Revista Curinga Ed. 19

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Revista Laboratรณrio | Jornalismo | UFOP

Nov. de 2016 | Ano VII |

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Professores Responsáveis Frederico Tavares - 11311/MG (Reportagem) André Luís Carvalho (Fotografia) Talita Aquino (Planejamento Visual) Editora-Geral Carol Vieira Editora de Texto Hariane Alves Editora de Arte Débora Mendes Editora de Fotografia Tainara Torres Editoras de Multimídia Giselle Carvalho e Sabrina Passos Revisores Janaina Almeida e Sandro Aurélio

Foto: Agliene Melquíades

página 30

Curinga é uma publicação da disciplina Laboratório Impresso II. Revista produzida pelos alunos do curso de Jornalismo da Ufop. Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA). Departamento de Ciências Sociais, Jornalismo e Serviço Social (DECSO). Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

O rio que morreu

Expediente

Ser e não estar página 19

Redatores

Alex Galeno, Alícia Milhorance, Daniela Felix, Fernando Cássio, Flávio Ribeiro, Francielle Ramos, Lillian Indrusiak, Príscila Ferreira, Priscilla Santos, Thamiris Prado

Diagramadores

Camila Guardiola, Caroline Borges, Fabiano Alves, Ingryd Rodrigues, Lara Massa, Mariana Ferraz, Nathália Fiuza, Paloma Demartini, Pedro Menegheti

Fotografos

Foto: Felipe Nogueira

Agliene Melquíades, Caio Gomes, Felipe Nogueira, Gabriella Visciglia, Janaína Oliveira, Larissa Lana, Pedro Guimarães, Rodrigo Sena, Samara Araújo

Capa e capas internas Débora Mendes (artes) e Tainara Torres (fotos) Agradecimentos especiais aos moradores dos locais citados na edição, à Diretoria do ICSA, ao DECSO, ao setor de transporte da UFOP, ao MAB, ao movimento de ocupação estudantil do ICSA e ao Robson Vilalba.

Endereço: Rua do Catete, 166 - Centro 35420-000, Mariana - MG Novembro/2016


página 33

Foto: Janaína Oliveira

Limiar da mineração

página 15 Foto: Tainara Torres

A falta que faz

Frágil equilíbrio

página 22 Foto: Rodrigo Sena


Editorial 1 ano. Nesse pedaço de vida se faz aniversário, passa-se de ano na escola,

Fotos: TainaraTorres Arte: Débora Mendes

visita-se os avós, chupa-se jabuticaba ou manga. Dá tempo de ir à Igreja, plantar, ir no bar da esquina, contar alguns casos. Ainda dá tempo de vender coxinha, festejar na Folia de Reis, banhar na cachoeira e fazer um bordado. Até agora, se for bem agilizado, consegue-se correr pelas ruas, subir em árvores, pescar, pular no rio, comer uma pimentinha de leve e depois deitar para descansar em uma sombra. Não pode faltar a reunião na praça, o futebol do semana, o campeonato de truco, o café do vizinho e o lendário retrato de família. Aqui em Mariana, Minas Gerais, 1 ano foi o suficiente para acumular destroços, memórias e indignação. Foi o período necessário para o fortalecimento dos movimentos populares da região e para as pessoas entenderem o poder que o povo tem nas mãos. Além de perceberem demissões, construções de diques e aquisições de novos terrenos. Foram tempos de conhecer quem é a Samarco e como é a cidade sem mineração. 365 dias na Bacia do Rio Doce destacaram a morosidade da burocracia e da justiça encadeando multas e prisões. Foi indispensável pensar nos cuidados com o meio ambiente e sentir saudade na falta dele. Saudade instaurada desde o dia 05 de novembro de 2015, quando a barragem de Fundão se rompeu. Depois dos rejeitos vimos a poeira. Que incomoda, adoece, cega. O cisco no olho dói. Mesmo depois de tirado, permanece arranhando. As marcas ficam. As respostas não chegam. Famílias resistem. Brigam para entrar nas suas próprias terras que outros entram sem autorização. Choram pelas mortes tantas que persistem. Buscam sobreviver, de alguma forma, com os cortes dos cartões de crédito e sem previsão para indenizações. Sonham com um futuro previsto para... 2019. Aquele pensado, moldado e limitado por quem tudo destruiu? É o que parece. A espera cansa e angustia. Devagar, timidamente, mostra a vontade de buscar um pouco d’água para limpar o lamaceiro. E a torcida para renascer se faz presente. Após um ano, a 19ª edição da Curinga traz os desfechos do desastre que atingiu os subdistritos de Bento Rodrigues, Paracatu e toda uma bacia hidrográfica. Especialistas, poder público, empresa, trabalhadores, vítimas. É preciso ocupar a memória da tragédia. Em razão dela, lembrar para não esquecer. Carol Vieira


