933). Campinas: Editora da Unicamp, 2020.

POSSIDONIO, Eduardo. Entre ngangas e manipansos: a religiosidade centro-africana nas freguesias urbanas do Rio de Janeiro de fins do Oitocentos (1870-1900). 2015. 183 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Salgado de Oliveira, Rio de Janeiro, 2015. SIQUEIRA, Adriana Souza de. As medidas reparatórias na Corte Interamericana de Direitos Humanos. 2017. 178 f. Dissertação (Mestrado em Ciências JurídicoInternacionais) – Faculdade de Direito, Universidade de Lisboa, 2017. THEODORO, Helena. Guerreiras do samba. Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, Rio de Janeiro, v. 6, n.1, p. 223-236, 2009. VELASCO, Valquíria Cristina Rodrigues. Geografia da repressão: experiências, processos e religiosidades no Rio de Janeiro (1890-1929). 2019. 228 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.


CAPÍTULO 4: Direitos culturais | liberdade de

expressão e fomento na contemporaneidade

For hope beyond the horizon | Imagem de Denilson Baniwa


Curumin guardador de memórias | Imagem de Denilson Baniwa


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Cultura digital e direitos autorais: da liberdade artística à inteligência artificial O TEXTO DE MARCOS WACHOWICZ ABORDA A IMPORTÂNCIA DA REGULAÇÃO DOS DIREITOS AUTORAIS QUANTO A OBRAS ARTÍSTICAS PRODUZIDAS POR INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL MARCOS WACHOWICZ

RESUMO O ano de 2023 é o marco da massificação do uso da inteligência artificial (IA), tal como o ano de 1995 é lembrado como o do boom da internet, que criou a sociedade informacional. A liberdade artística sempre se utilizou e se apropriou das novas tecnologias na produção e na circulação de bens no ambiente da internet, dando origem a uma nova cultura digital. Porém, com o recente uso de aplicativos de IA no processo de criação artística, novas questões surgiram no tocante à atribuição de autoria da obra produzida por IA generativa.

A internet, desde o início do século XX, é responsável pela forma com que o ser humano se comunica, se informa e se expressa num ambiente hiperconectado. Mais do que o acesso a obras raras escritas, ela contém o germe da nova invenção, da descoberta, cria ou possibilita a criação do novo, transforma, circula e permeia todos os universos humanos, desde as esferas econômica, social e política até os planos éticos, culturais e ambientais. Vivemos numa sociedade na qual as novas tecnologias da informação têm um papel central em todos os modos de interação social, produção cultural e desenvolvimento econômico, em que a aquisição, o armazenamento, o processamento, a transmissão, a distribuição e a disseminação de conhecimento desempenham um papel central na atividade econômica, na criação de riquezas e na definição da qualidade de vida dos cidadãos e das suas práticas culturais. Com a massificação da internet, inicia-se a denominada sociedade informacional, que se caracteriza pela criação e conexão de todos os tipos de redes informáticas, denominadas por Pierre Lévy (2010, p. 92) como “o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial de computadores e das memórias dos computadores”. Com a internet, o ser humano é potencialmente emissor e receptor em um ambiente digital, cuja criação só foi possível por meio de programas de computador. Os avanços tecnológicos dos computadores, o aumento da capacidade de armazenamento e processamento, a miniaturização de seus elementos físicos internos de funcionamento e processamento da informação e, principalmente, a fusão do processo de informação com novas tecnologias de comunicação são exemplos clássicos do desenvolvimento de uma nova cultura digital, ou cibercultura, como descrita por Lévy.


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A LIBERDADE ARTÍSTICA NO USO DAS TECNOLOGIAS DIGITAIS A importância da produção e da circulação de bens culturais existentes na internet faz com que a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, ganhe novos contornos e apresente novas questões, como a divisão que a nova tecnologia gera entre quem a possui e quem não a detém.

Na sociedade informacional, a questão da inclusão tecnológica é também uma questão de inclusão social e cultural. Portanto, a lacuna no acesso digital entre quem detém a tecnologia da informação e quem não a possui é superior, em quantidade e qualidade, ao hiato referente a qualquer outro avanço tecnológico ocorrido na história da nossa civilização. A restrição do direito humano à liberNa sociedade informacional, a questão dade de receber e transmitir informada inclusão tecnológica é também uma ções ou ideias por quaisquer meios, inquestão de inclusão social e cultural. dependentemente de fronteiras, afeta também o direito humano da liberdade estabelecido no artigo XXVII da DUDH, a saber: “Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948). Na medida em que a pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural e participar do progresso científico e de seus benefícios, é dever do Estado garantir sua promoção e o seu acesso. O artigo XXVIII da DUDH afirma com clareza ainda maior: “Toda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados” (idem). Desta forma, é inexorável a responsabilidade e participação ativa do Estado na superação da distância digital, em parceria com as universidades, as associações de direito e as ONGs, cujos esforços de autorregulamentação por meio de comunidades independentes muito têm realizado em prol da efetivação desse direito. Contudo, a participação da sociedade civil não isenta o Estado do seu papel de protetor dos direitos humanos por meio de políticas públicas e da criação de instrumentos que viabilizem aos cidadãos o efetivo acesso à informação e à cultura, segundo o que consta no artigo 301 da declaração, também em termos digitais. O USO DE APLICATIVOS DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL (IA) NO PROCESSO DE CRIAÇÃO ARTÍSTICA A convergência de mídias para a internet com a conversão digital e a criação de ambientes virtuais imersivos, como o metaverso, as redes sociais e as plataformas de streaming, permitiu o surgimento de novas formas de comunicação na sociedade informacional (ASCENSÃO, 2022). Os impactos das novas tecnologias de IA nos planos econômico, social, cultural e ambiental são questões que vêm sendo incorporadas ao processo criativo de bens artísticos e culturais. Os reflexos dessa tecnologia são mais visíveis na produção artística e cultural, como na música e no cinema.


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Em um mundo cada vez mais automatizado, era apenas questão de tempo até que o ramo da criação de obras artísticas também fosse tomado por esse fenômeno. A criação de obras por meio de aplicações de IA é um tópico que entrou muito em voga nos últimos anos, mas, na verdade, trata-se de uma questão debatida desde a concepção do primeiro computador, com os detalhes da discussão evoluindo com o tempo. Os aplicativos de IA são projetados para imitar a maneira como o cérebro humano processa informações, utilizando algoritmos de processamento de máquina que podem analisar grandes quantidades de dados e identificar padrões complexos (WACHOWICZ; GONÇALVES, 2019). Esses algoritmos, que estão sendo cada vez mais utilizados por uma variedade de indústrias criativas na produção de conteúdo na internet, permitem que os sistemas de IA sejam treinados para reconhecer e responder a diferentes entradas de dados, aprimorando sua precisão e sua eficácia ao longo do tempo. Embora os impactos da tecnologia de IA sejam objeto crescente de estudos, percebe-se agora, contudo, um novo elemento tecnológico, que são os aplicativos de IA, utilizados na criação e na produção de bens culturais. Deste modo, a cultura digital é influenciada pelas tecnologias digitais, que estão em constante evolução, assim como pelas práticas culturais e sociais, em constante mudança, compondo um fenômeno global presente em todas as partes do mundo e que se faz cada vez mais relevante em nosso cotidiano. Embora os impactos da tecnologia de IA sejam objeto crescente de estudos, percebe-se agora, Com a massificação de seu uso, os aplicontudo, um novo elemento tecnológico, que cativos de IA se tornaram uma parte são os aplicativos de IA, utilizados na criação cada vez mais importante da cultura e na produção de bens culturais. digital. Para compreender sua presença na cultura digital, é necessário entender que esses aplicativos são construídos por seres humanos e, portanto, refletem seus valores, preconceitos e perspectivas. Eles podem ser usados para aumentar a eficiência, reduzir custos e melhorar a experiência do usuário, mas também podem perpetuar desigualdades e discriminações já existentes. Assim, é importante que os aplicativos de IA sejam construídos de forma ética e transparente, para que os usuários possam confiar em suas decisões e compreender como elas foram tomadas. Além disso, é necessário que as pessoas sejam educadas sobre os limites e as possibilidades desses aplicativos, para que possam utilizá-los ética e conscientemente na produção de conhecimento e de bens culturais. Para compreender o uso de aplicativos de IA, é importante entender o que ela é e como funciona. A inteligência artificial é um campo da ciência da computação que busca criar sistemas que podem realizar tarefas que exigem normalmente inteligência humana, como reconhecimento de voz, visão computacional, processamento de linguagem natural e tomada de decisão. Na cultura digital, os aplicativos de IA podem ser usados para uma série de propósitos, como a análise de dados de usuários para personalizar conteúdos e anúncios, e a criação


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de produtos (imagens, músicas, audiovisuais) para interagir com as pessoas. Os aplicativos de IA têm um impacto significativo na produção e na difusão de bens culturais. Algumas das maneiras pelas quais esses aplicativos alcançaram a indústria cultural incluem: • Criação de conteúdo: os aplicativos de IA podem ser usados para criar conteúdo cultural, como música, arte e literatura. Por exemplo, um aplicativo de criação de música pode gerar músicas completas a partir de um conjunto de dados de entrada. Isso pode ajudar a manter a produção de novas obras culturais, permitindo que os criadores explorem novas possibilidades e experimentem novas formas de expressão. • Melhoria da eficiência na produção: a IA pode ser usada para automatizar tarefas repetitivas na produção de bens culturais. • Personalização de conteúdo: trata-se de um dos principais efeitos dos aplicativos de IA na produção e na difusão de bens culturais, envolvendo a capacidade de tais aplicativos de adaptar o conteúdo aos interesses de cada indivíduo e, desta forma, influenciar sua escolha como usuário de uma plataforma de conteúdo. Por outro lado, o uso de aplicativos de IA no próprio processo criativo poderá possibilitar novas formas de expressão artística, que serão fruto de uma criatividade informacional sempre ligada ao uso das tecnologias digitais. Das inúmeras possibilidades, destacamos três: • Arte generativa: trata-se de arte criada através do uso de algoritmos e de regras definidas pelo artista. A IA generativa é usada para gerar variações infinitas de uma imagem, criando padrões e formas únicas que não poderiam ser obtidas de outra maneira. • Edição de imagens: a IA é usada para criar imagens manipuladas, alterando seu conteúdo, adicionando efeitos visuais e até mesmo criando imagens a partir de imagens textuais. • Edição de músicas: usando algoritmos de processamento de máquina que analisam dados musicais existentes e reconhecem padrões musicais, o aplicativo de IA é capaz de compor uma música original que segue esses padrões e, potencialmente, de criar novos padrões musicais. Além disso, a IA poderá ser usada para ajudar com tarefas específicas relacionadas à música, como transcrição de partituras e identificação de notas e acordes. Em nível de produção artística, a IA poderá ser usada para automatizar processos repetitivos, liberando o artista para concentrar-se em tarefas que exijam mais do seu processo criativo. A ATRIBUIÇÃO DE AUTORIA DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA PRODUZIDA POR IA A questão da atribuição de autoria da obra de arte produzida por meio de IA será mais complexa à medida que a participação do autor humano se tornar quase indetectável no processo criativo, restando somente o uso da criatividade informacional do aplicativo de IA. Ainda não há propostas consolidadas para lidar com essa questão no cenário internacional, mas, desde a metade de 2018, a Organiza-


