Serra do Umbu: a história de uma estrada esquecida no tempo

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REPORTAGEM

Domingo 10.4.2011 JORNAL ABC

A história de uma estrada

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REPORTAGEM

Rincão dos Kroeff é uma localidade de São Francisco de Paula em que tudo resiste ao tempo. Até mesmo o sonho de um dia seus moradores transitarem com segurança e conforto pela Serra do Umbu. A estrada que era para ser a Rota do Sol mas, pelos percalços do destino, não foi

BÊNÇÃO Antes de descer a Serra, parada para bênção no Capitel de Santo Antônio, padroeiro da estrada

PORTFÓLIO As escarpas da Serra Geral, as montanhas na estrada e a cascata da Água Branca são como colírio para os olhos

Fotos Fábio Winter

A trilha que servia a tropeiros virou estrada, mas não se tornou a tão sonhada Rota do Sol e deixou o Rincão dos Kroeff na poeira. O desenvolvimento tão almejado pelos moradores não veio porque o asfalto na rodovia estadual RS-484 não chegou neste local, distante 35 quilômetros do Centro de São Francisco de Paula. Situada no limite entre Serra e litoral e sem a previsão do Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer) para a pavimentação chegar, à localidade, de povo hospitaleiro, se tornou inóspita. E transitar pela Serra do Umbu segue sendo uma aventura não muito diferente de um século atrás. O escritor Marcio Paffrath Buffão, de São Chico, nascido e criado no Rincão, documenta a história de seus antepassados no livro Muito prazer! Eu me chamo Rincão dos Kroeff, lançado no ano passado. Em um dos capítulos, ele relata a epopeia da abertura da Serra do Umbu. O caminho surgiu de um esforço conjunto de vários municípios das Hortênsias com o governo gaúcho na década de 60. Mas trilhas que ligavam a Serra ao litoral sempre existiram. Entre 1920 e 1960, a Serra do Umbu era, inclusive, utilizada pelas famílias ricas da região, que iam a cavalo veranear no litoral norte, segundo Buffão, em sua obra. No começo dos anos 70 foi empreendida a construção do traçado atual. A meta era fazer a ligação com o litoral e ajudar no escoamento agrícola, em especial de repolhos. Em 1974, já pronta, a via passou a comportar o tráfego de ônibus e caminhões. A empresa de ônibus Martini, conforme o escritor, fez a viagem inaugural da linha Osório–São Chico em 1o de agosto daquele ano. Hoje, a Citral mantém o mesmo trajeto, percorrido em três horas, de segunda a sexta-feira, e que já chegou a ser feito também aos sábados. “Mas a condição da estrada faz diminuir cada vez mais a frequência”, alerta Buffão. Antigamente, carros precisavam usar até corrente para vencer o barro e a neve no traçado antigo. Hoje, nem os veículos mais novos encontram vida fácil ao atravessar os 9 quilômetros mais críticos da RS-484. São buracos, valetas, pedras sobressalentes, trechos estreitos e má sinalização, que refletem o sucateamento da infraestrutura do Estado para cuidar das estradas, desamparando os gaúchos do interior.

Rota do Sol planejada para a Serra do Umbu A RS-484 é uma estrada repleta de pedras. Aos motoristas, resta rezar para não furar ou até mesmo não perder um pneu, cortado por algum pedregulho pontiagudo. Quando isso acontece, é inevitável contar com os serviços de José Francisco Leite, 62 anos, que mantém uma borracharia há 24 anos no quilômetro 18, em Rincão dos Kroeff. Leite conhece a Serra do Umbu assim como um pai conhece seu filho: ele foi um dos homens que ajudou na construção do traçado atual, que tinha a pretensão de ser a Rota do Sol como é hoje. A estrada, conforme Leite, era para ligar a Serra com o litoral. “Era para ser a Rota do Sol. Mas não sei qual é a política que deu e levaram a estrada para lá”, tenta compreender. O “para lá” a que se refere o borracheiro é a RS486, que liga Terra de Areia a Ca-

xias do Sul passando pelo distrito de Tainhas, em São Francisco de Paula. A mudança que tirou a possibilidade do asfalto ligar o Rincão dos Kroeff com o restante do Estado, há quem diga na localidade, teria por trás um forte lobby de lideranças de Caxias do Sul. “Mas não faz sentido. Havia muitos caxienses que queriam pelo Umbu. Por aqui é o caminho mais curto para Capão da Canoa”, defende. No entanto, apesar do sonho roubado de ver a Serra do Umbu com asfalto, a esperança ainda permanece. “Parece que tem um projeto para asfaltá-la”, suspeita Leite. No entanto, o Daer, por meio da assessoria de imprensa, informa que não há previsão para a pavimentação. Apenas há um trabalho de recomposição do pavimento em andamento.