eu no mundo


Habitar Habitar Identidade

Texto: Francielle Ramos Foto: Janaína Oliveira Arte: Paloma Demartini

O dia inacabado O tempo é contável de diversas formas: em anos, semanas, meses, dias, horas, minutos, segundos. O tempo pode ser a oportunidade, a ocasião. O que foi aquele 05 de novembro de 2015? Aquele mesmo em que vidas se perderam, vidas desapareceram, vidas foram transformadas. O que é o tempo de agora em diante? Tempo em que vidas questionam, vidas nascem, vidas renascem.


Um ano. Período curto para quem teve que correr para se salvar. Período longo para quem está há um ano fora de casa. Tempo curto para quem foi embora sem se despedir. Tempo longo para quem ficou esperando por notícias dos entes queridos. O tempo em que vivemos é curto demais para conseguirmos as respostas. Um ano de mudanças e adaptações. 05 de Novembro de 2015. Rompe a barragem de Fundão. 19 mortes (17 adultos e duas crianças). 1.265 pessoas desabrigadas, 228 municípios atingidos na Bacia do Rio Doce, 3,5 milhões de pessoas afetadas. A lama arrasta uma gestante de três meses por quatro quilômetros, forçando um aborto. O tempo para e persiste na mente de muitas pessoas. O dia em que muitas vidas mudaram. O dia em que a lama tomou conta de lares, do rio, das matas, do mar, dos animais, da memória. 22 de Novembro de 2015. O rejeito chega ao mar. Polui o Rio Doce, um dos mais importantes da Região Sudeste, atinge diversas cidades e transforma a rotina de moradores, pessoas que dependem daquilo para viver… Não foi só o Rio Doce, a lama também danificou o Rio Gualaxo do Norte e o Rio do Carmo. Fontes de vida e sustento de milhares de pessoas. 23 de Fevereiro de 2016. Polícia Civil conclui o primeiro inquérito sobre o rompimento da Barragem da Samarco e pede prisão de sete pessoas. Primeira investigação daquilo que deixou marcas catastróficas, causando inúmeros danos. As acusações são pelos crimes de poluição de água potável, homicídio qualificado pelo dolo eventual (quando não há intenção, mas se assume o risco) e inundação. 09 de Março de 2016. O 18º corpo é encontrado na área da Barragem de Fundão. Tempo longo de procuras, de espera, de reconhecimento, de dúvidas. Mais uma vida que se foi, que vai deixar recordações. Continuam as buscas, ainda há uma vida perdida que não foi encontrada 07 de Maio de 2016. Futuro novo lar escolhido. Famílias decidem onde vai ser reconstruído Bento Rodrigues. Lavoura é o nome. Ainda é apenas um nome, uma terra. Solo que vai ser erguido casas, novas memórias, novas experiências. Novas vidas? É o curso que, geralmente, a vida faz. Continuar os ciclos, gerar novas lembranças. Esquecer as antigas? Jamais. 11 de Julho de 2016. Pela primeira vez, moradores de Bento Rodrigues homenageiam o padroeiro São Bento fora da Igreja centenária, que ficou soterrada no subdistrito. A missa foi celebrada na Capela de Santa Cruz, no Barro Preto, em Mariana.

