Revista Curinga Ed. 18

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Revista Laboratรณrio | Jornalismo | UFOP

Agosto de 2016 | Ano VI

18


Expediente Curinga é uma publicação da disciplina Laboratório Impresso II. Revista produzida pelos alunos do curso de Jornalismo da Ufop. Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA). Departamento de Ciências Sociais, Jornalismo e Serviço Social (DECSO). Universidade Federal de Ouro Preto.

Professores Responsáveis Frederico Tavares - 11311/MG (Reportagem) Talita Aquino (Planejamento Visual) André Luís Carvalho (Fotografia)

Editora-Geral Lara Cúrcio

Editora de Texto Thaís Medeiros

Editora de Arte Camila Gonçalves

Editor de Fotografia Thiago Barcelos

Editores de Multimídia Mariana Rennó e Fábio Melo

Revisores

Redatores

Ana Rafaela, Clarissa Castro, Moises Mota, Gabriela Santos, Larissa Pinto, Laene Medeiros, Lucas Campos, Mariana Araújo, Rayssa Amaral, Júlia Cabral, Gabriella Pinheiro, Letícia Cristiele

Fotógrafos

Rodrigo Almeida, Lívia Monteiro, Wendell Soares, Francielle Oliveira, Cleo Silva, Anna Flávia Monteiro, Luísa Rodrigues, Caio Aniceto, Brunello Amorim, Igor Capanema, Gabriel Campbell, João Vitor Marcondes

Diagramadores

Ingridy Silva e William Vieira

Eduardo Rodrigues, Carol Rooke, Lorena Lima, Taíssa de Faria, Monique Torquetti, Gabriela Ramos, Silvia Cristina Silvado, Thatyanna Mota, Mariana Macedo Botão, Aleone Higidio, Caroline Hardt, Anna Chaves

Monitores Felipe Augustos Passos e Catarina Barbosa Endereço: Rua do Catete, 166 - Centro 35420-000, Mariana - MG Julho/2016

IMPRESSÃO: MJR EDITORA GRÁFICA Rua Carlos Pinheiro Chagas, 138 - Ressaca CEP: 32.113-460 - Contagem - MG tel: (31) 3357-5777



Editorial Em sua infinitude, o tempo abriga o que é finito. O movimento dos astros interfere desde as estações do ano à maneira como nos comportamos. O anseio humano pela sensação de controle sobre o tempo data de cerca de 600 anos a. C. - com o surgimento do relógio de Sol. A tecnologia avança e molda relações. Cotidianamente somos circundados pela fluidez das realidades, sejam elas percebidas ou imaginadas. E por falar em imaginação, já pensou como seria uma viagem ao passado ou se pudesse conhecer o futuro? A forma como encaramos e nos inserimos no mundo desconstrói ou reforça tabus arraigados na sociedade. O tempo deixa marcas na pele e na memória, mas também pode fazê-las se esvaírem com a idade. À medida que você cresce, percebe que o tempo se torna a grandeza mais cobiçada e mais temida. Tudo é medido por esse fator. Das horas de espera na fila do banco aos minutos preciosos do almoço. Com o passar dos anos, as roupas já não são mais as mesmas, os amigos ganham novos rostos, as comidas, novos sabores. Os sonhos e ambições, novos destinos. A vida, novas pessoas. O jornalismo é pautado pelo tempo. E pela novidade. O fantasma do fechamento está sempre presente nas redações, e na Curinga não é diferente. Prazos precisam ser cumpridos e às vezes é necessário correr para encontrar a fonte ideal ou tirar a foto no instante preciso. O relógio não para, a produção a também não. A 18 edição da Curinga convida, mesmo os mais incrédulos, a perceberem que nada permanece intacto, ileso às engrenagens do tempo. Lara Cúrcio e Thaís Medeiros


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Identidade

Que sexo somos

Falar sobre sexualidade vem se tornando cada vez mais comum. Atualmente a informação é abundante. Materiais explicativos sobre sexo e contato com vídeos pornográficos são muito mais acessíveis que há uma geração. O assunto é discutido mais abertamente nas escolas, na televisão e os pais também estão mais abertos. Em estudo de 2013, realizado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em 13 capitais brasileiras e no Distrito Federal, mais de 40% dos adolescentes revelaram que obtêm informações sobre sexo em casa. Cerca de 2.700 dos quatro mil pais ouvidos na pesquisa confirmaram que já falaram sobre o tema com seus filhos. Apesar desse cenário, o assunto ainda é tabu para muita gente. As sociedades são carregadas de valores que se refletem na educação e na percepção das pessoas, criando constrangimentos para a vivência sexual.


Texto: Rodrigo Almeida Foto: Anna Chaves Arte: Moises Mota

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Aceitação pessoal Somos seres sexuais desde o nascimento. Logo na infância, passamos por fases de descoberta dos órgãos genitais; na adolescência, explosão hormonal e insegurança exagerada; na fase adulta, o amadurecimento e a afirmação tanto da orientação sexual como da forma de lidar com os impulsos sexuais. O jornalista Gláucio Santos, 38, tinha dificuldades de falar sobre sexo dentro de casa durante sua adolescência. “A forma como a sexualidade era tratada nessa época era o que tensionava esse campo para mim. Até hoje ainda existe um desconforto ao tratar do assunto com minha família, algo que não acontece no meu dia a dia.” Gláucio conta que seu processo de amadurecimento foi fundamental para que se aceitasse como homossexual. “Como havia conflito dentro da família e isso sempre me deixava desconfortável, eu buscava refúgio no estudo, por exemplo. Somente depois de adulto, vivendo numa cidade e no trabalho que permitiam que eu vivesse minha sexualidade e pudesse me distanciar desse ambiente familiar, que me senti confiante. A aceitação foi fácil.” A sexóloga Josi Mota diz que, apesar dessa aceitação ser um processo lento, a insegurança continua presente em todas as fases da vida. Para ela, “a boa prática sexual é quando as pessoas se relacionam com um ser humano, vivo, adulto e com consentimento, independente do sexo”.

Tabu social Conversar sobre a sexualidade feminina também é um incômodo no Brasil. Boa parte das mulheres cresce sem ter consciência do corpo. A sexóloga Josi relata que atende várias mulheres que “não conhecem como funciona a vagina delas, mulheres que não aprenderam a explorar o próprio corpo”. A produtora cultural Claudia de Cassia, 49, reafirma a constatação da sexóloga ao dizer que só foi descobrir o orgasmo depois dos 30 anos de idade. “Eu já era mãe, estava divorciada e tinha uma carreira, era uma mulher mais confiante e foi aí que descobri a masturbação. Os valores morais com os quais cresci me impediam de trocar de parceiro toda hora. [Depois do divórico] ter um contato maior com minha sexualidade foi um caminho natural.” A estudante de História Keren Amorin, 18, conta que sempre houve dificuldade para conversar sobre o assunto dentro de casa. “Por minha família ser sexualmente conservadora e religiosa, o assunto surgia do nada e era logo encerrado com um ‘não faça!’. Os homens só querem usá-la.” Em 2016, na pesquisa Mosaico 2.0, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), ficou constatado que 75%

das mulheres ainda perdem a virgindade com um namorado e que elas têm vidas sexuais mais pacatas que a dos homens. Parte disso pode ser pelo fato de as mulheres, muitas vezes, serem protegidas pelas famílias de maneira excessiva. Keren e Claudia fazem parte desse grupo majoritário de mulheres relatado na pequisa. As duas se iniciaram com namorados. Elas acreditam que o sexo não deve estar dissociado do sentimento. Para a estudante, “é fundamental que o sexo seja impulsionado pelo sentimento”. A produtora faz uma crítica mais embasada no sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Segundo ela, “não é legal a flexibilização moral que algumas pessoas têm ao separar o sexo do sentimento. Viver o sexo pelo sexo, para mim, não agrega e nos faz cada vez mais líquidos”.

Sexo e educação A sexóloga Josi acredita que a escola deve ter cuidado ao tratar sobre sexo. Para ela, “deve-se iniciar o assunto, pois assim a escola deixa os casais jovens mais tranquilos para terem essa conversa. Muitas vezes os pais não têm tato para tratar de sexo com os filhos e acabam vendo o problema de uma forma superficial e sem a sensibilidade necessária”. Além disso, há uma distinção cultural na criação de meninos e meninas. Os meninos são educados envoltos por uma casca impenetrável e infalível. Quando o assunto é sexo, falhar não é uma alternativa. Tanto que esse é o maior medo do brasileiro até hoje. A pesquisa Mosaico 2.0 indicou que o grande temor do homem é não conseguir satisfazer a parceria. Ao mesmo tempo, o levantamento do estudo mostra que a percepção feminina de ligar a relação sexual com as relações afetivas vem diminuindo: 57,1% das mulheres disseram que fariam sexo com outra pessoa só por atração. Há uma mudança comportamental em curso na sociedade. As pessoas veem o tema com mais liberdade do que antigamente e as famílias estão mais abertas ao diálogo. Mesmo com esses avanços, ainda há um caminho longo a ser percorrido. Para que haja uma transformação mais significativa a escola deve fomentar o diálogo entre pais e filhos e entre os próprios casais.


Comecei a namorar muito cedo, com 13 anos, e o desejo e a vontade de iniciar sexualmente só apareceram por volta dos 15. Por ser criada numa família conservadora, o diálogo era escasso, surgia do nada, na maioria das vezes, e era logo encerrado. Mesmo assim sempre tive curiosidade. Conversava muito com minhas amigas, éramos um grupo de oito meninas e quase todas namoravam. Nossa vontade existia, mas apenas uma menina iniciou mais cedo, aos 15 anos. Ela não falava sobre o assunto, tinha muito receio do que as pessoas pensariam. Eu também pensava assim! Nessa época, me aventurava em preliminares mais quentes, até cheguei a fazer sexo oral no meu namorado. Quando era a vez dele, eu negava. Sentia medo de me entregar. Eu pensava que, se desse essa liberdade, talvez não conseguiria me segurar. Hoje, mudei de cidade e ainda não tive intimidade para me relacionar com nenhuma outra pessoa. Me sinto mais livre por poder falar sobre o assunto.

