Série Na rota dos deslizamentos

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ESPECIAL

DOMINGO 22.2.2009 JORNAL ABC

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Desmoronamentos de terra na região são mais comuns do que se imagina

Cercados pelo perigo Rodeados por morros, montanhas e serras, os vales do Sinos, Caí e Paranhana, a Serra Gaúcha e até mesmo parte do litoral norte são lugares propícios a ocorrência de deslizamentos de terra, como testemunha a história. O ABC Domingo documenta, a partir de hoje, fatos pouco lembrados e que são guardados silenciosamente sob os pés das montanhas. Gabriel Guedes

Basta falar de deslizamento que logo alguém lembra da catástrofe de novembro em Santa Catarina. Junto, surgem indagações como “por que acontece tanto lá e aqui no Rio Grande do Sul não?”. Mas a história existe exatamente para lembrarmos de que não estamos imunes a tragédias iguais. Estamos também na rota das avalanches de terra. Na porção nordeste do Estado – o que inclui a região –, a natureza tratou de erguer os contrafortes da Serra Geral. Uma cadeia de montanhas e serras que atingem mil metros de altitude e onde se concentram os maiores índices de declividade, fator imprescindível para o registro de incidentes como os de Nova Hartz, em 1992, e São Vendelino, no Natal de 2000, entre outros de menores proporções. O geólogo e professor da Unisinos Osmar Coelho afirma que toda a região é propensa. “Todas as encostas aqui têm atividade, mas que pode ser acelerada por ocasião de chuvas intensas”, explica. Ele classifica ainda a área de entorno da Serra predominantemente como de médio e alto riscos para ocupação humana. Um estudo feito pela ONG Araçá-Piranga comprovou, por exemplo, que a área de 3,2 mil hectares que compreende os contrafortes do Morro Ferrabraz – Sapiranga, Araricá, Nova Hartz, Igrejinha, Santa Maria do Herval e Morro Reuter – tem 88,74% de relevo que varia do ondulado a montanhoso e que mais de 30% deste território representa alto risco para a ocupação humana. Para Coelho, só há um jeito de evitar o risco. “É realizar um levantamento indicando as zonas mais íngremes. Locais junto aos morros nunca deveriam ser ocupados. Tem que se combater a ocupação desordenada”, sugere.

Luis Félix/GES

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NA ROTA DOS DESLIZAMENTOS

AS ZONAS DE RISCO NOVA HARTZ Era 12 de fevereiro de 1992 quando o recém criado município sofreu uma enxurrada de aproximadamente uma hora de duração. Houve fortes deslizamentos de terra na localidade de Solitária Alta e Canudos, destruindo mais de 30 casas. Segundo o ex-prefeito Ernani Schmidt, foi o suficiente para que os materiais deslizados das encostas dos morros de Serra Grande – com altitudes de até de 720 metros –, fos-

sem deslocados até a cidade, matando uma menina de 15 anos na Vila Schonardie (Vila Tomate). Depois do episódio, arroios foram dragados e a drenagem melhorada, na tentativa de amenizar os efeitos de uma nova enxurrada, que desde então nunca mais aconteceu. Segundo o coordenador da ONG Araçá-Piranga, Luís Fernando Stumpf, a área é considerada de alto risco para ocupação humana, conforme estudo feito por uma geologa para a entidade. Fotos Gabriel Guedes/GES-Especial

Novo hamburgo

A zona norte hamburguense é a que reúne o maior número de áreas com risco de deslizamento de terra, segundo a Defesa Civil local. Localizados na base de um dos degraus da Serra Geral, o bairro Vila Diehl e adjacências, como o Colina da Mata, Vila Esperança, Momberger e Redentora, são os primeiros a sofrer danos em decorrência de chuvas fortes e da declividade do terreno. Foi o que

