Tensão no mar: os resultados um ano após a lei da política gaúcha de pesca sustentável

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ALINA SOUZA

ANO 125 | Nº 125 PORTO ALEGRE, DOMINGO, 2/2/2020 RS, SC, PR - R$ 3,00 | POA - R$ 2,50

TENSÃO NO MAR Pescadores gaúchos comemoram a volta do peixes, mas catarinenses vão à Justiça contra legislação do Rio Grande do Sul

NICOLAS ASFOURI/AFP/CP

VÍRUS SE ALASTRA

RICARDO GIUSTI

CAPITÓLIO EM DISPUTA

Novo coronavírus alcança dezenas de países e deixa autoridades em alerta, inclusive no Rio Grande do Sul

Edital que pretende passar a Cinemateca para uma Organização Social gera debate na Capital

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A coronel Cristine Rasbold assumiu o posto de chefe do Estado-Maior da Brigada Militar juntamente com a troca do comando-geral, no final do ano passado. Aos 56 anos, prestes a completar uma carreira de 34 anos na corporação, neste mês, ela é a primeira mulher a ocupar uma posição no alto escalão na história da polícia militar gaúcha

DIÁLOGOS CP

MULHER NO ALTO ESCALÃO CRISTINE RASBOLD POR GABRIEL GUEDES

Como uma paranaense veio parar aqui na Brigada Militar? Meus pais são gaúchos. Meu pai trabalhava em uma empresa e foi ofertado para ele uma gerência em Curitiba. Aí eles casaram e foram pra lá, onde nascemos eu e meu irmão do meio. Depois meu pai já tinha um negócio próprio e se mudou para o Rio de Janeiro. Fomos pra lá, onde nasceu meu outro irmão, depois voltamos para Porto Alegre. E, mais uma vez, voltou todo mundo para o Paraná. Menos eu, que fiquei aqui, para atuar na Brigada Militar. A senhora tem parentes militares? Não tenho parentes na área militar. Meu pai é advogado, tenho um irmão também advogado e outro que é jornalista. Ninguém na família tem esta formação. Mas eu, particularmente, sempre tive uma admiração pelas Forças Armadas, pelas polícias militares. Sempre gostei de filmes nesta área, policial, de militares, de guerra. Por ter esta admiração, foi quando meu pai me disse uma coisa, logo quando eu tinha passado num concurso do Ministério do Trabalho. Aí eu estava num dia de trabalho normal e ele avisou: “Tu sabia que abriu um concurso para a Brigada Militar?”. Ele sabia que eu tinha esta tendência. Eu disse: “Nossa, não sabia”. Fui atrás e me inscrevi. Participei de todas as etapas do certame. Quando fui chamada, larguei onde estava e fui para a Brigada Militar. Como era o ambiente em que a senhora cresceu? Normal. Nós tivemos uma criação participativa. Fui criada para ser uma adulta independente. Meu pai dizia is-

so: nunca dependa de ninguém. Você tem que ser independente, tem que ter uma carreira. Cresci com meu pai ofertando livros, trazendo jornal, debatendo sobre tudo. Minha mãe também. Talvez, por esse meio, não vi diferença, apesar de ser dos anos 60. Meu pai preparou eu e meus dois irmãos para sermos igualmente independentes. Ele fez de tudo para que os três tivessem as mesmas condições. Foi difícil o começo na Brigada Militar? A gente assumiu o desafio de constituir essa “CiaFEM”, que não tinha companhia feminina. Não tinha referência da mulher ainda. Foi a minha turma que construiu, junto com a turma de primeiros sargentos e primeiros soldados. Tudo era uma experiência, era aprendizado. Tudo era pra ser construído e dependia de nós. E como era este desafio, coronel? A dificuldade vem quando a gente tem que estabelecer este perímetro, esta organização. Também se provar que pode dar certo. Ah, tem as veteranas, elas já fizeram isso e aquilo. Então a dificuldade foi que cada dia era uma superação. A gente sabia que tinha que trabalhar muito, se esforçar muito. E as turmas eram bem unidas. Nós, as nossas sargentos, as nossas soldados. Nós éramos tenentes, novatas. E eu falo isso para nossas veteranas: foi uma junção que deu de afinidades, por que a gente queria que desse certo. Todo mundo se esmerava ao máximo para fazer o melhor possível. Até para prender: se uma não conseguisse sozinha, já vinha apoio, duas três e iam prender. Sempre teve muito comprometimento. Foi fácil a aceitação de vocês dentro da corporação? Foi muito bom nosso comandante na