Keren Amorim, 18 anos

Eu tinha um olhar diferenciado para os meninos desde os 10 anos. Sempre me foi passado que o sexo era algo pecaminoso, sujo, e deveria ser feito para fins de procriação. Falar sobre isso era tabu. Existia uma tensão muito forte na minha adolescência por minha família ser muito religiosa e ativa na comunidade. Era algo que me incomodava. Namorei meninas mesmo sabendo que gostava de rapazes. Por mais que tentasse esconder, a sexualidade extrapolava os poros e as pessoas ao meu redor percebiam. Aos 22 anos, chegou num ponto em que precisávamos sentar para conversar. Para que houvesse aceitação da minha família e para que eu pudesse resolver o conflito que existia dentro de mim, tive que me afastar um pouco deles. Hoje sou mais resolvido, me reaproximei da minha família, mas ainda há dificuldade em falar sobre o tema.

Gláucio Santos, 38 anos

Na minha época, o homem não se importava com o prazer da mulher. Aos 18 anos, faltava informação, vivia-se o sexo sem ter muita noção daquilo. Não existia a separação entre o sentimento e o sexo por prazer, era uma expressão do que sentíamos. Quando me casei, o sexo tomou um outro contorno. Meu marido era oito anos mais velho. Devido a barreiras morais, existia muita inibição na hora de pedir um toque diferente dele. Aos 30 anos, me divorciei e tive um contato mais profundo com minha sexualidade. Foi aí que descobri a masturbação. Atualmente as pessoas falam mais sobre o assunto e isso é importante. Só não acho legal a flexibilização moral que alguns têm ao separar o sexo do sentimento. Prefiro acreditar que as duas coisas devem estar juntas, é muito mais satisfatório. Hoje em dia, já consigo ter um diálogo mais aberto quando me relaciono com alguém. O sexo, pra mim, é diferente, não tenho mais as necessidades de quando era jovem.

Cláudia de Cássia, 49 anos

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Arte de viver a vida Apesar da idade, seguir sempre em frente e sem medo de errar. Esse é o lema de Elisa e Cecília, senhoras que desejam viver acima de qualquer coisa.

Sensação

Sensação

Texto: Gabriel Campbell Foto: Carol Rooke Arte: Gabriella Pinheiro

Para o psicólogo Marcos Areal, ao falarmos de mulheres que estão hoje com mais de 60 anos não podemos deixar de lado uma contextualização sobre sua infância, adolescência e parte da fase adulta. Essas mulheres viviam uma ditadura tanto na política, com o regime militar, quanto dentro dos núcleos familiares. O costume era ser donas de casa. A princípio servindo o lar, tendo como líder maior o pai, e, depois de casadas, servindo o marido e os filhos. Sendo assim, a sua produção cultural ficava restrita ao ambiente doméstico, sem, na maioria dos casos, a possibilidade de se desvencilhar dessa situação. Ao atingirem a melhor idade, se veem como se tivessem passado pela vida sem ter expressado tudo o que queriam ou todo o potencial que têm para produzir. Produção essa que pode se apresentar em áreas variadas, como acadêmica, artística, laboral, física e intelectual. Dessa forma, quando atingem a maturidade, a busca por esse “tempo perdido” é mais que natural. Já não há mais a opressão do pai, devido a idade avançada ou ao falecimento do patriarca, e também os maridos deixaram de exercer a influência que tinham antes. Sendo assim, as mulheres estão agora livres para exercer seu potencial, interpreta o psicólogo. Para Areal, nem mesmo o sexagésimo aniversário pode atrapalhar essa liberdade. “A maturidade as coloca em uma condição em que o outro não tem mais tanto poder sobre elas, agora estão buscando uma satisfação pessoal ‘self’. Tudo o que podiam fazer pela família eles já fizeram, é chegado o seu momento”, relativiza. Dar valor à vida e ao tempo é o que as mulheres a seguir fazem de melhor. O passar dos anos só contribuiu para serem mais livres e fazerem o que têm vontade. Engana-se quem pensa que o velho é aquela figura pacata e incapaz. Hoje, de acordo com elas, são mais ativas que os próprios jovens. O tempo corre, e essas senhoras não querem perder um só segundo.


A rotina depois dos 60 A professora Elisa Silva, 62, não se considera da geração saúde. Adepta do Tai Chi há três anos, diz que foi pela primeira vez por curiosidade. Pratica o exercício para ajudar na sua psicomotricidade, e comenta que foi somente depois de começar a fazer as aulas que percebeu que realmente não conseguia realizar certos movimentos. “Quando eu venho de lá, fico ótima. É um exercício não racional. Eu anulo quaisquer pensamentos. A cabeça vazia é completamente fantástica”, comenta. A professora revela que consegue dar aula durante oito horas sem se cansar e ter problemas com a voz. Além disso, não se preocupa com as questões físicas da idade. Para ela, o mais importante é a energia, aspecto de sua vida que ela tem de sobra. “Uma verdade que tenho para mim é que não tenho tempo a perder. Hoje, mais do que nunca, eu tenho certeza disso.” Segundo Silvia, a mudança não tem nada a ver com o tempo. “Não existe amadurecimento com o passar dos anos. Você precisa se questionar e estar disposto a mudar. A idade, inclusive, pode servir para a cristalização de maus comportamentos.” Durante a menopausa, confessa ter ficado muito triste devido às baixas de hormônios. “Lembro que foi uma época péssima na minha vida. Pela primeira vez, senti o peso da idade”. Foi depois disso que Elisa pôde perceber que não era mais jovem. “Olhava para minhas pernas e elas já não estavam mais durinhas”. Mesmo assim, ela não se priva de usar um biquíni ou um short mais curto. “Não é uma coisa que me incomoda.” O que mais teme é ficar doente e perder sua energia. Não faz exames regularmente. Nunca foi atenta às questões relacionadas às rotinas de saúde. A única doença que possui é hipertireoidismo, que, de acordo com ela, apareceu sem sintomas.

Eu não tenho muito mais tempo a perder com problemas. Meu tempo é muito menor daqui em diante.

Separada do marido desde 2001, nunca mais teve nenhum outro companheiro fixo vivendo em sua casa. Para ela, com o tipo de vida agitado que leva, hoje seria difícil. “Gosto de ir aonde eu quiser na hora que quiser. Eu adoro morar sozinha. Acho muito bom chegar em casa e não conversar com ninguém.” Hoje não sente tanta vontade de se relacionar sexualmente devido à queda da libido decorrente da diminuição de hormônios da idade. Passou a comer melhor depois dos 40 por se preocupar com sua saúde. Elisa revela que comia muito mal e chegava até mesmo a pular refeições ou trocá-las por comidas pouco nutritivas. “Descobri que não sou imortal nem a dona da razão. Para mim, nem existe razão. Temos que nos cuidar.”

As modelos Lourdinha Mol, 60, (esquerda) e Míriam Gomes Oliveira, 28, (direita), concordam que a aparência pode mudar com os anos, mas o que importa é ter uma mente jovem.

Ela dá para a idade o mérito de não se importar tanto com as coisas. “Essa é a diferença da Elisa de 30 e poucos anos: tudo antes era problema, tudo me estressava e virava uma questão imensa. Hoje relevo muito mais as coisas, sei que tudo vai passar e que não adianta se estressar.” Amante de viagens, Cecília Trópia, 66, diz que sua maior vontade, daqui para frente, é passear cada vez mais. Por ter se casado cedo e ter que cuidar dos filhos, ela diz que nunca pôde viajar por conta própria. Sempre viajou acompanhada dos filhos pequenos e do falecido marido. Cecília sente muitas saudades da época em que jogava vôlei. A atividade teve que ser interrompida porque ela não poderia mais cair, já que as chances da fratura se tornar algo grave eram maiores devido à idade. Foi quando começou a praticar musculação para fortalecer os joelhos. Segundo ela, a opção pela prática foi por causa da perda de cartilagem progressiva durante os anos. “Comecei a fazer musculação depois de sentir algumas dores no joelho. Faço pela saúde, para me fortalecer, para que possa continuar fazendo tudo que eu faço”. O bom de ficar velha é fazer o que você quer fazer na hora desejada. “Os filhos já estão criados e não temos mais a obrigação dos cuidados.” CURINGA | EDIÇÃO 18

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Sensação Sensação

Memória do outro

53 anos de casamento. 16 anos convivendo com o Alzheimer. Na vida de Antônio e Maria Efigênia, o tempo pontua as memórias por meio das lembranças que ele conta da esposa. “A vida com ela sempre foi muito boa. Se não fosse ela, eu não seria o homem que sou hoje. O que eu sou é responsabilidade dela”.


Texto: Wendell Soares Foto: Aleone Higidio Arte: Gabriela Santos A mãe de Edmilson teve eclâmpsia durante o parto e faleceu sete dias após ele nascer. Renato, o segundo “de criação”, chegou com três dias de vida. Já Ana, a terceira filha, ficaria com uma amiga do casal. No entanto, Maria Efigênia a levou para casa, e, quando seu Antônio a viu, decidiu que também a adotaria. “Eu era doido com uma menina. E acho que eu não os escolhi. Foram eles que nos escolheram”. Como trabalhava o dia todo, o casal decidiu contratar uma empregada para ajudá-los. Maria Efigênia era enfermeira numa mineradora da região, onde trabalhou por quatro anos. Depois, ambos passaram juntos em um concurso público e se tornaram funcionários da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). Aposentaram-se no mesmo dia, em 7 de março de 1995. Tiveram outro filho, Rodney, que se afogou em 1983, aos 19 anos. Desta lembrança, seu Antônio se sente desconfortável para falar. Sobre ele, pontuou apenas o que eu sabia: “é o pai de Alice”, a única neta do casal que conheci. Em seguida, desconversa: “quanto às adoções, em mil novecentos e antigamente era bravo, né? Nos perguntavam por que cuidar do filho do outro em vez de ter os nossos. Mas pra mim e Efigênia, não havia diferença“. Com isso, percebo a ironia de quem me deu datas exatas para tudo que disse sobre a família, mas tratou de forma genérica quando disse sobre os outros. E conclui: “nós nunca tivemos problema com isso. Foram crescendo e a gente foi explicando. Pior coisa do mundo é mentira”.