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ção Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi) tem promovido notáveis esforços para fomentar a discussão e instigar possíveis consensos, especialmente entre especialistas e governos, para a criação de políticas públicas sobre propriedade intelectual e inteligência artificial (WIPO, 2019). Ao admitir que a criação artística de uma obra de arte fruto da aplicação de IA poderia ser protegida pelo direito autoral, a primeira proposta afasta-se da visão antropocêntrica e não considera a criatividade como uma capacidade exclusivamente humana. Com base na capacidade e liberdade artística do autor de fazer uma adição que vá além das inspirações e das experiências da pessoa, porém, seria então possível falar de uma criatividade informacional fruto de uma IA generativa (GUADAMUZ, 2017). A segunda proposta, dentro de uma visão antropocêntrica, atribuiria a proteção pelo direito autoral ao desenvolvedor do aplicativo de IA da obra produzida ou ao usuário que treinou a capacidade do algoritmo de produzir determinado tipo de obra, ainda que não tenham eles contribuído com qualquer esforço intelectual ou criativo na produção da obra fruto da IA. Para efetivar tal proposta, seria necessária a criação de um direito conexo como forma de remuneração ao titular (desenvolvedor ou usuário). A terceira proposta, dentro da perspectiva do domínio público, sugere que a obra intelectual gerada por IA estaria livre, sem restrições de uso por qualquer pessoa que quisesse utilizá-la, transformá-la ou reproduzi-la. Assim como não há direito autoral sobre obra da natureza, por analogia, também não haveria sobre a obra da máquina, que, do ponto de vista econômico, seria de uso livre e gratuito. É preciso ficar claro que somente uma solução adequada, fruto de uma única modalidade de direito mais abrangente, dará segurança jurídica e facilitará a tutela das obras geradas por aplicações de IA como um conjunto, afetando especificamente o mercado de desenvolvimento de inteligências artificiais e evitando a insegurança que existe hoje na indústria da inovação, a qual costuma seguir o caminho da proteção por segredos de negócio em vez de o do registro de programas de computador (WACHOWICZ; GRAU-KUNTZ, 2021). É preciso ficar claro que somente uma solução adequada, fruto de uma única modalidade de direito mais abrangente, dará segurança jurídica A regulação adequada do uso da tecnologia de IA poderá auxiliar em muie facilitará a tutela das obras geradas por tos setores culturais, analisando dados aplicações de IA como um conjunto. para identificar tendências e padrões que possam servir para que governos e empresas compreendam melhor o comportamento de seus cidadãos e clientes e, desta forma, possam melhorar os produtos e serviços culturais, personalizando-os com base em comportamentos individuais e coletivos. Para isso, é fundamental que as empresas e os desenvolvedores sejam responsáveis e transparentes em relação ao uso de aplicativos de IA na cultura digital, levando em conta seus possíveis impactos sociais, éticos e culturais.


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MARCOS WACHOWICZ é professor de direito na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutor em direito pela UFPR e mestre em direito pela Universidade Clássica de Lisboa, em Portugal. Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Autoral e Industrial (Gedai), da UFPR. Professor da Cátedra de Propriedade Intelectual no Institute for Information, Telecommunication and Media Law (ITM), da Universidade de Münster, na Alemanha. Docente do curso de políticas públicas e propriedade intelectual do Programa de Mestrado em Propriedade Intelectual na modalidade a distância na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), na Argentina.

REFERÊNCIAS ASCENSÃO, José de Oliveira. Estudos de José de Oliveira Ascensão sobre direito autoral e sociedade informacional. 1. ed. Curitiba: Ioda, 2022. GUADAMUZ, Andres. Do androids dream of electric copyright? Comparative analysis of originality in artificial intelligence generated works. Intellectual Property Quarterly, v. 2, 2017. LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 2010. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/ declaracao-universal-dos-direitoshumanos. Acesso em: 23 de ago. 2023. WACHOWICZ, Marcos; GONÇALVES, Lukas Ruthes. Inteligência artificial e criatividade: novos conceitos na propriedade intelectual. Curitiba: Gedai/UFPR, 2019. WACHOWICZ, Marcos; GRAU-KUNTZ, Karin (org.). Estudos de propriedade intelectual em homenagem ao prof. dr. Denis Borges Barbosa. Curitiba: Ioda, 2021. WIPO. Technology Trends 2019: Artificial Intelligence. Geneva: World Intellectual Property Organization, 2019.

NOTA 1. “Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada de maneira a envolver para qualquer Estado, agrupamento ou indivíduo o direito de se entregar a alguma atividade ou de praticar algum ato destinado a destruir os direitos e liberdades aqui enunciados” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948).

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Cunhatain antropofagia musical | Imagem de Denilson Baniwa


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Marco da Cultura: uma construção necessária A URGÊNCIA DE UM ACESSO VERDADEIRAMENTE INCLUSIVO E DEMOCRÁTICO AO FOMENTO CULTURAL É O TEMA DO ARTIGO DE ÁUREA CAROLINA, LEONARDO LESSA E CAROLINA ALBUQUERQUE ÁUREA CAROLINA DE FREITAS E SILVA, LEONARDO LESSA E CAROLINA ABREU ALBUQUERQUE

“Precisamos que a cultura seja esse corpo que pulsa, que canta, que encanta e que, do barro do chão, a gente possa brotar um novo país.” (Carol Vergolino1) RESUMO À luz de debates sobre a necessária democratização das políticas de fomento cultural, este artigo apresenta o Marco Regulatório do Fomento à Cultura (PL no 3.905/21), proposto pelos mandatos de Áurea Carolina (PSOL/MG), Benedita da Silva (PT/RJ) e Túlio Gadêlha (Rede/PE) na Câmara dos Deputados. A implementação de instrumentos jurídicos que considerem as especificidades do fazer cultural é entendida como estratégia para a superação de obstáculos de acesso ao fomento, sobretudo por populações historicamente marginalizadas.

Ainda que tenhamos avançado significativamente na legislação de fomento à cultura nas últimas três décadas, a gestão dos mecanismos de fomento permanece marcada por desafios estruturantes. Por falta de um ordenamento jurídico adequado às especificidades do setor, as normas que disciplinam esses mecanismos ainda se revelam completamente deslocadas da realidade de artistas, agentes culturais e fazedores de cultura, impondo entraves burocráticos que reforçam desigualdades históricas. Como deputada federal e integrantes do mandato de Áurea Carolina na Câmara dos Deputados (PSOL/MG – de 2019 a 2022), apresentamos, em parceria com parlamentares integrantes da Comissão de Cultura, uma poderosa alternativa a esse cenário. O Marco Regulatório do Fomento à Cultura2, protocolado em novembro de 2021 junto com o mandato de Benedita da Silva (PT/RJ) e o de Túlio Gadelha (Rede/PE), prevê uma nova caixa de ferramentas para a gestão da cultura no Brasil, ao estabelecer um regime jurídico para as políticas de fomento à cultura de um ponto de vista inclusivo e democrático, atento às especificidades regionais e às dinâmicas próprias do fazer cultural. Construído em ampla articulação com especialistas em direito da cultura, agentes culturais e dirigentes públicos de cultura de diferentes estados brasileiros, o projeto também passou por consulta pública, recebendo contribuições de diversos setores da sociedade civil, e agora tramita na Câmara dos Deputados. Neste


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artigo, buscamos apresentar a proposta do Marco da Cultura à luz de debates sobre a necessária simplificação, desburocratização e modernização das políticas de fomento como estratégia para a superação dos obstáculos de acesso à cidadania cultural. OS DESAFIOS DO FOMENTO À CULTURA PARA A GESTÃO PÚBLICA Um conjunto de legislações federais criadas e implementadas nas três últimas décadas trouxe relevantes contribuições para o desenvolvimento do setor cultural brasileiro, ampliando fontes de financiamento para projetos culturais e consolidando importantes programas governamentais como políticas de Estado. Essas normativas ganharam respaldo máximo em nosso arcabouço legal com a previsão expressa dos sistemas de financiamento da cultura como compoAs normas que disciplinam esses mecanismos nentes da estrutura do Sistema Nacioainda se revelam completamente deslocadas nal de Cultura (SNC)3. da realidade de artistas, agentes culturais e fazedores de cultura. A Lei Federal de Incentivo à Cultuo ra (n 8.313/1991), a Lei do Audiovisual (no 8.685/1993), a Lei Cultura Viva (no 13.018/2014) e, mais recentemente, a Lei Aldir Blanc (no 14.017/2021), a Lei Paulo Gustavo (no 195/2022) e a Lei Aldir Blanc 2 (no 14.399/2022) são exemplos desse conjunto de políticas culturais que, por meio de sua consolidação como textos legais, deveriam garantir a continuidade de iniciativas de governos distintos como políticas estruturantes para o setor. Mas esse arcabouço legal não tem sido suficiente para assegurar os direitos culturais.

É inegável a persistência de uma granA inadequação das ferramentas e exigências de lacuna na democratização do acesso burocráticas para o necessário fomento aos recursos. Mesmo com uma consià cultura desvela um verdadeiro derável ampliação do investimento púdéficit democrático. blico no setor cultural nas últimas décadas, nossa legislação de fomento ainda é considerada excludente e elitista por uma expressiva camada dos agentes culturais brasileiros, especialmente quanto a culturas tradicionais e territórios periféricos. A artista e gestora cultural Jaqueline Fernandes (2021) descreve bem esse cenário: O terreiro não tem documento. A capoeira não tem Ordem dos Músicos. Mestras e mestres griôs não têm o valor da oralidade ancestral considerada na maior parte dos editais. As comunidades quilombolas não estão em dia com o ECAD. Nós sempre criamos, mas os direitos autorais não entram nos nossos bolsos. Para tradições negras, regras brancas. A cultura do sinhôzinho ainda é a que tem fomento. Quem tem os mecanismos, leva (FERNANDES, 2021). A inadequação das ferramentas e exigências burocráticas para o necessário fomento à cultura desvela um verdadeiro déficit democrático. Os traços colonialistas, racistas, machistas e classistas que organizam e estratificam a sociedade brasileira acabam por ter reflexo direto na elaboração e na implementação das políticas públicas de cultura e, como não poderia deixar de ser, nos instrumentos jurídicos estabelecidos pelas legislações que as regulamentam.