época. O comandante da Academia de Polícia Militar que nos recebeu, o coronel Bortoluzzi, já falecido, queria muito que desse certo. Ele era muito faceiro. Estava sempre zelando. Então teve comprometimento e nos sentimos acolhidas. Isso foi importante. E nós tivemos bons comandantes, que nos deram todo apoio. Claro, dificuldades houve. Não vou dizer que não. Mas foram coisas pontuais. Um colega ou outro que pensasse diferente, que pudesse não acreditar que desse certo. Claro que aconteceu. Mas no geral houve este acolhimento. A maioria comprou a ideia. Teve algum acesso diferente por serem mulheres? Na minha época a gente entrava em um acesso diferenciado, em sala de aulas diferenciadas. Hoje é tudo junto. Homens e mulheres, oficiais e praças, compartilham a mesma sala de aula. Claro, não os mesmos alojamentos, os mesmos banheiros, como qualquer lugar. Na minha época, éramos um grupo de mulheres, entramos em dez, no meio de tantos homens. Gerava aquela curiosidade, aquela expectativa. Dá um impacto. As mulheres precisam de cota ou incentivo para ingressar na Brigada? Acho que não precisa disso. A pessoa que busca esta profissão e queira continuar, levará um bom tempo para ter seu espaço. Ela vai procurar se aprimorar, se qualificar. Aqui dentro da Brigada tem espaço para todo mundo. Olha só: tem desde a polícia que tem que se preparar, com caráter repressivo, ai na outra ponta tem o Proerd, a Polícia Comunitária. Tem a atividade de instrução. Muitos têm uma veia para ser professor e instrutor. Então, tem espaço para todo mundo. Se a gente for enumerar aqui, há muitas op-

ções dentro da Brigada Militar. Na área da saúde, nós temos várias oficiais dentistas, médicas e enfermeiras. Temos a área ambiental também. Ainda há o policiamento montado. Temos várias PMs que se dedicaram a este policiamento. Se a gente olhar, há muito espaço. Qual é o tamanho do efetivo feminino hoje? Na ativa, são 2.704 mulheres. A gente vai ver, é um efetivo pequeno. Mas tem que se pensar o seguinte: é uma atividade de enfrentamento. Têm muitas mulheres em que isso deve pesar na escolha. O que faz o Estado-Maior da Brigada Militar? Aqui do Comando sai o planejamento estratégico para a Brigada Militar. Se a gente for ver, por exemplo, tudo o que envolve a Operação Golfinho, vocês já imaginaram tudo que envolve este planejamento? Recursos, quem vai, as bases comunitárias, policiamento, quais as especialidades que vão, o apoio aos Bombeiros nos guarda-vidas. Além disso, aqui coordenamos questões de inteligência, estudos legislativos, normas internas, de recursos, de comunicação social e sobre gestão de políticas estratégicas dentro da BM. Estão subordinados ao Estado Maior departamentos de saúde, de informática, departamento administrativo, de logística e patrimônio e de ensino. Como é a Cristine, chefe de Estado-Maior? Tenho uma tendência a ser muito prática. Gosto de tratar de um assunto, ver uma alternativa e implementar.