Maria Efigênia da Silva Pinheiro tem 73 anos. Antônio Lourenço Pinheiro, 75. Juntos, a história dos dois remonta 53 anos. O Alzheimer perpassa mais de uma década e meia entre eles, mas é coadjuvante na vida que criaram ao longo de todo esse tempo. Os dois se conheceram numa madrugada de 1961, quando, por insistência de um amigo, ele desistiu de embarcar para tocar na zona boêmia de Ponte Nova e foi a um casamento em Saramenha. Ele nunca soube quem ela conhecia para estar lá. O acaso os uniu quando, ao pegar uma bebida, pediu que ela segurasse o bongô que trazia consigo. “Ela estava na janela. Linda, como sempre foi. E, de propósito, eu me aproximei.” Em 26 de outubro de 1963, casaram-se, e a bebida, que estava presente no primeiro encontro, tornou-se uma memória que ele ressalta ser passado. “Parei de beber em 15 de novembro de 1966. Porque ela pediu”. Maria Efigênia já era enfermeira quando se casou, e, para Antônio, isso nunca foi um problema. Dos amigos, ouviu piadas sobre mulher que trabalha poder “galhar” o homem, mas foi conciso: “eu não sou machista, nunca fui. Eles me perguntavam se eu ia aceitar que ela trabalhasse, e eu dizia que não era dono dela para aceitar nada. A gente estava mais preocupado com a família”. Por família, entendem-se o casal e quatro filhos. “Um filho legítimo e três de criação”, como gosta de enfatizar. O emprego de Maria Efigênia, de alguma forma, fez com que as crianças fossem em maior número que o planejado. Segundo ele, seria apenas um filho, Camilo.

Fotos: Álbum de família

Maria Efigênia no quintal de casa, no bairro Bauxita, em Ouro Preto. A foto foi tirada na década de 1970.

Bilhete de Antônio Lourenço para a esposa no verso de uma fotografia. O recado é de um ano antes do casamento. CURINGA | EDIÇÃO 18 17

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Identidade O cuidado em cinco décadas Segundo Antônio, o cotidiano do casal é o mesmo há deNunca reclamou, não importava o horário. Eu acompanhava zesseis anos. Tornou-se mais intenso nos últimos oito. “Despara ter certeza de que ela estava segura”. de aquele 10 de setembro de 2008, eu aprendi a viver com ela Em certo momento, falo sobre o cuidado dele com ela, de uma forma diferente. Não digo pior, digo diferente.” Nessa quando o vejo pedir um tempo na conversa para ir vê-la. Ele data, Maria Efigênia sofreu uma queda durante o banho e nunretruca: “eu faço o possível. Ela era enfermeira 24 horas por ca mais falou. Os movimentos foram sumindo após a queda, e, dia. Ela, sim, cuidava de todo mundo”. mesmo com vários exames – nenhum detectou qualquer tipo Entre cada confissão, seu Antônio coça o bigode. Quando de alteração na atividade cerebral –, ela também deixou de se pergunto sobre os planos que tinham para a velhice, ele me locomover. “O cérebro é engraçado. interrompe, como se a resposta, engasgada, Parece que o dela entendeu que, sempre estivesse ali. Tosse e me diz: “nós tíEu tenho noção após quebrar o fêmur, não consenhamos um projeto de vida, que era: de que eu sou a memória dela. guiria mais andar. E paralisou uma quando casasse o último filho, nós E eu preservo muito isso. parte do corpo. Não houve AVC”, iríamos passear. O último filho se cateoriza seu Antônio. sou. E a doença me fez, intimamenEle acorda às cinco da manhã, faz o café, ouve o rádio. te, nunca mais na vida programar o dia de amanhã”. Acorda Maria Efigênia às nove para lhe dar os remédios. Tira a Após o relato, o engasgo foi meu. Ele percebe, mas continua esposa da cama e a ajeita no sofá. Por volta do meio-dia, almoa me dizer: “No fundo, no fundo, eu acho que, se ela soubesçam. Às quatro da tarde, seu Antônio ou a filha, Ana Regina, se disso [do Alzheimer], ela não queria viver não. Ela nunca prepara-lhe o banho e, às sete e meia, um talharim. Maria Efidependeu de ninguém”. gênia dorme por volta de nove da noite. Seu Antônio se recolhe Falar em dependência, no caso de Alzheimer, é falar sobrepouco tempo depois. tudo de cuidado. O site da Associação Brasileira de Alzheimer Antes do Alzheimer, Maria Efigênia era descrita como uma (ABRAz) reforça que “o relacionamento com o paciente passa mulher ativa junto à comunidade ouro-pretana. Integrante do a ser um confronto com múltiplas e cumulativas perdas, que Emaús (um movimento missionário da Igreja Católica voltado precisam ser constantemente adaptadas”. O cuidador merepara jovens), estava sempre envolvida com as cerimônias relice atenção até maior que o paciente porque dispensa não só o giosas do bairro Bauxita, onde, na juventude, foi mais do que tempo para outro, como se torna parte de sua memória. É ele enfermeira da Samarco e da Ufop. que, além do cuidado, preserva a lembrança que vai se esvainSeu Antônio explica, quando abre seu primeiro sorriso dudo. Seu Antônio tem consciência disso: “eu tenho noção de que rante toda a entrevista: “no fim dos anos 1970, ela acordava de eu sou a memória dela. E preservo muito isso. Ela não é apenas madrugada para dar injeção em algum vizinho que precisava. a mulher que está aqui hoje, ela é muito mais”.


Maria Efigênia pelo olhar da filha Ana Regina, a caçula do casal, foi a responsável, ao lado do pai, por cuidar da mãe após a doença. “No início ele [o pai] negociava comigo. Para sair, eu precisava ajudar a cuidar dela. Eu era enfermeira da minha mãe. Hoje, percebo que só aproveitei a saúde dela por isso. E agradeço.” A jovem me conta como a mãe tinha um cuidado especial com ela: “eu era a única menina. Então ela ficava horas fazendo tranças no meu cabelo. Me levava ao caratê, judô, à natação, até descobrir o que eu queria”. A mãe adotiva era amiga da mãe biológica, Terezinha, e, durante 20 anos, fez questão de que a filha tivesse contato com a outra mãe. “Nunca consegui chamar a Terezinha de mãe porque quem sempre esteve aqui foi ela, a Maria Efigênia. E tentar me aproximar da outra mãe só aumentou o que eu sinto por essa aqui”, fala enquanto aponta para Efigênia na cama ao lado. Ana Regina possui duas certidões de nascimento porque Maria Efigênia exigiu que ela sempre soubesse que tinha duas mães.

Esse é o meu relógio O primeiro sintoma do Alzheimer, segundo o médico geriatra Thiago Mônaco, é “muito lento e discreto”. Ele se dá pela perda recente de memória e é agravado pelo aparecimento de problemas cognitivos importantes. Foi a ex-nora de Maria Efigênia que percebeu, no início do ano 2000, um comportamento estranho com a sogra, quando, de frente ao sacrário, parecia perdida. Ao saber, Seu Antônio a levou ao médico. “Os exames são caros e feitos por eliminação. Não é coração, não é isso [outra doença], vão fazendo até chegar ao diagnóstico.” O último diagnóstico foi o Alzheimer. Maria Efigênia chegou a saber. Tanto Antônio quanto Ana Regina disseram que, por cerca de oito anos, eles apenas insistiam em ajudá-la em tarefas simples e, mesmo nelas, Maria Efigênia se mostrava relutante. Ana relembra: “ela sempre perguntava o porquê. A gente dava qualquer desculpa. Até o dia em que caiu no banheiro”.

Era 2008 e, duas semanas antes do Natal, a vida da família sofreria uma mudança irreversível. Hoje, oito anos depois da queda, Maria Efigênia não anda, não fala e não reconhece ninguém. A cada dois ou três meses, um médico vai visitá-la e, todos os sábados, o ministro da comunhão lhe dá a eucaristia. “Raros são os parentes que vêm aqui”, confessa seu Antônio sem qualquer ressentimento. Lembra-se do senso de responsabilidade do homem, resgatando o sermão do casamento católico, no qual o padre repete sobre estar junto “na saúde e doença”. Decido terminar o papo, quando ele completa: “é questão de justiça, eu não sou bonzinho. Se eu estivesse no lugar dela, eu estaria sendo mais bem cuidado porque ela é enfermeira. E das boas, como te falei”. Seu Antônio se levanta, me oferece um outro café e, ao chegar ao portão, me pergunta se contou sobre a história que ouviu em um encontro de casais a que foram em meados dos anos 1990. Digo que não porque queria ouvir de novo naquela última conversa. Ele resume: “um casal muito pobre. O homem só tinha um relógio e a mulher, um cabelo longo, bonito. No aniversário de casamento, ele vende o relógio e compra um prendedor caro para ela pôr no cabelo. Em casa, descobre que ela está careca, pois vendeu o cabelo para comprar uma corrente pro relógio”. Eu sorrio para ele. Ele arremata: “o bem mais precioso que tenho para dar à Maria Efigênia é meu cuidado. Antes e agora. Não mudou nada. Esse é o meu relógio”.

É questão de justiça, eu não sou bonzinho. Se eu estivesse no lugar dela, eu estaria sendo mais bem cuidado porque ela é enfermeira. E das boas, como te falei.

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Identidade


Texto: Francielle Oliveira Foto: Mariana Botão e Thatyanna Mota Arte: Larissa Pinto

A fotografia permite que enxerguemos a realidade de um modo diferente. Desperta em nós uma forma de perceber a paisagem e o espaço urbano. Retratos de cidades, pessoas, comportamentos estimulam a imaginação e as interpretações. Captam fragmentos da rotina, como o tempo destinado apenas a se sentar (ou ficar de pé) e esperar o meio de transporte se locomover até o seu destino.

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Nos ônibus e nas ruas, desconhecidos compartilham espaços onde têm de conviver, muitas vezes estando bem próximos, mas raramente existe real interação. Nesse ensaio, imagens sensíveis, objetos e signos representam o passar do tempo, os hábitos, a cultura e as pessoas que por ali transitam.


Habitar

A existência humana é marcada pelo tempo. E provavelmente sempre será.

