Revista UBC #47

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#47

MERCADO A força crescente dos selos independentes RETROSPECTIVA Em 20 anos, uma revolução digital que mudou tudo E MAIS Jojo Todynho, MC Carol, Davi Moraes, Silva, Beto Guedes, Belchior

FEVEREIRO 2021

ELZA SOARES Uma entrevista com a cantora e compositora, exaltada em textos exclusivos de Chico Buarque e Caetano Veloso


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TOPO DAS PARADAS 1º 04/12/2020 Com R$ 1,7 milhão doado, chega ao fim o Fundo Juntos Pela Música ubc.vc/encerramentofundo

E todas as entrevistas de 2020 em ubc.vc/janelaubcigtv

2° 23/12/2020 Ministério do Turismo bloqueia até R$ 1,2 bilhão de projetos culturais ubc.vc/bloqmintur

3° 05/01/2021 Lei Aldir Blanc: prazo estendido, mas sem garantia de entrega dos recursos ubc.vc/aldirblanc


#47

FEVEREIRO 2021

RE VIS TA

A REVISTA UBC É UMA PUBLICAÇÃO DA UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES, UMA SOCIEDADE SEM FINS LUCRATIVOS QUE TEM COMO OBJETIVOS A DEFESA E A DISTRIBUIÇÃO DOS RENDIMENTOS DE DIREITOS AUTORAIS E O DESENVOLVIMENTO CULTURAL.

Diretor executivo Marcelo Castello Branco Coordenação editorial Vanessa Schütt Projeto gráfico e diagramação Crama design estratégico Editor Alessandro Soler (MTB 26293) Textos Alessandro Soler (São Paulo), Caetano Veloso (Rio de Janeiro), Chico Buarque (Rio de Janeiro), Eduardo Lemos (Londres), Kamille Viola (Rio de Janeiro), Luciano Matos (Salvador), Paula Abreu (Nova York) Capa Rodolfo Magalhães Fotos Imagens cedidas pelos artistas. Créditos nas respectivas páginas, ao longo da edição. Rua do Rosário, 1/13º andar, Centro Rio de Janeiro - RJ, CEP: 20041-003 Tel.: (21) 2223-3233 atendimento@ubc.org.br

por_ Paula Lima

Elza Soares é uma mulher extraordinária e está entre nós! Uma mulher singular colorindo e encorajando o mundo com a sua força, fazendo música e arte atemporais, com sua voz vibrante absolutamente singular.

EDITORIAL

Diretoria Paulo Sérgio Valle (Presidente) Antonio Cicero Erasmo Carlos Geraldo Vianna Manno Goes Marcelo Falcão Paula Lima

A UBC se sente feliz e honrada com a chegada dessa artista magistral à casa, e esta primeira edição da Revista UBC em 2021 com a magnífica Elza Soares na capa é simbólica e já faz história. Com o seu talento excepcional, Elza representa o Brasil e a música brasileira. Uma mulher negra, feminista, empoderada, à frente do seu tempo. A dona da voz cantada, a dona da voz falada! A voz que luta pelo não preconceito em todos os âmbitos. Viveu a pobreza, a fome e o racismo, levantando-se, renascendo e alcançando o digno reconhecimento. Um ícone e um exemplo de superação. Elza foi eleita a voz do milênio pela Rádio BBC de Londres e é o orgulho de uma nação. Em “A Carne Mais Barata do Mercado”, ela dá voz ao sentimento e à realidade de um povo negro e brasileiro, brigando sutilmente, bravamente, por justiça e por respeito... Elza e seus discípulos (sou um deles) entoam a força, a competência, a beleza, a inteligência negra, dizendo: a carne negra era a mais barata, mas já não mais. Elza é ancestral, é história, é a liberdade. É potência e uma existência magnífica. Nós e o mundo agradecemos. A UBC está em festa! E Deus é essa mulher, a mulher do fim do mundo, do mundo e do início de tudo, sempre. Para sempre.


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NOVIDADES NACIONAIS

LÁ FORA: Brasileiros no exterior

34 34 38 DÚVIDA DO ASSOCIADO

28

ARRECADAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO: Lives

20

MERCADO: Selos independentes

18

MERCADO: Retrospectiva - 20 anos digitais

16

CAPA: Elza Soares

12

FIQUE DE OLHO

6

NOTÍCIAS INTERNACIONAIS

5

JOGO RÁPIDO: Jojo Todynho

ÍN DI CE 12

20

1 42

40

38


JOGO RÁPIDO

REVISTA UBC

5

JOJO TODYNHO

Com status de celebridade nacional, a funkeira que canta a realidade de mulher preta da favela anuncia mais parcerias com DJ Batata por_ Alessandro Soler

de_ São Paulo

Jojo Todynho vira milionária. Jojo Todynho se irrita com seguidor machista. Jojo Todynho rebate boato de que está morta. Jojo Todynho posa de maiô. E continua a morar no subúrbio. E compra mansão. E passa o réveillon dormindo... É certeiro: quando uma busca por notícias sobre um artista devolve mais resultados sobre sua vida do que sobre sua arte, está claro que ele virou uma celebridade. Vencedora do reality “A Fazenda”, a funkeira (também conhecida como Jojo Maronttinni) foi catapultada ao estrelato nacional, mas parece alheia aos holofotes: quer continuar a cantar e fazer música sobre sua vida de mulher preta e oriunda da favela — e sobre o que tudo isso significa no Brasil. Nas letras em que assume as rédeas da própria sexualidade e exalta o poder da mulher, ela dá seu recado e atrai uma legião de fãs (são mais de 16 milhões de seguidores em redes). Depois de lançar os hits “Devo Tá Na Moda” e “Dominada”, colaborações com o DJ Batata, ela diz: outras virão por aí. 2020 foi um ano de... Superação 2021 será um ano de... Realização Qual o seu principal projeto musical neste momento? Minhas colaborações com o DJ Batata. Qual foi a coisa mais importante que aprendeu recentemente? A superar meus medos e enfrentar o meu melhor e o meu pior de frente.

VEJA MAIS O clipe de “Dominada” ubc.vc/Dominada


NOVIDADES NACIONAIS 6

por_ Kamille Viola

do_ Rio

MC CAROL:

DAVI E MORAES Em abril de 2020, o Brasil chorou a partida de Moraes Moreira. Mas o ano continuou sendo implacável com Davi Moraes: meses depois, ele perdeu a mãe, Marília Mattos, e a avó, Cândida. Da saudade, nasceu o EP “Todos Nós”, uma homenagem a Moraes, com Davi criança abraçado ao pai na capa — a foto foi feita ao final de um show da turnê “Coisa Acesa” (1982). Produzido por Kassin, o disco tem quatro faixas, sendo três delas inéditas. “É uma explosão de gratidão no meu peito. Eu quero ainda fazer muita coisa com a obra dele, muita coisa bonita tem aí pela frente para fazer, para manter essa chama dessa obra linda viva. Mas [quis] começar com um EP, então procurei tocar com a maior excelência que eu podia, a gente caprichou realmente nas gravações, na sonoridade, eu cantei com uma emoção diferente”, conta Davi.

OUÇA MAIS As quatro faixas do EP ubc.vc/DMoraes

A cantora lançou o clipe de “Levanta Mina”, uma prévia de seu próximo álbum, “Borogodó”, previsto para o primeiro semestre de 2021. O vídeo é uma celebração da pluralidade de belezas de mulheres, sejam cis ou trans, e pessoas que também se identificam com o gênero feminino, como as bigênero. É o primeiro trabalho da MC Carol dentro do projeto internacional YouTube Black Voices, para o qual foi selecionada. “É uma música que fiz para mim mesma. Eu precisava ouvir isso, sabe? As pessoas conhecem a Carol Bandida, que fala putaria nas músicas, mas também sou frágil. Durante toda a minha vida, ouvi pessoas falando coisas horríveis sobre mim. Às vezes, ficava sozinha, triste, queria fugir de tudo. Essa música eu fiz pensando no que gostaria de ouvir, pois sei que alguém agora está precisando também”, diz. “Queria que pessoas que não se veem na TV, nas revistas, como eu, se vissem (refletidas).”