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O mar está para peixe

Pescadores gaúchos aprovam a proibição da pesca de arrasto ao longo da costa do Estado, que agora só pode ser praticada a 12 milhas náuticas da linha de praia

GABRIEL GUEDES

Após um ano da entrada em vigor da lei que determina práticas sustentáveis para a pesca na costa gaúcha, pescadores comemoram resultados positivos

M

uitos dos pescadores do litoral gaúcho tiveram um final de ano como há tempos não acontecia. Nas redes sociais, capturas fartas viraram postagens para provar que não é só “história de pescador”. Passados mais de 12 meses desde que entrou em vigor a lei estadual 15.223, que estabelece a Política Estadual de Desenvolvimento Sustentável da Pesca no Estado do Rio Grande do Sul, o mar, literalmente, está para peixe. O fenômeno está ligado a esta nova legislação, que entre outras coisas, impôs restrição na atividade de pesca de arrasto ao longo dos 623 quilômetros da costa do Estado. Agora só pode ser praticada em uma região distante 12 milhas náuticas (mn) da linha de praia, o que corresponde a uma faixa de 22,2 quilômetros, totalizando uma área de 13 mil quilômetros quadrados. A medida, bastante controversa e até questionada pelos vizinhos catarinenses, tem mostrado seus primeiros resultados práticos e veio em um momento dramático para o setor pesqueiro gaúcho. “Uns dizem que a família só se reúne na hora do enterro. Nós estávamos perto de chegar neste momento”, lembra o presidente do Sindicato dos Armadores (Sindarpes), Alexandre Novo, se referindo ao colapso pela escassez de peixes, algo que se agravou até 2018, quando foi sancionada a nova legislação. Problema tão crítico provocou uma coalizão inédita em torno de uma solução, somando forças com profissionais da pesca artesanal, de organizações não governamentais e da academia, com o envolvimento de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande (Furg). Agora, as atenções se voltam ao

aprimoramento. Um encontro no final de 2019, realizado em Porto Alegre, reuniu entidades e colônias de pescadores para discutirem ações de monitoramento da pesca. Tudo para que os resultados, festejados no “olhômetro”, sejam mensurados, comprovando em números os benefícios ambientais e econômicos. A costa gaúcha, na avaliação do diretor científico da ONG Oceana, Martin Dias, é a mais produtiva do Brasil em termos de recursos pesqueiros. Nas águas do Oceano Atlântico, em frente ao litoral do Rio Grande Sul, ocorre uma grande mistura de nutrientes, trazidos de sul pela gelada corrente marítima das Malvinas e de norte pela corrente do Brasil, de temperatura mais alta. Do oeste, as águas da Lagoa dos Patos completam este “caldo”, muito rico em plâncton e matéria orgânica, criando o ambiente ideal para a captura de grandes cardumes de peixes e crustáceos, como o camarão. Algo que sempre atraiu a atenção dos armadores de pesca industrial, em particular de outros estados brasileiros. “O governo federal, em termos de política pública, tem feito praticamente nada para ordenar as pescarias desta região. E este caráter de quase livre acesso e a falta de regras, de como se gerenciam as pescarias, têm reduzido os estoques pesqueiros para níveis que beiram o economicamente inviável. Isso impacta principalmente as pescarias de menor escala”, explica Dias. O relato do representante da Oceana denuncia como a pesca predatória não poupou nem mesmo a fauna marinha com toda abundância que a geografia do litoral gaúcho proporciona. A questão do arrasto, segundo Novo, é o descarte de

espécies em grande quantidade, além da destruição do habitat existente no fundo do mar. O presidente do Sindarpes assegura que a indústria pesqueira gaúcha, por ser menos desenvolvida tecnicamente, utilizando emalhe em quase sua totalidade, sofreu com a escassez de peixes. “Historicamente, Santa Catarina se apropriou do estoque com o apoio do poder público, através de financiamentos e licenças. Com que estudo foi liberado 200 licenças de camarão para pescar aqui no sul? Eles vinham para pescar camarão, mas pescavam peixe. Quem vinha pescar peixe, pescava camarão. Em cima desta voracidade, colapsou”, acusa Novo. Mas a situação crítica atiçou a mesma voracidade nas embarcações gaúchas, que necessitavam fazer um esforço maior de pesca. “Isso fez uma parte da nossa frota pescar com outros métodos que a gente não concorda, em outras áreas de pesca. A gente não esconde, não defende. Mas ainda está acontecendo”, reconhece o representante dos armadores no estado. As dificuldades sustentadas pelos pescadores em Rio Grande, fez surgir no Conselho Gaúcho de Aquicultura e Pesca Sustentáveis (Congapes) uma conversa sobre a necessidade de regulamentação do setor. O professor do Instituto de Oceanografia da Furg, Luis Gustavo Cardoso, afirma que o passo inicial foi dado com a busca de uma solução jurídica. Foi cogitada uma Área de Preservação Ambiental (APA), a exemplo do que já existe entre Florianópolis e Balneário Rincão (SC), com a APA da Baleia Franca. Mas nos diálogos, a própria Furg, lembra Cardoso, não se mostrou favorável. “Aí se viu a limitação da pesca nas 12 milhas