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Parte significativa dos agentes culturais pode ser excluída já na “porta de entrada” dos mecanismos de fomento cultural pelas próprias normas que os regulam. Não seria exagero inferir que a maioria daqueles e daquelas que nem sequer têm conhecimento da publicação desses editais, ou que até mesmo desistem de disputá-los em razão da complexidade das demandas burocráticas exigidas, é também composta de pessoas negras habitantes de regiões empobrecidas da cidade. Do outro lado da política, na perspectiva de gestores culturais nos estados e municípios, a natureza jurídica dos instrumentos específicos dos sistemas de financiamento da cultura no Brasil também se revela um entrave central. A advogada Cecília Rabêlo, ex-presidente e sócia fundadora do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais e editora deste número 36 da Revista Observatório, explica como a ausência de uma legislação específica praticamente impossibilita o trabalho na ponta: Estar em uma Assessoria Jurídica de um órgão de cultura é ter, de um lado, o Tribunal de Contas e as controladorias cobrando rigidez e controle do gestor no fomento e, do outro, o setor artístico e cultural requerendo instrumentos viáveis e condizentes com a realidade da sua prática. É uma balança impossível de ser equilibrada sem uma legislação clara e específica para o fomento à cultura (RABÊLO, 2021). Atualmente, quando o contorno de uma relação de fomento cultural não encontra amparo em outras legislações específicas, a tendência é enxergá-la como similar ao instituto do convênio e aplicar subsidiariamente o que preconiza a Lei de Licitações e Contratos, antiga Lei no 8.666/934. Mas, como as relações da cultura são de outra natureza, essa utilização acaba inviabilizando repasses financeiros ou gerando problemas graves, tais como “inadimplência nas prestações de contas, devolução de recursos, gestores com contas reprovadas e um fomento que causa mais problemas do que soluções” (RABÊLO, 2021). São as consequências de usar a caixa de ferramentas equivocada para lidar com a cultura. Para corrigir essas distorções, é necessário superar a defasagem de instrumentos jurídicos para o financiamento público da cultura, como recomenda Clarice Costa Calixto, advogada da União e ex-coordenadora da Consultoria Jurídica do Ministério da Cultura: A complexidade do sistema de financiamento público da cultura reside na pluralidade de mecanismos que devem estar à disposição do gestor público para a concretização das políticas culturais, com os respectivos instrumentos jurídicos de formalização, sujeitos a regimes jurídicos diferentes de acordo com a finalidade pretendida na situação concreta (CALIXTO; VILLA, 2018, p. 191). Daí a necessidade (e a urgência) da formulação de uma legislação específica, que delimite os contornos do direito da cultura como direito setorial, em regramentos que considerem as especificidades do fazer cultural em toda a sua diversidade.


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A CONSTRUÇÃO DO MARCO DA CULTURA É nesse contexto que o Marco Regulatório do Fomento à Cultura é proposto, buscando trazer clareza e segurança jurídica para o entendimento das relações entre a administração pública da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios e agentes culturais no âmbito do financiamento público a projetos e atividades das mais diversas linguagens. O Marco da Cultura cria um caminho jurídico específico: o regime próprio de fomento cultural. A partir de um paradigma de administração pública gerencial moderno e simplificado, o conjunto de regras estabelece procedimentos desburocratizados de execução e indica diretrizes claras para um monitoramento focado primordialmente em estratégias de controle prévio e controle concomitante, comprovadamente mais eficazes para o combate à corrupção e ao desperdício de recursos públicos.

São as consequências de usar a caixa de ferramentas equivocada para lidar com a cultura.

Do ponto de vista dos chamamentos pú- O desafio de superar a defasagem histórica dos blicos, o projeto cria orientações para instrumentos jurídicos para a gestão pública do tornar editais e processos seletivos verfomento à cultura ainda persiste. dadeiramente inclusivos e democráticos, com a previsão de ações afirmativas, formatos acessíveis para pessoas com deficiência, autorização de busca ativa para a participação de fazedores de cultura e inscrições realizadas oralmente para grupos vulneráveis. A prestação de contas passa a ser focada no cumprimento da ação cultural, evitando a criminalização do agente cultural. Do ponto de vista da gestão, a possibilidade de usar a Lei de Licitações e Contratos fica vedada, evitando-se, assim, os enormes problemas gerados pela inadequação desse regime (pensado para situações de interesses contrapostos) diante da realidade da cultura, em que os interesses são coincidentes no sentido da realização de um projeto ou uma ação cultural. É importante mencionar que várias dessas medidas foram contempladas pelo Decreto do Fomento à Cultura5, de no 11.453, apresentado em 23 de março de 2023, já nos primeiros meses da refundação do Ministério da Cultura, sob a gestão de Margareth Menezes. O decreto delimita responsabilidades da administração pública e do agente cultural, prevê parâmetros razoáveis para o acompanhamento e a análise das prestações de contas, com foco nos resultados, e estabelece uma série de medidas para a simplificação e a democratização das chamadas públicas, como elencado por Paiva (2023). São disposições fundamentais para a relação dos entes com os recursos federais de fomento à cultura. Não se trata, no entanto, de uma norma nacional, obrigatória a todos os entes federados. Nesse sentido, ainda não cumpre a urgência de consagrar em lei mecanismos reconhecidamente mais adequados à realidade do setor cultural, válidos e obrigatórios para União, Distrito Federal, estados e municípios.

Viabilizar o fomento público para quem faz cultura em todas as suas formas é garantir o acesso da população à diversidade da nossa produção cultural.

O desafio de superar a defasagem histórica dos instrumentos jurídicos para a gestão pública do fomento à cultura ainda persiste. É fundamental que a formulação legislativa do Marco da Cultura avance, tanto para a adequação do fomento cultural às suas diversas peculiaridades, quanto para que seu desenho técnico-admi-


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nistrativo seja mais inclusivo e verdadeiramente democrático. Com ele, avançará também toda a sociedade brasileira. Viabilizar o fomento público para quem faz cultura em todas as suas formas é garantir o acesso da população à diversidade da nossa produção cultural. ÁUREA CAROLINA DE FREITAS E SILVA é cientista social e mestre em ciência política. Foi vereadora de Belo Horizonte e deputada federal por Minas Gerais, com atuação de destaque na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados. Coordenou o grupo técnico de Cultura no gabinete de transição do governo Lula. LEONARDO LESSA é artista de teatro e gestor cultural graduado em artes cênicas. É diretorexecutivo da Fundação Nacional de Artes (Funarte). Foi correlator do grupo técnico de Cultura do gabinete de transição do governo Lula. Foi assessor parlamentar para Políticas Culturais do mandato de Áurea Carolina na Câmara dos Deputados e chefe de gabinete da vereadora Cida Falabella na Câmara Municipal de Belo Horizonte. Foi coordenador-geral do Galpão Cine Horto, centro cultural do Grupo Galpão, em Belo Horizonte. CAROLINA ABREU ALBUQUERQUE é educadora popular, jornalista e mestre em comunicação social. Integrou o Núcleo de Comunicação do mandato de Áurea Carolina na Câmara dos Deputados e assessorou o grupo técnico de Cultura no gabinete de transição do governo Lula.

NOTAS 1. Trecho da participação da deputada estadual Carol Vergolino (PSOL/PE) no seminário Marco Regulatório do Fomento à Cultura: uma construção necessária, realizado na Câmara dos Deputados em 6 de julho de 2022. Disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=AU-4yk_cS 4c&list=TLGGlf5maG_2thoxODA1M jAyMw. Acesso em: 22 maio 2023. 2. Projeto de Lei no 3.905/2021. Disponível em: https://www. camara.leg.br/propostaslegislativas/2305816. Acesso em: 22 maio 2023. 3. A partir da inserção do artigo 216-A no texto da Constituição da República Federativa do Brasil, por meio da Emenda Constitucional no 71/2012. 4. Hoje substituída pela Lei no 14.133/2021. 5. Decreto no 11.453. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2023-2026/2023/ decreto/D11453.htm. Acesso em: 22 maio 2023.


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REFERÊNCIAS CALIXTO, Clarice Costa; VILLA, Luciano de C. Combinação entre MROSC e mecenato: parcerias para a captação de recursos em benefício do patrimônio cultural público. In: WORM, Naíma (org.). Parcerias com a sociedade civil na gestão pública brasileira: estudos teóricos acerca do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil. 1. ed. Palmas: EDUFT, 2018. p. 191-222. FERNANDES, Jaqueline. Deu branco nas políticas culturais. Mídia Ninja, 30 out. 2021. Disponível em: https://midianinja.org/afrolatinas/ deu-branco-nas-politicasculturais/. Acesso em: 22 maio 2023.

PAIVA, Carlos. O terreno fértil do novo decreto de fomento à cultura. Nexo, 10 abr. 2023. Disponível em: https://www.nexojornal. com.br/ensaio/2023/04/10/Oterreno-f%C3%A9rtil-do-novodecreto-de-fomento-%C3%A0cultura?position-home=1. Acesso em: 22 maio 2023. RABÊLO, Cecília. Legislação de fomento à cultura: quando a norma não alcança a realidade. Consultor Jurídico, 20 jun. 2021. Disponível em: https://www. conjur.com.br/2021-jun-20/rabelofomento-cultura-desafios-praticosquando-norma-nao-alcancarealidade. Acesso em: 22 maio 2023.


Sem título | Imagem de Denilson Baniwa


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Ensaio artístico POR DENILSON BANIWA

As obras que compõem o ensaio artístico têm como base a pesquisa sobre aparecimentos e desaparecimentos de indígenas na história “oficial” do Brasil. Elas buscam nas cosmologias indígenas e nas suas representações artísticas um possível método de compartilhar conhecimentos ancestrais e também pretendem criar um banco de dados dessas cosmologias como modo de salvaguardá-las. DENILSON BANIWA é um artista indígena. É indígena e é artista, e seu ser indígena o leva a inventar outro jeito de fazer arte, no qual processos de imaginar e fazer são intervenções em uma dinâmica histórica (a colonização dos territórios indígenas que hoje conhecemos como Brasil) e interpelações para aqueles que o encontram para abraçar suas responsabilidades.

acesse o conteúdo pelo QR Code ou pelo link: https:// www.itaucultural.org. br/secoes/observatorio-itau-cultural/ ensaio-artistico-denilson-baniwa-observatorio-direitos-culturais


ANEXO:

Glossário sobre direitos culturais

Na floresta não tem mercado | Imagem de Denilson Baniwa


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Glossário sobre direitos culturais Buscando contribuir para o debate sobre os direitos culturais, a edição 36 da Revista Observatório Itaú Cultural, “Direitos culturais: perspectivas no Brasil contemporâneo”, junto com o Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural, produziu uma série de verbetes sobre esse tema, de modo a dar melhores contornos para termos e expressões ligados a ele.