28 de Julho de 2016. Suely Sobreira, 48 anos, é sepultada no cemitério da Igreja Nossa Senhora das Mercês, em Bento Rodrigues. Momento de prestar a última homenagem, da despedida, do descanso. Para cada pessoa tem um significado diferente e único e, parte da escolha pessoal como e onde será o fim desse ciclo. Suely vivia em Ouro Preto, mas Bento tinha um valor especial. É lá que a família também está enterrada. 03 de Setembro de 2016. Os moradores de Paracatu também decidiram onde será erguida a nova casa. Lucila, por 67 votos, ganha como novo terreno para se construir o futuro e reconstruir a comunidade. Novos dias, novas histórias. Recomeço, lembrança e esperança. O novo será vivido, com marcas do antigo, com marcas daquilo que levou até o novo. 24 de Setembro de 2016. Um momento de memórias e fé, moradores celebram festa de Nossa Senhora das Mercês. O que antes era um momento de alegrias e devoção, agora é de lembranças. Os moradores fizeram uma procissão pelas ruas cobertas de lama, acompanhados de uma banda. A imagem de Nossa Senhora das Mercês, retirada do local após o rompimento da barragem, foi trazida da arquidiocese para a missa. 31 de Outubro de 2016. O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) inicia uma marcha, em Regência, distrito de Linhares (ES). A iniciativa enfatiza a importância da união dos atingidos em busca por seus direitos e passa por locais enxarcados pelo rejeito, até chegar à Mariana. É o caminho inverso da lama. Ela fez o percurso da destruição, o MAB faz o caminho de procuras, de entregas, da união. 02 de Novembro de 2016. Moradores de Bento Rodrigues voltam ao subdistrito para rezar pelos entes queridos que já partiram. A missa foi celebrada no cemitério da Igreja de Nossa Senhora das Mercês. A vida de muitas pessoas está ligada a história de suas famílias, aos momentos já vividos e compartilhados. É o dia de recordar quem fez parte de cada história. Pessoas que contribuíram de uma forma específica com cada um daqueles que estão lá e deixaram suas marcas. 05 de Novembro de 2016. Um ano do dia em que vidas e locais foram invadidos e transformados. O coletivo “Um Minuto de Sirene” realiza um evento para rememorar o rompimento. Tempo de recordações, tempo de questionamentos, tempo de mudanças. Cada dia é um novo passo, uma nova forma para se recomeçar. O tempo daqui pra frente está em aberto. Novos segundos, minutos, dias, meses, anos.

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Habitar

Reação à lama O rompimento da barragem de Fundão despertou resistências. Apesar dos rejeitos, a luta surge, a casa permanece e a vida continua.


Texto: Fernando Cássio Fotos: Caio Gomes e Gabriella Visciglia Arte: Camila Guardiola

Constrói-se uma ideia de que o povo de Mariana é que depende da empresa , quando na verdade é ao contrário, é a empresa quem depende das pessoas daqui e da região. Há uma inversão de valores Joceli Andriolli

“O lugar da minha vida é aqui, se eu for pra cidade não aguento ficar lá não. Eu tenho as minhas criações e cuido delas aqui. O meu prazer é esse, é a roça. O lugar da minha vida é aqui!”, afirma João Celestino Arcângelo Filho, 56 anos, morador de Paracatu, subdistrito de Mariana. João sabe dos riscos que a sua decisão de permanecer implica e reconhece que a sua realidade mudou, mas prefere continuar onde está. “Não vai voltar a ser como era antes. A gente não vai ter mais sossego, por causa dessas outras [barragens] que estão lá ainda. Se essa rompeu as outras também podem.” O lavrador nasceu, cresceu e ainda mora na área rural de Paracatu. Sem fazer parte de movimentos de mobilização, ele mostra resistência optando por continuar em seu lar. João recebeu uma notificação da Defesa Civil por estar em um local de risco, mas nem mesmo isso fez com que ele rompa o laço com o palco de suas histórias. Resistir é lutar por aquilo que se acredita. É aguentar, persistir e não padecer. Resistir é o que muitas pessoas fazem quando compreendem que seus direitos foram desrespeitados. Assim como João, o também morador do subdistrito há 26 anos, Marino D’ Ângelo, 47 anos, viu a lama chegar até a sua porta. Diferente de João, ele deixou o lar por motivos de segurança. Marino é Presidente da Associação dos Produtores de Leite de Águas Claras e região, além de ser membro da Comissão dos Atingidos de Paracatu. Por não se ver como vítima, já que os rejeitos não haviam destruído sua residência, ele não correu atrás dos seus direitos após os primeiros meses do rompimento. Quando se identificou como atingido, abraçou a causa. “Meu universo havia sido transformado.” Agora, sua batalha vai além, ela é em prol de vários outros afetados pelo desastre. É sobretudo, resistir e seguir “apoiando, ajudando e buscando resgatar o direito dos atingidos”. O produtor de leite afirma que suas atividades foram prejudicadas. O que antes era rentável, após a tragédia passou a