São Vendelino

MONTENEGRO Situado numa planície, a preocupação no município se volta para o Morro São João – uma elevação de pouco mais de 130 metros de altitude em meio à cidade. Além de ser uma área de preservação permanente, a ocupação habitacional da base do morro se constitui num risco, mesmo que nunca tenha sido registrado qualquer deslizamento de terra. Segundo o diretor municipal de Habitação, Adriano Mello, há uns 2 anos foram removidas 200 famílias que moravam no sopé do morro. Mas a principal apreensão na cidade são sempre com as cheias do Rio Caí. São Leopoldo De relevo ondulado, o município não conta com o risco iminente de desmoronamentos. A situação considerada mais delicada pela Defesa Civil se relaciona com as casas à beira do Arroio Kruze, nos bairros Santo André e São Miguel, que podem sofrer danos pela erosão. No entanto, em 16 de maio de 2007, um deslizamento com a queda de um muro matou jovem de 17 anos na vila Cohab-Duque, durante um temporal.

O Natal do ano 2000 foi trágico. Uma enxurrada de pouco mais de 2 horas ao final de tarde destruiu sete propriedades rurais na Linha Neis e interrompeu a RS-122, entre a cidade e Farroupilha, por cerca de 6 meses, devido a duas dezenas de deslizamentos. Todos aconteceram em áreas classificadas de alto risco, segundo pesquisa feita na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A RS-446 também foi prejudicada. No município não houve vítimas fatais. Também foram atingidas áreas dos municípios de Alto Feliz e Carlos Barbosa.

aconteceu no dia 16 de maio de 2007, quando um barranco desmoronou e destruiu a garagem de uma casa na Rua Monteiro Lobato, na Redentora. Ninguém se feriu na ocasião. De acordo com o secretário de Segurança e Mobilidade Urbana, Luiz Fernando Farias, que também coordena a Defesa Civil, a região receberá atenção especial em caso de chuva forte, com vigilância feita com o apoio da Guarda Municipal.

Alto Feliz

As comunidades de Sete Colônias e Morro da Canastra, no limite com São Vendelino, também ficaram arrasadas no Natal de 2000. Quatro membros da família Boeni morreram no deslizamento de terra que atingiu as duas casas da propriedade.

Bom Princípio

Em 23 de setembro de 2007, a família Paulus, de Morro Tico-Tico, viu a sua casa vir abaixo. Naquele momento haviam três pessoas, mas que conseguiram se salvar. O terreno dos fundos da residência cedeu com a forte chuva, que causou cheia no Rio Caí.


ESPECIAL

DOMINGO 22.2.2009 JORNAL ABC Fotos Gabriel Guedes/GES-Especial

RESTOS: da casa de Verno Stein, no interior de Igrejinha, sobrou apenas o telhado e as vigas, enquanto as paredes foram levadas pelo deslizamento

Drama abandonado no tempo O agricultor Verno Stein, 66 anos, sobreviveu por pouco a um deslizamento de terra em Solitária Alta, interior de Igrejinha, em 1992. Naquela noite ele estava com uma visita em sua propriedade, quando o tempo feio se armou e logo começou a chuva intensa. “Só deu tempo de eu e a visita fugirmos de casa”, revela o produtor rural, apontando para o outro lado do morro, mais abaixo, onde existia um taquaral. Passado o temporal e diante de tamanho estrago, Stein não quis saber. Abandonou no dia seguinte a casa enxaimel, que assim permanece até hoje.

“Não deu mais para aproveitar a terra”, justifica. Stein perdeu, em apenas uma hora de chuva, o que levou praticamente a vida toda para construir. “Perdi tudo.” Além da casa, foi também uma moto para debaixo da terra e 13 cabeças de gado foram tragadas. “Dois bois foram achados lá em Igrejinha”, completa. Segundo o agricultor, até pinho de Serra Grande veio para baixo. Na velha casa de seu Stein, nem o assoalho sobrou. “A terra e as pedras vieram e levaram embora o assoalho. No paiol, foi a água que cavou um buraco