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Sumário 116

Direitos culturais

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Direitos autorais

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Competência dos entes na cultura

122

Ação popular

124

Ação civil pública

126

Liberdade de expressão artística

128

Tombamento

130

Inventário

132

Registro

134

Vigilância

136

Outras formas de acautelamento

138

Desapropriação

Cecília Rabelo

Rodrigo Vieira Costa

Cecília Rabelo

Cecília Rabelo

Cecília Rabelo

Rodrigo Vieira Costa

Inês Virgínia Prado Soares

Rodrigo Vieira Costa

Rodrigo Vieira Costa

Inês Virgínia Prado Soares

Inês Virgínia Prado Soares

Inês Virgínia Prado Soares

DIREITOS CULTURAIS

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Direitos culturais POR CECÍLIA RABELO

A expressão “direitos culturais” aparece na Constituição da República Federativa do Brasil em seu artigo 215; ele prevê que o Estado garantirá a todas as pessoas o pleno exercício dos direitos culturais. Coube aos estudiosos do direito conceituar a matéria e destacar exemplos, uma vez que a Constituição não define, não exemplifica nem lista os direitos culturais. O professor de direito Humberto Cunha Filho, analisando o sistema constitucional sob a perspectiva da cultura, compreende que direitos culturais são todos aqueles que têm relação direta com as artes, a memória coletiva e o fluxo de saberes, desde que garantam às pessoas o uso e o conhecimento do passado, a interferência ativa no presente e a previsão e a tomada de decisões referentes ao porvir, sempre no intuito de promover a dignidade humana. Não haveria, portanto, uma lista única, taxativa, de quais direitos seriam esses, mas, sim, uma diretriz com a qual seria possível caracterizá-los. Alguns estudiosos optaram por definir os direitos culturais por meio da exemplificação, ou seja, através da listagem dos direitos que poderiam ser enquadrados como tal. Exemplo disso é a doutrina do professor de direito constitucional José Afonso da Silva, para quem os direitos culturais são aqueles relacionados com a liberdade de expressão; o direito de criação intelectual; o direito de acesso às fontes da cultura nacional; o direito de difusão das manifestações culturais; o direito de proteção às manifestações das culturas populares, indígenas, afro-brasileiras e dos demais grupos formadores do processo civilizatório nacional; e o direito-dever estatal de formar e proteger o patrimônio cultural. Definir os direitos culturais por meio de exemplificação, ainda que seja algo relevante, pode gerar inconvenientes relativos ao caráter programático desses direitos, demandando-se maior atuação estatal e maior produção legislativa; esse processo de criar novos direitos culturais torna a tarefa de catalogação extensa e pouco efetiva. Por isso, a leitura dos direitos culturais segundo categorias como artes, memória coletiva e fluxo de saberes facilitaria a identificação desses direitos e, em consequência, o seu estudo. Apesar de não haver uma caracterização sistemática dos direitos culturais na Constituição Federal, segundo o artigo 5o (§ 2o), os direitos e as garantias expressos na Constituição não excluem outros direitos decorrentes do regime e dos princípios adotados por ela nem dos tratados internacionais de que o Brasil faça parte. Mesmo assim, é possível inferir os direitos culturais em vários dispositivos da Constituição, em especial ao longo do próprio artigo 5o, que apresenta uma cláusula geral de direitos fundamentais. O inciso IX, por exemplo, afirma ser livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação; o inciso XIII indica que é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão; e o inciso XXVII trata do direito exclusivo dos autores de utilizar, publicar ou reproduzir suas obras.


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É possível observar direitos culturais também nos artigos 215, 216 e 216-A da Constituição, que preveem comandos básicos de limitação ou direcionamento do poder estatal, determinando desde o dever de fomento à cultura até a proteção do patrimônio cultural. Todos esses direitos estão relacionados às artes, à memória coletiva e ao fluxo de saberes. Note-se que os direitos culturais já tinham previsão normativa antes mesmo da Constituição de 1988. Na ordem jurídica internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) prevê, em seu artigo 27, o direito de toda pessoa a participar livremente da vida cultural da sua comunidade, fruir das artes e participar do progresso científico e de seus benefícios; além disso, prevê o direito da pessoa, como autora, à própria criação. Nessa perspectiva, os direitos culturais integram os direitos humanos, devendo ser respeitados e garantidos a qualquer pessoa em qualquer local do planeta; os direitos culturais estariam ligados juridicamente à dignidade humana. Direitos culturais não se confundem com direito da cultura, ramo do direito que trata das regulamentações atinentes ao campo da cultura, divididas, segundo a perspectiva europeia, em quatro categorias: direito do patrimônio cultural, direito da criação e formação culturais, mecenato (ou fomento cultural, no Brasil) e propriedade literária e artística (correspondente, em âmbito brasileiro, aos direitos autorais). Apesar da distinção entre direitos culturais e direito da cultura, no Brasil a terminologia “direitos culturais” serve tanto para os direitos relacionadas a artes, memória coletiva e fluxo de saberes, como já conceituado, quanto para definir a disciplina jurídica autônoma que trata dessa matéria, com princípios e regras próprios. Os direitos culturais são direitos fundamentais, essenciais à dignidade humana, e devem receber tratamento prioritário do Estado, especialmente em relação à sua efetivação. O fato de serem direitos fundamentais dá aos direitos culturais determinadas prerrogativas, tais como a proteção especial contra tentativas de supressão e a proteção contra a inércia estatal de implementá-los. REFERÊNCIAS COSTA, Rodrigo Vieira; TELLES, Mário Ferreira de Pragmácio. Cultura e direitos culturais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Teoria dos direitos culturais: fundamentos e finalidades. São Paulo: Edições Sesc, 2018. SILVA, José Afonso da. Ordenação constitucional da cultura. São Paulo: Malheiros, 2001.


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Direitos autorais POR RODRIGO VIEIRA COSTA

Direitos autorais são prerrogativas exclusivas – patrimoniais e morais – de natureza temporária atribuídas aos criadores de obras intelectuais pela legislação, com o objetivo de resguardá-las de utilizações indevidas por terceiros e garantir benefícios a seus titulares, de modo a estimulá-los a continuar inovando e contribuindo para o desenvolvimento social das cadeias da cultura. Os direitos autorais não protegem ideias em si, mas suas formas de expressão; essa proteção independe de qualquer registro. O termo no plural serve tanto para designar somente os direitos subjetivos dos criadores quanto, pela legislação brasileira, os direitos de autor propriamente ditos e os direitos conexos. O termo “direito autoral” é geralmente empregado para identificar o ramo jurídico que tem o objetivo de proteger as criações literárias, artísticas e científicas originais, exteriorizadas ou fixadas em quaisquer suportes, sejam eles materiais, como um livro impresso, ou imateriais, como um livro digital. É parte da propriedade intelectual, ao lado das demais proteções legais conferidas à propriedade industrial, que inclui as patentes de invenção, os modelos de utilidade, as marcas, os desenhos industriais, as indicações geográficas e as regras relativas à repressão à concorrência desleal. Direitos conexos são direitos vizinhos dos direitos de autor. São atribuídos a agentes difusores de obras intelectuais, que as interpretam e executam, como artistas, intérpretes, produtores de fonogramas e empresas de radiodifusão. Por essa proximidade, a lei brasileira determina que as regras sobre direitos de autor se aplicam, no que couber, aos direitos conexos. No Brasil, a proteção intelectual dos direitos autorais se estende também aos programas de computador. O direito brasileiro prevê a tutela dos direitos autorais pela Constituição Federal de 1988 (artigo 5o, incisos XXVII, XXVIII e XXIX); pelas leis ordinárias 9.609 (Lei dos Programas de Computador) e 9.610 (Lei dos Direitos Autorais), ambas de 1998; por normas internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 27), convenções e tratados que versam sobre essa matéria, como a Convenção de Berna, de 1886, e o Acordo sobre Aspectos dos Direitos da Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio (ADIPC – TRIPS), dos quais o Brasil é signatário. No Brasil, os direitos autorais estão subdivididos em direitos morais e direitos patrimoniais. Os direitos morais fazem parte dos direitos da personalidade. São prerrogativas inalienáveis, intransferíveis e irrenunciáveis dos autores, estabelecidas pelo vínculo inseparável entre eles e suas obras intelectuais. São elas: os direitos de paternidade, de nomeação, de manter a obra inédita, de integridade, de modificação, de impedir a circulação da obra e de acessar exemplar único e raro. Já os direitos patrimoniais se referem às diversas modalidades independentes de aproveitamento e exploração econômica de obras intelectuais, como os direitos de


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reprodução e de representação. Apenas os direitos patrimoniais podem ser objetos de transferência, cessão e licença a terceiros. Uma das formas mais conhecidas de controle dos titulares sobre seus direitos é a gestão coletiva. No Brasil, os royalties oriundos da execução pública de obras musicais, literomusicais e de fonogramas são arrecadados e distribuídos pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), composto de associações de gestão coletiva de direitos autorais. Em regra, qualquer tipo de utilização e fruição de obras intelectuais por terceiros depende da autorização prévia dos autores ou de seus titulares, sob pena de sanções previstas na legislação. Entretanto, em razão do interesse público, da função social da propriedade e do necessário equilíbrio entre esses direitos e outros direitos fundamentais, como os direitos culturais, a liberdade de expressão, o direito à informação, os direitos educacionais e o direito ao conhecimento, as normas brasileiras preveem limites e exceções aos direitos autorais, nos quais não é necessário possuir autorização dos criadores ou dos titulares das obras intelectuais para determinados usos (paródias, paráfrases, citações, cópia privada etc.). Os direitos patrimoniais não são perpétuos. No país, a obra entra em domínio público após 70 anos contados a partir do dia 1o de janeiro subsequente à morte do autor ou do último coautor. No caso de obras anônimas ou pseudônimas, esse prazo se inicia no ano subsequente à publicação; em relação às obras fotográficas e audiovisuais, a contagem se inicia no ano seguinte à divulgação. O domínio público assegura que as obras cujo prazo de proteção tenha se esgotado passem a integrar o patrimônio cultural e que todas as pessoas, sem necessidade de autorização ou pagamento, possam usufruí-las, preservando alguns direitos morais nos termos da lei. REFERÊNCIAS BARBOSA, D. B. Direito de autor: questões fundamentais de direito de autor. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. COSTA, R. V.; TELLES, M. F. de P. Cultura & direitos culturais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. NETTO, J. C. C. Direito autoral no Brasil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2023. E-book. Disponível em: http://biblioteca2.senado.gov. br:8991/F/?func=direct&doc_ number=001232984&local_ base=SEN01. Acesso em 8 dez. 2023

SANTOS, M. J. P. dos; JABUS, W. P.; ASCENSÃO, J. de O. Direito autoral. São Paulo: Saraiva, 2020. E-book. Disponível em: http://biblioteca2.senado.gov. br:8991/F/?func=direct&doc_ number=001233844&local_ base=SEN01. Acesso em 8 dez 2023. SOUZA, A. R. de. A função social dos direitos autorais. Campos dos Goytacazes: Ed. Faculdade de Direito de Campos, 2006.