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REPORTAGEM


náuticas como forma de aumentar os estoques pesqueiros, não permitindo pesca industrial motorizada dentro desta faixa”, destaca. Segundo o professor, o debate ocorreu em um momento em que Rio Grande se ressentia pela falta do Polo Naval, em 2017. Porém, para sustentar a restrição, Cardoso afirma que “foi constatada a necessidade de se calcular os impactos da medida”. Surgia assim a espinha dorsal do projeto que seria a Política Estadual de Desenvolvimento Sustentável da Pesca no Estado do Rio Grande do Sul. Para a economista e professora da Furg Liandra Caldasso, que também esteve envolvida nos debates e estudos prévios, a iniciativa simboliza a união em torno de uma causa. “Isso foi um movimento muito interessante, que fortaleceu o setor gaúcho, pelos pescadores, pesquisadores e a própria equipe da Furg, que subsidiou o estudo e está chancelada pelo setor. Muitas vezes acontece um distanciamento daquilo que a comunidade pesqueira vê e a academia trabalha. Foi uma construção de alguns anos, mas triangulação feliz”, destaca Liandra. Dias diz que a lei que o RS construiu foi em decorrência da falência de um sistema nacional de ordenamento pesqueiro. “O RS chamou para si a responsabilidade de começar a tratar do ordenamento destes recursos”, exemplifica. BOLA DE CRISTAL . No dia 29 de novembro, o pescador Alessandro Rodrigues, 37 anos, postou em uma rede social um vídeo em que aparecem muitos peixes em uma rede em Rio Grande. Na descrição, ele colocou: “Pesca abençoada no Cassino”. O feito foi comemorado como milagre pelo morador de São José do Norte, que tem uma esposa e dois filhos e pesca desde os 12 anos de idade. “Antes da lei (lei estadual 15.223) era bem menos peixe. Melhorou bastante. A pesca da corvina estava até parada. Após a lei, a corvina voltou para a praia. Dois meses de safra, aconteceu três vezes a mesma cena que postei”, conta. O estudo liderado pelo professor Cardoso, realizado entre outubro de 2017 e março de 2018, partiu de um pressuposto elementar, de que os peixes pequenos, que não fossem capturados, iriam crescer e virar peixes que poderiam ser utilizados tanto por pescadores artesanais quanto pelos industriais. A pesca de arrasto, por ser pouco seletiva, acaba dizimando milhares de toneladas de peixes jovens. “Cada uma tonelada de peixe pequeno jogado fora se torna 10 toneladas de peixe em tamanho comercial. Calculamos então o quanto foi descartado pela pesca de arrasto em 2016 e se essas espécies não fossem pescadas por um ano, o quanto cresceriam”, descreve. Para isso, foram considerados as espécies demersais, que vivem mais próximas do leito do oceano, justamente as que são pescadas nas técnicas de arrasto, que são, além da corvina, a castanha, pescada e a pescadinha. “São quatro espécies, bem conhecidas aqui no sul”, diz o especialista. As corvinas pescadas por Rodrigues são mais ou menos o que estudo feito ainda entre 2017 e 2018 havia previsto. “Ainda não estão sendo capturados os peixes que estão crescendo. Estes são os de tamanho comercial que não estão sendo pescados pelo arrasto”, frisa o professor. “Se nós estivermos errando o valor, é só se forem subestimados. Porque tem outras espécies que estão de fora do estudo. A pesca de arrasto é desembarcada em Itajaí, em Santa Catarina. Como consideramos o que foi capturado em Rio Grande, o que consta é quase uma amostragem”, acrescenta. “Mas a pescaria boa nos deixa muito alegres. É uma boa notícia”, considera o professor. “Foi muito bom