de uns três metros de profundidade.” Vivendo hoje na mesma propriedade, mas distante cerca de 300 metros abaixo da antiga morada, ele considera sorte a ajuda dos vizinhos. “Consegui reconstruir tudo”, orgulha-se. perseverança Da sua propriedade antiga, o que se aproveita é apenas o solo. “Planto umas abobrinhas, um milho. Crio ainda algumas cabeças de gado. Mas fora isso, não dá para fazer mais nada. Tem muita pedra”, detalha. Por sinal, o milharal construído sobre os restos da desgraça está

com bastante vigor, o que chega animar Stein. Quando deu na tevê os deslizamentos de terra em Santa Catarina, para o produtor foi inevitável se lembrar do drama enfrentado em chão gaúcho. Mas apesar de tudo o que passou, mesmo morando perto da terra natal, ele não pensa em abandonar Solitária. “Até cheguei a pensar nisso. Tive até coragem de fazer isso. Mas para onde que eu iria? Fui criado aqui. E também, até quando se sabe se irá acontecer a mesma coisa? Vou com a vida assim”, encerra.

Arquivo Ernani Schmidt

1992

O retrato feito pelo exprefeito e fotógrafo de Nova Hartz Ernani Schmidt impressiona. O morro, localizado em Solitária Alta, tem cerca de 450 metros de altitude, cota abaixo dos 720 metros da Serra Grande, que se situa atrás desta elevação. Schmidt lembra de quando foi tirar a foto. “Eu e todos que estavam na cidade só notaram a dimensão dos estragos no dia seguinte. Era realmente uma catástrofe. Foi então que eu notei os rasgos nos

morros. Subi para ver os deslizamentos e fiz esta foto”, narra. Nascido na localidade de Arroio da Bica, também no município, ele disse nunca ter visto algo assim. “Nem na enxurrada de 1954”, compara. Os irmãos Zimpel, Osvaldo Breno, 56, e Darci, 48, moradores de Solitária Alta, da parte que pertence a Igrejinha, compartilham da mesma opinião de Schmidt. “Nem em 88, quando deu uma chuvarada foi assim”, relata Osvaldo Breno.

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O oitavo e derradeiro dia de chuva Fazia muito calor. E todo dia chovia fazia exatos sete dias no final de tarde. Naquele 12 de fevereiro, às 20h30, se confirmou o oitavo dia de chuva. Mas ninguém esperava tamanhos estragos. Ernani Schmidt, 63 anos, ainda era apenas fotógrafo. Em 93 é que assumiu a prefeitura de Nova Hartz pelo PDT. “A terra estava encharcada. De repente veio toda aquela água durante uma hora e tudo começou a vir abaixo. Era lodo, árvores, lamaçal. Tudo descia rápido. Quando notei, já tinha dois metros de água em algumas ruas da cidade”, recorda. Foi vendo a enxurrada tomar contornos de catástrofe que Ernani, assim como alguns outros moradores que não foram atingidos, começaram a socorrer as pessoas. Arquivo Ernani Schmidt

DESCOMUNAL: pedras gigantes

DESOLADOR: casas destruídas

a FORÇA INCOMUM DA NATUREZA

2009 O mesmo morro, mas desta vez recuperado. Detalhe: pela própria natureza. Mas assim como em pessoas e animais, as cicatrizes permanecem, embora discretas na paisagem. Na imagem elas são visíveis pela vegetação diferenciada em relação ao resto da área não atingida. De acordo com o estudo da Araçá-Piranga, feito pela geóloga da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), Carla Klein, o relevo se modifica lentamente até atingir a estabi-

lidade. O processo de transporte nas encostas retira as rochas e solos de baixa coesão de um lugar (erosão), transportandoos para posições mais abaixo na encosta íngreme, depositando-os em um novo local. “Estes processos com o decorrer do tempo moldam nossas paisagens, gerando os relevos serranos. Sua atuação é atenuada pela cobertura vegetal”, descreve. A velocidade, segundo Carla, depende da declividade e da quantidade de chuvas.

