Entrevista com o comando-geral da Brigada Militar

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RONALDO SCHEMIDT / AFP / CP

ANO 125 | Nº 55 PORTO ALEGRE, DOMINGO, 24/11/2019 RS, SC, PR - R$ 3,00 | POA - R$ 2,50

Revolta latina Países à esquerda e à direita do espectro político enfrentam levantes, embates e protestos nas ruas, resultando em mortos, feridos e muita incerteza em relação ao futuro

GUILHERME TESTA

GUILHERME TESTA

INCERTEZA NAS OBRAS

DIFICULDADES NA CHAPE

ÁGUA CONTAMINADA

Três anos após a tragédia com o voo da Chapecoense, clube enfrenta endividamento e crise no futebol

Relatório aponta presença de medicamentos em fontes de água de diversas partes do mundo

Paralisação dos trabalhos de recuperação do Instituto de Educação gera apreensão

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A alegria e a paixão pela arte contrastam com a firmeza e o rigor na atuação policial. Não com a força, mas com o respeito à legislação, ao dever do policial militar e ao bom uso dos recursos de inteligência. O comandante-geral da Brigada Militar, coronel Rodrigo Mohr Picon, 50 anos de idade e 32 de instituição, assumiu o posto no começo da última semana, no lugar do coronel Mário Yukio Ikeda, que foi para a reserva. Licenciado em Letras em 2001, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Mohr gosta de literatura e música. Como músico, gostava de rock n’roll, mas com o tempo, o blues foi sua escolha. Na Brigada Militar, entre os desafios, destaca o de reter seus integrantes na ativa e manter a tropa motivada, além de abrir novas frentes de combate a crimes como roubos de veículos e o de telefones celulares

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RICARDO GUISTI

DIÁLOGOS CP

NOVO COMANDO

RODRIGO MOHR PICON POR GABRIEL GUEDES Temos no comando da Brigada Militar um músico e formado em letras? Eu sou músico amador… Mas que toca guitarra muito bem... É mentira também, não toco guitarra bem. Eu toco em uma banda de blues com uns amigos. É a Hoodoo Blues. O único militar sou eu. Não tocamos na noite, nada. Já tocamos, mas agora é só ensaio. Em vez de jogar futebol, vou tocar blues. Como toda essa história na corporação começou, coronel? Eu ingressei na Brigada Militar, antigamente era o segundo grau da Brigada, no Colégio Tiradentes. Isso foi em 84. Em 86 eu encerrei o segundo grau e já tinha vagas para o CFO (Curso de Formação de Oficiais). Aí fiz vestibular lá e passei. Fiz meus quatro anos de academia e me formei em 1990. No CFO, peguei a primeira turma de quatro anos. Era um curso pesado. Entrei com 17 anos na Brigada. Então, com 17 eu já andava com revólver 45 na cintura e fuzil na mão. Mas isso dentro da escola, não ia para a rua. O curso era difícil. Foram três anos de pernoite. Então o cara não tinha liberdade. Me formei com 21 e fui para Gravataí, para o 17º BPM. Iniciei lá a minha carreira. O senhor imaginava que chegaria ao posto de comandante-geral da Brigada Militar? Nem perto. Essa possibilidade começa a aparecer quando fui para o CPC (Comando de Policiamento da Capital) e ali começa um trabalho. Ali a gente vê que o governo queria pessoas técnicas, a ver que teria chance. O que significa chegar ao comando? É uma responsabilidade muito grande. E é algo muito difícil, se tu pensares. Mi-