VEJA MAIS O clipe de “Levanta Mina” ubc.vc/CarolMina

foto_ Afroafeto

foto_ Candé Salles

TODAS AS MINAS


REVISTA UBC

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ALINE CALIXTO

X 10

foto_ Flávio Charchar

“10 anos Aline Calixto - Ao vivo em BH” é o DVD e álbum digital lançado pelo LAB 344 que marca a primeira década de carreira da cantora nascida no Rio e criada em Minas. Além de trazer o último registro visual de Beth Carvalho, conta com as participações de mais bambas, como Monarco, Mauricio Tizumba e a Velha Guarda da Portela, entre muitos outros. “Trago canções que permearam a minha vida, como ‘Enfeitiçado’, ‘Oxossi’ e ‘Flor Morena’”, diz ela sobre o trabalho filmado em meados de 2018.

VEJA MAIS Assista às apresentações, faixa a faixa ubc.vc/Aline10

MC CABELINHO,

MC Cabelinho lança o clipe de “Minha Favela”, em parceria com Long Beatz, no canal da Warner. Dirigido por Mateus Alves, o trabalho teve imagens captadas no final do ano passado, dentro do complexo PPG (dos morros Pavão/Pavãozinho e Cantagalo), na Zona Sul do Rio de Janeiro. Nascido e criado no lugar, Cabelinho, autor da letra, aproveitou para visitar lugares e reencontrar amigos — alguns deles, inclusive, participaram do vídeo. Vitor Hugo Nascimento, seu nome verdadeiro, viu sua carreira deslanchar em 2019, quando gravou um feat com Anitta, “Até o Céu”, que ganhou clipe em 2020. Agora, o artista anunciou um novo álbum para 2021, “Little Hair”, que já tem participações já confirmadas de Orochi, Xamã e Felp.

VOLTA AO MORRO

VEJA MAIS O clipe de “Minha Favela” ubc.vc/Cabelinho


NOVIDADES NACIONAIS 8

INTENÇÕES DE

foto_João Arraes

SILVA

OUÇA MAIS As 14 canções de “Cinco” ubc.vc/Silva5

O nome dá a dica: “Cinco” é o quinto álbum de estúdio de inéditas de Silva. O cantor e compositor capixaba conta que fazer esse álbum o ajudou a ocupar a cabeça e o salvou na quarentena. “Sei que fui muito privilegiado por ter isso pra me ocupar e, além de tudo, estar com saúde e poder proporcionar também trabalho à minha equipe. Nunca gastei tanto tempo em um disco, ao todo foram 580 horas no estúdio, algo que provavelmente não seria possível em ‘tempos normais’, já que teria outros compromissos. Então acho que consegui chegar a todas as intenções que queria”, analisa.As 14 faixas são assinadas em parceria com o irmão, Lucas Silva, e três delas têm um terceiro autor, que participa da respectiva música: “Facinho” (com Anitta), “Soprou” (Criolo) e “Quem disse”(João Donato).

O cantor e compositor baiano chega à incrível marca do 107º disco mensal lançado, num projeto sem data para acabar. Em janeiro, ele lançou “Pedrada!”, debruçando-se sobre o hip hop. Das dez faixas, nove são assinadas pelo artista, que também é produtor do álbum, e “O Poder Um Dia Acaba” é uma parceria com Antônio Romero. “Em Nome de Tupã” traz a participação de André Ambujamra, e “O Mundo é de Todo Mundo” conta com Felupz,conterrâneo de Luiz Caldas. Ele foi fiel à tradição do rap de trazer consciência social nas letras e trata de temas como desrespeito aos povos originários, abuso de poder, desigualdade social, corrupção e racismo, entre outros. “A pesquisa histórica para escrever as músicas foi fascinante, e eu OUÇA MAIS As 10 canções mergulhei fundo, amei fazê-la e transformá-la em hip hop”, conta. Em fevereiro, de “Pedrada!” ubc.vc/LCPedrada claro, tem mais: um álbum todo de ijexá.

LUIZ CALDAS,

SEM PARAR

THEO LUSTOSA E

AS SERRAS

O álbum “Serranias”, do sanfoneiro mineiro Theo Lustosa, busca fazer uma união imaginária da Serra Mineira com as serras nordestinas por meio da música. “Sugeri essa conexão porque eu entendo que ela acontece naturalmente na música. Se você pegar na história, a gente tem músicas de Minas em ritmos nordestinos, em baião, por exemplo. Temos isso no Clube da Esquina, no Milton. Não está explícito, mas a base musical está ali”, explica. O destaque fica por conta de “Menino Angola” (de Lustosa e Paulinho Motta), que traz um dueto de Zeca Baleiro e Dominguinhos. A parte do artista pernambucano foi gravada em 2004, mas ficou parada. Com sua morte, em 2013, Theo Lustosa tentou recuperá-la, mas só conseguiu achar os arquivos em 2019.

OUÇA MAIS As 8 faixas do disco ubc.vc/Serra


REVISTA UBC

9

FEVEREIROS

Dois anos depois da estreia nos cinemas, o documentário “Fevereiros”, de Marcio Debelian, ganha edição em DVD. O diretor partiu do desfile da Mangueira de 2016, “Maria Bethânia: A Menina dos Olhos de Oyá”, e seus preparativos para mostrar pontes entre o Rio e a Bahia, desvendando a relação do samba carioca com o samba de roda do Recôncavo e com o candomblé. “Acho que o documentário preserva um Brasil anterior a essas mazelas todas que a gente está vivendo e que é como ‘Adalgisa’ [música de Caymmi]: tá viva lá na Bahia”, diz o diretor. “Quando eu revi o filme, pensei nesse Brasil bonito, forte, que existe em muitos de nós e tem condições de seguir adiante e levar um bastão melhor para as próximas gerações.”

VEJA MAIS Assista ao trailer do documentário ubc.vc/Fevereiros

BETO GUEDES,

ENQUANTO A VACINA NÃO VEM

Desde 2004 sem lançar um álbum de inéditas, o cantor e compositor mineiro Beto Guedes publicou uma música em seu canal do YouTube no último dia de 2020. “Toda Vida Quer Paz” é uma adaptação de “Jesus, Alegria dos Homens”, tema de Bach que ganhou letra de Chico Amaral. “Eu estava com essa música na cabeça, veio não sei como. E pensei no Chiquinho para escrever. Mandei a canção lá pelas três da tarde. Sete da noite estava pronta. Gravei com celular e câmera fotográfica. A ideia foi mandar um presente para Laura Camarani, minha cara-metade”, derrete-se o artista, que pretende lançar um novo disco: “Tenho algumas músicas aqui. Talvez se chame ‘Frugal’. Vamos esperar a vacina, que já está iniciando, as coisas começarem a voltar.”

foto_Livia Bastos

OUTROS

VEJA MAIS O vídeo de “Toda Vida Quer Paz” ubc.vc/BGuedes


NOVIDADES NACIONAIS 10

JOTA.PÊ:

O cantor, compositor e músico Jota.pê lançou o clipe oficial de “Garoa”, faixa-título do EP que ele entregou ano passado, um amálgama de gêneros que o cantor, músico e compositor combina com graça. Tem do afoxé de “Garoa” ao maracatu de “Errata Perfeita”, passando pela MPB de sabor acústico de “Uns Cafuné a Domicílio”. Com participações especiais das cantoras Anna Tréa e Bruna Black, o trabalho contou com produção de Lucas Mayer e um bom time de músicos, que inclui Marcelo Mariano (baixo), Kabê Pinheiro (bateria e percussão), o próprio Jota.pê no violão, Beto Mejia e Nahor Gomes nos sopros e Silvinho Erne nos teclados.