O amanhecer do dia 13 foi desolador. “Deu sol e aí apareceram todos os detalhes da destruição. Peguei a câmera e comecei a tirar fotos. Era impressionante os estragos. Pedras de uns 6 metros de diâmetro soltas nas estradas. Árvores gigantes destroçadas como se fosse um palito de dente. Estradas viradas em rio. Não dava para acreditar”, relembra Ernani Schmidt. O que mais lhe chamou atenção na época foi a destruição na chamada Vila Tomate, a Vila Schornadie. “Lá morreu uma menina, arrastada pela lama. Só não foi pior porque moravam poucas famílias”, lamenta. O fotógrafo, que assumiu o município no ano seguinte, afirma que o trabalho seguiu por vários meses. “Contamos com a ajuda das prefeituras vizinhas para retomar a vida normal”, conclui.


ESPECIAL

DOMINGO 1.3.2009 JORNAL ABC

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Uma receita com ingredientes fatais pode provocar novas tragédias na região

Quando a terra desce 2

NA ROTA DOS DESLIZAMENTOS

Deslizamentos podem acontecer pela trágica coincidência de fenômenos geológicos e meteorológicos. Na segunda reportagem da série, especialistas consultados pelo ABC Domingo apontam algumas das causas e mitos que surgem em meio a desastres como o de São Vendelino e região, no Natal do ano 2000, e de Nova Hartz e Igrejinha, em fevereiro de 1992. Gabriel Guedes

Basta o tempo fechar e uma forte chuva cair para que a população que já enfrentou o drama dos deslizamentos volte a ficar apreensiva. Mas não basta apenas isso. As chuvas só aceleram um processo que, segundo os geólogos, é natural e vai modificando a paisagem com o passar dos anos. Entra na conta não somente a chamada pluviosidade – quantidade de chuva –, mas fatores como a declividade e forma das encostas, características geológicas, grau e tipo de interferências humanas. São muitas as possíveis origens de uma tragédia, como as que assolaram tanto Nova Hartz e Igrejinha em 1992, quanto São Vendelino, Alto Feliz, Carlos Barbosa e Farroupilha em 2000. Há quem acredite que foi fruto de tremores de terra. Em comum, os locais atingidos tiveram o registro de altos índices de chuva. Precipitações torrenciais, segundo o geólogo e professor da Unisinos Osmar Coelho, são o combustível para os deslocamentos de massa das encostas. Estima-se que nos eventos registrados na região foram mais de 100 milímetros de chuva por hora, conforme o observador da Estação Climatológica de Campo Bom, Nilson Wolff. A agricultora Olga Neis, 70 anos, moradora de Linha Neis, em São Vendelino, não crê que os morros vieram abaixo só pela água. “Tudo tremia. Fazia um barulhão”, conta. Para Coelho, não seria impossível. “O mais provável é que a retirada de água subterrânea, comum nesta região, provoque a acomodação do solo, resultando em pequenos tremores localizados. Não é comum. Mas são de baixa magnitude”, observa. O ideal é estudar a fundo a área atingida, indicando as causas. “O deslizamento é um risco que permanece”, alerta.

A RADIOGRAFIA DOS DESASTRES SEGUNDO A METEOROLOGIA Imagem do satélite de Arquivo do CPTEC/Inpe

A climatologia histórica da região revela que os eventos mais extremos de chuva tendem a ocorrer nos meses de outono, inverno e primavera, mas a combinação de ar quente e úmido típica do verão também pode resultar em episódios de precipitação com volumes muito significativos em curtos períodos. A MetSul Meteorologia analisou as condições meteorológicas dos dias em que ocorreram os deslizamentos em Nova Hartz e São Vendelino e concluiu que a instabilidade associada ao ar quente foi determinante para que as duas localidades fossem atingidas por chuva torrencial.