O PIONEIRO Leite ainda se lembra da época de tropeiro no Umbu Oswaldo Ferreira Leite, 91 anos, um dos últimos tropeiros vivos em Rincão dos Kroeff, ainda lembra com detalhes dos tempos de quando a Serra do Umbu era apenas uma perigosa trilha. “Tropeava daqui até Três Forquilhas. Eu levava charque seco e trazia rapadura, cachaça e farinha de mandioca”, conta ele,

que também fazia ‘viagens’ até São Chico e Riozinho. O Umbu só podia ser percorrida com a ajuda de burros. “A chuva e a neblina nunca atrapalhavam”, acrescenta Leite, que levava um dia todo para ir até Três Forquilhas, distante 66 quilômetros, em dias normais. Leite parou de tropear antes da conclusão da abertura da estrada para veículos, mas viu seu filho, José Francisco Leite, construir a estrada junto com outros 33 homens. “Eu trabalhei nove anos usando explosivos. Mas não foi necessário se pendurar em penhascos para abrir o novo caminho”, lembra o filho. Francisco Leite conta que, naquela época, na década de 70, a estrada velha já comportava a passagem de cavalos. “Quando resolveram construir para carros, fizeram o novo traçado com 10% de rampa, enquanto a antiga trilha tinha apenas 3%”, observa o borracheiro.

dos campos da Serra até o litoral norte A RS-484 interliga a RS-020, em São Francisco de Paula, com a BR-101, em Maquiné, compreendendo um percurso de 57 quilômetros. Destes, apenas os 4 quilômetros finais, entre o Centro de Maquiné e a BR-101, estão asfaltados. O trecho mais crítico são os 9 quilômetros que atravessam a Serra do Umbu Duas localidades demarcam os domínios do planalto e litoral. Enquanto Rincão dos Kroeff se situa no alto da Serra do Umbu, a 900 metros acima do nível do mar, entre campos e pinheirais, Barra do Ouro está a 70 metros de altitude, cravada em meio às montanhas da Serra Geral. É também onde a RS-484 encontra a RS-239 com acesso a Riozinho

Hortaliças são fonte de renda dos Rech A família Rech é uma entre dezenas de outras do Rincão dos Kroeff que depende do cultivo de hortaliças para viver. O distrito é um dos maiores produtores da região. A localização é privilegiada, entre litoral norte, Vale do Sinos e Grande Porto Alegre, o que garante clientes o ano todo. O entrave é a estrada, que atrapalha e encarece o escoamento da produção até o Ceasa, na Capital, e supermercadistas da região. Na propriedade chefiada por André Carlos Paffrath Rech, 39, com ajuda da mulher, Clarissa da Silva Rech, 32, e os filhos Paulo Henrique, 8, e Carlos Felipe, 5, são produzidas mudas de hortaliças, revendidas aos produtores da comunidade. “Aqui todos dependem da 484 para os deslocamentos. No inverno, o pessoal cultiva as plantas no pé da Serra e, no verão, aqui no alto. Mas qualquer deslocamento até a Barra do Ou-

paraíso em montanha Trecho de 9 quilômetros da RS-484 tem visual deslumbrante e desafiador

Tropeiro viu trilha virar “rodovia”

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CONSTRUÇÃO Em sobrevoo, o fotógrafo Alceu Feijó registrou a construção, em 1971, para o Jornal NH

esquecida no tempo Gabriel Guedes

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família rech Cultivo de mudas de hortaliças garante renda no Rincão ro, que dá uns 20 quilômetros, leva uma hora”, descreve. Diante das condições do trecho de Serra, que beira a precariedade, Rech afirma que seu maior gasto é com a manutenção do caminhão. “Amortecedores e pneus se desgastam muito rápido”, assinala. Quando acontece do caminhão estragar na estrada, com a car-

ga embarcada, o prejuízo é ainda maior. “Se o caminhão estraga, a hortaliça se perde. Quando chegamos nos mercados, há inspeção e pallets inteiros são descartados por causa de uma unidade danificada”, conta. Para Rech, o agricultor não precisa de muito. “Apenas de estrada boa e assistência técnica”, sugere.

os problemas da rs-484

São Francisco de Paula

1 - Pedras e cascalho solto fazem parte do trecho de Serra. 2 Sinalização precária, escondida no mato, é enigma para motoristas. 3 - A falta de condições de tráfego dificulta a vida de Lenir Trevisan, 46 anos, que transporta verduras e legumes do Rincão dos Para Kroeff. 4 - Em São Francisco de Paula, máquinas do Daer RS-020 caem aos pedaços enquanto a estrada RS-484 agoniza

Rincão dos kroeff RS 484

900 metros (Alt.)

Serra do Umbu

N

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RS 484

Rio

150 metros (Alt.) Para Barra do Ouro e BR-101

Maquiné


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