A temerosa travessia do Atlântico

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REPORTAGEM

DOMINGO 7.6.2009 JORNAL ABC

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Voo AF447, uma semana depois

A temerosa travessia do Atlântico Gabriel Guedes

Arte Diogo Fatturi/GES

Aparentemente nem mesmo a experiência de 11 mil horas de voo do aeronauta Marc Dubois, 58 anos, foi suficiente para enfrentar aquela que seria sua última jornada: a travessia do Oceano Atlântico, entre Brasil e Europa, apontada por especialistas como uma das mais delicadas e conturbadas da aviação. Por um raio de 300 quilômetros, passam cinco rotas com destino ao velho continente. Todas elas precisam cruzar a Zona de Convergência Intertropical (ZCIT), um perigoso fenômeno climático. Dubois, sua tripulação e seus passageiros desapareceram exatamente nesse turbulento caminho, no trágico voo 447 da Air France, há uma semana. A tragédia do avião francês colocou em evidência esses caminhos. E para entender porque eles são tão delicados o ABC foi atrás de especialistas. Autoridade sobre o espaço aéreo do Brasil, a Força Aérea Brasileira (FAB) preferiu não comentar o assunto. O meteorologista do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) Alaor Moacyr Dall’Antonia Junior explica que a ZCIT é fomentada pela vaporização da água do oceano nos trópicos. “Daí se formam as nuvens cumulonimbus, os CBs, que contém muita energia, culminando com tempestades”, explica. QUEBRA-CABEÇA O diretor de segurança de voo do Sindicato Nacional dos Aeronautas (SNA), Carlos Camacho, frisa que o trecho oceânico sempre foi encarado com apreensão. “É um conjunto de rotas em que a turbulência é inevitável”, analisa. Além dos riscos nas rotas oceânicas, Camacho aponta a Amazônia, pela precariedade de comunicação, e o sul do Brasil, devido ao clima dinâmico da região. O professor de Ciências Aeronáuticas da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS) Ênio Dexhaimer, com 18 anos de experiência em rotas internacionais da antiga Varig, reconhece a força e a rápida movimentação das tempestades na ZCIT. “Mesmo a mais forte não derrubaria sozinho um avião”, assegura. Mas o trajeto também é precário em comunicação. Na área do Senegal, a comunicação é só por rádio UHF. Para Dexhaimer, chama atenção no voo 447, o fato de não ter se feito o desvio. “Deve ter um motivo. O Airbus tem um ótimo radar”, justifica. O comandante é quem emprega sua convicção na análise de uma situação. “Mas o mais seguro é dizer que tudo ainda não passa de um quebra-cabeça. São muitos fatores concorrentes neste acidente”, conclui.

a versão da meteorologia Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) De acordo com o meteorologista do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC) do Inpe, Marcelo Seluchi, a ZCIT tem apresentado nestes últimos meses anomalia, quando deveria estar ao norte da linha do Equador. Mas não se saberia ainda se o fenômeno estaria mais intenso. “Na zona são frequentes as tempestades. Mas o que se viu até não é de nenhuma importância extraordinária.” Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) Alaor Dall’Antonia não crê que a causa do acidente seja apenas de uma forte turbulência. Apesar da ZCIT ser caracterizada por severas pertubações, segundo Junior, um avião do porte do A330 suportaria à situação. “Mas a passagem pela zona é sempre complicada”, ressalta. Metsul Meteorologia Segundo o instituto, áreas de tempo severo atuavam na região do acidente e estavam associadas à ZCIT, cinturão de instabilidade na área do Equador que está mais ativo neste ano. A instabilidade, contudo, não era excepcional e não fugia à normalidade da região. É temerário especular causas sem dados da investigação, mas assumindo que o mau tempo tenha de alguma forma influenciado na sequência de eventos que levou ao desastre, possivelmente as condições atmosféricas não tenham sido a causa única.

Intensidade da tempestade é contestada Paris - Imagens de satélite do momento em que o Airbus realizava o voo AF447 na noite do dia 31 de maio, indicam que a tempestade enfrentada pelo A330 não foi um evento anormal. A afirmação foi feita ontem pela Méteo France, órgão de meteorologia que auxilia nas pesquisas realizadas pelo Escritório de Investigações e Análises sobre a Aviação Civil (BEA). De acordo com imagens registradas às 23h15 – o minuto seguinte ao momento em que se presume tenha ocorrido a queda do jato –, a temperatura no interior da Zona de Convergência Intertropical (ZCIT) era de -82ºC. Essa temperatura era mais elevada do que o verificado nas piores nuvens formadas na região equatorial, o que significa que a tempestade não era a mais violenta que as que os voos da rota podem atravessar.

FORTE ATIVIDADE

Tim Vasquez/Weather Graphics

O meteorologista norte-americano Tim Vasquez detalha indícios que sugerem que o Airbus atravessou área de forte instabilidade dentro de uma cumulonimbus. A trajetória do avião está mostrada por uma linha preta que atravessa a imagem do satélite Meteosat, de 15 minutos antes do desaparecimento (acima). O núcleo mais ativo da tempestade está representada pelas cores branco cinza e vermelho. Para atravessar a área, o avião precisaria percorrer 150 quilômetros.

“Se tomamos como base as análises dos dias seguintes, vemos fenômenos bem mais poderosos”, afirmou Alain Ratier, diretor-geral adjunto do instituto Embora as condições meteorológicas fossem ruins no momento da passagem do AF447, 15 minutos antes – quando a temperatura da formação superava os -90ºC – eram piores. Logo após a confirmação da desaparecimento do voo, a Air France chegou a cogitar que a queda do avião estaria ligada a uma tempestade elétrica. Nos últimos dias, uma outra hipótese relacionada ao clima vem ganhando força na França: a de que sensores da aeronave essenciais para a navegação tenham congelado durante a tempestade. Não relacionada ao clima, mas também cogitada, há ainda a hipótese de um ataque terrorista e a quebra do leme. (AE)


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