nha turma tinha mais de 100 (alunos). Sou o único do comando-geral da BM. Dos Bombeiros, dois colegas já foram comando-geral, o coronel Cleber (Cleber Valinodo Pereira), que era da minha turma, e agora o coronel Bonfanti (César Eduardo Bonfanti). Mas da Brigada, sou o único da turma de 1990 que chegou. E se a gente aumentar o leque, a turma do coronel Ikeda (ex-comandante-geral Mário Yukio Ikeda) é 1987. Pulou 88 e veio a minha turma. Como era a primeira turma de quatro anos, 89 não teve ninguém. É muito difícil. Muitos querem e poucos conseguem. Então é muita honra ter conseguido chegar nisso. Quais são as virtudes de um policial da Brigada Militar? Ainda é aquela coisa de valentia, coragem? Eu acho assim: nós temos que trabalhar com a questão técnica. Esse negócio de valentia, coragem, isso tem um pouco, quando tu vai para o enfrentamento, para o confronto. Mas tem muito a questão técnica. O policial tem que obedecer alguns critérios técnicos. Já fiz prisões como tenente, capitão, até como coronel, e tinha poucas situações de perigo, porque a gente usa a questão técnica. Surpresa, a superioridade de meios. Isso nos dá mais segurança. Claro que, no policiamento, a gente nunca tem certeza. As coisas não são como em uma profissão qualquer, que tem rotina. A gente costuma dizer que cada ocorrência é uma ocorrência. Às vezes, em ocorrência de briga, tem dois embriagados, mas daqui a pouco tem um cara armado. Isso faz da profissão uma coisa que nunca é segura, por mais treinado que tu esteja. É quem nem o VAR (arbitragem de vídeo, do futebol). Tu pega e vê o jogo. E aí pega um VAR, vê, vai e volta. Fica analisando. Mas na hora é muito difícil. A gente vê vídeos

dos policiais, vê que ele errou ali. Só que no momento, geralmente há um componente emocional, até a reação. Nós perdemos um soldado do 1º BPM, quando já estávamos sabendo de um carro roubado. O soldado Barbosa (Gustavo Barbosa Junior) viu o carro e foi fazer a abordagem. O carro já estava na rede de rádio. Mas quando ele foi abordar, eles pararam o veículo. Ele parou o carro no local certo da abordagem, o cara atirou e acertou o policial, com colete e tudo. A situação ali, a má intenção do criminoso, ele não teve nem o tempo de descer da viatura. Realmente é uma profissão muito complicada. O que mudou no policiamento ostensivo com o passar dos anos? Hoje é muito mais complicado, principalmente pelo aumento da violência, do consumo de drogas. Têm locais de tráfico que ganham muito dinheiro vendendo droga. E tendo muito dinheiro, têm mais armas, mais poder dentro das comunidades, que há 20, 30 anos não existia. Há 20 poucos anos não existia facções. Tu tinha uma turma que agia no local tal, fazia tráfico. Mas hoje já tá mais organizada. Claro, não chegamos a ponto de outras cidades do Brasil, que são muito mais violentas. Mas hoje, neste ponto está muito mais complicado. A polícia, nesse tempo, perdeu efetivo. No final dos anos 80, a BM tinha 30 mil homens. Hoje nós estamos aí, somando tudo, 17 mil. É menos de 50% do efetivo. O policial hoje tem que trabalhar praticamente o dobro, em uma sociedade muito mais complexa. A sociedade nos fiscaliza muito mais que há 20 anos atrás. Hoje qualquer um com celular filma a ação do policial, isso é bom. Isso faz com que o policial, cumpra a lei, cumpra a doutrina. Mas mesmo isso é mais complicado. As pessoas também não entendem como trabalha um policial. Aí tem críticas.