VEJA MAIS O clipe de “Garoa” ubc.vc/JP

JODELE, FAWCETT E

AGNELLI Jodele Larcher, produtor e pioneiro do videoclipe no Brasil, se uniu ao músico e fundador do AD Studio Jarbas Agnelli para abrir uma nova produtora de conteúdos musicais e audiovisuais. Sediada em São Paulo, a Birds on the Wires estreia lançando um novo projeto de Fausto Fawcett, “Favelost” (mesmo nome de um livro que ele lançou em 2012), que reúne nove faixas e ainda a a peça ‘Ó, Coração de Jesus’, derivada de uma partitura de Furio Franceschini, bisavó de Jarbas e responsável pela implantação do órgão da Catedral da Sé, em São Paulo.”É um turbilhão de informação, que navegamos com magia caótica”, define Larcher sobre o projeto.

foto_ SergioFernandes

CHUVA DE GÊNEROS


REVISTA UBC

foto_ Maria Clara Miranda

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MANAS DE

TALENTO

Uma iniciativa que selecionou 12 cantoras e compositoras de Niterói (RJ) para participar de um projeto de aceleração, imersão, profissionalização e criação coletivas dá frutos: saiu o EP “Lugar da Mulher”, com quatro das canções que elas compuseram no processo. O nome do projeto, MANA, significa Mulheres Artistas de Niterói Apresentam e é toda uma declaração de intenções. “As carreiras das cantoras mais bem-sucedidas da indústria brasileira ainda estão majoritariamente nas mãos de homens. Das mais ouvidas em 2017, apenas a Anitta não tinha um empresário homem. Esse movimento de pesquisa e fomento a mulheres é tendência mundial”, diz Flávia Salles, produtora do projeto MANA. “Ficamos extremamente impressionadas com a qualidade artística e a força criativa que brotou a partir da união delas. A próxima edição já está em fase de pré-produção e deve começar ano que vem. Também queremos criar uma grande rede de mulheres artistas para fortalecer o mercado musical.”

Gustavo Galo não tinha planos de lançar um disco em 2020, mas aceitou a chamada do produtor Otávio Carvalho. Isolado por conta da pandemia, não via sentido em renunciar a uma premissa básica. “Faço música, em especial, pelos afetos, pelos encontros. Sempre gostei desse aspecto caloroso e coletivo que uma banda constrói. A maior dificuldade desse disco era essa: como fazer sozinho, somente voz e o violão, algo que dá tanto prazer fazer junto?”, indaga. Repleto de experimentações, feito a partir do seu quarto, esse quarto disco só poderia ganhar um nome, polissêmico: “Quarto”. “Gravar fora do estúdio, incorporar os barulhos da casa e da rua e tocar sem arranjos pré-definidos me trouxeram mais liberdade, inclusive para errar e descobrir OUÇA MAIS As cinco faixas possibilidades novas. Em um ano tão difícil, abrir o quarto ao mundo e fazê-lo de “Quarto” ubc.vc/GGalo crescer foi uma maneira de seguir adiante e muito vivo. Agradeço”, resume.

GUSTAVO GALO,

DO QUARTO

Em 2007, Antônio Carlos Belchior deixou tudo para trás e, acompanhado de sua companheira e produtora, Edna Assunção de Araujo, conhecida como Edna Prometheu, viveu uma vida nômade e longe dos holofotes, numa espécie de autoexílio, até sua morte, em 2017, em Santa Cruz do Sul (RS). No livro “Viver é melhor que sonhar — Os últimos caminhos de Belchior” (Sonora Editora), os jornalistas Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti percorrem mais de dez cidades para tentar desvendar esse período envolto em mistério. “É um livro que pretende mostrar um Belchior heroico e, ao mesmo tempo, humano, com todas as suas complexidades. Porque o ser humano é muito complexo, e o Belchior não era diferente disso”, comenta Fuscaldo. “Ele tem uma simbologia antissistêmica, anticapitalista”, completa Bortoloti, “acho que tudo isso está envolvido nas razões que o levaram a fugir, a sair.”

OS ÚLTIMOS ANOS DE

BELCHIOR


foto_Caroline Bittencourt

LĂ FORA

12

PA RA DAS OUTRAS


REVISTA UBC

13

Artistas e profissionais do mercado musical falam sobre as razões de terem decidido trabalhar — e morar — fora do Brasil por_ Eduardo Lemos

de_ Londres

Na última década, tornou-se comum ouvir falar que um artista ou produtor musical está se mudando do Brasil — em muitos casos, não só para trabalhar, mas também em busca de um outro lar. Dois dos destinos mais recorrentes são Portugal (morada de Marcelo Camelo, Mallu Magalhães e Adriana Calcanhotto) e Estados Unidos (onde vivem nomes como Rodrigo Amarante e Sérgio Mendes, entre muitos outros). Há dois anos, o músico, compositor e produtor Domenico Lancellotti, 49 — conhecido pelo projeto +2 (com Moreno Veloso e Kassin) e por tocar nas bandas de Gal Costa e Gilberto Gil — juntou a família e embarcou para Portugal. “Foi um empreendimento familiar”, conta. “Escolhemos o país porque tem a mesma língua, porque tem um céu azul e porque tinha alguns amigos que poderiam nos ajudar a nos estabelecer.” Colegas dele, como Ricardo Dias Gomes e José Ruivo, também vivem em Lisboa atualmente, formando uma pequena e produtiva cena brasileira na capital portuguesa. “Temos tocado juntos, cada um colaborando com o trabalho do outro.”

Domenico Lancellotti: “O mais interessante de estar na Europa é ter a chance de circular por aí”

Domenico cita a eleição de Jair Bolsonaro e os projetos de desmonte da Cultura como motivos para a mudança. Outra razão é o desejo de se dedicar à carreira autoral. “O mais interessante de estar em Portugal é estar na Europa e ter a chance de circular por aí”, opina ele, que tem disco novo previsto para sair em 2021.


LÁ FORA 14

Um dos integrantes do grupo Rosa Neon, o músico e compositor mineiro Luiz Gabriel Lopes tem uma relação de longa data com Portugal — desde 2010, ao menos uma vez por ano ele vai ao país para realizar shows em cidades portuguesas e também na Europa. “Nos últimos dois anos, acabei ficando mais lá do que no Brasil”, relata. As oportunidades profissionais e as relações de amizade ajudaram o músico a decidir que, em 2021, ele se muda para Lisboa. “O público português é muito atento e interessado. Tem um lance com a língua, com a poesia, uma escuta refinada com as palavras, esse jogo do idioma que é o mesmo e não é ao mesmo tempo, tudo isso me encanta muito.” A experiência de ser um artista fora do país, diz, tem transformado a sua própria visão sobre a riqueza da música brasileira. “Existe espaço para o entendimento da imensa miríade de gêneros e sonoridades que brotam do nosso país como uma das nossas mais avançadas tecnologias, e enxergar isso de uma perspectiva distanciada é inspirador.” Atual diretora de programação do Summerstage, um dos principais festivais de música de Nova York, a produtora brasileira Paula Abreu, 39, deixou o Rio há uma década para fazer mestrado em Performing Arts Administration na New York University. Também trabalhou em organizações culturais como o Lincoln Center e a Red Hot. Persistência e pensamento de longo prazo são, para ela, a receita do sucesso: “Os EUA têm várias vertentes de mercado que podem funcionar para um artista brasileiro, como as comunidades brasileiras, o circuito de casas e clubes independentes ou a rede de universidades e Performing Arts Centers.” No entanto, ela alerta para as barreiras legais (como a necessidade de visto de trabalho) e

A partir do alto: Mallu Magalhães, Marcelo Camelo e Luiz Gabriel Lopes


REVISTA UBC

15

A saga de artistas do Brasil em terras estrangeiras ganhou até um curso, “A História do Sucesso Mundial dos Músicos Brasileiros”, ministrado pelo produtor e jornalista Arnaldo DeSouteiro, 57. Ele testemunhou de perto a carreira internacional de artistas como Luiz Bonfá, João Gilberto, Antonio Carlos Jobim, João Donato e Eumir Deodato, dentre outros. “O que havia em comum entre todos era o desejo de aperfeiçoamento, de crescimento artístico. Esse é o fator motivacional essencial para uma carreira dar certo com solidez”, avisa.

LEIA MAIS Arrecadação no exterior: UBC tem parcerias com sociedades de 130 países ubc.vc/lafora

“Até mesmo gênios como João Gilberto, Luiz Bonfá, Tom Jobim e Luiz Eça aprimoraram seus dons nos períodos em que viveram no exterior. Porque encontraram melhores condições de trabalho e souberam interagir com outras culturas sem perder a brasilidade”, resume DeSouteiro. “Tem que haver um desejo de crescimento artístico, de interação cultural. Ninguém é uma ilha. E é preciso estar atento ao seguinte: há mercado para o meu trabalho no lugar onde quero morar e desenvolver a carreira? Se houver, mande brasa”, estimula o produtor e jornalista, que viu o próprio processo de orientação da sua atuação para o exterior e os de alguns de seus maiores ídolos, que fizeram o mesmo, como ritos de passagem.