O estudo partiu do pressuposto de que os peixes pequenos, que não fossem capturados nas redes de arrasto iriam crescer e virar peixes que poderiam ser utilizados tanto por pescadores artesanais quanto pelos industriais

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perceber que ‘o peixe está voltando’, como eles (pescadores) dizem, ter esta percepção da rotina e vê-los satisfeitos, que a pesca está melhorando”, destaca Liandra. Mas o estudo não ficou apenas nas projeções ambientais. No relatório desenvolvido junto com a Oceana, ficaram evidentes os benefícios à economia do município de Rio Grande, onde está o principal porto do Rio Grande do Sul. Conforme projetado, mesmo no cenário da proibição da pesca de arrasto de fundo, em relação ao ano de 2016, as frotas poderiam ampliar a geração de receita em algo entre 134% e 530% em 2017 e 2018, respectivamente. Um bom negócio até mesmo para o governo estadual, que poderia provocar um salto na arrecadação de ICMS do setor, em Rio Grande, de R$ 660 mil para R$ 4,1 milhões em 2018. Mas são projeções. Como a legislação entrou em vigor somente em setembro de 2018, ainda requer a comprovação destas estimativas. “Até agora estamos trabalhando em tentar coletar o máximo de dados possíveis. Precisamos de gente a bordo e nas fábricas anotando as capturas”, emenda Cardoso. MONITORAMENTO . O monitoramento a longo prazo é o que vai demonstrar, cientificamente, os impactos da nova política de pesca. “A geração de dados é fundamental para a construção de políticas públicas na área de pesca que garantam a proteção do meio ambiente e o futuro da atividade econômica”, aponta Dias. Por isso, em uma parceria entre a Oceana e o Sindarpes, está sendo desenvolvido um sistema para registros dos dados. “Já estamos bem encaminhados para criarmos nosso aplicativo ou sistema de monitoramento dentro do sindicato. A gente não aguenta mais lidar com tanto papel e, na verdade, tem algumas arestas para aparar, principalmente do que é descartado das espécies proibidas, em relação aos nossos armadores, que não contabilizam isso. Aí vamos usar toda confiabilidade que o armador tem no nosso sindicato para captar este dado”, acredita Alexandre Novo. Para o presidente da entidade, esta informação é importante porque há outras espécies em quase extinção. “O monitoramento é fundamental para acompanhar o efeito negativo ou positivo desta medida”, defende o professor de estatística e oceanólogo da Furg, Paul Kinas. O fornecimento de dados também pode beneficiar até mesmo os pescadores artesanais da Lagoa dos Patos, por meio do automonitoramento. De acordo com o Kinas, isso possibilitaria a pesca do bagre. “Essa foi a primeira oportunidade de ter a motivação das comunidades pesqueiras para o automonitoramento. Principalmente para as comunidades artesanais, este é um trabalho que demanda muito esforço e muito custo. Com a ajuda dos pesquisadores na estruturação deste banco de dados, isso pode ser mais bem efetivado. Existe um desafio muito grande em fazer esta conexão. Nosso trabalho aqui é construir estas relações”, resume. DA FARTURA À FALTA . Se o leitor considerar um recorte compreendendo parte do litoral gaúcho e catarinense, entre o Farol de Quintão e o Cabo de Santa Marta, em Laguna (SC), em uma distância aproximada de 250 quilômetros, é ainda mais contrastante a mudança àqueles que atuam na pesca artesanal. É como se a divisa demarcada pelo Rio