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Competências dos entes na cultura POR CECÍLIA RABELO

Competência é uma técnica legislativa de distribuição do poder constitucional entre órgãos ou entes que compõem a estrutura estatal. Numa federação como o Brasil, ela serve para delimitar a atuação e as responsabilidades dos chamados entes federados (União, estados, Distrito Federal e municípios), para que eles possam legislar e atuar em determinadas matérias sem que haja sobreposição de regras e confusão entre ações estatais. Os entes federados são autônomos entre si nos termos definidos pela Constituição de 1988. Essa autonomia significa que cada um dos entes tem capacidade de se auto-organizar, autogovernar e autoadministrar. Apesar disso, a repartição de competências, que é a divisão de atribuições entre esses entes, favorece a eficácia da ação estatal, a fim de evitar conflitos entre os entes e desperdícios de esforços e recursos. Ao realizar a distribuição de competências, a Constituição atribui a cada ente a capacidade de criar as suas próprias leis – a chamada competência legislativa – e de executar essas leis – a competência material ou administrativa. Ressalte-se que não existe hierarquia entre leis municipais, distritais, estaduais e municipais, muito menos entre os entes federados. O que existe é uma distribuição de tarefas, cabendo saber se determinado ente federado tem ou não respaldo constitucional para criar certa lei ou atuar em determinada matéria (competência). Em relação à competência legislativa na área da cultura, a Constituição Federal atribuiu à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios a competência de criar leis sobre cultura (art. 24, IX), sobre proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico (art. 24, VII) e sobre responsabilidade por danos a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (art. 24, VIII). Para organizar a atuação estatal e evitar conflitos normativos, a Constituição determinou que a competência de criar leis sobre cultura deve ocorrer de modo concorrente entre os entes. A competência legislativa concorrente indica que todos os entes poderão (e deverão) criar leis sobre cultura, mas essa criação deve ocorrer de modo organizado, em que a União cria as normas gerais; os estados e o Distrito Federal, as suplementares; e os municípios, as normas locais (art. 24, §1o a 4o e art. 30, I). Na competência legislativa concorrente, as normas suplementares devem observar a norma geral, e as locais devem observar tanto a geral quanto a suplementar. Contudo, na ausência da norma geral, e tendo em vista a dita autonomia entre os entes, estados, Distrito Federal e municípios são livres para criar suas próprias


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normas, que permanecerão válidas até que surja a norma geral, revogando apenas os pontos das normas suplementares e locais que lhe forem contrários. Em relação às leis sobre cultura, a competência concorrente fica ainda mais nítida no artigo 216-A, §3o e §4o da Constituição. Ele determina que o Sistema Nacional de Cultura (SNC) será regulamentado por lei federal e atribui aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios o dever de organizar seus respectivos sistemas de cultura em leis próprias. No entanto, tendo em vista a ausência da norma federal regulamentadora do SNC, estados, Distrito Federal e municípios vêm criando suas próprias normas, plenamente vigentes e válidas, até que sobrevenha a norma geral do SNC. A competência administrativa ou material é distribuída entre os entes de forma comum, em que cada um deles atuará de modo conjunto, simultâneo e paralelo, a fim de atingir os mandamentos constitucionais. Assim, cabe aos entes federados proporcionar os meios de acesso à cultura (art. 23, V); proteger documentos, obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, bem como monumentos, paisagens naturais notáveis e sítios arqueológicos (art. 23, III); e impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e outros bens de valor histórico, artístico ou cultural (art. 23, IV). Essa atuação comum deve partir do esforço de todos os entes federados, cada um em seu âmbito de atuação, visando atingir o que está previsto nos dispositivos constitucionais. É nessa perspectiva que, por exemplo, um bem cultural pode ser tombado em nível municipal, estadual, distrital e federal, uma vez que todos os entes devem atuar na proteção do patrimônio cultural. O fomento também pode (e deve) ser realizado de forma conjunta, com a coexistência, por exemplo, de fundos de cultura e incentivos fiscais nos três níveis federados sem que haja nenhum conflito de atuação. É por meio do exercício das competências legislativas e comuns que o Estado busca efetivar os direitos culturais. E é também por causa da existência dessas atribuições constitucionais que o indivíduo e a sociedade civil organizada podem exigir a atuação estatal na efetivação desses direitos. As competências constitucionais são mandamentos, não faculdades, e, por isso, podem ser exigidas, inclusive pelos meios judiciais cabíveis. REFERÊNCIAS BARROSO, L. R. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 28. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2011. MENDES, G. F.; COELHO, I. M.; BRANCO, P. G. G. Curso de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.


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Ação popular POR CECÍLIA RABELO

Ação popular é uma ação judicial destinada a proteger direitos fundamentais transindividuais ou metaindividuais. Diferentemente das ações individuais, nas quais uma ou mais pessoas buscam defender direitos específicos, de uma ou mais pessoas determinadas, ela defende os direitos de uma coletividade. Essa coletividade pode ser indeterminada ou determinada. No primeiro caso, os direitos em questão pertencem a toda a sociedade, de forma indeterminada, como no caso do direito ao patrimônio cultural. Direitos desse tipo são chamados de direitos difusos. No segundo caso, os direitos pertencem a pessoas que constituem uma classe, um grupo ou uma categoria; é o que ocorre com os direitos autorais dos músicos, cuja titularidade é circunscrita a essa classe de pessoas. Neste caso, são denominados direitos coletivos. Tanto os direitos difusos quanto os direitos coletivos têm como característica principal a indivisibilidade. Isso significa que esses direitos não podem ser fracionados entre os membros da coletividade; portanto, uma vez violado um direito difuso ou coletivo, todas as pessoas integrantes da coletividade serão prejudicadas. Semelhantemente, a decisão judicial obtida no âmbito dessas ações coletivas considerará a todos, indistintamente. O direito de propor ação popular está previsto no artigo 5o, inciso LXXIII, da Constituição Federal. É, portanto, um direito fundamental de toda pessoa cidadã, ou seja, toda pessoa natural, brasileira nata ou naturalizada, que esteja no gozo de seus direitos políticos. Isso significa que somente pessoas naturais brasileiras que possam votar e ser votadas são legítimas para solicitar ação popular. A ação popular é regulamentada pela Lei no 4.717, de 1965, e tem o objetivo de anular ato contrário ao patrimônio público ou de entidade da qual o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. Por ser um direito de cidadania, a ação popular é isenta de custas judiciais (ou seja, o requerente não precisa pagar para solicitar a ação popular) e dos ônus da sucumbência (ou seja, caso o requerente perca, ele não deverá pagar as custas judiciais nem os custos com advogado da outra parte). Note-se que a ação popular pode ser utilizada como garantia aos direitos culturais. As garantias são direitos que asseguram outros direitos; no âmbito dos direitos culturais, mecanismos processuais como a ação popular permitem obter decisão judicial protetiva desses direitos.


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Compreendendo-se o patrimônio cultural em seu aspecto amplo, é possível afirmar que outros direitos relacionados às artes, à memória coletiva e ao fluxo de saberes também podem ser objeto da ação coletiva. Assim, tendo em vista que um dos objetos de proteção da ação popular é o patrimônio cultural, é possível que diversas vertentes desse direito sejam tuteladas por ela (por exemplo, uma ação para impedir a demolição de um imóvel de valor cultural). REFERÊNCIAS CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Teoria dos direitos culturais: fundamentos e finalidades. São Paulo: Edições Sesc, 2018. MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. São Paulo: JusPodivm, 2023.

RODRIGUES, Geisa de Assis. Ação popular. In: DIDIER JR., Fredie (org.). Ações constitucionais. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2011. RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ação civil pública. In: DIDIER JR., Fredie (org.). Ações constitucionais. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2011. TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito do consumidor: direito material e processual. 2. ed. São Paulo: Método, 2013.


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Ação civil pública POR CECÍLIA RABELO

Ação civil pública é uma ação judicial destinada a proteger direitos fundamentais transindividuais ou metaindividuais. Diferentemente das ações individuais, nas quais uma ou mais pessoas buscam defender direitos específicos, de uma ou mais pessoas determinadas, ela defende os direitos de uma coletividade. Essa coletividade pode ser indeterminada ou determinada. No primeiro caso, os direitos em questão pertencem a toda a sociedade, de forma indeterminada, como no caso do direito ao patrimônio cultural. Direitos desse tipo são chamados de direitos difusos. No segundo caso, os direitos pertencem a pessoas que constituem uma classe, um grupo ou uma categoria; é o que ocorre com os direitos autorais dos músicos, cuja titularidade é circunscrita a essa classe de pessoas. Neste caso, são denominados direitos coletivos. Tanto os direitos difusos quanto os direitos coletivos têm como característica principal a indivisibilidade. Isso significa que esses direitos não podem ser fracionados entre os membros da coletividade; por isso, uma vez violado um direito difuso ou coletivo, todas as pessoas integrantes da coletividade serão prejudicadas. Semelhantemente, a decisão judicial obtida no âmbito dessas ações coletivas considerará a todos, indistintamente. A ação civil pública é regulamentada pela Lei no 7.347, de 1985, e tem o objetivo de responsabilizar aqueles que causam danos (morais ou patrimoniais) ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, à ordem econômica, à ordem urbanística, à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos, ao patrimônio público e social e a qualquer outro interesse difuso ou coletivo. Diferentemente da ação popular, que pode ser requerida por qualquer pessoa cidadã, a ação civil pública tem legitimidade restrita, ou seja, apenas os entes coletivos listados no artigo 5o da Lei 7.347/1985 poderão ajuizá-la. São os seguintes: Ministério Público; Defensoria Pública; a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios; as autarquias, empresas públicas, fundações ou sociedades de economia mista; e as associações que tenham pelo menos um ano de existência e que tenham entre suas finalidades institucionais a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. A ação civil pública pode ser utilizada como garantia aos direitos culturais. As garantias são direitos que asseguram outros direitos; no âmbito dos direitos culturais, mecanismos processuais como a ação civil pública permitem obter decisão judicial protetiva desses direitos.


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Compreendendo-se o patrimônio cultural em seu aspecto amplo, é possível afirmar que outros direitos relacionados às artes, à memória coletiva e ao fluxo de saberes também podem ser objeto da ação coletiva. Assim, tendo em vista que um dos objetos de proteção da ação civil pública é o patrimônio cultural, é possível que diversas vertentes desse direito sejam tuteladas por esse tipo de ação (por exemplo, uma ação civil pública para garantir a livre manifestação de determinada expressão cultural). REFERÊNCIAS CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Teoria dos direitos culturais: fundamentos e finalidades. São Paulo: Edições Sesc, 2018. MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. São Paulo: JusPodivm, 2023.

RODRIGUES, Geisa de Assis. Ação popular. In: DIDIER JR., Fredie (org.). Ações constitucionais. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2011. RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ação civil pública. In: DIDIER JR., Fredie (org.). Ações constitucionais. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2011. TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito do consumidor: direito material e processual. 2. ed. São Paulo: Método, 2013.