Nova hartz

A chuva muito intensa que atingiu Nova Hartz na noite de 12 de fevereiro de 1992 foi resultado da passagem de uma frente fria. O sistema frontal, ao encontrar o ar muito quente e úmido que cobria o Rio Grande do Sul naquele momento, favoreceu a formação de nuvens muito carregadas que trouxeram volumes de chuva muito significativos. Na véspera, em 11 de feve-

reiro, a temperatura chegou a 34,1ºC em Campo Bom. O dia 12, quando se deu a enxurrada, começou muito abafado no Vale do Sinos com marcas entre 22ºC e 24ºC. A nebulosidade era intensa e no final da tarde e começo da noite, após a máxima ter atingido apenas 29,4ºC, choveu intensamente em curto período com acumulado de 52,6 milímetros em Campo Bom, o

equivalente a metade da média do mês em menos de seis horas. Volume muito maior deve ter sido registrado em Nova Hartz, conforme a análise da MetSul, mas não existe estação meteorológica no município.

São Vendelino Já a enxurrada que castigou São Vendelino na véspera do Natal do ano 2000 foi resultado de um

temporal típico de verão. O dia foi quente na região com mínima de 21,1ºC e máxima de 33,3ºC em Campo Bom. Além do calor, a umidade era muito elevada. Às três da tarde, fazia 31,9ºC com umidade de 63%, o que proporcionava um índice de calor (sensação térmica) de 37,8ºC. A estação de Campo Bom recolheu 8,6 milímetros, o que indica que a tempestade que afetou São Vendelino foi muito isolada, como é comum nos temporais de verão. Já no outono, inverno e primavera, os eventos de chuva forte costumam ser mais generalizados devido ao regime de precipitações não estar associada ao ar mais quente e úmido e sim à passagem de frentes frias. Conforme o meteorologista e diretor-geral da MetSul, Eugenio Hackbart, o histórico climático da região revela que novas tragédias podem ocorrer no futuro se as áreas de risco seguirem sendo ocupadas. “A pergunta não é ‘se’ mas ‘quando’ novos deslizamentos vão ocorrer”, diz. (MetSul Meteorologia)

vidade, são mais susceptíveis a escorregamentos inclinações a partir de 30 graus, variando em função do material que se apresenta consolidado ou inconsolidado. “Mas a principal força que atua na encosta é a gravidade, que, associada a outros agentes, desestabiliza o subsolo. O resultado final é normalmente um acentuamento da erosão e o aumento do potencial para movimentos rápidos na mesma”,

explica. Entre as atividades que conduzem à erosão, a principal é o desmatamento. Para Carla, que estudou o entorno do Morro Ferrabraz, na área que divide a bacia do Rio dos Sinos da do Rio Caí, a ocupação humana da região é feita sem qualquer estudo prévio. Um problema histórico, segundo ela, que data desde a época da colonização alemã. Ela ressalta que há famílias de agri-

cultores instaladas em zonas de risco. “A área está sujeita a acidentes de escorregamento, como resultado das diversas formas incorretas de uso e ocupação do solo”, alerta. O professor Osmar Coelho recomenda às prefeituras o mapeamento das áreas de risco e seu acompanhamento. “É preciso pensar também em medidas preventivas, como drenagem e contenção de barreiras”, sugere.

ram em áreas ocupadas. Está sendo investigado se há relação com a explosão de trecho do Gasoduto Bolívia-Brasil.

nense sofreu centenas de deslizamentos na encosta da Serra Geral, na divisa com o RS. Um estudo da Universidade Federal de SC (UFSC), apontou como causa a forte chuva aliada à alta declividade.

HISTÓRICO: imagem de satélite mostrava frente fria atuando no Estado

SEGUNDO A GEOLOGIA A geóloga da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM) Carla Klein, autora de um estudo para a ONG AraçáPiranga sobre os movimentos de massa, classifica a pluviosidade e a declividade como decisivos na definição do grau de ocorrência de deslizamentos. A pluviosidade tem como consequência a saturação dos solos após uma grande quantidade de chuva. Quanto à decli-

em santa catarina VALE DO ITAJAÍ O relatório da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de SC (Epagri) aponta que 84,38% dos 61 deslocamentos de massa no Morro do Baú, em novembro de 2008, acontece-

VALE DO ARARANGUÁ

No Natal de 1995, o sul catari-

Fotos Epagri/Divulgação


ESPECIAL

DOMINGO 8.3.2009 JORNAL ABC

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Quando os deslizamentos converteram o clima natalino em tristeza e desolação