EM COMUM, O DESEJO DE APERFEIÇOAMENTO, DE CRESCIMENTO ARTÍSTICO.” Arnaldo DeSouteiro, produtor

PALAVRA DE ESPECIALISTA por_ Paula Abreu

de_ Nova York

Faça uma análise extensiva, pesquise quem é o seu público ou público em potencial e como ele consome música. Avalie quem são os potenciais compradores de shows (festivais, casas, teatros) e parcerias (selos, PR, distribuição). As feiras internacionais são excelentes oportunidades para conhecer compradores e criar relacionamentos internacionais. Costumo dizer que no nosso mercado, o “ativo” mais importante é o relacionamento. Depois dessa pesquisa e análise, faça uma estratégia bem planejada e tenha em mente que colher resultados satisfatórios talvez só aconteça depois de algumas turnês ou trabalhos realizados.

foto_ Leonardo Mascaro

de idioma: “Em geral, é mais fácil para artistas de língua espanhola criarem público.”


NOTÍCIAS INTERNACIONAIS 16

de_ Madri

MÚSICA:

QUEDA DE 75% NA EUROPA O setor musical sofreu um tombo recorde de 75% nas suas receitas ano passado na Europa, por conta da pandemia. O dado é um dos muitos reunidos pela consultoria EY, a pedido do Gesac (Grupo Europeu de Sociedades de Autores e Compositores), num megaestudo divulgado no último dia 26 de janeiro.

LEIA MAIS Outros dados e o estudo completo ubc.vc/Gesac

Na Europa, a cultura responde por 4,4% do PIB — contra 2,64% no Brasil, segundo a Secretaria Especial da Cultura —, cresce mais rápido que os outros setores e emprega 7,6 milhões de pessoas, duas vezes mais que as indústrias automobilística e de telecomunicações somadas. Em 2019, foram € 643 bilhões gerados naquele continente. A queda durante a pandemia foi de € 199 bilhões. Segundo especialistas, a recuperação póspandemia, em todos os continentes, necessariamente passa por maiores investimentos nas indústrias culturais.

SPOTIFY:

VALOR DE MERCADO RECORDE

As ações do Spotify alcançaram em janeiro a maior cotação na Bolsa de Nova York desde que a empresa fez sua OPA (oferta pública de ações) há quase dois anos. A US$ 353,11 por unidade, conferiram à companhia um valor de mercado de coisa de US$ 67 bilhões, três vezes mais do que valia em março, no início do confinamento, o que dá uma ideia do poderio do gigante sueco num mundo de consumo musical irreversivelmente digital. Especialistas aproveitaram a notícia para voltar a pedir melhores pagamentos a quem faz esse lucro acontecer: criadores, músicos, intérpretes e produtores musicais. “Eles deveriam distribuir esse lucro aos artistas”, resumiu o advogado americano Chris Castle, especialista em direitos autorais e no mercado musical.

LEIA MAIS Informação adicional sobre o valor recorde do Spotify ubc.vc/Spotlucro


REVISTA UBC

17

IFPI COMBATE

MANIPULAÇÃO DE STREAMS

A Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI) vem levando a cabo uma série de ações para combater sites de manipulação de streams — basicamente, grupos contraventores dedicados a vender streams artificiais para inflar a posição de artistas nas listas de mais tocadas nas plataformas. Um resultado imediato dessa prática é que músicos e artistas veem seus ganhos no streaming diminuídos, na medida em que têm que dividir os ganhos totais das plataformas com perfis injustamente inflados. Em janeiro, a IFPI conseguiu fechar uma megaplataforma alemã de manipulação, a likeservice24·de. No Brasil, em parceria com a Pro-Música Brasil, foram banidos os sites social10.com.br, paineldecurtidas.com.br, instaautomatico. com.br, curtidasface.com.br, conseguirseguidores.com e instacurtidas.com.br, além de outros seis endereços ligados ao portal turbosocial.com.br.

ubc no mundo UBC E SPA CELEBRAM

CONTRATO DE REPRESENTAÇÃO A UBC fechou um novo acordo com a SPA, a Sociedade Portuguesa de Autores, entidade de gestão coletiva de direitos autorais daquele país. Agora, além de a SPA representar os associados da UBC em Portugal, garantindo a correta arrecadação de direitos autorais pelas músicas tocadas lá — algo que já vinha ocorrendo —, a UBC passa também a representar por aqui os associados da SPA. Assim, o crescente

intercâmbio musical entre os dois países sairá beneficiado.

“A relação com a SPA é muito antiga e importante, agora se estende e aprofunda. A UBC tem a maior parte dos contratos bilaterais em território europeu. Este contrato agrega mais um passo na nossa missão de ser a grande representante do repertório estrangeiro no Brasil. E, neste caso, não se trata de um repertório qualquer: é muito simbólico poder representar a rica produção portuguesa no nosso país”, descreve Peter Strauss, gerente de Internacional e Licenciamento da UBC.


FIQUE DE OLHO 18

do_ Rio

UBC TEM REPRESENTANTE EM

NOVA FERRAMENTA PARA

A capital catarinense, com uma forte e variada produção musical, se soma à lista de outras nove cidades brasileiras com escritórios ou representação da UBC. O músico Maicon Fábio de Oliveira, da dupla Marlon e Maicon, chefiará o escritório, no bairro de Itacorubi. “Tenho a alegria de estar realizando o desejo de trazer uma associação de gestão coletiva para Santa Catarina. Não vou medir esforços para fazer deste projeto um sucesso”, ele diz. Para contatar a nova representação de Florianópolis, escreva para ubcsc@ubc.org.br.

O Portal do Associado ganhará em breve uma nova função, que se soma aos cadastros de obras e fonogramas, retido web, consultas de repertório, demonstrativos e gráficos de pagamento. A ferramenta de liberação de shows automatizará esse processo, permitindo buscar as obras online no sistema, fazer buscas de pedidos de dispensa anteriores, verificar o status de cada protocolo e visualizar a resposta do Ecad. “Ficará mais fácil para o titular, mas os prazos determinados por lei para a comunicação ao Ecad não mudam. A UBC continua a investir em novas funcionalidades para dar autonomia aos associados”, afirma Fábio Geovane, gerente de operações da UBC.

FLORIANÓPOLIS

LEIA MAIS A lista de todos os escritórios regionais da UBC ubc.vc/Onde

LIBERAÇÃO DE SHOWS

LEI ALDIR BLANC É PRORROGADA,

MAS SEM GARANTIAS

Por intensa pressão de representantes do setor cultural — com a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) à frente —, Jair Bolsonaro foi levado a assinar a extensão até dezembro de 2021 do prazo de validade da Lei Aldir Blanc, que prevê a distribuição de R$ 3 bilhões emergenciais para projetos culturais. Ocorre que a medida provisória só beneficia os estados e municípios que empenharam o dinheiro e o inscreveram nos restos a pagar até o final de 2020. Não se sabe ainda quanto da verba será perdida.

LEIA MAIS Outras informações sobre a prorrogação da lei ubc.vc/leiprazo


REVISTA UBC

19

RECORDE DE

UBC É SOCIEDADE

GOVERNO BLOQUEIA

CADASTRO DE OBRAS

MAIS BEM AVALIADA

R$ 1,2 BI DE PROJETOS CULTURAIS

A UBC cadastrou mais de 1,1 milhão de obras em 2020, num enorme empenho da equipe da associação, em teletrabalho por conta da pandemia. Os esforços certamente evitaram que a queda geral na arrecadação não superasse os 4,94% ano passado. A estimativa é de que o valor alcance R$ 885 milhões no total geral do Ecad, com a UBC respondendo por nada menos que 56%, ou R$ 490 milhões.