Compositor de rotinas

Texto: Cleo Silva Foto: Silvia Cristina Silvado Arte: Laene Medeiros

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Durante a história, foram criados vários instrumentos e formas de medir o tempo para garantir a sobrevivência por meio da lavoura, saber as mudanças na estação do ano, ou para se programar. Segundo o astrônomo Marcelo Anjos, membro da Sociedade de Estudos Astronômicos de Ouro Preto (Seaop), os primeiros relógios usados pelo homem foram os gnômons, um tipo de instrumento que, ao ser iluminado pelo Sol ou pela Lua, projetava uma sombra que se deslocava pela superfície, determinando a divisão do tempo. Ele também conta que ainda existem lugares onde as estações do ano são bem definidas, e isso já foi motivo de subsistência da raça humana. Como a Patagônia, na Argentina, onde o aquecimento global ainda não chegou. A ampulheta, ou relógio de areia, como é conhecida, também foi um dos primeiros objetos criados para medir o tempo. Teria sido inventada no século oito por um monge francês chamado Luipraud. Parecia que a areia demorava para passar de um cilindro ao outro, causando a sensação de dias longos e proporcionando em cada pessoa uma experiência, o que também acontece com outros marcadores temporais do cotidiano.

Marcadores pessoais Quando ainda não existia televisão, eram os sinos, que, do alto das igrejas, informavam a população ouropretana sobre os acontecimentos. O sino foi considerado um importante mensageiro e ainda está presente principalmente na religião católica. Simbolicamente, a intensidade e o ritmo das badaladas, além de convidar os fiéis para as celebrações, podem expressar momentos de meditação, alegria, tristeza e respeito, entre outros. A moradora de Ouro Preto Terezinha Vieira não perdia a “reza”. Ouvia o sino tocar e sabia que precisava se arrumar para a missa das 10 horas no domingo. Quando teve seu primeiro relógio, já estava casada: “fizeram o despertador, mas a gente não sabia olhar as horas nele”. Hoje, com 77 anos, ela lembra que, quando jovem, acordava às 4h30 com o cantar do galo, dos pássaros e dos porcos, os quais, segundo ela, faziam muito barulho. Trabalhava em uma fábrica de chá e, durante o dia, orientava-se pelo ângulo de refração do Sol. “Quando o Sol estava bem alto, eu sabia que era mais ou menos dez horas. Quando o Sol virava, já eram 16 horas, então era hora de recolher o chá e voltar pra casa.”

O astrônomo Marcelo Anjos relata que as pessoas mais velhas são observadoras da natureza. Desconhecem na teoria, mas sabem na prática como funciona o tempo. No interior do Brasil, ainda que o passar do dia pudesse ser medido pelos relógios de Sol, de noite e os de água, os horários mais confiáveis ainda são a alvorada, o Sol do meio-dia e o anoitecer. De acordo com a moradora de Barro Branco, distrito de Mariana, Iza Januária, 86, “é mais fácil hoje, que existe relógio, errar as horas, do que na roça quando não tinha. Ninguém tinha relógio, nem rádio, não tinha nada, despertava no peito mesmo”. Muito lúcida, Iza lembra que, quando o tico-tico cantava, ela podia se levantar que era hora de encher as marmitas e ir para o mato cortar lenha e carregar os animais. Entre risos, ela fala que, no canto da coruja, não dava para confiar. “Ela era muito preguiçosa e acordava tarde!” Hoje, Iza tem um Tic Tac na parede da cozinha, mas seu companheiro é o galo Nonô. Ela comenta que o galo só tem um problema: começa a “abrir o bico” às dez horas da noite.

Previsão que acompanha gerações Quando o assunto é medir o tempo por meio dos sinais da natureza, a Folhinha Eclesiástica de Mariana ou “Folhinha de Mariana”, seu nome popular, é tradição na Região dos Inconfidentes, em Minas Gerais. Existente há 145 anos, com uma tiragem anual de cerca de 200 mil exemplares, a publicação, uma grande folha em formato de cartaz, tem sua base no Lunário Perpétuo, almanaque ilustrado de origem medieval, cuja sustentação é o acompanhamento dos movimentos da Lua e como eles interferem no clima da Terra. Gerente da gráfica responsável pela publicação, Jair Duarte tem contato com ela há 22 anos, e confia nas previsões do tradicional anuário. “Corto todo ano a parte da previsão do tempo, colo na minha agenda e vou acompanhando. Posso dizer que a Folhinha tem uma média entre 75 e 80% de acertos.” Jair conta que algumas pessoas ligam para saber as previsões do dia e até as fases da Lua “porque, se cortar o cabelo na lua errada, já era”. Apesar da imprecisão científica e da forma primitiva como nossos antepassados marcavam a existência, a vida em comunhão com a natureza permitiu ao homem compreender e aperfeiçoar as diversas formas de contar e estabelecer o tempo. Talvez, no passado, as pessoas não vivessem em um ritmo tão alucinado como hoje. Depois da Revolução Industrial, a história mudou, nos vimos lançados em um ritmo de vida com relógios, horários e pressa… muita pressa. “A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa. Quando se vê, já são 6 horas: há tempo... Quando se vê, já é 6ª feira... Quando se vê, passaram 60 anos... Agora, é tarde demais para ser reprovado... E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade, eu nem olhava o relógio, seguia sempre, sempre em frente... E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.” Mário Quintana


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Vai e olha o céu

A dança dos satélites, signos e constelações em nossas vidas Texto: Anna Flávia Monteiro e Luísa Rodrigues Foto: Gabriela Ramos Arte: Lucas Campos


A posição da Lua naquela hora representa a energia que você carrega, seu estado de humor. Cada planeta do sistema solar significa algo dentro de nós.

Depois de uma sessão de imprevistos técnicos que deixaram tensa toda uma equipe da Nasa, a sonda Voyager 1 ganhava os ares na manhã de 5 de setembro de 1977, dando os primeiros passos de uma longa viagem. Até hoje, trata-se do objeto lançado que está mais longe de casa, sem previsão de retorno à origem. As sondas Voyager 1 e Voyager 2 foram lançadas para alcançarem os perímetros de Saturno e Júpiter, e depois Urano e Netuno. Em 39 anos de sua jornada, entre os tantos resultados alcançados, o mais grandioso deles foi atingir o espaço interestelar, a zona para além do nosso Sistema. Ainda em 1977, o astrônomo Charles Kowall descobriu o asteroide 2060 Quíron. Essa descoberta, assim como a de alguns planetas, como Urano, Netuno e Plutão, teve relação com eventos mundiais importantes. Quíron foi descoberto em dezembro, mesmo mês em que ocorreu uma reunião entre Anwar Sadat, então presidente do Egito, e Menachem Begin, primeiro-ministro de Israel, para discutir a paz entre os dois países. O resultado do encontro foi o isolamento do Egito em relação aos demais vizinhos árabes e, mais tarde, o assassinato de Sadat. Segundo se acredita, o conflito de egos entre pessoas representaria as projeções enérgicas de Quíron. O movimento dos astros é parte do anseio pelo conhecimento desde muito cedo na história, orientando-nos em tempo e espaço. A astronomia, por exemplo, surgiu com as primeiras civilizações, partindo de estudos simples como observações do céu. Se os devaneios sobre os astros se desenrolassem no cenário da literatura, estariam nas linhas do realismo fantástico, onde brincar com o tempo é a primeira regra para melhor entendê-lo. Na astrologia, os aspectos pessoais de alguém podem ser esclarecidos por meio da relação do ser humano com o cosmos.

A partir dele, interpreta-se o universo interior, existente em nossa vida e jeito de ser. O tempo de cada um começa com o céu.

No princípio era a luz A relação do claro e escuro imposta com a alternância de Lua e Sol construiu comportamentos, como o aproveitamento da luz para atividades diversas e a falta dela para quietude e descanso. Essa forma mais básica de entendimento do tempo foi se aprimorando, unindo o fator contemplativo ao teor matemático, na região da antiga Mesopotâmia, atual localização do Iraque. Os estudos na área da astronomia fizeram toda a diferença na contagem do tempo como temos hoje, como a divisão da hora em 60 minutos compostos por 60 segundos e o conceito de semana. Aos poucos a percepção do tempo é afinada e toma forma, numa tentativa de se entender melhor o mundo. Nas primeiras civilizações, a observação dos astros já crescia com o conceito de previsão inserido em seu âmago, ao passo que ganhava nuances mitológicas. Eclipses, fases da Lua, o deslocamento

dos planetas, cometas e estrelas cadentes. Em todo acontecimento cabia um sentido divino. “Registros históricos sugerem que as pedras de Stonehenge, além de serem usadas para acompanhar o movimento dos astros, eram também associadas a cultos religiosos e à previsão de eventos futuros”, conta o professor de Física Leonardo Gabriel, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais (IFMG), em Ouro Preto. A própria palavra desastre, num primeiro momento, denominava o fato que contrariava os astros. A ideia de constelação foi desenhada relacionando a aparência das linhas com objetos e figuras heroicas. A linha tênue entre os estudos dos astros e a astrologia levou a acreditar, por vezes, que ambas nasceram juntas. O ponto de partida é compartilhado: anseio por orientação. “A astrologia estuda como as posições dos astros interferem na vida das pessoas. É muito importante demarcar que ela não pode ser considerada ciência”, aponta Leonardo. Para o professor, “não ser uma ciência não é necessariamente uma coisa ruim. O sentimento do amor, por exemplo, não é visto a partir de um método científico.”

Segundo o mapa da Curinga, ela teria traços como vaidade, liderança, personalidade explosiva e segurança de si. Confere? Saiba mais na página virtual da Revista.


A valsa

dos astros Foi com os gregos que os apontamentos astronômicos tomaram rumos sofisticados. Em sua cultura, foi concebida a primeira compilação das estrelas e medições mais precisas do percurso de corpos celestes. O catálogo estelar foi elaborado no Almagesto (séc. 2 d.C.), uma obra de arte do acervo científico mundial de valor único para a teoria geocêntrica, em que a Terra estaria no centro do Universo. Sua autoria é de Cláudio Ptolomeu, cientista grego que frequentemente mesclava tons de ciência e misticismo numa coisa só. Era apaixonado pelos céus e chegou a afirmar que ao seguir, a seu bel prazer, rumo à densa multidão das estrelas, os pés deixavam de tocar a Terra. Perdido na grandeza teatral do Universo, bem como as sondas do Voyager. A teoria geocêntrica foi aceita e repercutida durante 14 séculos, até ser completamente refutada pelas teorias de Copérnico (séc. 16) e Galileu (séc. 17).