trazer prejuízos. A insegurança sobre o que pode acontecer é algo que também tem prejudicado sua saúde. “Eu tinha uma vida simples e feliz, agora tomo dois antidepressivos por dia. Cheguei a pensar que se a minha casa tivesse sido destruída que eu não teria sofrido tanto”, conta emocionado. Marino encontrou no Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) uma forma de entender e lutar pelos seus direitos. Hoje, é militante do movimento. Diversos motivos fazem com que uma pessoa decida participar de um movimento popular, como por exemplo, a identificação com a causa ou a luta por direitos. Joceli Andriolli, 37 anos, é integrante do MAB desde que era criança, mas foi na juventude que ele assumiu a militância. “Já milito há 20 anos. Dedico 100% do meu tempo ao movimento.” Sua família foi atingida pela Usina Hidrelétrica de Itá, localizada no rio Uruguai, em Santa Catarina. O MAB é uma organização que luta pelos direitos de pessoas que foram afetadas por barragens, fundado em 1991, chegando à região dos Inconfidentes em 1995. Membro da coordenação nacional do MAB, Joceli enxerga a relação de dependência de Mariana com a mineração. “Existe uma questão histórica na cidade, que é a cultura do colonialismo. Especialmente o colonialismo mental, que cria uma consciência coletiva de que as mineradoras são um mal necessário. Constrói-se uma ideia de que o povo de Mariana é que depende da empresa [Samarco], quando na verdade é ao contrário, é a empresa quem depende das pessoas daqui e da região. Há uma inversão de valores”. Resistir aos abusos e a negligência da mineradora Samarco se torna ainda mais fundamental para o militante. “A Samarco chegou a chantagear as pessoas, dizendo que só daria os cartões de auxílio [cartões fornecidos aos atingidos] se elas saíssem do movimento dos atingidos por barragens, e várias saíram pra poder ganhar o cartão”, ressalta.

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Uma luta de todos “Lembro de Bento Rodrigues desde o primeiro dia que pisei lá, quando eu tinha seis anos”, recorda Manoel Marcos Muniz, 53 anos, ou simplesmente Seu Marquinho, como é chamado. Seu Marquinho trabalhou na Samarco por quase 30 anos. Um ano e um dia após se desligar da empresa seus planos foram interrompidos. “A ideia era curtir a minha aposentadoria lá em Bento. Lá eu vendia laranja, banana, jabuticaba, ovos, frango. Tinha criação de gado, porcos, galinhas e codornas”, conta. O aposentado estava em Mariana no dia 05 de novembro de 2015, e ao saber do rompimento, foi para o local, não conseguindo resgatar seus pertences. Das lembranças que a lama não conseguiu apagar, Marquinhos encontrou forças na escrita para resistir. E faz isso participando do jornal A Sirene, criado pelo coletivo “Um Mi-

João Celestino mora no mesmo lugar em Paracatu desde que se casou, há mais de 25 anos: “Tenho que agradecer à Deus porque minha casa ficou.”

nuto de Sirene” em parceria com a Arquidiocese de Mariana e o Ministério Público de Minas Gerais. “No jornal podemos falar e através dele nós também contamos nossas histórias e sofrimentos”, desabafa. O “Um Minuto de Sirene” surgiu uma semana após o desastre da Samarco. A posteriori, em março de 2016, veio o jornal. Ambos são compostos por voluntários e atingidos. De acordo com uma das criadoras do coletivo, a professora Ana Elisa Novais, 37, a ideia surgiu como metáfora da ausência de sinalização sonora em Bento Rodrigues no dia do rompimento da barragem. Todo dia 05 de cada mês, o coletivo toca uma sirene na cidade de Mariana, promovendo ações que remetem à memória e ao desejo de respostas. Constituído por voluntários, o grupo tem encontrado dificuldades de atuação. “A única certeza que temos é que não podemos sair da praça. A gente não pode parar de soar a sirene, porque agora os próprios atingidos contam com isso”, explica Ana Elisa.


