4 minute read

'O QUE DEVO COMEMORAR, DE FATO, É O DESEJO DE CONTINUAR FAZENDO MÚSICA'

UM PAPO COM O MESTRE JOÃO BOSCO, QUE CELEBRA 70 ANOS DE VIDA E MANTÉM INTACTO SEU ÍMPETO CRIATIVO

Por Fabiane Pereira, do Rio

Advertisement

João Bosco passou o último 13 de julho na Suíça, onde, pela oitava vez, foi uma das estrelas da noite brasileira do Festival de Montreux. Mas, no dia em que celebrava seus 70 anos de vida, o mestre mantinha cabeça e coração bem aqui, no Brasil, de onde tira sua inesgotável inspiração e a cuja cultura contribui com suas criações de qualidade superior. Com mais de quatro décadas de uma carreira mais que bem-sucedida, ele revisita sua obra plural enquanto conserva intacto seu ímpeto pelo labor musical.

Mineiro, nascido em Ponte Nova, sexto filho – o primeiro homem após cinco irmãs –, flamenguista e parceiro musical de Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Chico Buarque, Waly Salomão, Aldir Blanc e tantos outros, João viu seu primeiro compacto chegar ao público em 1972, como disco de bolso do jornal “Pasquim”. De um lado, “Agnus Sei” (cocriação sua com Aldir). Do outro, “Águas de Março” (Tom). “Antônio Carlos Jobim era meu padrinho, e as 'Águas de Março' foram minhas águas de batismo”, relembra João, que, desde então, gravou 26 álbuns e enfileirou incontáveis sucessos.

Antes do batismo veio o nascimento. João Bosco teve uma infância forjada a música – em casa, na rua, em qualquer lugar, os acordes, quaisquer que fossem, sempre o atraíram. “Em todos os momentos em que a minha memória está na infância, tem música por perto. A música sempre esteve em torno... Sem tipo específico. Simplesmente, música”, define. Aos 18 anos, saiu de Ponte Nova para cursar engenharia civil em Ouro Preto. E foi na república estudantil que começou a tocar violão “intensamente” e a compor “sem perceber que estava compondo”.

“Acho que sempre tive um pressentimento (de que faria carreira na área). Porque sempre estive perto das pessoas que andavam com a música. Desde cedo eu me lembro de estar com algum amigo e da música que existia nele. Conheci o Vinícius (de Moraes) em 1967, e eu já fazia arranjos para um quarteto vocal em Ouro Preto. Penso que tudo isso era uma espécie de ensaio para o futuro. Quando cursava o último ano de engenharia civil, eu já não tinha dúvidas quanto à minha carreira profissional.”

João procurou Vinícius na pousada em que ele sempre se hospedava em Ouro Preto. E o fez porque tinha certeza de que o Poetinha o receberia de braços abertos. “Vinícius era um cara que escrevia poesias muito parecidas com a pessoa dele. Toda a poética de Vinícius, toda a generosidade que você encontra na poesia de Vinícius, toda a vontade de fazer amigos, de encontrar o amor, estavam nele! Ele era aquilo. Então, eu bati na porta procurando um cara que eu tinha certeza de que me receberia bem”, conta. “Vinicius era o cara! Como o Chico Buarque disse, era o cara que ria com a barriga. Ele ria de verdade, com o corpo todo. Você olhava para ele e sentia que aquele cara sabia de tudo. Tenho muita gratidão por ele. Ele se transformou numa espécie de sonho de consumo daqueles que precisam de amigos. Ele sabia ser um grande amigo”, elogia, saudoso.

Acumulando experiências pessoais, compondo, tocando, testando empiricamente, como se aplicasse à música o método da engenharia, João foi formulando sua técnica ao violão, forjando um estilo próprio e, ainda que sem formação musical acadêmica, tornando-se reconhecido como virtuoso. Aqueles que dedicam tempo à audição de sua obra não só admiram suas canções, mas percebem as sutilezas da execução, os detalhes harmônicos, rítmicos e melódicos, muitas vezes associados à letra e ao arranjo. Aos 70 anos, desfruta a arte com alegria e viaja com notável frequência pelo país, equipado de violão e de um repertório ímpar. Mesmo assim, encontrou um tempo para um papo com a Revista UBC.

Como costuma ser seu processo de composição? Começa a dedilhar o violão, e a melodia vem? Fica com um verso na cabeça por dias seguidos?

No disco “Zona de Fronteira”, com Waly Salomão e Antonio Cícero, fizemos uma música que se chama “Misteriosamente”. Ela diz: “É noite alta e quente, e não vou mais dormir / pois uma canção / insiste em surgir / misteriosamente / proveniente de um caos que não tem fim / e da inquietação / sei que ela faz de mim / seu olho de nascente / gota por gota, cada nota vai brotar / algo gratuito assim que vem só porque quer / sem ninguém chamar / e não quer se esconder / e quando, enfim, se desdobrar / talvez seja por você.”

De onde veio a paixão pelo futebol, que você canta em algumas canções?

Meu pai foi goleiro, e dizem que foi um bom goleiro. Eu e o Aldir, junto com o João Donato, fizemos uma música onde falamos dele: “Nossas Últimas Viagens”, gravada lindamente pelo Dominguinhos em meu songbook. Ele era apaixonado pelo futebol. Era tricolor apaixonado. O rádio ficava rouco lá em casa nos dias de jogos no Maracanã. Por isso o meu time do coração é carioca e se chama Flamengo. Freud, com certeza, explica. Numa das primeiras visitas ao Rio de Janeiro, que eu só conheci em 1968, fui assistir a um show de vários artistas, e tinha o Chico Buarque. Quando ele entrou no palco, cantou um samba seu, “Bom Tempo”, que fala de um dia de domingo e de futebol e do seu Fluminense. Eu pensei comigo que um dia ainda cantaria aquele samba, pois seria uma maneira de estar com o meu pai ouvindo um Fla x Flu no rádio. No DVD “JB 40 anos depois” (de 2012), tive o prazer de cantar com o Chico Buarque esse samba e ouvir aquele rádio em Ponte Nova, mais uma vez.

Um compositor/letrista é, muitas vezes, um grande contador de histórias. E histórias que não precisam, necessariamente, ter sido vividas por você mas sim, de certa maneira, passado por você. Há alguma música que traduza uma grande história que lhe diga respeito?

Eu estava em meu camarim no Teatro Municipal do Rio, no Prêmio da Música Brasileira que, naquele ano, fazia uma homenagem a mim. Estava um pouco tenso, tentando, junto do meu violão, passar por tudo aquilo sem fazer feio, quando adentrou o meu camarim o Zeca Pagodinho. Ele sentiu, com toda sua intuição, o meu clima. E viu que eu não iria poder acompanhá-lo naquela cerveja. Então, começou a cantar: “O dia se renova todo dia / eu envelheço cada dia e cada mês / o mundo passa por mim todos os dias / enquanto eu passo pelo mundo uma vez / a natureza é perfeita / não há quem possa duvidar / a noite é o dia que dorme / o dia é a noite ao despertar...” É um samba do Alvaiade lá dos anos 40. Não é só a música em si, mas o momento especial em que ela surge para você, como se quisesse dizer algo, como quem aconselha. É isso. Já me aconteceu algumas vezes na vida, mas eu me lembrei dessa, agora.

Além da noite no palco de Montreux, tem outros planos para celebrar seus 70 anos?

O que devo comemorar, de fato, é o desejo de continuar fazendo música. Ir ao encontro dela. Desejá-la para poder continuar existindo.