Nossa associação foi a escolhida como a melhor do gênero no país por metade das empresas participantes de uma ampla pesquisa realizada pela Associação Brasileira da Música Independente (ABMI) e divulgada em dezembro. As outras entidades de gestão coletiva, somadas, também alcançaram 50% das menções. O estudo mostrou ainda a força do mercado independente: das 200 canções brasileiras mais tocadas diariamente no Spotify, 53,52% são independentes.

LEIA MAIS Conheça outros bons números da UBC num ano complicado ubc.vc/2020

LEIA MAIS Outros dados do estudo ubc.vc/RaioXIndependente

Artistas e produtores culturais denunciaram a recusa do governo Bolsonaro de publicar em Diário Oficial mais de 500 projetos culturais que aguardavam, no final de 2020, a captação de R$ 1,2 bilhão em recursos privados. Sem a publicação, não é possível que empresas privadas transfiram o dinheiro aos vencedores de editais e chamadas públicas. Segundo especialistas, o dinheiro perdido não pode ser recuperado, e os artistas deverão participar de novos editais este ano.

LEIA MAIS Outros detalhes sobre o tema ubc.vc/bloqmintur


CAPA 20

“O QUE ME DÁ FORÇA É O FUTURO” Aos 90 anos, Elza Soares mergulha numa fase de (ainda) maior criação, com um propósito claro: deixar um legado de luta contra o racismo e a opressão à mulher por_ Alessandro Soler

de_ São Paulo

fotos_ Rodolfo Magalhães


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CAPA 22

No mais recente disco, “Planeta Fome”, Elza gravou pela primeira vez em sua carreira uma música inteiramente composta por si, “Menino”. Mas não foi, nem de longe, sua primeira composição. Desde os anos 70 ela vem acumulando criações próprias, e seu processo de empoderamento pessoal passa também pelo desejo de gravá-las. Em 2021, Elza é uma das autoras de uma das músicas que concorrem ao samba-enredo do ano da escola de samba carioca Mocidade Independente de Padre Miguel. E avisa: “Tenho outras. Minha cabeça não para.”

Em 23 de junho do ano passado, Elza Soares celebrou, entre carinhos e homenagens, suas nove décadas de vida. No dia seguinte, já estava com a cabeça no centenário — e além. Viver do passado não é com ela. Uma das mais longevas e admiradas artistas da música brasileira, a cantora e compositora que lançou mais de 80 discos, emprestou sua voz a todos os gêneros e ritmos, viveu exilada durante a ditadura, foi casada com um mítico jogador de futebol, perdeu filhos, passou fome, caiu e se reinventou uma e outra vez parece ter assumido uma missão: ser a voz dos excluídos. “Ao longo da minha vida, senti o racismo de todas as maneiras. Fui julgada, tentaram me diminuir, mas não parei para pensar nisso, só fui em frente. Eu não saberia dizer o que seria a Elza Soares se fosse branca. Mas sei o que eu sou: gosto de ir à luta, detesto ficar sentada esperando, eu faço acontecer”, diz a artista, que vem dando um mergulho cada vez mais profundo na denúncia do racismo e do machismo institucionais. Em suas letras, em seus discos, em sua postura pública, o empoderamento do negro e da mulher parecem ter se tornado o grande legado que ela vai construindo. “Se eu não lutar por essas coisas, que são minhas, que falam dos meus sacrifícios, das minhas perdas, quem vai lutar?”

Assumir as rédeas do próprio destino foi uma tarefa exitosa, mas não isenta de dor. Aos 13 anos, seu pai a casou com um homem décadas mais velho. Sofreu violência física e psicológica, além de abusos sexuais. Perdeu dois filhos dele e outro de Garrincha, o ponta-direita com quem manteve uma longa, apaixonada e tumultuosa relação de 17 anos, e que ela já descreveu como “o médico e o monstro ao mesmo tempo”, dada a conhecida alteração de comportamento do craque quando bebia. Viveu os altos e baixos da indústria fonográfica e tocou o fundo do poço profissional algumas vezes, sempre resgatada por amigos e admiradores que enxergavam nela uma força ancestral, um talento inato e a atitude guerreira de quem sempre se levanta após cair. Dois desses amigos ela faz questão de citar nominalmente: “Caetano Veloso e Chico Buarque.” O primeiro a convidou para gravar “Língua” com ele no início da década de 1980, relançando sua carreira num momento em que, com um filho gravemente doente, sem dinheiro para o tratamento e passando dificuldades financeiras, ela decidira abandonar a música. “Ele é alguém muito forte na minha vida”, define a estrela. “Elza Soares é uma das maiores maravilhas que o Brasil já produziu”, ele devolve em texto exclusivo para a Revista UBC (na página 25).


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CAPA 24

‘NUNCA HOUVE NEM HAVERÁ NO MUNDO UMA MULHER COMO ELZA’ por_ Chico Buarque

do_ Rio

Se acaso você chegasse a um bairro residencial de Roma e desse com uma pelada de meninos brasileiros no meio da rua, não teria dúvida: ali morava Elza Soares com Garrincha, mais uma penca de filhos e afilhados trazidos do Rio em 1969. Aplaudida de pé no Teatro Sistina, dias mais tarde Elza alugou um apartamento na cidade e foi ficando, ficando e ficando. Se acaso você chegasse ao Teatro Record em 1968 e fosse apresentado a Elza Soares, ficaria mudo. E ficaria besta quando ela soltasse uma gargalhada e cantasse assim: “Elza desatinou, viu”. Se acaso você chegasse a Londres em 1999 e visse Elza Soares entrar no Royal Albert Hall em cadeira de rodas, não acreditaria que ela pudesse subir ao palco. Subiu e sambou “de maillot apertadíssimo e semi-transparente”, nas palavras de um jornalista português. Se acaso você chegasse ao Canecão em 2002 e visse Elza Soares cantar que a carne mais barata do mercado é a carne negra, ficaria arrepiado. Tanto quanto anos antes, ao ouvi-la em Língua com Caetano. Se acaso você chegasse a uma estação de metrô em Paris e ouvisse alguém às suas costas cantar Elza desatinou, pensaria que estava sonhando. Mas era Elza Soares nos anos 80, apresentando seu jovem manager e os novos olhos cor de esmeralda. Se acaso você chegasse a 1959 e ouvisse no rádio aquela voz cantando “Se acaso você chegasse”, saberia que nunca houve nem haverá no mundo uma mulher como Elza Soares.

Por Chico (também autor de um texto exclusivo sobre Elza, no quadro à esquerda), a gratidão vem de mais longe ainda. Foram ele e sua então mulher, a atriz Marieta Severo, que acolheram Elza e Garrincha em Roma quando a casa do jogador no Rio foi estranhamente metralhada, levando-os ao exílio nos anos 70. Uma ajuda fundamental para a cantora, que terminaria passando dez anos na Itália. Décadas depois, ela gravou com Chico o sucesso “Façamos (Vamos Amar)”, brilhante versão de Carlos Rennó para a original “Let’s Do It (Let’s Fall in Love)”, de Cole Porter, e que terminou sendo outro empurrão num momento-chave para Elza. Ela entraria nos anos 2000 com energia renovada: consagrada por interpretações memoráveis de sambas e standards, passava a flertar com rock, pop, hip hop, cercada de jovens produtores, intérpretes, compositores e músicos. A companhia dos jovens não só a estimula; a mantém viva. Nomes de novas gerações como o compositor, cantor e músico Rômulo Fróes — produtor de “A Mulher do Fim do Mundo”, de 2015, primeiro álbum só de inéditas da carreira de Elza — e Pedro Loureiro, seu empresário, conselheiro e amigo, a marcaram em especial. “É fundamental estar com as pessoas certas, acreditar nos teus parceiros. Tenho orgulho dos meus amigos, tenho orgulho de mim, de quem eu sou, do que eu fiz. Não tenho arrependimentos”, resume a artista que, só nos últimos meses, se associou a dois talentos bem mais jovens em canções que falam sobre racismo e exaltação à negritude: Renegado (em “Negão Negra”, composição dele) e MC Rebecca (em “A Coisa Tá Preta”, escrita por Umberto Tavares e Jefferson Junior).