Mampituba se estendesse por alto mar. Enquanto os cerca de 2,5 mil pescadores do Litoral Norte se beneficiam de boas pescarias, os colegas catarinenses de Laguna têm se mostrado desolados, com poucos peixes em suas redes. “Tenho acompanhado este um ano da lei foi criada e já tem diferença grande. É tanto peixe, mas tanto peixe, que o bote vem carregado de pescada amarela. O pescador está tão satisfeito que tem gente reformando cozinha, trocando televisor para os filhos, comprando telefone, reformando a casa”, conta a representante da comunidade pesqueira de Cidreira, Cleide Fioravante, que pescou por 13 anos embarcada na Lagoa dos Patos e com cabo em mar. O relato é endossado pelo vice-presidente do Fórum da Pesca do Litoral Norte e secretário da Colônia dos Pescadores Z40, de Tramandaí, Leandro Miranda. “No Rio Tramandaí tem aparecido corvina e bagre. Também tem dado robalo, borriquete e até miraguaia. A lei, além de beneficiar a captura, resgatou a autoconfiança no setor pesqueiro gaúcho.” Em Cidreira há cerca de 20 botes de pesca e, no trecho entre os municípios de Tavares e Torres, há aproximadamente 150 cabos com redes de pesca, segundo o representante de Tramandaí. A região próxima ao Estado vizinho é território conflagrado, com constantes tensões entre pescadores artesanais e os que atuam na frota industrial. No dia 27 de novembro, um barco de pesca industrial de Itajaí (SC) encalhou em Cidreira. Ao ser fiscalizado pela Patrulha Ambiental da Brigada Militar (BM), foram observados indícios de pesca ilegal. O rastreador, exigido por meio do Programa Nacional de Rastreamento de Embarcações Pesqueiras por Satélite (PREPS), estava desligado. Foi o suficiente para Miranda receber ameaças no telefone. “Fiz o registro policial e encaminhei ao Ministério Público Federal (MPF). São ameaças de pessoas que trabalham nas embarcações, da mão de obra”, afirma o vice-presidente da Z40. Após a restrição na costa gaúcha, as frotas da pesca industrial têm se concentrado nas águas do sul de Santa Catarina, para ficarem o mais próximo possível do mar do Rio Grande do Sul. Nesta parte do litoral do estado vizinho, a pesca de arrasto já é permitida a uma distância de 3 mn (cerca de 5,5 quilômetros). O representante da comunidade de pescadores do Cabo de Santa Marta, Marcio Goulart do Nascimento, o Kart, que hoje tem 43 anos e pesca desde os 9, afirma que eles nunca viveram um período tão ruim quanto 2019. “Foi o pior ano de pesca de todos os tempos. Tem pescador desistindo”, alerta. De acordo com Kart, antigamente ficavam pela região do Farol de Santa Marta uma ou duas parelhas, tipo de embarcação que faz arrasto. “Hoje são 12 ou dez trabalhando em um espaço muito pequeno. Isso foi depois da legislação. Agora vão pescar no limite de onde podem”, aponta. Somado ao excesso de parelhas, há também o conflito real com a prática artesanal. Conforme Kart, os pescadores do Farol costumam lançar suas redes em distâncias entre 4 e 5 milhas náuticas. “Até 6 milhas, às vezes”, acrescenta. Portanto, há uma zona, que varia de duas a três milhas, em que as duas técnicas atuam juntas. “Eles arrastam nossas redes junto”, denuncia. Nascimento não discorda da lei gaúcha. Entende que deveria ser assim em SC ou no Brasil inteiro. “Se a lei fosse geral, seria bom para todo mundo. A gente concorda. Seria um sonho. Aqui em Santa Catarina o artesanal é esquecido. Povo está bem descrente. Não tem ninguém que abrace a causa”, confessa. “Aí no Rio Grande tem gente batalhando, lutando. Pessoal lá de Tramandaí está supercontente. Tem abundância na pesca.”

O monitoramento a longo prazo é o que vai demonstrar, cientificamente, os impactos da nova política de pesca

Das Medidas de Gestão dos Recursos Pesqueiros

. Na gestão da atividade pesqueira, o Estado deverá promover a manutenção da qualidade e disponibilidade dos recursos pesqueiros para as atuais e as futuras gerações, promovendo segurança alimentar, redução da pobreza e desenvolvimento sustentável. Na implementação da política de desenvolvimento sustentável da atividade pesqueira, o Poder Público deverá calcular, autorizar ou estabelecer, em cada caso: - os regimes de acesso; - a captura total permissível; - o esforço de pesca sustentável; - os períodos de defeso; - as temporadas de pesca; - os tamanhos de captura; - as áreas interditadas ou de reservas; - as artes, os aparelhos, os métodos e os sistemas de pesca; - as necessárias ações de monitoramento, controle e fiscalização da atividade; - a proteção de indivíduos em processo de reprodução ou recomposição de estoques; - os mecanismos de redução de captura da fauna acompanhante.


