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ELZA SOARES

“O QUE ME DÁ FORÇA É O FUTURO”

Aos 90 anos, Elza Soares mergulha numa fase de (ainda) maior criação, com um propósito claro: deixar um legado de luta contra o racismo e a opressão à mulher

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por_ Alessandro Soler | de_ São Paulo | fotos_ Rodolfo Magalhães

Em 23 de junho do ano passado, Elza Soares celebrou, entre carinhos e homenagens, suas nove décadas de vida. No dia seguinte, já estava com a cabeça no centenário — e além. Viver do passado não é com ela. Uma das mais longevas e admiradas artistas da música brasileira, a cantora e compositora que lançou mais de 80 discos, emprestou sua voz a todos os gêneros e ritmos, viveu exilada durante a ditadura, foi casada com um mítico jogador de futebol, perdeu filhos, passou fome, caiu e se reinventou uma e outra vez parece ter assumido uma missão: ser a voz dos excluídos.

No mais recente disco, “Planeta Fome”, Elza gravou pela primeira vez em sua carreira uma música inteiramente composta por si, “Menino”. Mas não foi, nem de longe, sua primeira composição. Desde os anos 70 ela vem acumulando criações próprias, e seu processo de empoderamento pessoal passa também pelo desejo de gravá-las. Em 2021, Elza é uma das autoras de uma das músicas que concorrem ao samba-enredo do ano da escola de samba carioca Mocidade Independente de Padre Miguel. E avisa: “Tenho outras. Minha cabeça não para.”

“Ao longo da minha vida, senti o racismo de todas as maneiras. Fui julgada, tentaram me diminuir, mas não parei para pensar nisso, só fui em frente. Eu não saberia dizer o que seria a Elza Soares se fosse branca. Mas sei o que eu sou: gosto de ir à luta, detesto ficar sentada esperando, eu faço acontecer”, diz a artista, que vem dando um mergulho cada vez mais profundo na denúncia do racismo e do machismo institucionais. Em suas letras, em seus discos, em sua postura pública, o empoderamento do negro e da mulher parecem ter se tornado o grande legado que ela vai construindo. “Se eu não lutar por essas coisas, que são minhas, que falam dos meus sacrifícios, das minhas perdas, quem vai lutar?”

Assumir as rédeas do próprio destino foi uma tarefa exitosa, mas não isenta de dor. Aos 13 anos, seu pai a casou com um homem décadas mais velho. Sofreu violência física e psicológica, além de abusos sexuais. Perdeu dois filhos dele e outro de Garrincha, o ponta-direita com quem manteve uma longa, apaixonada e tumultuosa relação de 17 anos, e que ela já descreveu como “o médico e o monstro ao mesmo tempo”, dada a conhecida alteração de comportamento do craque quando bebia.

Viveu os altos e baixos da indústria fonográfica e tocou o fundo do poço profissional algumas vezes, sempre resgatada por amigos e admiradores que enxergavam nela uma força ancestral, um talento inato e a atitude guerreira de quem sempre se levanta após cair. Dois desses amigos ela faz questão de citar nominalmente: “Caetano Veloso e Chico Buarque.”

O primeiro a convidou para gravar “Língua” com ele no início da década de 1980, relançando sua carreira num momento em que, com um filho gravemente doente, sem dinheiro para o tratamento e passando dificuldades financeiras, ela decidira abandonar a música. “Ele é alguém muito forte na minha vida”, define a estrela. “Elza Soares é uma das maiores maravilhas que o Brasil já produziu”, ele devolve em texto exclusivo para a Revista UBC (na página 25).

‘NUNCA HOUVE NEM HAVERÁ NO MUNDO UMA MULHER COMO ELZA’

por_ Chico Buarque | do_ Rio

Se acaso você chegasse a um bairro residencial de Roma e desse com uma pelada de meninos brasileiros no meio da rua, não teria dúvida: ali morava Elza Soares com Garrincha, mais uma penca de filhos e afilhados trazidos do Rio em 1969. Aplaudida de pé no Teatro Sistina, dias mais tarde Elza alugou um apartamento na cidade e foi ficando, ficando e ficando.

Se acaso você chegasse ao Teatro Record em 1968 e fosse apresentado a Elza Soares, ficaria mudo. E ficaria besta quando ela soltasse uma gargalhada e cantasse assim: “Elza desatinou, viu”.

Se acaso você chegasse a Londres em 1999 e visse Elza Soares entrar no Royal Albert Hall em cadeira de rodas, não acreditaria que ela pudesse subir ao palco. Subiu e sambou “de maillot apertadíssimo e semi-transparente”, nas palavras de um jornalista português.

Se acaso você chegasse ao Canecão em 2002 e visse Elza Soares cantar que a carne mais barata do mercado é a carne negra, ficaria arrepiado. Tanto quanto anos antes, ao ouvi-la em Língua com Caetano.

Se acaso você chegasse a uma estação de metrô em Paris e ouvisse alguém às suas costas cantar Elza desatinou, pensaria que estava sonhando. Mas era Elza Soares nos anos 80, apresentando seu jovem manager e os novos olhos cor de esmeralda.

Se acaso você chegasse a 1959 e ouvisse no rádio aquela voz cantando “Se acaso você chegasse”, saberia que nunca houve nem haverá no mundo uma mulher como Elza Soares.