Desastre em questão Texto: Lillian Indrusiak e débora mendes Foto: Pedro Guimarães Arte: Mariana Ferraz

Curinga: Qual a proposta de trabalho desenvolvida pelo grupo? Daniel: O GEPSA nasceu com o objetivo de contestar uma postura de naturalização da tragédia, com a tentativa de transformar o rompimento da barragem em acidente e também tirar a culpa da ciência por trás da construção de barragens, o que chamamos de mito da “neutralidade da ciência”, algo que mostramos que deve ser combatido na sociedade. Fomos nos organizando e, em março de 2016, viramos um grupo, que procura discutir as questões sociocientíficas. Atuamos em três áreas: na licenciatura, com projetos de extensão; na arquitetura, com o reassentamento dos atingidos, especialmente em Gesteira, distrito duramente atingido; e nos direitos humanos. Curinga: Quais outros grupos de pesquisa têm estudado o rompimento da barragem? Daniel: Os grupos mais relevantes são o Grupo de Estudo e Temáticas Socioambientais da Universidade Federal de Minas Gerais (GestaUFMG) e o Grupo Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade da Universidade Federal de Juiz de Fora (Poemas-UFJF), que já trabalhavam para as questões ligadas à economia e a atividade minerária, com professores bem atuantes. O Gepsa seguiu essa linha de pensamento. Curinga: Quais foram os maiores impactos ambientais ocasionados com o derrame da lama? Daniel: De acordo com relatórios produzidos, a degradação absoluta do Rio Doce, em toda a sua extensão, e a destruição da mata ciliar dos rios Gualaxo e Ribeirão do Carmo, que estão com níveis altíssimos de arsênio (metal pesado tóxico). Outro impacto é em relação ao uso da água em Governador Valadares, outra cidade afetada. Curinga: É possível conciliar o “bem estar” ambiental com a prática mineradora? Daniel: Não, na forma como está o Estado brasileiro, não. Pois é um Estado frágil, não há poder para fazer cumprir o Código Ambiental brasileiro existente. A Samarco teve 19 autuações, como denúncias de rachamentos. Sendo que nada aconteceu com a empresa. Continuará sendo uma atividade extrativista. É impossível. É tolice. Curinga: Do rompimento até agora, já houve alguma mudança significativa? Daniel: Nada, nada de positivo. Tudo de mais barato e o mínimo possível de ajuda, com enganações, experiências de assentamento com a lama, propiciando doenças de pele e respiratórias. Não houve reconstrução de nenhum dos subdistritos atingidos. Eles [empresa] protelam. CURINGA | EDIÇÃO 19

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Opinião

A Curinga conversou com Daniel da Mota Neri, professor do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG), em Ouro Preto, e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas Socioambientais (GEPSA). Formado após o rompimento da barragem de Fundão, reune professores de diferentes áreas de estudo, tanto do IFMG quanto da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). O intuito é colaborar com a sociedade, debatendo efeitos sociais, econômicos, jurídicos e ambientais.


Identidade

Sensação Identidade

Ponte do Gama. Bento Rodrigues. Paracatu. A lama afundou histórias e tantas raras recordações, mas elas resistem. Saudade é motor para Texto: Priscilla Santos Foto: Pedro Guimarães Arte: Paloma Demartini

superar a tragédia.