Um Natal soterrado Fotos Arquivo/GES

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NA ROTA DOS DESLIZAMENTOS

Na terceira reportagem da série, o ABC Domingo remete o leitor ao triste Natal do ano 2000 em São Vendelino e Alto Feliz. Foram os eventos de deslizamento de terra mais devastadores já registrados na região, matando quatro pessoas e soterrando junto com elas a confiança da população nas montanhas que cercam esta porção norte do Vale do Caí. Gabriel Guedes

Família reunida, alegria em rever amigos, ceia em preparo. Presentes aguardavam para ser abertos com o chegar da meia-noite do 24 de dezembro de 2000, mas repentinamente, por volta das 19 horas, a chuva veio forte, os morros abaixo e o entusiasmo típico do Natal foi soterrado. A realidade foi dura com a produtora rural de São Vendelino Olga Neis, 70 anos, que reunia cerca de 20 pessoas na casa que se foi junto com um deslizamento. Pior ainda foi o destino de quatro pessoas da família Boeny, de Alto Feliz, que foram tragadas e enterradas por uma mistura de terra, pedras e árvores. Uma prova de que os deslizamentos não têm data nem hora para acontecer. “Nunca imaginei que este morro iria descer. Minha família morava aqui há mais de 150 anos e nunca tinha acontecido nada igual”, relata Olga, moradora de Linha Neis, uma das comunidades mais atingidas de São Vendelino, junto com Santo Antônio do Forromeco e Morro Canastra. Da casa da agricultora, sobrou apenas o porão. Do solo, só pedra. “Não dá mais para viver daquela terra.” Hoje, Olga mora a cerca de 2,5 quilômetros do local da tragédia, em uma nova casa, construída pelos filhos. Nos meses seguintes, chegou a morar também com vizinhos. Ao todo, sete famílias perderam tudo. Cercadas por montanhas com até 720 metros de altitude, comunidades de São Vendelino e Alto Feliz perderam a tranquilidade a cada episódio de chuva forte na região. “Depois de 2000 o pessoal fica com medo”, revela o comandante do Corpo de Bombeiros Voluntário de São Vendelino, Jair Jahn. “Quando dá chuva, até as crianças se dão a rezar. Não esquecemos jamais. Deixamos na mão de Deus”, confessa Olga.

SURREAL: no dia seguinte, foi achado o Fusca dos Boeny, em Alto Feliz, e perto as duas meninas mortas

RS-122 ficou fechada por 17 barreiras

Um estudo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) de sensoriamento remoto no trecho da RS-122 entre São Vendelino e Farroupilha, apontou que, dos 66 deslizamentos de terra registrados na região somente pela chuva do Natal de 2000, 17 foram na rodovia. Um deles chegou a levar parte do asfalto numa curva. Para reabrir a principal ligação entre o Vale do Sinos e Caxias do Sul, foi necessário retirar mais de 20 mil metros cúbicos de pedras, terra, árvores e outros entulhos. O Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer) precisou ainda montar uma equipe com servidores de Bento Gonçalves, Esteio e Lajeado. O trecho só foi liberado com segurança aos usuários quase seis meses depois da tragédia.

UMA FAMÍLIA APAGADA DO MAPA Gabriel Guedes/GES-Especial

1999 O empreiteiro João Manoel Flach, 49 anos, é hoje o dono da propriedade situada em Alto Feliz, na localidade de Arroio Jaguar, que pertencia a seus parentes, a família Boeny. Flach segura o retrato com uma foto de como era uma das duas casas até 1999 – em estilo colonial – antes de serem destruídas por um dos deslizamentos no Morro Canastra. O Arroio Jaguar, que passava no meio da área, segundo Flach, era um pequeno curso d’água até a enxurrada do Natal de 2000.