Por Chico (também autor de um texto exclusivo sobre Elza, no quadro à esquerda), a gratidão vem de mais longe ainda. Foram ele e sua então mulher, a atriz Marieta Severo, que acolheram Elza e Garrincha em Roma quando a casa do jogador no Rio foi estranhamente metralhada, levando-os ao exílio nos anos 70. Uma ajuda fundamental para a cantora, que terminaria passando dez anos na Itália.

Décadas depois, ela gravou com Chico o sucesso “Façamos (Vamos Amar)”, brilhante versão de Carlos Rennó para a original “Let’s Do It (Let’s Fall in Love)”, de Cole Porter, e que terminou sendo outro empurrão num momento-chave para Elza. Ela entraria nos anos 2000 com energia renovada: consagrada por interpretações memoráveis de sambas e standards, passava a flertar com rock, pop, hip hop, cercada de jovens produtores, intérpretes, compositores e músicos. A companhia dos jovens não só a estimula; a mantém viva.

Nomes de novas gerações como o compositor, cantor e músico Rômulo Fróes — produtor de “A Mulher do Fim do Mundo”, de 2015, primeiro álbum só de inéditas da carreira de Elza — e Pedro Loureiro, seu empresário, conselheiro e amigo, a marcaram em especial.

“É fundamental estar com as pessoas certas, acreditar nos teus parceiros. Tenho orgulho dos meus amigos, tenho orgulho de mim, de quem eu sou, do que eu fiz. Não tenho arrependimentos”, resume a artista que, só nos últimos meses, se associou a dois talentos bem mais jovens em canções que falam sobre racismo e exaltação à negritude: Renegado (em “Negão Negra”, composição dele) e MC Rebecca (em “A Coisa Tá Preta”, escrita por Umberto Tavares e Jefferson Junior).

UMA DAS MAIORES MARAVILHAS QUE O BRASIL JÁ PRODUZIU

por_ Caetano Veloso | do_ Rio

Elza Soares é uma das maiores maravilhas que o Brasil já produziu. Quando apareceu cantando no rádio, era um espanto de musicalidade. Logo ficaríamos sabendo que ela vinha de uma favela e desenvolvera seu estilo rico desde o âmago da pobreza.

Ela cresceu, brilhou, quis sumir, não deixei, ela voltou, seguiu e prova sempre, desde a gravação de “Se acaso você chegasse” até os discos produzidos em São Paulo por jovens atentos, que o Brasil não é mole não.

Celebrar os 90 anos e Elza é celebrar a energia luminosa que os tronchos monstros não conseguirão apagar da essência do Brasil.

Com MC Rebecca: sempre cercada de jovens talentos

Com MC Rebecca: sempre cercada de jovens talentos

“A Elza sempre foi uma referência de resistência e luta para o nosso povo e para tudo em que a gente acredita. Quando fiz ‘Negão Negra ‘, rolou a chance de gravar com ela. Houve a fatalidade da morte do George Floyd (pela polícia americana, em maio de 2020) no meio do processo, e pensamos: ‘estamos cansados de morrer em vão’. Meu encontro com a Elza é um grito de chega, uma música sobre autoestima e luta”, define o rapper mineiro, para quem “Elza não é deste tempo. Fico feliz e honrado pela parceria com ela.”

Seja quando recebe as músicas já feitas por outros, seja no seu crescente mergulho na composição, a estrela não deixa de dar seus “pitacos”, como descreve. “Me meto em tudo, opino sobre arranjos, letra, melodias. Faço questão de que tudo tenha a minha cara, a minha verdade.” Uma assertividade que impressionou Rafael Ramos, do selo Deck, um nome oriundo do rock e que produziu “Planeta Fome”, mais recente álbum de Elza, lançado em 2020. “Fui atrás de gente do país todo, pedi composição para todo mundo. Mas, quando nos encontramos, ela já sabia o que queria”, ele lembrou.

O nome do disco faz referência direta à mítica frase que ela disse a Ary Barroso quando o então apresentador de um programa de calouros da Rádio Tupi, sem saber, fazia história ao receber uma menina de 13 anos oriunda da favela. Vestida com roupas da mãe, meio desalinhada, visivelmente pobre, aquela menina era Elza Soares, que já estava casada, já havia perdido um filho e passava fome. Ao subir ao palco, ouviu dele “De que planeta você vem, minha filha?” e mandou, sem duvidar: “Do mesmo planeta que o senhor, o planeta fome.” Hoje, o que Elza diria a Ary? “Diria a mesma coisa. Continuo a ser desse lugar. Hoje tenho uma carreira, tenho realizações, vivi muitas coisas. Mas a fome, a pobreza e a ausência te marcam para sempre. Não se pode sair desse lugar jamais.”

Elza parece sempre saber o que quer. A mulher que nasceu na favela, conheceu de perto a pobreza e a dor e viveu uma longa odisseia pessoal marcada por perdas e realizações não titubeia na hora de dizer o que espera da vida: cantar, criar, estar sobre o palco “até o fim”. “O que me dá força é o futuro. Eu quero vencer e quero viver muitas coisas ainda. Meu corpo morreria se eu parasse de cantar.”

Renegado:

Renegado:

‘Elza sempre foi uma referência de resistência e luta para o nosso povo’

OUÇA MAIS | Uma playlist com grandes canções eternizadas na voz de Elza Soares | ubc.vc/PlayElza