Histórias soterradas O rompimento da barragem de Fundão levou muito consigo. A lama soterrou sonhos e modificou de forma permanente centenas de vidas nascidas e criadas em Bento Rodrigues e Paracatu, em Mariana, MG. Mas não somente. Ao se estender ao longo do rio, outras famílias e histórias foram atingidas de formas diferentes. Ao fugirem dos rejeitos que rapidamente tomaram as localidades, deixaram para trás os resquícios da vida que tiveram até o 05 de novembro. Nada jamais seria igual. A esperança e fé na força do coletivo é o que manteve unido Ponte do Gama. José Silvério, morador do distrito há mais de 50 anos, se recorda de uma enchente ocorrida no fim da década de 1970 e chegou até a estrada. Quando alertado sobre o rompimento da barragem de Fundão, acreditava que não teria consequências graves para sua região. No entanto, enquanto se aglomeravam na porta da igreja para a tradicional reza, no entardecer do dia 05, avistaram a lama, implacável, vindo com toda a força. “Quando vi, tava subindo uma onda que parecia do mar. Todo mundo correu e quando olhamos para trás, a lama já tinha coberto a igreja”, recorda-se. O recomeço da comunidade veio este ano, durante a tradicional festa de 12 de outubro, comemoração pelo dia de Nossa Senhora Aparecida, que foi diferente. “Foi mais especial que das outras vezes. Se a gente não ficar unido a gente tá perdido. É assim que precisa ser e sem dúvida Ponte do Gama está mais forte hoje”, acredita o morador. O comerciante José Barbosa dos Santos viveu 45 dos seus 69 anos em Bento Rodrigues. Ao fechar os olhos, lembra-se da reação que teve ao sair da mercearia que era dono e ver a onda de mais de 5 metros de lama que vinha arrasando tudo, inclusive sua casa e a de seus filhos. Em estado de choque, correu para o alto de um morro. “Se eu tivesse chegado lá e meu povo não estivesse, eu voltava e caía na lama. O que eu ia ficar fazendo sozinho no mundo?”, pergunta. Sobrevivente, a dor do trauma

queima em carne-viva. Sente fraquezas, tonturas, o corpo já não responde como antes. “Lá, minha vida era muito boa. Eu sinto saudade de tudo. Tinha freguês que eu via todo dia e não vejo mais. A vida pra mim praticamente acabou. É tanto baque que a cabeça da gente não aguenta. A vida tá ruim”. A rotina de Barbosa em nada lembra o que já foi. Os dias se arrastam enquanto passa deitado acompanhado de Bentinha, cadela que nasceu em Bento Rodrigues durante o rompimento e que foi encontrada após permanecer 15 dias, sem comida nem água, em cima de um telhado de uma casa. Antes, a mercearia lhe tomava todo o tempo. Recebia os clientes com sinuca, mesa de pebolim e até uma máquina de música. Para não se esquecer, ganhou de presente uma pintura de seu comércio, fiel ao que era. “Eu sou muito sentimental, mas parece que eu fiquei ainda mais de lá pra cá. Qualquer coisa eu derreto. No início, quando era tudo lama, muitas vezes eu ia lá só pra chorar”, emocionase. Sua força vem do sonho de, um dia, reabrir o Bar do Barbosa no “Novo Bento”. Diante das recordações, a família vê o passado como um filme. Filha de José, Marinalva questiona com o pai a veracidade da história que ouvia quando ainda era criança, sobre a mata que preenchia toda a região. Segundo a lenda, quando a última das tantas palmeiras que existiam na redondeza do subdistrito caísse, o lugar não existiria mais. Elas se esgotaram dois anos antes da barragem romper. E Bento Rodrigues não existe mais. Nem tudo que a lama destrói é de imediato. No sábado, 15 de outubro deste ano, a tragédia fez mais uma vítima e Barbosa perdia um amigo, Henrique Bretas. Criador de gado, sentava-se na porta de casa e conversava com quem passava. Andava a cavalo, comprava ração no Bar do Barbosa, cuidava das vacas e das plantações. Desenvolveu um problema no coração, mas controla com medicação. A tristeza o consumiu. “Ele perdeu tudo, era apaixonado com a criação de gado que tinha. Foi fi-

José Barbosa contempla a saudade dos amigos, de sua mercearia, e principalmente, de seu Bento Rodrigues. CURINGA | EDIÇÃO 19