Em 2012, a sonda Voyager I adentrou o espaço interestelar, até então nunca visitado. Sua sondairmã tem como expectativa alcançar a mesma zona desconhecida para enriquecer as pesquisas. Estimase que os sinais continuarão a se comunicar com a base da Nasa até meados de 2030, quando o contato provavelmente estará perdido. Uma questão de sorte ou de tempo? Uma porção de cada, quem sabe. Buscamos incessantemente compreender do que fazemos parte, da maneira mais competente que nossos recursos conseguem atender. O que pode acontecer em cem anos? Quantas são as formas de estar vivo? Em quantos mundos? Estamos sozinhos? Como o tempo nos rege? A curiosidade, ingrediente principal da imaginação, estimula diretamente nossos questionamentos enquanto espécie e sujeito. Em fevereiro de 2015, a Voyager 1 marcava a distância de 19,5 bilhões de km da Terra, de onde era senão um “pálido ponto azul”, como definiu o célebre cientista Carl Sagan na época. Quem é o homem na colcha de retalhos do Universo?

Equipamentos que suportam esse tipo de viagem, brutal em duração, distância e condições, tiveram uma longa linhagem de desenvolvimento tecnológico, partindo de linguagens simples como a da luneta. Saltando no tempo conforme os estudos seguiam com expectativas e alguns prejuízos, Galileu foi um dos pioneiros a se aventurar na contemplação do céu noturno por meio de um dispositivo óptico.

Com a engenharia refinada que originou o telescópio, Galileu pôde ver as irregulares crateras da Lua, os numerosos satélites de Júpiter, as manchas solares e as fases de Vênus. O telescópio veio a se popularizar ainda mais através de Isaac Newton, também no século 17, a cabeça por trás da Lei da Gravitação Universal. Nela, está descrita a teoria mecânica celeste: todo corpo se atrai. Segue a dança de todas as coisas, harmoniosa e orquestrando com grandezas.


Entender o movimento dos astros é percorrer o entendimento do homem entre uma infinita sequência de possibilidades. “Existem estrelas que, se colocadas no lugar do Sol, iriam quase até a órbita de Saturno”, conta o estudante de Estatística Bruno Fernandes, integrante do projeto “O Céu ao Alcance de Todos”, do IFMG de Ouro Preto. Curioso pelo espaço desde criança, Bruno idealiza que “seria incrível que, como pessoas, crescêssemos à medida que observamos a maravilhosa máquina do Universo”.

Touro com ascendente em câncer Todo planeta do Sistema Solar representa algo dentro de nós. Em cada mapa astral, o Sol, que é o centro do Sistema Solar, representa quem nós somos, ou seja, nosso signo. Aquela constelação que aparece ao leste do mapa é o seu ascendente. É ele que vai mostrar sua atitude diante da vida e das pessoas. A posição da Lua naquela hora vai representar a energia que você carrega, seu estado de humor. Uma “fotografia” do céu no momento do nascimento não basta. É preciso uma gama de cálculos matemáticos para se chegar a quem a pessoa é e estará propensa a ser daqui para frente. Pode-se dizer que, apesar de trabalhar com interpretações simbólicas, é com régua, compasso e bastante história que cada um de nós consegue saber quais astros nos influenciam durante todo o nosso tempo na Terra. A astróloga Thaíse Rodrigues explica que a astrologia tem relação direta com o tempo, porém, sempre voltada para a pessoa. Um exemplo, segundo ela, é o da Progressão. “Dá para ver a tendência da vida de uma pessoa. Desde bebê, adolescente, jovem, adulto, velho”, esclarece. Como afirma Thaíse, essa área de estudos ajuda a lidar melhor com dificuldades e a aceitá-las, uma vez que ela é muito mais usada, na prática, como autoconhecimento. Com um mapa astral, pode-se fazer um estudo mais elaborado sobre si mesmo. Existem clientes que fazem mapas, levam até o psicólogo e discutem aquilo que foi revelado durante a consulta com o astrólogo. Durante a análise, o paciente reflete sobre metas, posturas e disciplinas. É possível perceber o quanto a ligação da astrologia com a psicologia é

forte. O psicólogo Luiz Duarte afirma que estudos mais sistemáticos sobre o assunto, como os do psiquiatra e psicólogo Jung, comprovam a existência de uma sincronicidade entre a vida humana e o posicionamento dos astros. “Como a astrologia é representada por meio de símbolos e mitologias, assim como a nossa vida intrapsíquica, a leitura de mapas astrológicos torna visível essa relação, desnudando aspectos da personalidade da pessoa”. Luiz explica que essa sincronicidade permite leituras do funcionamento inconsciente do indivíduo. Por trabalhar com símbolos, a interpretação dos astros costuma não ser muito bem recebida por algumas pessoas. “Para grande parte dos psicólogos, a astrologia é vista como perda de tempo, como se a pessoa quisesse enganar-se para achar respostas prontas e se desresponsabilizar da própria vida, dizendo que tudo é culpa do destino”, afirma Luiz. Como conta a jornalista Cláudia Rocha, libriana e paulista, existe bullying entre os signos. “Tem gente que realmente deixa de conhecer alguém legal por causa do signo e faz todo o mapa astral da pessoa antes de três encontros. Além disso, culpa os signos pelas atitudes dela.” Ela ainda completa que algumas características podem ser relacionadas a cada signo, porém todo ser humano é único, e, por isso, seu mapa astral não deve ser feito a esmo, pois é um assunto sério. “Hoje em dia, as pessoas levam a sério até demais, comprometendo a sanidade e a convivência social, fechando-se em mundinhos em que apenas existem os signos ‘aceitáveis’ por elas.”


Odisseia do espaço Os mistérios que envolvem os astros tornaram-se, para além de área de estudos, um fascínio particular. David Bowie, efervescente figura do cenário musical e artístico, compôs uma série de músicas que reverberavam as curiosidades espaciais. Por meio de personas singulares como Ziggy Stardust, um rock star que se comunicava com o espaço, ou de Major Tom, um astronauta fictício que deixa a Terra para viajar pelas estrelas e que se perde no desconhecido, Bowie lê o universo e traduz em música. Após o acidente, diante da grandiosidade da imensidão, Major Tom conclui que “o planeta é azul e não há nada que eu possa fazer”. Tão maravilhado quanto uma criança observando o céu. Hoje, como um gesto da comunidade científica em homenagem a seu legado, movimenta-se entre Júpiter e Marte o asteroide David Bowie, assim batizado logo após a morte do astro musical em janeiro de 2016. A pedra espacial de número 342843 segue, como nossas próprias indagações, dançando no espaço.

Antes de tomar o desconhecido espacial como Major Tom, o Programa Voyager está em sua terceira fase, a exploração interestelar. Nas estruturas físicas das sondas, uma carga simbólica: um disco fonográfico em puro ouro, com instruções de uso e a simples mensagem: “para criadores de música de todos os mundos e todos os tempos” (“For music makers of all worlds and all times”, no original em inglês). O disco contém uma hora e meia de sons e imagens da Terra. Uma verdadeira cápsula do tempo que guarda uma voz das nossas cultura e vida, uma sutil demonstração de como sentimos e o quanto, assim como a nossa expressão e entendimento da ideia de tempo. Entre os sons, cumprimentos em 55 línguas diferentes, Bach e Chuck Berry. “A Astronomia nos ajuda a ter mais humildade e sensibilidade para lidar com os outros, para cuidar melhor de nosso planeta”, reflete o professor Leonardo, pensando a nossa mais antiga característica: a curiosidade. “Penso que enviar esse disco com nossas informações foi um gesto de humildade.”

Em algum lugar do oceano de astros, transita nossa identidade. A mensagem? Passamos aqui, deixe recado após o sinal.


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Sensação

Jornada atr Buracos de minhoca, paradoxos e universos paralelos. Na física quântica, ciência e ficção se cruzam o tempo todo .

Texto: Caio aniceto Foto: Monique Torquetti e Taíssa Arte: Mariana Araújo

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Os seres humanos vivem no presente, sem acesso ao passado e se movendo inevitavelmente em direção ao futuro. Para a maioria das pessoas, o tempo é algo fixo – e imutável. O relógio parece mover-se em uma única direção. De acordo com o cientista Isaac Newton, o tempo seria absoluto independentemente de qualquer observador e progrediria a um ritmo consistente em todo o universo. Newton acreditava que o tempo era imperceptível e só poderia ser entendido matematicamente. Para o cientista, os seres humanos só seriam capazes de perceber o tempo relativo, que é uma medida de objetos perceptíveis em movimento (como a Lua ou Sol). A partir desses movimentos, seria possível perceber a passagem do tempo. Os conceitos de espaço e tempo eram separados antes do advento da Teoria da Relatividade especial, que ligava os dois e demonstrou que ambos são dependentes do estado de movimento do observador. Nas teorias do físico Albert Einstein, as ideias de tempo e espaço absolutos foram substituídas pela noção de espaço-tempo. Em fevereiro de 2016, as ondas gravitacionais previstas pela relatividade geral de Einstein foram finalmente detectadas por cientistas do Instituto de Tecnologia da Califórnia, confirmando uma previsão feita há quase 100 anos. Mais do que nunca, sabemos que o tempo é, na realidade, maleável. Algumas teorias e modelos em Física, incluindo a teoria das cordas e algumas interpretações da mecânica quântica atuais, sugerem que nosso universo pode ser apenas um entre incontáveis outros. A Interpretação de Muitos Mundos (IMM) da mecânica quântica, em particular, apoia a ideia de que todos os possíveis resultados de eventos aleatórios (e decisões) podem ocorrer em universos separados.