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‘UMA DAS MAIORES MARAVILHAS QUE O BRASIL JÁ PRODUZIU’ por_ Caetano Veloso

do_ Rio

Elza Soares é uma das maiores maravilhas que o Brasil já produziu. Quando apareceu cantando no rádio, era um espanto de musicalidade. Logo ficaríamos sabendo que ela vinha de uma favela e desenvolvera seu estilo rico desde o âmago da pobreza. Ela cresceu, brilhou, quis sumir, não deixei, ela voltou, seguiu e prova sempre, desde a gravação de “Se acaso você chegasse” até os discos produzidos em São Paulo por jovens atentos, que o Brasil não é mole não. Celebrar os 90 anos e Elza é celebrar a energia luminosa que os tronchos monstros não conseguirão apagar da essência do Brasil.


CAPA 26

Com MC Rebecca: sempre cercada de jovens talentos


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O nome do disco faz referência direta à mítica frase que ela disse a Ary Barroso quando o então apresentador de um programa de calouros da Rádio Tupi, sem saber, fazia história ao receber uma menina de 13 anos oriunda da favela. Vestida com roupas da mãe, meio desalinhada, visivelmente pobre, aquela menina era Elza Soares, que já estava casada, já havia perdido um filho e passava fome. Ao subir ao palco, ouviu dele “De que planeta você vem, minha filha?” e mandou, sem duvidar: “Do mesmo planeta que o senhor, o planeta fome.” Hoje, o que Elza diria a Ary? “Diria a mesma coisa. Continuo a ser desse lugar. Hoje tenho uma carreira, tenho realizações, vivi muitas coisas. Mas a fome, a pobreza e a ausência te marcam para sempre. Não se pode sair desse lugar jamais.”

Seja quando recebe as músicas já feitas por outros, seja no seu crescente mergulho na composição, a estrela não deixa de dar seus “pitacos”, como descreve. “Me meto em tudo, opino sobre arranjos, letra, melodias. Faço questão de que tudo tenha a minha cara, a minha verdade.” Uma assertividade que impressionou Rafael Ramos, do selo Deck, um nome oriundo do rock e que produziu “Planeta Fome”, mais recente álbum de Elza, lançado em 2020. “Fui atrás de gente do país todo, pedi composição para todo mundo. Mas, quando nos encontramos, ela já sabia o que queria”, ele lembrou. Elza parece sempre saber o que quer. A mulher que nasceu na favela, conheceu de perto a pobreza e a dor e viveu uma longa odisseia pessoal marcada por perdas e realizações não titubeia na hora de dizer o que espera da vida: cantar, criar, estar sobre o palco “até o fim”. “O que me dá força é o futuro. Eu quero vencer e quero viver muitas coisas ainda. Meu corpo morreria se eu parasse de cantar.”

OUÇA MAIS Uma playlist com grandes canções eternizadas na voz de Elza Soares ubc.vc/PlayElza

foto_ Denise Ricardo

“A Elza sempre foi uma referência de resistência e luta para o nosso povo e para tudo em que a gente acredita. Quando fiz ‘Negão Negra ‘, rolou a chance de gravar com ela. Houve a fatalidade da morte do George Floyd (pela polícia americana, em maio de 2020) no meio do processo, e pensamos: ‘estamos cansados de morrer em vão’. Meu encontro com a Elza é um grito de chega, uma música sobre autoestima e luta”, define o rapper mineiro, para quem “Elza não é deste tempo. Fico feliz e honrado pela parceria com ela.”

Renegado: ‘Elza sempre foi uma referência de resistência e luta para o nosso povo’


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2021, UMA ODISSEIA Do Napster às lives, uma retrospectiva de como chegamos até aqui por_ Eduardo Lemos

de_ Londres

Os primeiros 20 anos deste século foram intensos para a música, certamente a indústria que primeiro sentiu os efeitos da digitalização do mundo. Parafraseando um meme, foi um ‘vixe’ e, depois, um ‘eita’. Só a mera listagem dos formatos que embalaram canções entre 2001 e este 2021 já é vertiginosa: fita cassete, CD, MP3, mini-disc, CD pirata, DVD, Blu-Ray e… já nenhuma mídia física. Logo no início do novo milênio, o tempo fechou: os solares anos 90, conhecidos como “a década de ouro do mercado fonográfico”, deram lugar a um futuro nublado pela pirataria digital (na livre troca de MP3s que corria solta pelo Napster) e pela pirataria física (no alto número de CDs copiados e vendidos ilegalmente). Eram os primeiros sinais de um terremoto que abalaria a música como a conhecíamos.

Queda nas vendas e tentativas fracassadas de buscar um novo modelo de negócio foram a tônica até 2012, em uma longa e árdua travessia que envolveu disputas judiciais, adaptação a novas tecnologias e muitas, muitas previsões de que o mercado da música estava por um fio. Os ventos começaram a mudar em 2015, e hoje, na troca de guarda do pandêmico 2020 para o vacinado 2021, fala-se em “nova era de ouro” da música gravada, até com previsões de retorno aos números dos anos 90. Nessa odisseia, há pela frente uma crise sanitária sem precedentes e que já golpeou fortemente o outro braço forte da indústria, os shows. Neste momento de incertezas, é importante rever o filme. Como a música chegou até 2021 depois de passar pela maior crise de sua história?

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MERCADO 30

2001 A Apple apresenta o iTunes (que permite downloads legais de músicas pertencentes às grandes gravadoras) e o iPod (onde essas músicas são armazenadas). O Napster começa a bloquear faixas ilegais. No Brasil, nasce a web rádio Usina do Som. Marisa Monte lança registro do disco Memórias, Crônicas e Declarações de Amor apenas em DVD, dispensando a versão em CD.

2002 Nos EUA, o mercado de CDs virgens cresce 40%. O Napster é oficialmente fechado. Nasce o Rhapsody, primeiro serviço de música por assinatura. O músico inglês Robbie Williams assina com a Universal Music o primeiro contrato ‘360’ entre um popstar e uma gravadora. Kazaa triplica o número de usuários. No Brasil, é criada a Associação Brasileira de Música Independente (ABMI).

2003 Apple lança a iTunes Store, que passa a vender faixas avulsas por 0.99 dólares. Nasce o Myspace e o Piratebay. Relatório da IFPI (Federação Internacional da Indústria Fonográfica) coloca o Brasil em 1º lugar no ranking mundial de pirataria de discos. “Generalizou-se no início do século a ideia de que a música (e o cinema e o jornalismo) deve ser de acesso gratuito. A ideia de gratuidade pode parecer bonita e romântica, mas desvaloriza por completo o trabalho dos músicos, dos realizadores ou dos jornalistas.” GONÇALO FROTA, jornalista musical do diário português “Público”

2012 Universal Music Group compra a EMI. Gangnam Style (foto), do sul-coreano Psy, se torna o vídeo mais visto da história no YouTube. A venda global de vinis alcança o seu melhor resultado em 15 anos. Pela primeira vez, o streaming dá mais lucro às gravadoras do que os downloads. “Sempre haverá fãs de música que apreciam a capa, o encarte e todo o acabamento de um disco de vinil. É incrível, mas muita gente que compra vinil nem tem como ouvir em casa, porque não tem toca-discos.” LEO FEIJÓ, pesquisador, produtor cultural e especialista em políticas públicas musicais

2011 iTunes Store chega ao Brasil com preços que variam entre 1,90 e 2,90 reais por música. No Brasil, nasce o Catarse. Pela primeira vez desde 2004, cresce a venda global de discos físicos, graças ao sucesso de Adele e seu disco “21”. Surge a Google Play Music.

2010 É o pior resultado de vendas da indústria desde 1993, quando começaram as medições da Nielsen. As vendas digitais crescem apenas 1%. O vinil alcança seu quarto ano de crescimento consecutivo. Live Nation e Ticketmaster se unem e formam a Live Nation Entertainment.


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2004 É fundado Beatport. A cada 100 discos vendidos no mundo, apenas 2 são digitais. No Brasil, o DVD é responsável por 26% das receitas das gravadoras. América Latina fecha o ano como a região que mais cresce em vendas de discos.