TRABALHO: transtornos na RS-122

2000 No dia seguinte, o resultado da enxurrada era absurdo. A paisagem, insólita. No lugar onde deveriam estar as casas da propriedade dos Boeny, havia muitas pedras e lama. Flach conta que o Fusca da família foi achado inclinado junto a uma árvore (foto principal), a uns 100 metros do local da residência. Hoje, no mesmo lugar mostrado na foto, onde haviam as casas, há apenas um gramado. Para recuperar a área, foi preciso usar recursos de terraplanagem.

2009 Passados nove anos do soterramento, os

mortos – Patrícia Wentz, na época com 2 anos e 9 meses, Carolina Boeny, 9 meses, Alexandre Boeny e Arcenia Wentz, ambos com 22 anos, e a cunhada de João Manoel Flach e tia de Alexandre Boeny, Íria Hermann, que tinha 61 anos – são lembrados em uma capela, construída no lugar de uma das casas. Anualmente, no dia 24 de dezembro, cerca de 300 pessoas participam de missa em memória da família.

Gabriel Guedes/GES-Especial

ENTULHOS: estradas devastadas

marcas da perplexidade Repórter da sucursal do Jornal NH no Vale do Caí na época, o jornalista do ABC Domingo Castor Becker Junior reportou as consequencias da enxurrada em sua região. “Olhando os morros, parecia que a vegetação era uma camada verde de cera que havia derretido e escorrido.” Becker também se viu perplexo com a situação dos sobreviventes. “Na manhã do dia 25, pessoas ainda andavam sujas de lama, saídas de carros que ficaram isolados no meio de uma ‘papa’ de lama e água.”


ESPECIAL

DOMINGO 15.3.2009 JORNAL ABC

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Os deslizamentos não têm hora para acontecer, mas a prevenção começa agora

Atentos aos desastres 4

NA ROTA DOS DESLIZAMENTOS

Nos três últimos finais de semana o ABC Domingo mostrou ao leitor que os deslizamentos de terra na região são fenômenos praticamente imprevisíveis. Mas nem por isso impossíveis de serem prevenidos. Nesta quarta e última reportagem, saiba o que é a Defesa Civil e como este órgão pode intervir para evitar novas tragédias ou, na pior das hipóteses, amenizar os impactos. Gabriel Guedes

Desde o começo do ano até o dia 2 de março, 102 municípios gaúchos comunicaram à Secretaria Nacional de Defesa Civil (Sedec) o registro de desastres naturais ocasionados pelo clima. Supera até mesmo o tão judiado Estado de Santa Catarina, que tinha apenas sete localidades nesta situação. Em 2008, foram 145 do Rio Grande do Sul, superando os 94 municípios catarinenses acometidos. Para o coordenador da Defesa Civil gaúcha, tenentecoronel Joel Prates Pedroso, definitivamente o Estado está na rota das catástrofes, entre elas, os deslizamentos de terra. Para superar situações como as acontecidas em Nova Hartz em 1992 e em São Vendelino e Alto Feliz, em 2000, existe a Defesa Civil. O órgão, que funciona de maneira sistemática entre municípios, Estados e União, é o responsável por um conjunto de ações preventivas, de socorro e assistência destinadas a evitar ou minimizar os impactos de desastres e restabelecer a normalidade

social. “A governadora diz que a prevenção é o caminho. Por isso cada município deve ter uma unidade operacional”, sugere Prates, se referindo à governadora Yeda Crusius. Na verdade, conforme o tenente-coronel, as cidades são obrigadas a ter uma coordenadoria da Defesa Civil, criada por decreto municipal. “Em muitos lugares há ela criada, mas não funciona, não está ativa”, revela. Nova Hartz não tem Defesa Civil atuante. Em São Vendelino, segundo o comandante do Corpo de Bombeiros Voluntários, Jair Jahn, há um movimento na comunidade no sentido de retomar a coordenaria. Alto Feliz não tem. Conforme Prates, o melhor é que a população destes municípios se reúna para formar a coordenadoria, caso contrário, na ocorrência de uma catástrofe, não há a possibilidade de o prefeito decretar nem ao menos situação de emergência – o que habilitaria a prefeitura a receber ajuda estadual e federal para reconstrução e assistência à população atingida.