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Liberdade de expressão artística POR RODRIGO VIEIRA COSTA

Liberdade de expressão artística é o direito cultural, humano e fundamental que as pessoas têm de exprimir e fazer circular suas opiniões, sensações, pensamentos, performances, crenças, criatividade e consciência por meio das inúmeras manifestações artísticas e de suas linguagens, como a música, a dança, a pintura, o teatro, a literatura e o cinema. Esse direito deve ser exercido sem nenhuma licença, censura ou limitação indevida (de natureza política, moral, religiosa ou ideológica) e deve estar livre de represálias. O direito também abrange a liberdade de acessar informações e difundir ideias artísticas – fixadas ou não em suportes – sem que haja nenhum estabelecimento de fronteiras. O livre exercício de qualquer manifestação artística é garantido independentemente do modo como ocorra e do conteúdo de que trate. Todas as pessoas têm o direito de desfrutá-lo, individual ou conjuntamente, assim como de acessar e difundir as criações artísticas. A Constituição Federal de 1988 prevê a liberdade de expressão artística como direito fundamental (art. 5o, IX, e art. 220), sendo vedadas a licença e a censura. Constituições de outros países utilizam também as denominações “direito à criação artística”, “direito à expressão criativa”, “direito à criatividade” e “direito à atividade artística”. Algumas protegem esse direito como parte das liberdades culturais quando aludem ao direito humano de participar da vida cultural, previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 (art. 27). Em termos de normas internacionais de direitos humanos, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos estabelece que o direito à liberdade de expressão inclui a busca, a difusão e o recebimento de informações e ideias em quaisquer formas, inclusive artística (art. 19). No Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, os Estados signatários se comprometem a não violar a liberdade da atividade criadora, além de reconhecer que os autores têm direito de se beneficiar da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda a sua produção artística (art. 15). Como parte da liberdade de expressão, o direito cultural aqui tratado é tanto uma defesa contra os arbítrios privados e públicos (dimensão negativa) quanto um meio prospectivo de promover valores plurais como fins legítimos do Estado Democrático de Direito (dimensão positiva). Não se trata de regular o conteúdo discursivo, mas de proporcionar a reflexão e a ampliação das escolhas públicas através da difusão do conhecimento e de ideias presentes em diversas manifestações. Principalmente em regimes autoritários, de modo geral, a censura é promovida por atos e órgãos oficiais do Estado em todas as fases de criação e circulação ar-


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tística. Ela pode ocorrer, no entanto, também nas democracias, inclusive com a colaboração de agentes privados, por meio de ações, normas e decisões judiciais e administrativas que estabelecem restrições indevidas, violando a liberdade artística. Violações desse direito atingem não somente as obras, mas também espaços públicos, equipamentos culturais e veículos de produção, circulação, distribuição e difusão das artes. Elas contribuem para a autocensura, geram danos de ordem econômica e ferem a integridade moral e, por vezes, física dos artistas. A liberdade de expressão artística é um direito a ser preservado nas democracias, de modo que todos tenham acesso aos benefícios sociais e individuais das artes. Limitações e restrições prévias a seu exercício, que não estejam baseadas em outros direitos fundamentais e humanos (motivadas, justificadas e sujeitas a exame judicial), são consideradas violações. A censura, além de afetar o funcionamento dos setores culturais, interdita os princípios e os valores democráticos. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Daniela Lima de. Dimensionamento constitucional da liberdade de expressão artística no Brasil. Fortaleza: IBDCult, 2016. COSTA, R. V. (org.). A proteção da liberdade de expressão artística: fundamentos e estudos de casos. Fortaleza: IBDCult/Gráfica LCR, 2019. MOVIMENTO BRASILEIRO INTEGRADO PELA LIBERDADE DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA. Liberdade de expressão artística e cultural. Mobile, 2023. Disponível em: https://movimentomobile.org.br. Acesso em: 7 jul. 2023. OLIVIERI, Cris; NATALE, Edson. Arte e liberdade de expressão: contextualização de fatos e conceitos. In: OLIVIERI, Cris; NATALE, Edson (org.). Direito, arte e liberdade. São Paulo: Edições Sesc, 2018.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Informe de la relatora especial sobre los derechos culturales, Farida Shaheed: el derecho a la libertad de expresión y creación artísticas – A/HRC/23/34. 2013. Disponível em: http://daccess-ods.un.org/ access.nsf/Get?Open&DS=A/ HRC/23/34&Lang=S. Acesso em: 7 jul. 2023. PEDRO, Jesús Prieto de; PASTOR, Roger Dedeu (org.). Libertad, arte y cultura: reflexiones jurídicas sobre la libertad de creación artística. Madri: Marcial Pons, 2023.


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Tombamento POR INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES

O tombamento é o mais conhecido e tradicional instrumento protetivo do patrimônio cultural brasileiro. Foi previsto no Decreto-Lei no 25, de 1937, e desde então garante a preservação de bens materiais, móveis e imóveis, relevantes para a compreensão da cultura nacional e de seu acervo material. A indicação expressa do tombamento na Constituição de 1988 (art. 216, §1o), como um dos cinco instrumentos protetivos de bens culturais – ao lado da vigilância, do registro, da desapropriação e do inventário –, reafirmou sua importância como mecanismo protetivo da memória, da identidade e da ação do povo brasileiro. É realizado por um procedimento administrativo que reconhece, formal e publicamente, o valor histórico, artístico, paisagístico, arqueológico, bibliográfico, cultural ou científico de bens públicos ou privados, produzindo efeitos jurídicos sobre seus proprietários, ao impor-lhes restrições ou limitações de direito de propriedade. Exemplos de bens passíveis de tombamento são: conjuntos urbanos; edificações; mobiliários; coleções e acervos de obras de arte, de livros e documentos; ruínas, jardins e parques históricos; jazigos; terreiros de candomblé; centros (clandestinos ou não) de tortura na ditadura; lugares de interesse paisagístico e ambiental; e sítios arqueológicos e paleontológicos. A intenção do tombamento é resguardar o bem para usufruto da comunidade e conhecimento das gerações futuras, impedindo sua modificação, destruição, mutilação ou saída do país. O bem tombado, móvel ou imóvel, tem sua alienabilidade afetada e impõe regras de cuidado para proteção de seus atributos originais. No caso de imóveis, os efeitos do tombamento alcançam também os proprietários dos imóveis vizinhos, já que pode ocorrer restrição à área do entorno do bem tombado, com a finalidade de preservar a ambiência do bem e impedir que novos elementos obstruam ou reduzam sua visibilidade. No caso de bens móveis, as limitações mais características envolvem seu traslado dentro do país e o impedimento de saída definitiva para o exterior. Só é possível tombar bens materiais e, tanto para os móveis como para os imóveis, o tombamento deve incidir sobre aqueles passíveis de valoração econômica. Há duas situações vistas pelo público leigo como tombamento, mas não o são. A primeira é a designação normativa ou a determinação judicial de tombamento de bens. Como a atribuição de tombar é exclusiva do Poder Executivo, a dicção do Legislativo ou do Judiciário pode apenas dar início ao procedimento de tombamento. A segunda é o reconhecimento de um bem brasileiro como patrimônio da humanidade pela Unesco. Esse reconhecimento se enquadra nas outras formas de acautelamento do patrimônio cultural previstas na Constituição, no mesmo artigo que fala do tombamento (art. 216, §1o). O tombamento se aplica a coisas pertencentes às pessoas naturais, às pessoas jurídicas de direito privado e de direito público. Pode ser efetuado pela União, pelos


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estados e municípios, já que a competência material (para gestão) desses entes federativos está costurada nos dispositivos constitucionais (art. 23, inc. III e inc. IV; art. 30, inc. IX). A competência legislativa também está prevista na Constituição; ela estabelece que cabe à União editar as normas gerais sobre tombamento, dispostas no Decreto-Lei no 25/37. Observadas as normas gerais, estados e municípios podem editar leis e proceder ao reconhecimento dos bens relevantes para a região (tombamento estadual) ou para a comunidade local (tombamento municipal). Há liberdade de inovação nos tombamentos estaduais ou municipais. Para que um bem seja tombado pelo estado ou pelo município, são necessárias a inscrição do bem em um Livro do Tombo (previsto legalmente) e uma lei para disciplinar o instituto no âmbito estadual ou municipal. A menção expressa à possibilidade de os bens públicos serem gravados pelo tombamento abre a possibilidade de que a União tombe bens estaduais e municipais e que os estados executem o tombamento de bens dos municípios localizados em seu território. Também é possível que um bem seja gravado por tombamentos duplos ou triplos; por exemplo: tombamentos federal, estadual e municipal; federal e estadual; federal e municipal; estadual e municipal. Obras de origem estrangeira que pertençam às repartições diplomáticas ou consulares acreditadas no país, que adornem quaisquer veículos pertencentes a empresas estrangeiras, que pertençam a casas de comércio de objetos históricos ou artísticos, que sejam trazidas ao Brasil para exposições comemorativas, educativas ou comerciais e que sejam importadas por empresas estrangeiras expressamente para adornar seus estabelecimentos não podem ser tombadas. Com a inscrição do bem em um dos Livros do Tombo, finda-se o procedimento administrativo de tombamento. O bem tombado passa a ser submetido a regras especiais de direito público, que garantem o resguardo permanente da integridade de seus elementos constitutivos, os quais devem ser cuidados e preservados pelos seus proprietários e pelo Estado. REFERÊNCIAS CUNHA, F. H. Proteção do patrimônio cultural brasileiro por meio de tombamento: estudo crítico e comparado das legislações estaduais organizadas por regiões. Fortaleza: Editora Imprensa Universitária, 2013.

MIRANDA, M. P. de S. Introdução ao direito do patrimônio cultural brasileiro. Belo Horizonte: 3i Editora Ltda., 2021. SILVA, J. A. da. Ordenação constitucional da cultura. São Paulo: Editora Malheiros, 2001. SOARES, I. V. P. Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2009.


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Inventário POR RODRIGO VIEIRA COSTA

Inventários são instrumentos usados para identificar bens culturais por meio de um conjunto de pesquisas e ações que sistematizam dados e documentos a ser utilizados nas políticas culturais de promoção, prevenção de danos e proteção do patrimônio cultural; também são usados na educação patrimonial e na mobilização sociocomunitária dos agentes que têm esses bens como referência cultural. Os inventários podem ser empregados no campo material e imaterial do patrimônio e estão previstos no artigo 216, parágrafo 1o, da Constituição Federal de 1988. Muitas vezes, eles são usados como suportes preliminares a outros mecanismos de salvaguarda do patrimônio cultural, como o tombamento e o registro. Atualmente, destaca-se o seu caráter de compartilhamento de informações e experiências, que ocorre entre os grupos e as coletividades para os quais os bens culturais têm valor de referência e os agentes públicos responsáveis pelas políticas culturais de identificação desse patrimônio – estes traçam os limites do que poderá ou não ser protegido com base na indicação de bens referentes a valores, territórios, ambientes e vivências das comunidades que os consideram parte de seu patrimônio cultural. O instrumento inventário surgiu durante a consolidação do Estado nacional moderno, no século XVIII, quando também se desenvolveu o conceito de patrimônio histórico-artístico. Sua noção embrionária está relacionada à ideia de listar bens que possuem algum tipo de valor para os indivíduos, a fim de transmiti-los a seus herdeiros. No caso do patrimônio cultural, é uma importante ferramenta metodológica usada para conhecer detalhadamente os bens aos quais a coletividade atribui referência valorativa e que são importantes para sua memória, identidade e diversidade. No Brasil, os anos 1980 foram marcados pelo uso mais difundido e sistematizado dos inventários para criar conhecimento sobre bens culturais materiais, como monumentos, conjuntos arquitetônicos e bens móveis tombados, o que ajudou a promover a gestão desse patrimônio. Apesar disso, principalmente por ter-se ampliado a noção de patrimônio (com a Constituição Federal de 1988 e normas internacionais como a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, de 2003, da Unesco), os inventários tornaram-se mecanismos que garantem a identificação dos bens culturais imateriais nos processos de salvaguarda. No Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, por exemplo, instituído pelo Decreto no 3.551/2000, os inventários são compreendidos como instrumentos auxiliares antecedentes ao registro, no denominado macroprocesso de identificação – um conjunto de ações coordenadas e articuladas com outras grandes etapas, que representa a atividade mais geral de produção de conhecimento, pesquisa e documentação de bens culturais imateriais. Em nível federal, as metodologias de inventário mais utilizadas e conhecidas são o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) e o Inventário Nacional


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da Diversidade Linguística (INDL). O INRC é adotado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para identificar referenciais de identidade, sentidos e valores atribuídos ao patrimônio cultural pelos diversos grupos formadores da sociedade brasileira; há um uso ampliado dessa metodologia, e sua origem remonta aos bens relacionados à cultura popular. Já o INDL tem natureza híbrida: identifica as línguas que fazem parte da diversidade cultural brasileira, reconhece-as por meio da titulação de Referência Cultural Brasileira e informa estados, Distrito Federal e municípios do ato declaratório, para que, caso a língua inventariada esteja presente em seus territórios, realizem políticas culturais de reconhecimento e apoio. No Brasil, em regra, os inventários não restringem direitos, como o de propriedade. Todavia, há decisões judiciais que, ao classificá-los como instrumentos autônomos de proteção e como garantia do direito cultural difuso ao patrimônio cultural, podem gerar ações restritivas. De modo semelhante, o Código do Patrimônio Cultural do estado do Ceará separa os inventários de conhecimento dos que têm efeitos restritivos, nos quais há incidência de limitações administrativas leves ou moderadas. Na prática, esse tipo de inventário atua de maneira subsidiária ao tombamento. Os inventários também são importantes ferramentas para avaliar e comparar as políticas patrimoniais, em virtude das parcerias estratégicas entre instituições e organismos estatais para desenvolver ações de proteção, como o Iphan e atores sociais envolvidos na produção desse conhecimento. Isso permite compreender as realidades particulares e as dinâmicas de mudança de valoração dos bens culturais. REFERÊNCIAS ARANTES, A. A. Sobre inventários e outros instrumentos de salvaguarda do patrimônio cultural intangível: ensaio de antropologia pública. Anuário Antropológico, Brasília, v. 33, n. 1, p. 173-222, 2008. INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. A identificação do patrimônio cultural pela lente das referências culturais: conquistas e obstáculos de um percurso. Brasília: Iphan, 2022.