2005 O Arctic Monkeys atinge o 1º lugar nas paradas britânicas utilizando o Myspace para promover a faixa I Bet You Look Good on The Dancefloor. O álbum Jagged Little Pill Acoustic, de Alanis Morissette, é vendido apenas nas unidades da rede Starbucks. O Myspace é vendido para a NewsCorp por US$ 580 milhões. É criado o YouTube.

2006 Myspace ultrapassa o Google e se torna o site mais visitado do mundo. A Tower Records, icônica loja de discos dos EUA, anuncia o fechamento de suas 89 lojas. “O processo de aprendizado da indústria foi lento, porque foi tudo muito novo. De repente, você tem toda uma indústria que está acostumada a empacotar um número de CDs, emitir uma nota fiscal, entregar para a loja e acabou. Isso acabou, e as pessoas tiveram que se adaptar.” MOOGIE CANÁZIO, produtor, engenheiro de som e vice-presidente do Latin Grammy

2009 No Brasil, a fábrica de vinil Polysom é reativada. É lançado o Kickstarter, maior site de crowdfunding dos Estados Unidos. O game Guitar Hero 3 fatura mais de US$ 1 bilhão. Quase 3 mil lojas de discos são fechadas nos EUA entre 2005 e 2009.

2008 O primeiro Record Store Day é realizado nos EUA. O Spotify é lançado na Suécia como alternativa legal e gratuita para escutar música. Apple ultrapassa Walmart e se torna a loja que mais vende música nos EUA. A Associação da Indústria de Gravação de Música dos Estados Unidos (RIAA) anuncia que não processará mais pessoas que baixarem música ilegalmente. Nasce o Bandcamp.

2007 A Atlantic Records se torna a primeira gravadora a contabilizar mais discos vendidos digitalmente do que fisicamente. Paul McCartney deixa a EMI e lança o álbum Memory Almost Full pelo selo musical da Starbucks. O Eagles atinge o topo das paradas americanas com o disco independente Long Road Out of Eden, vendido exclusivamente na rede Walmart. In Rainbows, do Radiohead, sai apenas na internet em um sistema “pague o quanto quiser”. No mundo, mais de 200 milhões de músicas são compradas como ringtones. Soundcloud e Amazon Music são criados.


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2013 Nasce a SIM-SP. A MTV Brasil encerra suas atividades. Surge o Vinyl Me Please, clube de assinaturas de vinil. Beyoncé (foto) lança seu quinto álbum, homônimo, sem comunicar antecipadamente a público e imprensa, inaugurando uma nova estratégia de marketing.

2014 Alegando que os streamings não pagam os artistas de maneira justa, Taylor Swift retira seu catálogo do Spotify. É criado o Noize Record Club, primeiro clube de assinaturas de vinil da América Latina. A Apple compra o disco Songs of Innocence, do U2, e o disponibiliza de graça na biblioteca de todos os assinantes da iTunes Store. A cada 100 discos vendidos no mundo, 49 são digitais.

2015 Nasce o YouTube Music. O Starbucks decide não vender mais CDs. O rapper Jay-Z compra o Tidal, primeira grande plataforma de música liderada por um artista. Pela primeira vez na história, o streaming passa a ser o maior responsável pelos lucros da indústria musical, superando os downloads e os discos físicos. O vinil tem seu melhor ano desde 1988. Nasce a Apple Music.

“Uma pena que a qualidade de áudio dos streamings seja limitada. As gravadoras não quiserem estabelecer um formato de áudio de qualidade.” MOOGIE CANÁZIO

2020 LEIA MAIS No site da UBC, as tendências que devem marcar a música este ano ubc.vc/oquesera

A pandemia do COVID-19 faz shows e festivais serem cancelados. As lives ganham força nas redes sociais. 8 das 10 apresentações virtuais mais assistidas no mundo são protagonizadas por brasileiros. Profissionais da música passam meses sem trabalho. Spotify estreia na Rússia. A campanha Bandcamp Fridays arrecada mais de 200 milhões de dólares a artistas de todo o mundo.


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2016 Artistas como Drake, Beyoncé e Coldplay abrem leilão com as plataformas para lançar álbuns exclusivos. 250 milhões de pessoas assinam um serviço de música no mundo; 112 milhões optam pela versão paga. A América Latina é a região do mundo que mais cresce em novas assinaturas. O cantor Zeeba e o DJ Alok se tornam os primeiros artistas do país a entrar no Top 50 Global do Spotify com o single Hear Me Now.

2017 Taylor Swift volta para os streamings. O Brasil é o segundo país do mundo que mais consome música no YouTube, atrás do México. Na Deezer, a assinatura mensal paga por cada assinante passa a ser revertida aos artistas que ele escutou no mês. Spotify, Apple Music e Amazon Music são os três serviços de assinatura mais usados no planeta.

“Ficou claro que, em vez de ter, o negócio era acessar música.”

2018 A Rolling Stone Brasil anuncia o fim da revista impressa. O hip-hop é o gênero mais popular do mundo, superando o rock. O BTS se torna o primeiro grupo de K-pop a liderar a parada da Billboard dos Estados Unidos. “Podemos ser hoje conhecedores profundos de rock chinês, blues do Mali, pós-rock sulcoreano ou as novas abordagens à cumbia na América do Sul sem ser preciso alguma vez ter posto os pés em qualquer um destes países.” GONÇALO FROTA

LEO FEIJÓ

2019 Pela primeira vez em 4 décadas, as vendas de vinil superam as de CDs nos EUA, e o streaming responde por mais da metade da receita mundial com música gravada. As plataformas de música alcançam 341 milhões de assinaturas pagas.

“Aos poucos, começa um regresso ao passado - o momento em que os singles passam a ser o consumo mais corrente de música.” GONÇALO FROTA

“Hoje em dia, o artista tem a vantagem das redes sociais. Com um pouco de esforço e um custo relativamente aceitável, ele consegue ganhar um ouvinte novo por dia.” MOOGIE CANÁZIO “Para a imensa maioria dos artistas, o desafio é encontrar um modelo sustentável, uma vez que a remuneração por plays nas plataformas de streaming não garante uma receita anual razoável para quem está iniciando a carreira. Além disso, terão que disputar com os algoritmos e música criada por Inteligência Artificial, o que já é uma realidade.” LEO FEIJÓ


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SELOS INDEPENDENTES

RESISTEM E GANHAM TERRENO Em meio a transformações aceleradas no mercado, os pequenos e médios respondem por mais da metade das mais tocadas no Spotify por_ Luciano Matos

de_ Salvador


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Das 200 canções brasileiras mais tocadas em 2019 no Spotify, pouco mais de 53% são de gravadoras independentes, mostrou a pesquisa da ABMI (Associação Brasileira da Música Independente) que divulgamos em dezembro no site da UBC. O mercado musical vive transformações profundas, com uma clara democratização dos atores em cena: ao mesmo tempo em que as grandes majors se recuperam francamente do tombo dos anos 2000, pequenos e médios selos ganham importância sem precedentes. É fato que muitos artistas passaram a trabalhar de forma mais independente ou com seus próprios selos. Parecia que pertencer a alguma gravadora, mesmo que pequena, ia perder sentido. Mas, em tempos de streaming, estar integrado a um selo voltou a ser fundamental?


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Para Carlos Mills, presidente da ABMI e fundador da Mills Records, os selos estão desempenhando um papel cada vez mais decisivo nos dias atuais. “Houve uma transformação intensa no cenário musical, mas o princípio permanece o mesmo: sem uma gestão estruturada e profissional, seja ela própria, independente ou de uma major, é impossível para qualquer artista gerir profissionalmente, desenvolver e consolidar a sua carreira.”

Mesmo a ABMI se mantendo com um número estável de 70 associados ao longo dos últimos anos, Millls acredita que estamos assistindo a uma explosão de selos, no Brasil e no mundo. A razão para isso é a própria natureza do trabalho desenvolvido por eles. “Ajudam a identificar artistas em seus nichos, a desenvolver carreiras, a produzir conteúdo, a distribuir de forma eficiente, a traçar estratégias, a aproximar artistas de marcas, a cuidar da imagem, a criar produtos. Enfim, os selos atuam numa infinidade de ações, são parceiros indispensáveis.”