vés do tempo Turistas do tempo A ideia de retornar ao passado ou visitar o futuro não surge do meio científico. São diversas as lendas e mitologias que citam essa possibilidade, demonstrando que a vontade de viajar no tempo acompanha a humanidade desde seus primórdios. Teoricamente, a viagem no tempo poderia ser feita por meio de três métodos: ao alcançar uma velocidade maior do que a da luz, com a utilização de cordas cósmicas ou ao atravessar os chamados buracos de minhoca. “O buraco de minhoca é uma ‘falha’ na continuidade do universo. Sua nave pode estar na mesma velocidade e você, de repente, estar em um lugar muito distante do espaço”, explica a graduanda em Física da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) Vitória Ballesteros. “Imagine um pano sobre duas mesas. Agora imagine que você quer ir de um ponto A, na extremidade de uma mesa, até um ponto B, na extremidade da outra mesa. Você percorreria uma distância grande, certo? Agora imagine que os pontos estão fixos sobre a toalha, mas que as mesas se separam e parte do tecido desce. Os pontos A e B estarão agora mais ‘próximos’ e sua distância percorrida será menor porque você não terá que atravessar todo o pano”, esclarece. Uma das principais objeções à ideia de que a viagem no tempo seria possível é o fato evidente de não termos sido visitados por turistas do futuro. Se a viagem ao passado fosse possível, é improvável que essa tecnologia jamais fosse usada. Talvez a humanidade tenha morrido antes de inventá-la, por exemplo. Outra hipótese formulada por cientistas é de que, ao mover-se no espaço-tempo, o turista não voltaria de fato ao seu mundo de origem, mas a uma cópia dele. Ou seja, a viagem no tempo em si cria novos universos e ramificações da mesma forma que as outras decisões fariam, causando os chamados “paradoxos”. “Imagine que você é neto de Hitler e quer voltar no tempo e matar seu avô. Se você conseguir, seu avô não fará o seu pai e você não existirá. Mas, se você não existir, como vai matar seu avô?”, questiona Vitória. “Uma explicação para esse paradoxo seria que, quando você altera a realidade dessa forma, o mundo em que você está acostumado a viver vai mudar completamente para uma versão sem você e você passa a existir nessa nova realidade onde seu avô está morto. Isso criaria uma realidade paralela, um outro ‘mundo’”, esclarece a estudante. Em escala incomparavelmente menor, viajar (sem volta) ao futuro é um fenômeno comprovado pela física relativística, mas percorrer qualquer “distância” significativa requer uma velocidade próxima da luz, o que não seria viável com a tecnologia atual. CURINGA | EDIÇÃO 18 17

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Especulando sobre as consequências que poderiam ser acarretadas pelo retorno ao passado ou ida ao futuro, pesquisadores propõem hipóteses denominadas “paradoxos” – contradições lógicas associadas à ideia de viagem no tempo. Veja abaixo um resumo dos mais utilizados e citados pela ficção:

Paradoxo dos Gêmeos: dois gêmeos hipotéticos, um deles fica em casa, na Terra, enquanto o outro viaja ao espaço em um foguete ultrarrápido. Quando os gêmeos se reúnem, o gêmeo que viajou está mais novo que seu irmão.

Paradoxo da Predestinação: ocorre quando as ações de um viajante do tempo causam o evento que ele estava tentando evitar, criando um loop de causalidade. Ocorre no filme “A Máquina do Tempo”.

Paradoxo de Polchinski: uma bola de bilhar entra por um buraco de minhoca e sai no passado, a tempo de colidir consigo mesma e impedir que ela entre no portal. Ocorre de forma semelhante no filme “Interestelar”.

Paradoxo Ontológico: quando um item, pessoa ou informação é mandado de volta ao tempo, criando um loop infinito em que não há origem discernível para o objeto. Acontece na série “O Exterminador do Futuro”.

Gato de Schrödinger: um gato é colocado numa caixa lacrada junto com um frasco de veneno. Enquanto a caixa não for aberta, é impossível saber o estado do animal – então, de acordo com a Física Quântica, ele estaria vivo e morto ao mesmo tempo. A provocação foi sugerida pelo físico Erwin Schrödinger para discutir a observação de feixes de elétrons.


Sociedade alternativa vida. O conceito de viagem no tempo através de meios tecnológicos foi popularizado pela primeira vez no romance de H. G. Wells, “A Máquina do Tempo” (1895). Em geral, as narrativas de viagem no tempo estão focadas nas consequências de viajar para o passado ou futuro. A premissa central para as jornadas no tempo envolve, muitas vezes, a alteração da História, intencionalmente ou por acidente, e como ela cria um presente alternativo para o viajante quando ele retorna ao seu tempo. Algumas narrativas focam apenas nos paradoxos , consequências e cronogramas paralelos causados pela modificação do tempo, sem demonstrar a viagem em si. Essas histórias, muitas vezes, fornecem algum tipo de comentário social, permitindo que a ficção científica aborde questões contemporâneas de forma simbólica e metafórica. A ficção há muito empresta uma ideia de “outro mundo” de mitos e lendas. Céu, Inferno, Olimpo e Valhalla, o mundo dos heróis nórdicos, são todos “universos alternativos”, diferentes da dimensão material. O conceito de universos distintos também se coloca no quadro da mecânica quântica, como encontrado em “O Jardim de caminhos que se bifurcam”, conto de Jorge Luis Borges publicado anteriormente à hipótese do multiverso. Na história, o tempo é um labirinto e as coisas acontecem paralelamente, de formas infinitamente ramificadas. Há muitos exemplos em que os autores criaram explicitamente dimensões espaciais adicionais para suas personagens transitarem, viajando a universos paralelos. No seriado Doctor Who (no ar desde 1963), o protagonista é capaz de viajar pelo espaço-tempo. Douglas Adams, no último livro da série “O Guia do Mochileiro das Galáxias” (2009), usa a ideia de probabilidade como um eixo adicional para as dimensões, semelhante à descrita pela Interpretação de Muitos Mundos. Na maioria desses casos, as dimensões podem ser visitadas com o uso de máquinas e aparelhos. Uma descrição notável de um universo paralelo em filmes está em “De Volta para o Futuro II”, que mostra um presente alternativo criado acidentalmente. Outro exemplo está no longa “Donnie Darko”, que lida com o que chama de um “universo tangente” que irrompe do nosso próprio universo. Os atuais filmes de “Star Trek” se passam em um universo alternativo criado por um vilão que volta no tempo, permitindo que a franquia seja refeita sem afetar a continuidade de qualquer outro produto da saga. Em sua obra “Uma Breve História do Tempo” (1988), Stephen Hawking afirma que o passado, assim como o futuro, é indefinido e existe apenas como um espectro de possibilidades. Viagem no tempo, buracos de minhoca, múltiplos universos – conceitos estranhos, que aparentam ter saído diretamente da ficção. Mas, nesse caso, a arte pode estar imitando a vida.

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Sensação

Subjetividade das horas A percepção do tempo no dia a dia varia para cada pessoa.

São 45 minutos da segunda etapa de uma partida de futebol. O time vence pela vantagem de um gol e a vitória é suficiente para conquistar o campeonato. O juiz assinala quatro minutos de acréscimo. Para o torcedor do time quase campeão, cada minuto parece durar uma hora. A torcida do time perdedor vê passar cada minuto como se fosse um segundo. A depender da situação e do estado emocional, o ser humano percebe a passagem das horas de uma maneira diferente. Esse é só um exemplo de como o cérebro humano reage a estímulos que, agradáveis ou desagradáveis, têm o poder de influenciar na percepção subjetiva temporal. Para entender a relação entre o tempo humano e o do relógio, a neurociência define um como cronológico e outro como psicológico. Gabriela Souza, neurocientista e coordenadora do Laboratório de Psicofisiologia da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), explica que o tempo cronológico é aquele medido por meio dos relógios e dos calendários. Enquanto o psicológico é a sensação subjetiva da passagem do tempo interpretada por cada sujeito. O modo como percebemos o tempo passar também pode ser influenciado pela prática de atividades, como a meditação ou o uso de substâncias. Uma delas é a cannabis sativa – a maconha. A. L., 23, usa maconha desde os 17. Ele reconhece a alteração na percepção do tempo quando recorre à substância. Contudo, segundo ele, a maneira como reage é variável. “Depende muito do que estou fazendo e da especificidade da erva. Algumas vezes as horas parecem passar mais rápido e outras mais devagar, mas dificilmente passam na mesma velocidade.”

Texto: Brunello Amorim Foto: Lorena Lima Arte: Rayssa Amaral

Jogar videogame é outro divertimento de A. L., melhor ainda quando está junto dos amigos. O jogo virtual de futebol é o seu preferido. A curiosidade é que, em algumas ocasiões, ele joga depois de ter utilizado a cannabis. É quando comprova empiricamente a alteração na velocidade da passagem do tempo. “Já me peguei achando que a partida estava quase acabando. Quando olhei no relógio e vi que se passaram só 12 minutos de jogo, me assustei. Até jogando futebol de verdade acontece algo parecido.” Um artigo publicado na Revista Brasileira de Psiquiatria em 2005, feito por um grupo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), evidenciar que os estudos com usuários de maconha apresentam resultados conflitantes. E a maioria relata que não há atrofia cerebral ou alterações volumétricas regionais nas estruturas encefálicas. Porém, existe uma pequena evidência de que usuários de longo prazo, que iniciaram um uso regular no início da adolescência, apresentam atrofia cerebral assim como redução na substância cinzenta. “Estudos de neuroimagem funcional (técnica que mostra o fluxo sanguíneo cerebral) relatam aumento na atividade neural em regiões que podem estar relacionadas com intoxicação por cannabis. Constatou-se assim, alteração do humor e redução na atividade de regiões relacionadas com funções cognitivas prejudicadas durante a intoxicação aguda.”, argumenta a neurocientista Gabriela Souza. A consequência desse processo é que acontece uma alteração de volume cerebral e de fluxo sanguíneo em algumas regiões cerebrais pode contribuir para que a interpretação de tempo fique alterada.


Meditação para desacelerar José Geraldo Silva, o mestre Geraldinho, é professor de ioga há 20 anos. Para ele, a prática de meditação é a possibilidade de se desvencilhar da rotina corrida. Enquanto está no ioga, ele conta que sente os minutos passarem mais devagar. “Um dos objetivos da prática do ioga é a realização de uma avaliação interior, com o intuito de desaceleração da vida, e que influencia na sensação do tempo que passa, resultando assim em vários benefícios”, conta. A maneira como a meditação interfere na percepção do tempo da vida humana varia para cada pessoa. Uma hora na aula de ioga é o momento em que o professor e seus alunos sentem a respiração e estabelecem uma sinergia entre mente e corpo. Contudo, essa “desaceleração” dos ponteiros do relógio pode ir além dos 60 minutos da prática e aparecer também no dia a dia dos praticantes, trazendo reflexos para outras ações. Geraldinho acredita que, “com a prática diária da atividade, os benefícios se intensificam, podendo ser sentidos sempre e não somente durante a atividade. Desse modo, o praticante realiza uma avaliação interior, que influencia no modo como ele enxerga a si mesmo, as outras pessoas, os animais, a natureza, enfim, o mundo”. Inclusive, a impressão de que a Terra faz o movimento de rotação cada vez mais depressa, fazendo os dias passar mais rápido, é válida. A neurocientista Gabriela acredita que “atualmente a quantidade de tarefas, compromissos e de informações processadas diariamente pelo cérebro aumentou enormemente e o dia continuou tendo 24 horas (tempo cronológico inalterado). Por isso a sensação subjetiva de que o tempo está passando mais rápido é real (tempo psicológico).”