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O que determina a lei OBRIGAÇÕES DO PODER PÚBLICO: - Implementar e fiscalizar o cumprimento da Política Estadual de Desenvolvimento Sustentável da Pesca no Estado do Rio Grande do Sul; - Coordenar os programas e projetos definidos no âmbito da Política Estadual de Desenvolvimento Sustentável da Pesca no Estado do Rio Grande do Sul; - Cumprir e fazer cumprir a legislação pesqueira federal e estadual; - Promover e apoiar as ações de exploração sustentável dos recursos pesqueiros; - Garantir e compatibilizar a política pesqueira estadual com o Zoneamento Ecológico-Econômico e as políticas dos povos e comunidades tradicionais; - Promover e incentivar pesquisas dos ecossistemas aquáticos e projetos de produção e de aproveitamento dos recursos pesqueiros; - Difundir inovações da tecnologia pesqueira e resultados de pesquisas; - Promover o monitoramento e a coleta de dados estatísticos da atividade pesqueira, garantindo a publicidade das informações e o compartilhamento de dados com o poder público federal; - Cadastrar, licenciar e regulamentar a exploração e o comércio da flora e da fauna aquática;

SC X RS . O presidente do Sindicato dos Armadores (Sindarpes), Alexandre Novo, entende que a lei estadual do RS não é uma proibição. “A frota, que está sendo, em tese, prejudicada, está sendo impedida de pescar nesta região, mas fora desta está liberada.” Desde 2005, o estado do Pará possui legislação semelhante, que afasta a pesca de arrasto para além de 10 milhas náuticas. Novo também discorda que o setor pesqueiro catarinense esteja sendo prejudicado. “Temos pelo menos 140 barcos de SC com emalhe em nossa costa. Têm traineiras de SC aqui e que estão sendo beneficiadas pela lei. E a própria parelha, que está pescando fora (das 12mn) está tendo lucro, trazendo espécies que não capturavam e até com maior tamanho, porque tinham a impressão de que a beira da praia era o melhor lugar.” Entretanto, nenhum destes pontos parece satisfazer os que se dizem prejudicados e a questão foi parar na Justiça. O ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 13 de dezembro, indeferiu o pedido de medida cautelar formulado pelo Partido Liberal (PL) de SC na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6218, na qual postulava a suspensão imediata dos efeitos da lei gaúcha. Mas a decisão em definitivo ainda será submetida a referendo do Plenário. Segundo o ministro, o estado do Rio Grande do Sul “parece ter agido em conformidade com a legislação nacional editada pela União Federal (Lei 11.959/2009), que, em relação à atividade pesqueira no Brasil, também prevê a vedação absoluta ao emprego de quaisquer instrumentos ou métodos de pesca de caráter predatório”. O partido questiona se o Estado pode legislar sobre o mar territorial brasileiro. Em nota, o Sindicato dos Armadores e das Indústrias da Pesca de Itajaí e Região (Sindipi), elenca razões pelas quais o RS estaria cometendo uma ilegalidade

ao restringir a pesca de arrasto. Para a entidade, a medida tem caráter político e interfere na atividade econômica. Também afirma que “o Rio Grande do Sul não tem competência legislativa ambiental para legislar sobre ordenamento da pesca em domínio eminente federal”, bem como aponta a não existência de mar territorial estadual. A entidade ainda afirma que o Estado ignorou a competência da Secretaria de Agricultura e Pesca (SAP-MAPA), órgão específico que trata da política nacional da aquicultura e pesca. “E criam uma lei com base em um cenário hipotético (futuro), ignorando a realidade – pois a atividade econômica da pesca de arrasto está estabelecida na região pelo menos desde 1980. Querer fazer reserva de mercado sobre área da União e sobre recursos de todos os brasileiros é uma imprudência sem tamanho.” Por fim, ataca o estudo que embasa a política gaúcha para a pesca sustentável: “Existem diversas inconsistências e limitações. Como por exemplo, os resultados apresentados não possuem margem de erro, significa dizer que o valor ‘verdadeiro’ pode ser menor ou maior do que os resultados apresentados no estudo”. Entretanto, Santa Catarina, que questiona se o Rio Grande do Sul pode legislar sobre o mar dentro dos limites de sua faixa litorânea, tem disputa semelhante com o Paraná. A ação é movida no STF desde a década de 1990 pelo governo catarinense, que discorda dos parâmetros adotados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para estabelecer a “divisa”, com questionamentos sobre a distribuição dos royalties pagos em decorrência da exploração de petróleo e gás em campos localizados em áreas hoje pertencentes ao Paraná. PROTEÇÃO AMBIENTAL . Os setores envolvidos na implantação da lei estadual 15.223, que estabelece a