MOTTA, L.; SILVA, M. B. R. Inventário. In: REZENDE, Maria Beatriz et al. (org.). Dicionário Iphan de patrimônio cultural. Rio de Janeiro-Brasília: Iphan/DAF/Copedoc, 2015. STUDART, V. M. Integração sistêmica da atividade estatal de proteção do patrimônio cultural no Brasil. 2017. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) – Universidade de Fortaleza, Fortaleza, 2017. Disponível em: https://unifor.br/web/ guest/bdtd?course=84&registration=1524298. Acesso em: 24 jun. 2023.


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Registro POR RODRIGO VIEIRA COSTA

O registro é um instrumento jurídico-administrativo de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, decorrente de procedimentos infralegais, em que o poder público – mediante ato declaratório, e garantindo a participação comunitária – identifica, reconhece e valoriza expressões, manifestações, saberes, celebrações e lugares de referência cultural para os grupos formadores da sociedade brasileira. O instrumento é uma das maneiras de exprimir a diversidade e o pluralismo dos bens culturais imateriais nacionais, garantindo sua continuidade histórica e promovendo sua sustentabilidade, difusão e transmissão intergeracional. Esse instrumento é um dos mecanismos de proteção do patrimônio cultural previstos na Constituição Federal de 1988. No âmbito federal, foi regulamentado pelo Decreto no 3.551/2000, que também criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e o título de Patrimônio Cultural Brasileiro, conferido aos bens culturais imateriais registrados. A autarquia federal responsável por promover e aplicar o registro nacionalmente é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que o faz segundo a deliberação de seu Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural. Atualmente, há cerca de 48 bens registrados no país; entre eles, cinco estão na lista representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade: samba de roda do Recôncavo Baiano, arte kusiwa (pintura corporal e arte gráfica wajãpi), frevo, Círio de Nazaré e roda de capoeira. O registro surgiu como instrumento adequado à salvaguarda do patrimônio de natureza viva, processual, dinâmica e mutável, diferentemente do tombamento, cuja utilidade está associada à preservação de bens materiais móveis e imóveis, como as coleções artísticas e os prédios históricos, denominados patrimônio “pedra e cal”. Ele resulta da ampliação conceitual de “patrimônio cultural” advinda da Constituição de 1988 e do aumento de instrumentos protetores de bens culturais. Na Constituição Federal de 1988, o direito fundamental ao patrimônio cultural imaterial representa uma conquista legítima de grupos formadores da sociedade brasileira, como povos indígenas, grupos étnico-raciais e comunidades tradicionais, cujos valores e bens culturais foram invisibilizados, marginalizados ou excluídos da história de proteção do patrimônio cultural brasileiro, na qual se nota, durante boa parte do século XX, a ausência de sua salvaguarda em todos os níveis federados. A percepção da necessidade de proteger bens intangíveis surgiu com a influência do anteprojeto de Mário de Andrade (1893-1945), pouco antes do Estado Novo, para criar um órgão incumbido de defender o patrimônio histórico e artístico, incluindo nele obras da cultura popular. Mais tarde, a ideia foi retomada pelo Iphan e por várias instituições e projetos estatais que influenciaram a presença definitiva


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do patrimônio cultural imaterial no artigo 216 da Constituição. Esse projeto influenciou o Decreto-Lei no 25/1937, até hoje a lei brasileira de tombamento. O projeto de Mário de Andrade foi parcialmente retomado, ampliado pela burocracia estatal brasileira, pela intelectualidade e por movimentos da sociedade civil durante o período compreendido entre as décadas de 1940 e 1970, mas sem introduzir um mecanismo jurídico de salvaguarda de bens culturais imateriais. Também faz parte dos antecedentes dessa discussão o projeto de lei criado em 1987 para atualizar a legislação baiana, que se propôs a instituir o denominado Registro Especial para preservação de bens imateriais. Considera-se, porém, que a Carta de Fortaleza, de 1997, fruto do seminário que comemorou os 60 anos do Iphan, foi o marco para a regulamentação do registro. O Seminário de Fortaleza apontou a crescente demanda nacional por reconhecimento de diversos tipos de patrimônio cultural, criada por vários segmentos sociais e pelo próprio poder público. Essa complexidade exigia novos instrumentos legais que cumprissem a teleologia constitucional do artigo 216. Assim, o plenário do encontro reconheceu que, além de integrarem o patrimônio cultural, os bens de natureza imaterial deveriam ser objeto de proteção específica. Recorrendo novamente aos conhecimentos técnicos de especialistas, a carta recomendou o aprofundamento de estudos e pesquisas sobre o patrimônio cultural imaterial e a instituição de um grupo de trabalho para propor a criação de um instrumento legal de registro. A ausência do imaterial na história da proteção do patrimônio cultural e os antecedentes que geraram o conceito inserido na Constituição e na disposição de mecanismos de tutela foram retomados pelo Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial (GTPI), criado pelo Ministério da Cultura a partir da recomendação da Carta de Fortaleza. Os estudos desses técnicos e especialistas resultaram na proposta de criação do registro, que se transformou no Decreto no 3.551/2000. REFERÊNCIAS COSTA, R. V. História da proteção do patrimônio cultural brasileiro: o lugar do imaterial. In: FILHO, F. H. C.; SCOVAZZI, T. (org.). Salvaguarda do patrimônio cultural imaterial: uma análise comparativa entre Brasil e Itália. Salvador: Edufba, 2020. p. 109-172. FONSECA, M. C. L. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: UFRJ/MinC/Iphan, 2005.

QUEIROZ, H. F. O. G. O registro de bens culturais imateriais como instrumento constitucional garantidor de direitos culturais. Revista do Ipac, Salvador, ano 1, n. 1, p. 26-254, 2016. SOARES, I. V. P. Direito ao (do) patrimônio cultural. Belo Horizonte: Fórum, 2009.


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Vigilância POR INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES

A vigilância é um mecanismo de proteção do patrimônio cultural expresso no parágrafo 1o do artigo 216 da Constituição Federal, aliado a outros quatro instrumentos: inventário, registro, tombamento e desapropriação. A previsão deste mecanismo representa a recusa constitucional de um Estado omisso em relação ao patrimônio cultural, o dever do Estado de atuar preventivamente na proteção dos bens culturais e o convite à comunidade para um agir atento, cooperativo e comprometido com o patrimônio cultural. Na perspectiva jurídica, o conceito de patrimônio cultural abriga todos os bens que têm valor ou interesse afetivo, histórico, artístico, arqueológico, paleontológico ou científico. Assim, a vigilância protege bens que remetem à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, sejam eles bens móveis e imóveis (incluindo os locais que os abrigam) ou bens imateriais – como as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver e as criações artísticas, científicas e tecnológicas. Trata-se de um mecanismo que engloba tanto aspectos ligados à prevenção, à restauração e à segurança dos bens culturais como aspectos relacionados ao desenvolvimento sociocultural e ao fortalecimento da diversidade e da cidadania culturais. Cabe ao legislador e ao gestor público observar a diversidade sociocultural do país e a dinâmica em que as relações sociais, econômicas, políticas e culturais se desenvolvem. Os traços de instrumento “multiforme, ubíquo e multiconcorrencial” da vigilância, mencionados pelo professor e advogado da União Humberto Cunha (1964) e pela advogada e pesquisadora Cecília Rabelo (1988), podem ser a justificativa para que a vigilância não tenha previsão normativa específica nem seja tratada como mecanismo autônomo em processos administrativos ou judiciais, diferentemente dos outros quatro instrumentos determinados pela Constituição, que têm contornos jurídicos definidos, normas ou metodologias próprias e reconhecimento jurisprudencial. A vigilância perpassa as diversas etapas de utilização desses mecanismos. Ao interagir com as várias formas de acautelamento dos bens culturais, a vigilância guarda estreita ligação com os princípios de precaução e prevenção, consolidados no direito ambiental e incorporados às leis e jurisprudências pátrias. O princípio de precaução representa o dever de proteger bens culturais expostos a riscos e a obrigação de produzir informações sobre os riscos e as incertezas; já o princípio de prevenção está relacionado ao perigo e ao conhecimento de uma situação que possa causar algum dano ao patrimônio cultural. A ação do poder público, da sociedade civil e das corporações quando há perigo ou riscos a bens culturais é a tradução mais legítima da vigilância como instrumento protetivo.


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O instrumento da vigilância tem um duplo significado para o poder público: o dever de agir e o dever de não se omitir. No dever de agir, a vigilância envolve atos normativos e fiscalizadores emanados do poder público, que deve ter um comportamento diligente e zeloso, pautado pela prevenção de danos. O dever de não se omitir, por sua vez, exige que o poder público invista em recursos humanos e financeiros para tutelar os bens culturais, além de estabelecer e aprimorar mecanismos administrativos para atender, num prazo razoável, às demandas da sociedade em relação a esses bens. Desse modo, a vigilância rejeita o sucateamento das instituições gestoras e fiscalizadoras de bens culturais e a falta de atenção para com os servidores públicos e os atores do sistema cultural. A vigilância também implica constante atualização das normas de controle do trânsito de bens culturais móveis e o compromisso da sociedade civil (comunidades, corporações e pessoas físicas) de não efetuar transações duvidosas, evitando o comércio irregular de obras de arte contemporânea, a saída ilegal de bens tombados, de obras e ofícios produzidos no país até o fim do período monárquico, de bibliotecas e acervos documentais de autores e editores brasileiros (ou que tratem do Brasil) editados entre os séculos XVI e XIX, de bens pertencentes a comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas e de artefatos arqueológicos e paleontológicos. Essas transações se desenvolvem, além de outros meios, pela internet, o que exige cuidados especiais do Estado e da sociedade civil. Como mecanismo participativo e de diálogo entre atores públicos e privados, a vigilância fomenta o dever estatal e o compromisso social de impedir a destruição e o abandono de bens imóveis tombados, tanto em zona urbana como em zona rural. A perspectiva democrática também confere à vigilância um valor ímpar na proteção do patrimônio cultural imaterial, essencial à prevenção da perda ou do desvirtuamento de práticas e saberes culturais transmitidos por gerações e à valorização da memória coletiva. REFERÊNCIAS CUNHA FILHO, F. Humberto; RABELO, Cecília N. O caráter multiforme e multiconcorrencial da vigilância sobre o patrimônio cultural brasileiro. In: SOARES, Inês Virgínia Prado; PRAGMÁCIO, Mário (org.). Tutela jurídica e Política de preservação do patrimônio cultural brasileiro. Salvador: JusPodivm, 2018. p. 87-106.