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Habitar

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Mais do que criar tendências e padrões estéticos, a moda está, durante toda a sua história, ligada a transformações sociais. O modo de se vestir está relacionado às lutas de seu tempo para alcance de espaço numa busca infinita pelo novo. A professora Daniela Calanca afirma no livro “História Social da Moda” que a história do vestuário não é um simples inventário de imagens, mas sim o reflexo dos fenômenos socioeconômicos, políticos, culturais e os costumes de determinada época.

A partir da Baixa Idade Média, desenvolve-se no indivíduo o desejo de ter uma personalidade singular. Desta forma, passa a existir maior possibilidade da afirmação social graças à individualidade. Bem além da Idade Média, ícones de diferentes épocas subverteram padrões impostos cultural e socialmente por meio de seus estilos e protagonismo, criando possibilidades de expressão da moda. Assim, mais do que um costume que muda, volta e se altera, ela representa conquistas de espaço.


Texto: Lívia Monteiro Foto: Caroline Hardt Arte: Clarissa Castro

Ousadia Mulheres empresárias usando terno durante o dia. Donas de casa cuidando dos filhos à noite. A mulher moderna é resultado da evolução dos papéis femininos na sociedade, determinante para a mudança de seu modo de vestir. A partir da Primeira Guerra Mundial, as mulheres precisam de roupas práticas para suas novas tarefas. Elas abandonam os corpetes, libertam suas silhuetas e passam a andar de bicicleta, o que seria impossível com as saias longas. A calça passa a ser reivindicada, sendo que a peça tinha uso exclusivo aos homens e chegou a ser proibida às mulheres na França do século 19, conforme afirma Lars Svedsen em seu livro “A Moda: uma filosofia”. Conhecida por ser “uma mulher à frente do seu tempo”, Gabrielle Chanel – ou Coco Chanel – foi inspiração para a libertação da mulher na moda durante as décadas de 1910 e 1920. Sua audácia e busca pela simplicidade fizeram com que ela quebrasse padrões da época. Assim, ela insere o vestuário masculino, saias mais curtas e o neutro vestido preto, criando um novo paradigma para as mulheres. Para a professora e jornalista de moda Carla Mendonça, Chanel conseguiu trazer uma outra atmosfera para a ideia da moda na época. “Ela teve sucesso em entender o espírito do tempo e que a Primeira Guerra traria outras necessidades à mulher, relendo isso e aplicando num produto desejável. Os paradigmas que ela quebra são de tirar a moda de um lugar inacessível, entendendo que elegância não está só no exagero, mas que poderia estar na simplicidade.”

Excentricidade Nada mais simples, básico e prático do que usar calça jeans. Mas a peça-chave do guarda-roupa atual demorou a se popularizar. Criada no fim do século 19, por ser confeccionada em um tecido resistente para fazendeiros, a vestimenta era exclusivamente masculina e ligada ao trabalho pesado. Só em 1934 a marca Levi Strauss & Co. lançou a primeira coleção de jeans para mulheres. Mesmo assim, esse tipo de roupa não foi popularizado rapidamente. A professora Calanca conta que, somente no fim dos anos 1960, após várias tentativas de conquistar um amplo mercado de massas nas décadas precedentes, o jeans supera todas as divisões de classe, sexo, idade. Iris Apfel é ícone mundial da moda, decoração e de acessórios. Em uma época em que mulheres

não usavam jeans, ela insistiu em usá-los. Eram os anos 1940 e, até conseguir seu jeans, a excêntrica Iris precisou ir a uma loja ao menos cinco vezes e convencer os vendedores a encomendar uma calça masculina que servisse nela. Ao ser questionada sobre regras de moda no documentário Iris (2014), dirigido por Albert Maysles, Apfel diz que não há regras, pois ela as quebraria. Foi exatamente essa ruptura que Iris provocou ao usar jeans masculinos nos anos 1940. Aos 94 anos, sua marca registrada são óculos redondos e imensos, além de incomuns sobreposições de colares e braceletes gigantes. A excentricidade de Apfel deu-lhe destaque e reconhecimento no mundo da moda, abrindo espaço para outras pessoas se expressarem de forma mais autêntica.

Antimodas Pense nas estrelas hollywoodianas. Ou então nas pop stars da música. A partir da década de 1980, elas influenciaram ainda mais os padrões de moda e beleza, indicando formas de viver e consolidando a busca sem fim pela jovialidade. Como exemplo disso, as antimodas surgidas após a Segunda Guerra Mundial buscaram, por meio dos jovens, a ruptura da cultura dominante. Representados por famosos, hippies na década de 1970 ou punks na década de 1980, essa contracultura trouxe diversos ganhos à moda. Da minissaia ao jeans, do rock ao pop, a liberdade ao se vestir e agir redefiniu comportamentos e estilos. Explorando um perfil jovem e extremamente sexualizado, Madonna idealizou o culto ao corpo, tornando-se um ideal de beleza e moda. Em seu livro Ensaios sobre Moda, Arte e Globalização Cultural, Diana Crane afirma que, por sua capacidade de se identificar com os diferentes estados de espírito das jovens – e interpretá-los –, Madonna afetou o mundo da moda. Com seu icônico sutiã em forma de cone, crucifixos, luvas sem dedos, renda e meias-calças rasgadas, Madonna mostrou-se uma mulher livre e sempre jovial, como até hoje se mantém, exibindo à sociedade a possibilidade eterna de buscar a jovialidade. Para Carla, “assim como na época da Chanel, Madonna faz tanto sucesso exatamente por entender a década de 1980. É a década do crescimento das academias, da ginástica aeróbica, da mulher construindo seu corpo como corpo mais forte. A Madonna não inventa isso, mas populariza”, interpreta.

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Habitar

Atualmente, fala-se não somente a respeito da moda unissex, mas da moda sem gênero e sem padrões determinados para homens e mulheres. Na música brasileira, vemos cantores que quebram e buscam desconstruir o padrão de gênero ao se vestirem. É o caso do mineiro Lineker, 29, expoente da nova MPB. Maquiado, com salto de 15 centímetros e usando brincos, o cantor, performer, bailarino e diretor recebeu a equipe da Curinga antes de seu show em Ouro Preto para conversar sobre a quebra do padrão da masculinidade e sobre a liberdade para se vestir.

REVISTA CURINGA: Como você define o seu estilo? LINEKER: Não tenho estilo, gente! Eu uso realmente o que tenho vontade de usar!

RC: No seu site, você fala sobre querer a desconstrução de normatividades de gênero e sexualidade. Como você trabalha isso na sua vida profissional e pessoal? L: Se, em algum aspecto, meu trabalho toca na questão de gênero, ele toca sobre discutir masculinidades. Nunca me enquadrei no padrão de masculinidade imposto pela nossa cultura. O fato de ser gay já me fez desviar desse padrão. A partir disso, passei por uma série de

transformações, tanto na minha vida quanto no meu trabalho, muito ligado às questões que me interessam e que estão pulsando em mim. Como o lugar de fala do artista é, de certo modo, privilegiado, tento usar este lugar para dar visibilidade a certas questões. RC: Quando você começou a abdicar dessa masculinidade?

L: Acho que a gente está sempre em processo de desconstrução. Participei de alguns processos de criação em que eu nem sabia que estava falando de gênero. A partir disso, fui entrando em contato, buscando referências. 2013 foi o ano em que tomei consciência de que, ao usar um vestido, eu estava falando de gênero. Em 2007 eu já usava saia pra fazer show, mas, pra mim, eu não estava falando de gênero, estava fazendo o que eu queria fazer, sabe?

RC: E como tem sido esse processo de transição? L: A cada vez, estou mais tranquilo de fazer o que eu quiser, sem me importar se as pessoas vão me achar masculino ou feminino. Hoje olho pra uma roupa e penso: “é uma roupa, né?”. Posso usar o que tiver vontade. Em um dia, posso estar usando um brinco; no outro posso estar usando uma maquiagem e, no outro dia, não.

RC: Como pessoa pública, como você vê as pessoas sendo tocadas pela sua liberdade em se vestir?

L: Se o que faço está inspirando e colabora de alguma forma para o processo de alguém, fico muito feliz. Porque eu gostaria de, nos meus 16 anos, ter encontrado pessoas e artistas que tivessem me inspirado e me ajudado a vivenciar de forma mais rápida e menos dolorosa o meu processo.


Identidade

Tecnologia, aliada dos amantes Rapidez, agilidade e escolhas. Tudo isso em suas mãos. Antes, eram outras tecnologias. Hoje, conhecer pessoas é possível pela internet, aplicativos e redes sociais.