Política Estadual de Desenvolvimento Sustentável da Pesca no Estado do RS, consideram a questão como de “ordenamento pesqueiro”, em que se organiza a prática da pesca. No entanto, sob a visão de quem fiscaliza, se trata de outro conceito. “Não é uma medida de ordenamento. É uma medida de proteção ambiental. É se uma embarcação está pescando em local proibido e com o método proibido”, afirma o chefe substituto da Divisão Técnico-Ambiental (Ditec) do Ibama no estado, Maurício Vieira de Souza. De acordo com Souza, as operações de fiscalização se concentram no acompanhamento das diversas safras de pesca ao longo do ano, com atenção especial às regiões de Rio Grande e Tramandaí. “A gente verifica as zonas proibidas, zonas de exclusão e espécies proibidas para captura, transporte e comércio”, detalha. Com uma limitação que Souza considera estrutural no Ibama, a fiscalização é “mais educativa e de alerta”. Entretanto, a colaboração com outros órgãos, como o Batalhão Ambiental da BM e secretarias de Meio Ambiente, acabam tornando as ações mais eficazes. “Pelo menos há 10 anos a gente conta com a Brigada Militar.” No litoral norte, o capitão João Cesar Verde Selva comanda a 2ª Companhia do 1º Batalhão Ambiental da Brigada Militar (1º BABM), com sede em Capão da Canoa. Na região, eles atuam na fiscalização da pesca amadora e profissional, também em conjunto com outros órgãos. Hoje, o BABM conta com drone para fiscalização em áreas remotas e com uma embarcação para patrulhamento costeiro, além de outros pequenos barcos. Na região, Selva afirma que as abordagens a embarcações pesqueiras não são tão comuns. “Ocorrem com maior incidência no litoral sul. No litoral norte, estamos reativando essas abordagens e patrulhamento costeiro de forma direta, sendo realizado até então por meio de drones ou apoio aéreo do Batalhão de Aviação da BM.”

- Promover capacitação e formação das pessoas que atuam na pesca; - Gerir as relações com os Estados limítrofes e com a União, no que concerne a políticas, planos e ações de pesca; - Promover e apoiar ações de preservação e recuperação dos ecossistemas; - Promover e incentivar a educação ambiental, em conformidade com a Lei Federal 9.795/1999, que institui a Política Nacional de Educação Ambiental; - Promover a assistência técnica e extensão pesqueira em conformidade com a Lei nº 14.245/2013, que institui a Política Estadual de Assistência Técnica e Extensão Rural e Social no Estado do RS. DA OBRIGAÇÃO DOS PARTICULARES - Zelar pelo meio ambiente, de forma a garantir a perpetuação das espécies de animais e vegetais aquáticos; - Cumprir as obrigações relativas ao fornecimento de informações relevantes à estatística pesqueira e ao monitoramento pesqueiro; - Fornecer acomodação, alimentação e segurança a observadores de bordo; - Manter dispositivo de rastreamento por satélite, quando for o caso. - É dever dos envolvidos na atividade pesqueira que atuem na comercialização, transporte e beneficiamento fornecer informações a respeito da origem do pescado para efeitos de fiscalização. - É obrigatória a manutenção dos equipamentos e instalações de pesca de acordo com normas de segurança, dentre outras normas correlatas ao desenvolvimento e à manutenção das atividades pesqueiras.


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