Mauricio Tagliari, cantor, produtor e um dos proprietários da ybmusic, corrobora. “Claro que alguns artistas podem fazer tudo sozinhos, mas a pergunta não é se ele pode, e sim se deve. Qual a função do artista, afinal? Cuidar de burocracias, imagem, negócios, contratos, direitos, remunerações de terceiros? Ou criar? Há exceções, mas a maioria dos músicos nem sabe e nem quer saber desse emaranhado.”


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Uma mostra de como os selos vêm crescendo no mercado brasileiro é que, paralelamente à ABMI, surgiu um outro grupo reunindo dezenas deles. A Rede Brasileira de Selos Independentes (RBSI) já contabiliza quase 100 iniciativas de Norte a Sul do país. São selos que lançam álbuns de artistas dos mais diversos segmentos musicais, a maioria trabalhando com o rock e seus subgêneros. Alguns têm coisa de cinco lançamentos; outros, anos de estrada e catálogos de mais de 400 álbuns. É o caso da Monstro Discos, ativa desde 1998 em Goiânia. Eles já lançaram mais de 200 títulos, de artistas como Autoramas, Frank Jorge, Júpiter Maçã, Mundo Livre S/A e muitos outros. Em 2020, foram 28 projetos, entre eles o novo LP de Odair José e o álbum de retorno da banda Linguachula, em CD e digital. Para Leo Bigode, fundador e diretor comercial da Monstro, a ideia de ter um selo não é algo simples e fácil. “Acho que, da metade dos anos 2000 para cá, muita gente começou a produzir sozinho em casa, e vários selos deixaram de existir.” O entendimento, por parte do artista, de que vale a pena ter uma estrutura profissional para apoiá-lo na gravação, na distribuição e na relação com as plataformas de streaming estaria contribuindo para virar esse jogo.

Além das obrigações práticas, essa ideia de um selo como uma espécie de referência dentro do mercado é também defendida por Tagliari. “Alguns formam um elenco, um coletivo, uma cena na qual o artista pode querer se inserir. Além da ybmusic, pense num Lab Fantasma, numa Biscoito Fino, para ficar só no Brasil. No mercado anglófono. essa função ainda é muito importante. Sempre foi. Selos como Stax, Verve, Prestige, Bluenote, Ninja Tunes, Sterns e outros sempre fizeram jus ao nome selo. No caso, selo de qualidade.”

MÚLTIPLAS ATIVIDADES PARA GARANTIR A VIABILIDADE Uma das questões mais difíceis de solucionar é como tornar o trabalho rentável. Segundo Bigode, a solução na Monstro foi fazer de tudo um pouco e atacar em várias frentes. Uma é a venda de vinis, um dos trunfos do selo. “Eu diria que a fatia vinil é uma grande parte do nosso faturamento hoje, que segura até a parte do CD”, descreve. A maior parte da receita, no entanto, vem do festival que o grupo promove há mais de 25 anos, o Goiânia Noise. A ybmusic preferiu apostar em ações mais focadas, trabalhando na parte digital, sincronização e branding. “Nunca tentamos o tal 360, que implica se envolver nas receitas de shows, por exemplo. Não é nossa vocação. Agora, na pandemia, as lives passaram a ocupar, em parte, essa função do show, e aí sim pudemos nos envolver, porque temos estúdios e know-how para esse tipo de projeto”, conta Tagliari. Joilson Santos, do baiano Banana Atômica, oferece contratos 360. “Investimos no processo inteiro da produção de um single ou um disco: gravação, produção de clipe, planejamento do lançamento, divulgação, distribuição, também na negociação de shows, produção executiva, enfim, todo este processo é feito com nosso suporte”, diz ele, que lembra: num mercado tão plural e complexo, não há uma fórmula única para o êxito.

LEIA MAIS Todos os dados da pesquisa da ABMI ubc.vc/RaioXIndependente


ARRECADAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO 38

LI VE:

É SHOW OU STREAMING?

Veja como funcionam as regras para esse tipo de transmissão que ganhou força durante a pandemia do_ Rio

Na segunda reportagem sobre os mais populares segmentos de arrecadação e distribuição do Ecad — que começou com Rádio, na última edição —, falamos das lives, modalidade de performance que explodiu durante a pandemia. A grande confusão gira em torno à própria natureza dessas transmissões: ela são shows ou são streaming? Em que categoria entram?

uma empresa tenha pago por aquela live — não vale uma pequena live feita independentemente, já que a aferição desse tipo é muito difícil e, portanto, ainda não há cobrança sistemática; já para que entre algum dinheiro como streaming, é fundamental que essa transmissão permaneça indefinidamente numa plataforma (como o YouTube, por exemplo).

“Sempre que as lives forem patrocinadas, a cobrança será semelhante a um show. Já a mesma live, quando disponibilizada em uma plataforma, seja ela de vídeo ou áudio, passará a ser considerada streaming”, resume Márcio Ferreira, gerente do Departamento de Atendimento da UBC.

Agora, por mais que possam representar alguma compensação à grande paralisia enfrentada pelo mercado de shows e eventos ao vivo, é preciso ter em mente que as lives não são como os shows. “Não podem ser comparadas aos eventos com presença de público”, afirma Ferreira, já que estes últimos rendem valores bem mais substanciais de execução pública. Com o ganho de escala e a crescente profissionalização das lives, talvez algum dia elas venham a representar uma alternativa viável para os titulares de direitos autorais. Não é o caso atualmente.

Ou seja, é possível que o titular das músicas executadas nas lives receba duas vezes por esse uso. Mas somente quando os critérios anteriormente descritos por Ferreira são atendidos. Para receber como show, é preciso que


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LEIA MAIS Shows online substituem as lives e indicam tendĂŞncia de longo prazo ubc.vc/LivesShows No site do Ecad, todos os detalhes sobre a regra das lives patrocinadas ubc.vc/Lives


DÚVIDA DO ASSOCIADO 40

“Quando cadastro um fonograma, cria-se automaticamente outro ISRC, mesmo que o número já tenha sido gerado pela gravadora?” [Buzter - DJ, compositor e produtor

Rio de Janeiro (RJ) ]

REVISTA UBC O cadastro do fonograma é feito pelo produtor fonográfico, neste caso da pergunta, a gravadora. São também eles — produtor fonográfico (pessoa física ou jurídica) ou gravadora — os responsáveis por informar os intérpretes envolvidos no fonograma e os músicos executantes. O intérprete não deve fazer outro cadastro paralelamente ao do produtor fonográfico. Esse cadastro pode ser feito gratuitamente, e online, no Portal do Associado da UBC. Se o produtor fonográfico, por alguma razão, não cadastrar o fonograma, apesar de a responsabilidade ser

dele, e identificarmos retidos, existe a possibilidade de fazer o registro do fonograma, que chamamos de cadastro por rótulo. Neste tipo de cadastro, o campo relativo ao produtor fonográfico fica pendente, mas informa-se o intérprete, a fim de que este possa receber os valores retidos que lhe correspondem. Dessa forma, o intérprete não é prejudicado e pode receber seus direitos conexos, que são os envolvidos neste caso. Para fazer um cadastro por rótulo, entre em contato com a filial que o atende e se informe sobre como proceder.

E VOCÊ, TEM DÚVIDA? Entre em contato pela seção Fale Conosco, do nosso site (ubc.org.br/contato/faleconosco), pelo telefone (21) 2223-3233 ou pela filial mais próxima.


LAN, ETERNO NAS NOSSAS MEMÓRIAS…

O saudoso cartunista e ilustrador, que nos deixou em novembro passado, aos 95 anos, é o autor das 80 caricaturas de gênios da nossa música a decorar a Casa UBC, no Rio.

...E NAS PAREDES DA CASA UBC

Restaurado, o acervo também pode ser apreciado no nosso site, em UBC.ORG.BR/UBC/ CASAUBC.


UBC, A MAIS BEM AVALIADA

Nossa associação foi considerada a melhor sociedade de gestão coletiva de direitos autorais num estudo da Associação Brasileira da Música Independente. Para nós, é uma honra termos sido escolhidos por metade dos importantes players que participaram da Análise de Mercado da Música Independente no Brasil. Agora um desafio nos move: continuar a crescer, mantendo nossa qualidade.

WWW.UBC.ORG.BR


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