A utilização de cartas em são um meio de comunicação, um relacionamento já foi mas, hoje em dia, de modo um hábito comum. Décadas sentimental. Você consegue atrás, a saída era escrever vápassar seus sentimentos para rias folhas de um sentimento outra pessoa por ali. Claro que enclausurado. Se era comum esperar vários dias pela resposta abdicar desse modelo é compreensível por conta dos recursos do endereçado, nesta segunda década do século 21, parece uma que temos hoje: celular, e-mail, aplicativos, por exemplo.” eternidade se levarmos em conta a quantidade de recursos para A educadora aposentada Marly Moysés Silva Araujo tem ana comunicação e suas velocidades. Passar horas escrevendo em tepassados libaneses que viveram em terras marianenses e estauma folha de papel ainda é uma atividade existente entre reme- beleceram laços familiares dentro da Região dos Inconfidentes. tentes e destinatários. Porém, em 2014, as agências dos Correios Ela afirma que, desde a chegada de seus ancestrais ao Brasil, os registraram 2,4 bilhões de cartas enviadas por brasileiros. Um relacionamentos amorosos dos imigrantes aconteciam por pronúmero bem menor do que em 2001, quando o índice apontou ximidade étnica. Os patrícios, nome dado aos compatriotas do 6,1 bilhões de cartas encaminhadas pelo território nacional. A Líbano, eram preferência entre os próprios imigrantes. queda foi de 60% do valor inicial. “Entre os meus avós, três pessoas eram libanesas e, com Uma pesquisa de 2013 da Universidade Northwestern, dos isso, os hábitos e os relacionamentos sociais eram diferentes do Estados Unidos, aponta que três cartas são suficientes para dei- Brasil. A proximidade dos patrícios era algo muito bom, afinal, xar o relacionamento mais feliz. O estudo contou com 120 casais eles cultivavam os costumes. Como estavam longe da terra naque se relacionavam há mais de 11 anos. A cada quatro meses, tal, era é uma espécie de união, mesmo com a distância.” a pessoa mandava uma carta para sua Segundo ela, os motivos que levavam alma gêmea e, segundo os resultados, os aos casamentos por conveniência geográcasais se sentiam mais felizes. Apesar da fica e étnica iam muito além do interesse constatação, metade deles não manteve financeiro. “Segurança, confiança e afetivio hábito no ano seguinte. dade muito grande. A conduta na educação A funcionária pública de Florianópodos filhos era extremamente preservada. lis Sônia Mognon, 48, relacionou-se por Por isso, também havia prioridades em caquatro anos com um homem. O casal samentos entre libaneses. Então, na minha se conheceu em 1985. O último ano do família, parentes mais distantes, mais venamoro foi marcado por cartas porque lhos, tiveram seus casamentos realizados Sônia mudou de Lagoa Vermelha, Rio entre libaneses”, afirma. Grande do Sul, para a capital catarinense. Sobre a cultura na cidade de Mariana, a “Não existiam os meios de comunicação entrevistada relata que “tinha tios libanede hoje. Se a data de envio da carta fosse ses no Rio de Janeiro, outra parte da família o dia primeiro de qualquer mês, chegaria morava em Belo Horizonte e havia libaneao remetente no término do mesmo mês. ses aqui em Mariana. Na região marianenLevaria de 20 a 30 dias para chegar”, diz. se, havia libaneses donos de fazenda e eles Para a entrevistada, o envio de cartas tinham uma cultura muito preservada”. em tempos atuais demonstra o afeto de Marly encerra relatando a preservação Conteúdo ficcional meramente ilustrativo uma forma diferenciada. “As cartas ainda dos costumes como hábito dos libanenses. CURINGA | EDIÇÃO 18 17

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“Mesmo com uma longa distância de casa e em sistemas familiares e de relacionamento diferenciados, havia um esforço enorme por parte dos libaneses para (nós descendentes) mantermos a cultura, aprendermos a língua. Sempre que vinha alguém do Líbano, havia um almoço especial para celebrar a vinda de um patrício. Um exemplo de boas vindas”, completa. João Paulo Vizioli mora há vinte anos no Japão e namorou à distância em três ocasiões. Ele já utilizou redes sociais e aplicativos para se relacionar, mas, no primeiro relacionamento, as ligações telefônicas foram o principal meio de romper as barreiras geográficas. “Cada relacionamento teve suas particularidades. A minha primeira relação a distância foi lá pelos anos de 1999/2000. Conheci a garota quando voltei ao Brasil para tirar a carta de motorista. Eu estava em Brasília e ela em Anápolis. Conheci-a enquanto fui visitar uns parentes nesta cidade.” A lamentação de João Paulo foi o custo-benefício da telefonia, um dos meios de comunicação que serviu de apoio para o casal. “A gente conversava por telefone e eu ia visitar ela toda semana. Porém, tive que voltar ao Japão e ela ficou no Brasil. Nos primeiros meses, a gente se comunicava por carta e telefone público para ter maior privacidade na conversa. Eu comprava cartões pré-pagos, que eram caros (cerca de 30 reais) e duravam pouco (no máximo 20 minutos).” João Paulo afirmou que era inviável utilizar os novos meios. Na época, a internet ainda não era tão popular no Brasil e a amada não tinha computador em casa. “Mas não durou muito. Cerca de dois meses depois que voltei ao Japão, a gente terminou.”

Amor com novas tecnologias Nathalie Gonçalves de Melo e Fernando Lopes de Melo se conheceram em 2008 e ambos são do Rio de Janeiro. Fernando adicionou Nathalie no MSN, programa on-line de mensagens instantâneas. Segundo a entrevistada, o perfil do desconhecido impossibilitava saber quem era o usuário. Mesmo assim, ela aceitou o convite de Fernando. Não conversaram durante 30 dias, até ele se identificar. Depois do primeiro contato, não pararam de conversar, e hoje estão casados. “Nós nos conhecemos dia 16 de abril. No dia 21 do mesmo mês, ele retornou de viagem dizendo que não conseguia ficar um minuto sem mim. E, no dia primeiro de maio, ele estava morando comigo na casa dos meus pais. Minha mãe achou que eu estava louca, eu nunca tinha tomado uma decisão dessa magnitude. Meus pais acharam que eu estava com alguma alteração comportamental.” Uma pesquisa de 2013 da Universidade Northwestern, dos Estados Unidos, aponta que três cartas são suficientes para deixar o relacionamento mais feliz.


Texto: João Vitor Marcondes Foto: Eduardo Rodrigues Arte: Letícia Cristiele Em dezembro de 2008, sete meses depois, Fernando pediu Nathalie em noivado. Em agosto de 2009, o casamento no cartório estava consumado. Em setembro do mesmo ano, ocorreu a cerimônia religiosa. O engenheiro Renato Passos entrou no Tinder em 2015 passado, após um fim de namoro que, segundo ele, foi traumático. “Minha ex-namorada se mudou no meio de nosso relacionamento – e isso foi parte da ruína dele. Utilizava, basicamente, WhatsApp e telefone (aplicativo de mensagens instantâneas) para me comunicar diariamente com ela.” O principal motivo para ele ter começado a utilizar o recurso foi o anseio por conhecer gente nova e ter atividades diferenciadas depois do término do namoro. Renato disse que alguns amigos da faculdade usavam o Tinder, então decidiu se juntar a eles. Ele afirmou também que o aplicativo é um método moderno de conhecer pessoas fora dos lugares comuns. Questionado sobre a possibilidade de ter um relacionamento sério, o morador de Belo Horizonte acredita que nada é impossível, e não descarta essa possibilidade. Em 12 meses, ele se relacionou com 20 mulheres. “As pessoas precisam se desapegar de preconceitos e se adaptar aos novos tempos.” O psicólogo Cristiano Nabuco comentou em seu blog, que recebe o nome do próprio especialista, sobre as relações no Tinder e seus efeitos. “A personalidade eletrônica possibilita uma oportunidade para que as vivências da vida virtual possam se sobrepor às limitações encontradas no cotidiano.” O Tinder se alastrou pelos smartphones. Segundo o seu cofundador, Justin Mateen, a criação dessa ferramenta promove “o fim da rejeição” por se tratar de uma plataforma de descoberta social. O Brasil é o terceiro país que mais utiliza o aplicativo, sendo responsável por 8% das contas. Estados Unidos e Reino Unido são, respectivamente, primeiro e segundo colocados. Conforme nota da instituição, “a maior faixa etária é de 18 a 24 anos, e mais de 93% dos usuários nunca foram casados, de acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas do Reino Unido”.

O Brasil é o terceiro país que mais utiliza o Tinder, sendo responsável por 8% das contas.


Opinião

Com a palavra, Texto: Igor Capanema Foto: Thiago Barcelos Arte: Júlia Cabral

Quanto de mim ainda lhe resta? Quantas voltas ainda terei que dar para que você me entenda, me encare e, principalmente, me note? Foi ao longo desses anos que diversas gerações transitaram por mim. Anos. Palavra engraçada que criaram. Durante o trajeto, inventaram ferramentas, modos de existir e diversas convenções que permeiam a vida humana. Seguindo à risca, então, as criações realizadas pelos que em mim habitam, começaremos primeiro pela apresentação. Inclusive, você sabe se já passou do meio-dia? Não tenho cara, cor, forma. Não tenho cheiro. E, por mais que alguns ainda insistam em me dar tudo isso – sem o meu consentimento –, costumo dizer que sou um fenômeno inerente a quaisquer classificações. Mas, na maioria das vezes, ninguém me escuta. Aliás, só me veem passar. E eu passo, mas não sozinho. Você sabe que dia é hoje? E, por não saberem de onde vim e nem para onde vou, comentam entre si que não tenho piedade. Mas, na verdade, acabei percebendo que alguns ainda não sabem o quão piedoso posso ser. Sou como um amigo íntimo, daqueles que você conhece desde o nascimento e que o acompanha pelo resto da vida. Apesar de que a vida é mais uma das formas de me contar. Porém, mesmo com ela ou com a ajuda de ponteiros, sombras e posições astrológicas, ainda consigo nos guiar por conta própria. Eu e você. Mas não tenho certeza se você, sem eles, conseguirá apreciar nossa viagem. Já é noite? Não se perca no caminho! Durante esses mesmos anos, percebi que sou temido por uns e esperado por outros. E posso ser, de fato, um pouco impiedoso. Quando passo por alguns, deixo rastros que podem não ser bons. Rastros na mente, na memória, no corpo e na história. Amarelo fotografias, desfaço promessas, altero a libido e deixo pistas para que os meus habitantes percebam que um dos maiores erros da humanidade é acreditar que tudo dura para sempre. Sendo que o sempre pode durar apenas uma fração de mim. O mundo gira em um segundo. Quantos segundos já se passaram até aqui? Mas não se apegue a só isso. Também sou cura, também sou porto, também sou casa. Posso ser como o mar, que, quando passa, leva tudo. Inclusive aquilo que não se quer mais. Meu conselho é simples: não se fixem às minhas rochas, não se prendam ao meu cais e não se percam nas minhas ondas. Eu não paro, não espero e não retorno. Sou veneno e antídoto. E, antes que seja tarde demais, prazer, meu nome é Tempo.




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