O que fazer para tentar manter os policiais militares gaúchos na ativa? Nós já estamos trabalhando na modernização da carreira dos policiais, principalmente de nível médio, de soldado a tenente. Proporcionar que ele consiga planejar sua carreira. Ou seja: ele entra soldado e vai galgando graduações no tempo. Hoje isso ocorre, mas não tem como planejar. O PM fica dependendo de sair curso. Então esse curso demora, tem algum problema de ordem financeira ou de local para fazê-lo. Isso vai ser uma forma de tentar ter um planejamento para o policial. Porque é importante. Então, a ideia é de que essa transferência para a reserva não seja algo tão atraente quanto continuar. Até por que o pessoal que já tem 30 anos é por que gosta da BM, gosta do serviço e muitos estão indo pela questão da transferência. Mas muitos querem ficar. Têm uns ali que ainda estão duros na queda, não sabem se vão ou se ficam. São ótimos policiais. Então estamos tentando convencê-los de que vale a pena ficar, que nós vamos, sim, organizar a carreira deles. Mas ainda tem bastante gente querendo ser policial, pelo que foi visto nos últimos concursos públicos da Brigada Militar? Tem bastante gente querendo ser policial, mas tem muito a ver com a carreira pública, a segurança, nem tanto com a vocação. Isso é uma coisa, infelizmente, em decorrência da crise que o Brasil passou, que começam a ver em cargo público. Acabam descobrindo se tem vocação ou não na academia... Depois, na rua. A formação é uma coisa. O trabalho de rua é outro. É um trabalho pesado. Policial fica de pé, no calor, no frio. Passa a noite acordado. Até brincava com minha mulher, logo que me casei. Eu tirava o serviço na noite, chegava em casa às 6h30min, tomava um banho e me deitava. Mas ela acordava umas duas ou três horas depois com beijos e abraços, perguntando: “Ah, como foi seu trabalho?”. E o cara assim, derrubado. Mas daí um dia fizemos um destes voos noturnos, faz uns 15 anos, e ela queria dormir. E eu disse: “Não, fica acordada”, brincando. “Vê como é bom ficar acordado.” Porque é muito pesado. O policial com 40 anos já está sofrido. É que nem um jogador de futebol. Com 36 (anos de idade) já não vai muito. O policial, na rua, com 40 e poucos não vai. Estes dias, fui correr atrás de um criminoso. Eu estava na Aparício (av. Aparício Borges), no dia 7 de Setembro, e um carro bateu em outro, com umas senhoras. Eu parei para ver e notei: “esse cara tem esquema”. Aí vi as senhoras do carro, estavam bem. Fui conversar com ele (o suspeito) e ele me disse: “Não era eu, era elas”. Mas eu disse: “te vi, tu passaste a mil por mil”. Aí desci para chamar a BM, as guarnições. Eu estava civil. Aí um morador me disse: “Ô, senhor, ele vai se mandar”. Quando cheguei perto, ele saiu correndo. Fui correr atrás e o joelho se foi na hora. Minha sorte é que a viatura do choque, que vinha do desfile, viu eu correndo atrás do cara. Aí o suspeito já estava a uma quadra e eu mancando. A viatura fez a volta e prendeu o cara: era um foragido, ladrão de carro. Então, assim, é difícil de manter depois de uma certa idade o vigor físico. Claro que a gente compensa com a experiência. Por isso é boa esta experiência. A saída de policiais antigos não é boa. Porque eles trazem a experiência, ensinam os mais novos. Então o novo tem o vigor físico, o mais velho, o conhecimento, a manha. O que mais pode ser feito para motivar a tropa?

RICARDO GIUSTI

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“No que eu acredito? No cumprimento da lei. A lei tem que ser cumprida. O policial não é assistente social, não é professor. Ele é policial, tem que cumprir a lei.”