INVESTIMENTO “A cada um dólar gasto na prevenção há a economia de 8 dólares na reconstrução”, exemplifica o coordenador, ressaltando a importância de se investir na prevenção aos deslizamentos de terra. “A Defesa Civil pode trabalhar em escolas com projetos preventivos. Em parceria com a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) e Bombeiros, por exemplo, é possível interditar uma área de encosta e fazer remanejamento de moradores antes que o pior aconteça”. Empírico, Prates acredita que os desastres naturais meteorológicos têm aumentado de frequência no Estado e pede por maior participação da população. “A Defesa Civil somos todos nós.”

CINCO RECOMENDAÇÕES para 1NãoPromessas lotes em morros se deixe enganar por

Sinais indicadores 4Com de um deslizamento o aparecimento de fen-

promessas fáceis e ilusórias para obter uma propriedade em morros ou áreas de risco. As chances de desastre são muito altas. Não desmate morro e encostas para assentamento de casas e outras construções

COM FOCO NO PLANEJAMENTO

Fotos Gabriel Guedes/GES-Especial

das, depressões no terreno, rachaduras nas paredes, inclinação de troncos de árvores, de postes, avise imediatamente a Defesa Civil

Colabore para 5Pequenas evitar uma tragédia ações podem pre-

O que fazer ao notar o 2Avise risco de deslizamento aos seus vizinhos so-

venir grandes tragédias, como não destruir a vegetação das encostas, evitar a erosão por vazamentos de água, nem acumular lixo de forma indiscriminada na beira das encostas. As barreiras em morros devem ser protegidas por drenagem de calhas para escoamento da água da chuva e lonas. Também não faça cortes nos terrenos de encostas sem licença da prefeitura, para evitar o agravamento da declividade. As barreiras devem ser protegidas com vegetação que tenham raízes compridas, gramas e capins que sustentam mais a terra. Evite bananeiras e outras plantas de raízes curtas, além de árvores muito grandes

bre o perigo, no caso de casas construídas em áreas de risco de deslizamento. Avise, também, imediatamente ao Corpo de Bombeiros e a Defesa Civil. Convença as pessoas que moram nas áreas de risco a saírem de casa durante as chuvas

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Plano de evacuação em áreas de risco iminente Se você mora numa área de risco, tenha com sua vizinhança um plano de evacuação com um sistema de alarme. Caso a localidade onde você mora ainda não tem esse plano, converse com o prefeito ou o coordenador de Defesa Civil

SAIBA MAIS: acesse também na Internet os sites www.defesacivil.gov.br e www.defesacivil.rs.gov.br

SOBRE OS DESLIZAMENTOS A ocorrência dos deslizamentos coincide com o período de chuvas mais intensas e prolongadas, visto que as águas escoadas e infiltradas podem desestabilizar as encostas. Os incidentes podem também acontecer em áreas ocupadas e sem o risco natural de deslizamento, como é o caso do Morro do Paula, em São Leopoldo.

Fonte: Secretaria Nacional de Defesa Civil (Sedec)

VILA DIEHL: encosta monitorada

MAPA: planejamento leopoldense Novo Hamburgo, que tem a zona norte da cidade na encosta de um dos degraus da Serra Geral – área de alta declividade –, é mais suscetível a deslizamentos do que o território leopoldense, que pode sofrer consequências decorrentes apenas do manejo do solo. Segundo o coordenador da Defesa Civil, Luiz Fernando Farias, a região da Vila Diehl – onde em 2002 se registrou grave um deslizamento – e o bairro São José terão monitoramento constante pela Guarda Municipal em caso de chuva forte. “Também pretendemos mapear as áreas de risco para traçar estratégias de evacuação”, esclarece. Em São Leopoldo, segundo o chefe da Defesa Civil, Silomar Gomes, a intenção é apontar locais de risco. “Temos áreas que sofreram ocupação e agora oferecem perigo com encostas que antes não existiam”, conclui.


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