MIRANDA, Marcos Paulo de S. Introdução ao direito do patrimônio cultural brasileiro. Belo Horizonte: 3i Editora Ltda., 2021. SOARES, Inês Virgínia P. Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2009.


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Outras formas de acautelamento POR INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES

Além dos cinco instrumentos protetivos expressos na Constituição Federal de 1988 (vigilância, inventário, registro, tombamento e desapropriação), o patrimônio cultural brasileiro pode, segundo o mesmo dispositivo constitucional (artigo 216, parágrafo 1o), ser protegido por outras formas de acautelamento. Essa previsão permite o uso de mecanismos já conhecidos pela área cultural (ou áreas afins) e proporciona o surgimento de novos instrumentos, facilitando a tutela do patrimônio cultural diante da evolução da sociedade. Conjugar os instrumentos protetivos nominados com outras formas de acautelamento gera três consequências jurídicas: (i) a ampliação dos modos de tutela dos bens culturais no Brasil; (ii) a extensão dos titulares dessa tutela; e (iii) a formação do patrimônio cultural brasileiro por meio de instrumentos não regulamentados. A expressão “outras formas de acautelamento” reflete a necessidade de utilizar instrumentos conhecidos nas políticas públicas sociais para proteger bens culturais que referenciam a identidade, a ação e a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Com isso, garante-se maior segurança ao patrimônio cultural, uma vez que haverá uma participação efetiva da comunidade. Essa abertura constitucional está vinculada à atual concepção de patrimônio cultural: um conjunto de bens de interesse afetivo, histórico, artístico, arqueológico, paleontológico ou científico, que deve ser observado pelo legislador e pelo gestor público considerando a diversidade sociocultural do país e a dinâmica das relações sociais, econômicas, políticas e culturais (artigos 215 e 216 da Constituição). A menção às formas de expressão, aos modos de criar, fazer e viver e aos bens materiais, como obras, objetos, documentos, edificações, conjuntos urbanos e demais espaços destinados a manifestações artístico-culturais, justifica a relevância do uso de outros mecanismos para proteger o patrimônio cultural. A previsão de outras formas de acautelamento fortalece a atuação da comunidade nos processos públicos decisórios, em ações judiciais e matérias patrimoniais, sendo mais propícia sua atuação nos casos de bens que ainda não estão formalmente protegidos (pelo tombamento, pela desapropriação ou pelo registro, por exemplo). Essa previsão induz a busca de instrumentos que permitam à comunidade agir de forma colaborativa inclusive por meio de incentivos econômicos (artigo 216, parágrafo 3o da Constituição). Por outro lado, a previsão do artigo 215, parágrafo 1o, de que o Estado protegerá as manifestações culturais de todos os grupos participantes do processo civilizatório nacional exige instrumentos que promovam a cultura e valorizem as práticas culturais que surgem e se modificam, buscando equilíbrio e harmonização entre os


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novos elementos culturais e os que já existem. A compatibilização deve respeitar a acumulação dos bens culturais numa perspectiva intergeracional, valorizando o já consolidado e garantindo o acesso a novas gerações. Os mecanismos protetivos devem ser utilizados de maneira efetiva pela comunidade e pelo Estado; para isso, é preciso compreender a situação de risco e a fragilidade a que o patrimônio cultural está submetido, o que exige uma aproximação de todos os que produzem ou preservam os bens culturais, como o poder público, órgãos intergovernamentais nacionais e estrangeiros, instituições de ensino, universidades que têm pesquisas sobre bens culturais ou desenvolvimento sustentável, movimentos sociais e organizações não governamentais, artistas e profissionais do meio artístico, povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais, colecionadores privados, museus e centros culturais, produtores e gestores culturais, arquitetos, restauradores, historiadores, museólogos, arqueólogos, antropólogos e operadores do direito. Alguns exemplos de outras formas de acautelamento são: as que têm repercussão econômica, como incentivos fiscais e créditos a iniciativas de preservação ou promoção cultural; as de proteção à propriedade industrial e aos direitos do autor; as ligadas à educação (formal ou não), como iniciativas de educação patrimonial e pesquisas acadêmicas; o pagamento por serviços culturais (benefícios não materiais providos pelos ecossistemas), previsto na lei da Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais; a produção de inventários sobre línguas e falares brasileiros; a destinação de obras de arte apreendidas em processos judiciais penais a museus e centros culturais; o orçamento participativo; a proteção de conjuntos urbanos com a utilização de instrumentos e normas ambientais e urbanísticas; a inserção de patrimônios materiais, imateriais e documentais brasileiros em listas de patrimônios da humanidade organizadas pela Unesco; e a constante atualização de bancos de dados de órgãos públicos sobre bens e sítios arqueológicos cadastrados e bens culturais procurados. O fato de o Estado e a sociedade poderem usar outras formas de acautelamento é um valor democrático. Essa possibilidade decorre do compromisso do poder público de promover e proteger os bens culturais, conferindo à comunidade a chance de colaborar para a boa execução desse dever estatal. REFERÊNCIAS MIRANDA, M. P. de S. Introdução ao direito do patrimônio cultural brasileiro. Belo Horizonte: 3i Editora Ltda., 2021.

SOARES, I. V. P. Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2009.


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Desapropriação POR INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES

A desapropriação, prevista na Constituição brasileira desde 1891, é um procedimento administrativo por meio do qual o poder público, fundado em necessidade, utilidade pública ou interesse social, compulsoriamente suprime a propriedade de um bem de seu proprietário, mediante indenização prévia e justa (geralmente paga em dinheiro). Ela é também um mecanismo de proteção do patrimônio cultural, expresso no parágrafo 1o do artigo 216 da Constituição de 1988, juntamente com outros quatro instrumentos: inventário, registro, tombamento e vigilância. O Decreto-Lei no 3.365/1941 e a Lei no 4.132/1962 regulamentaram o rito a ser seguido pelo Estado para desapropriar. Com a norma que instituiu o tombamento como mecanismo de proteção dos bens culturais (o Decreto-Lei no 25/1937), tornou-se possível a desapropriação baseada no interesse público de preservar objetos, locais e imóveis de valor cultural excepcional e na situação em que a transferência compulsória de propriedade para o Estado fosse a única maneira de preservar os atributos originais desses bens. Embora desapropriações referentes a demandas culturais já fossem possíveis antes da atual Constituição, segundo o professor e advogado da União Humberto Cunha (1964) e a pesquisadora Bianca de Souza Saldanha (1987), a opção dos gestores era a utilidade pública, adotada para satisfazer às demandas da Administração Pública, com iniciativas que prestigiavam a memória governamental ou de grupos dominantes. As diretrizes constitucionais de 1988, por outro lado, conduziram à adoção do interesse social na desapropriação para fins de proteção cultural, com o objetivo de valorizar e fortalecer bens relevantes para grupos historicamente injustiçados. No atual cenário jurídico brasileiro, a desapropriação tem status constitucional e se apresenta como medida de intervenção estatal na propriedade privada (art. 5o, inc. XXIV da Constituição), que só se justifica quando é essencial para atingir finalidades econômicas, sociais e culturais. A Constituição indica quatro fundamentos para o uso da desapropriação: (i) por necessidade ou utilidade pública; (ii) por interesse social; (iii) para fins de política urbana; e (iv) para fins de reforma agrária. No Estatuto da Cidade de 2001, a desapropriação é um dos principais instrumentos da política urbana, inclusive para proteger bens culturais. O interesse social é o que justifica a desapropriação para proteger o patrimônio cultural – que abrange todos os bens de interesse afetivo, histórico, artístico, arqueológico, paleontológico ou científico –, a fim de preservar os bens culturais que referenciam a identidade, a ação e a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Esses bens podem ser materiais – móveis e imóveis, incluindo os locais que os abrigam – e imateriais – as criações artísticas, científicas e tecnológicas.


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A Constituição estabelece que a proteção dos bens culturais é uma competência comum da União, dos estados e dos municípios (art. 23, inc. III e IV). Por isso, o procedimento de desapropriação por interesse cultural deve se dar nas três esferas – municipal, estadual e federal. O tratamento constitucional dos direitos aos bens culturais, que valoriza a diversidade cultural e a participação da sociedade na formação e na proteção do acervo cultural, ampliou o sentido de preponderância do interesse público sobre o privado e enriqueceu a compreensão da desapropriação com enfoque protetivo cultural (art. 215 e 216 da Constituição). Por utilidade pública, é possível desapropriar bens públicos ou privados, materiais ou imateriais, como bens tombados que estejam em risco e obras ou inventos de natureza científica, artística ou literária, que podem ser reeditados ou divulgados. Por interesse social, podem-se desapropriar imóveis que abriguem vestígios arqueológicos, bem como outros locais de valor cultural ou memória afetiva para grupos injustiçados ou culturalmente distintos. É possível, por exemplo, desapropriar um imóvel que foi utilizado como centro clandestino de tortura na ditadura militar, bem como um artefato indígena em posse de um colecionador privado, desde que se trate de bens suscetíveis de valoração econômica. A desapropriação para proteger o patrimônio cultural decorre da impossibilidade de preservar o bem sem transferir sua propriedade ao Estado; ela só se justifica se houver a expectativa fundamentada de que a assunção da propriedade pelo poder público trará uma rentabilidade sociocultural, multiplicando ações educativas, informativas e econômicas que não seriam alcançadas com a manutenção da propriedade privada. Por isso, a desapropriação deve ter uma aplicação restrita e excepcional, não apenas pela importância do direito à propriedade privada e por sua função social no ordenamento jurídico brasileiro, mas também pela escassez de acesso a recursos orçamentários. REFERÊNCIAS CUNHA FILHO, F. H.; SALDANHA, B. de S. A desapropriação como instituto de proteção ao patrimônio cultural e análise da legislação aplicável. A&C – Revista de Direito Administrativo e Constitucional, Belo Horizonte, v. 18, n. 71, p. 197-224, jan./mar. 2018.

DESAPROPRIAÇÃO: aspectos gerais. In: ENCICLOPÉDIA jurídica da PUC/SP. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica. pucsp.br/verbete/113/edicao-1/ desapropriacao:-aspectos-gerais. Acesso em: 29 out. 2023. MIRANDA, M. P. de S. Introdução ao direito do patrimônio cultural brasileiro. Belo Horizonte: 3i Editora Ltda., 2021.



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