A questão de qualidade de equipamento, de armamento, de viaturas, isso nosso policial gosta muito. Ter uma arma boa, um equipamento bom, com segurança, viaturas fortes. Isso qualifica o serviço. O que pode ser feito para combater a criminalidade, indo além da questão do policiamento? Eu acredito muito em um economista americano dos anos 60, que morreu nos anos 2000, o Gary Becker. Ele dizia que tinha uma fórmula que o criminoso vai botando ali. O criminoso é racional. Ele pensa: “Se eu assaltar, levar aquele carro, quanto vou ganhar vendendo? Ah, vou ganhar 3 mil. E se eu for preso, vou ficar um dia na cadeia. Vale”. Então ele comete o crime. Porto Alegre tem um trabalho, são pouquíssimos os casos de confronto em roubo de veículo ou receptação. A gente pega o cara. Ele desce, se entrega, mesmo que esteja armado. Ele sabe que, se atirar no policial, a pena é maior. Acredito nisso, que o criminoso tem essa consciência. Se ficar ruim, ele não vai mais. Ele conhece a lei, sabe o que pode acontecer. Na receptação de veículos roubados, tem um cara que prendemos cinco vezes. Toda vez que vamos lá e o prendemos, ele se entrega, vai preso. No outro dia está fora. Vai de novo pra receptação. Esse cara vai continuar fazendo eternamente aquilo enquanto não se sentir punido. Não acredito muito nesta questão de renda, de gerar criminalidade. Tanto que o Brasil tem um período em que aumenta o poder aquisitivo do brasileiro e as mortes também aumentam. O senhor liderou um trabalho que culminou com a queda nos indicadores de roubo de carro. Isso vai inspirar em novas ações? Fizemos um grupo de inteligência que atua só no roubo de carro e receptação. Nós prendemos, de março a outubro, 600 criminosos por receptação ou roubo de carro. Quando nós iniciamos o trabalho, eram em torno de 20 carros roubados por dia em Porto Alegre. Terminamos outubro com nove. Então, quanto mais prendemos, mais diminuiu. Aquela conversa de que não adianta nada o encarceramento, não parece servir neste caso. Quanto mais a gente combate o crime, mais faz prisões, mais se diminui. Porque se perde o lucro. Ele (o criminoso) vai lá e rouba. Ele tem risco, a vítima pode estar armada também. Então ele rouba e vende o carro, clona e vende. Se for preso por roubo de veículo, fica mais tempo na prisão e precisa gastar com advogado. Aí já fica devendo para alguém. Ele deixa de ter lucro. Um dos melhores jeitos de re-

solver alguns problemas é indo no bolso. Então, acredito muito na ação da polícia com inteligência. Não adianta só força e encher de brigadiano na rua, se a gente não sabe quem, onde, quando e como está acontecendo o crime. Se eu não souber isso, não sei nada. Estou só jogando policial na rua. Isso é trabalho de inteligência, que a Brigada tem trabalhado bastante. Por exemplo, a gente sabe de onde são todas as quadrilhas de carro de Porto Alegre. O cercamento eletrônico de Porto Alegre nos dá a dica, às vezes não tenho guarnição para prender o criminoso no momento, mas sei que ele foi para a Lomba do Pinheiro, por exemplo. Então sei que ele é da quadrilha tal da Lomba do Pinheiro e que só pode ser o ciclano e fulano. Então, tem todo um trabalho de inteligência que começa a perceber essa quadrilhas. Isso é fundamental. Se não soubermos isso hoje em dia, a gente só joga policial na rua. Claro que tem a questão da visibilidade, do Centro de Porto Alegre, da sensação de segurança. Isso aí é importante também. O que é ser policial linha dura? Como seu policial deve agir? No que eu acredito? No cumprimento da lei. A lei tem que ser cumprida. O policial não é assistente social, não é professor. Ele é policial, tem que cumprir a lei. Uma das passagens mais polêmicas da minha carreira foi no 9º BPM, quando a gente fez aquele trabalho no Viaduto Otávio Rocha. Eu passei ali e estava se tornando uma cracolândia, pequena se comparada a São Paulo, mas era uma cracolândia. Desde então mantemos o policiamento e a continuidade. Porque tomar atitude é manter. Hoje tu vem dos Açorianos e pode percorrer toda extensão da Borges de Madeiros. Na Praça Daltro Filho, ao lado do Capitólio, a comunidade se juntou. Aquilo era outro satélite do tráfico de drogas. Então, com o trabalho junto à comunidade, hoje a praça está limpa, pintada, com prefeitura, comunidade e Brigada. Não tem mais cara usando droga ali, dormindo. Os idosos não podiam frequentar mais a praça. A praça tinha virado de quem acha que pode dormir o dia inteiro, usar droga, tomar cachaça. As pessoas já deixavam de ir ao cinema Capitólio. Hoje 60% da tropa tem curso superior. Então, ele (o policial) sabe que tem uma fiscalização da comunidade, que é ótimo. Câmeras, tudo. Então, esse negócio de agir forte está no contexto de cumprir a lei, o que está programado para nós. Não chegar ali e dizer que não é conosco. Se é crime, tem que ser tomada providência.


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