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cando ruim, querendo voltar pro Bento. Falei com ele pra tirar isso da cabeça, que pra Bento Rodrigues igual era antes, a gente não volta nunca. Eu também tenho vontade, mas falei pra ele firmar o taco que a gente vai pro novo Bento”, conta José. “A saudade de Bento Rodrigues matou o Henrique e vai matar mais gente”, sentencia. Andreia Sales, sobrinha de Henrique, se lembra que o tio até então nunca havia adoecido ao ponto de precisar ser internado. Dessa vez, relutava em se medicar e chegava ao ponto de fingir ter tomado os remédios, quando na realidade, os jogava fora. “Minha prima chegou para visitar e ele estava há dias sentado, sem comer e sem tomar banho. Só falava no Bento, que queria voltar, fazer uma casa de quatro cômodos e cercar sua horta. Ele se entregou a tristeza.” Andreia viveu no subdistrito até os 24 anos, quando decidiu estudar na capital mineira em 1999. “Minha família ficou, eu voltava sempre que podia. Nunca perdi o laço. Saí porque lá não tinha oportunidade e sonhava em fazer gastronomia”, lembra. Naquela época, o local não provia de oportunidades de emprego e a escola só oferecia turmas até a quarta série, diferente da estrutura que o subdistrito foi adquirindo ao longo dos tempos. As lembranças são de uma infância simples colhendo jambo, pescando, nadando e fazendo piquenique à beira do rio. As brincadeiras na rua quando ainda não havia luz elétrica, corridas na praça para pegar bandeirinha. O sabor do canudinho de doce de leite que a Maria da Fazenda vendia com a filha. O coral ensaiado pela Dona Lalá. Dona Dercília e Dona Raimunda que cuidavam da coroação e, ao final, davam doces para as crianças na saída da igreja. A vida em Bento, da forma que existiu, preenche dos poros às memórias de quem se viu sem sua maior ou única referência de lar. Restou um vazio. Após o rompimento, Andreia voltou à casa da família para resgatar alguns pertences. Seu pai, inconsolável, repetia a tristeza de ter perdido o relógio que ganhou da empresa que trabalhava quando completou 25 anos de serviços prestados. José das Dores Sales, aposentado por invalidez após ser atingido por um raio, encontrou o relógio, já sem funcionar, mas com a dedicatória intacta. Sua esposa, Jandira Sales, lamentava ter perdido fotos e registros de toda uma vida. “A gente tá passando por isso e sei que vamos sair mais forte, mas é muito sofrimento”, crava Andreia, que sonha em voltar para a comunidade reconstruída e trabalhar com sua paixão: a gastronomia. A saudade de uma Paracatu que não existe mais como antes também preenche os dias de Roberto Carlos de Paula, o “sr Neném”. Lembra-se de ter sido tirado da região em que viveu pela Polícia Civil, apenas com os documentos no bolso. Após três anos “amigado”, tinha acabado de construir a casa que iria morar com a esposa. Começaram a levar algumas coisas, mas a mudança efetiva seria no sábado. A barragem rompeu quinta. A realidade em Mariana em nada se assemelha. “Paracatu tinha muita festa, a gente é muito devoto, muito religioso. Eu era caseiro, massagista e meia auxiliar do time de futebol que tinha. Em Mariana fizeram um time, mas eu não gostei não. Perdemos muita amizade, porque é difícil encontrar as pessoas agora, tá cada um para um lado”, lamenta Em meio a tantas histórias, eles resistem. Resistem pelo amor um com o outro, pela fé em um lugar melhor que um dia virá. Resistem para que sejam lembrados, para que o que passaram não seja esquecido. Sonhando com o futuro, buscam a coragem necessária no passado. É através dessas memórias que encontram a força propulsora que os levará em frente.

A igreja de Nossa Senhora da Aparecida, em Ponte do Gama

Bar do Barbosa: a pintura foi o que restou

Andreia revive as memórias da infância em Bento Rodrigues


Identidade Texto: Hariane Alves Fotos: Agliene Melquiades Arte: Débora Mendes

A falta que faz CURINGA | EDIÇÃO 19

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Foto: Samara AraĂşjo


A ausência grita em Bento Rodrigues e fora de lá. Bento mudou, mas permanece. Permanece nos passos tímidos do Juarez Mariano de Souza, 57, que se recorda, ao andar pelo local, de quando dançava forró e da horta que tanto gostava. Ele sente saudades de tudo, assim como Genival Pascoal, 37, que fotografa todos os detalhes, tentando guardar na memória e na fotografia, o “Bento que ainda resta”, e que pode acabar. Vera Lúcia Muniz, 59, anda pelos caminhos recém criados pela mineradora Samarco. Fala entre lágrimas e sorrisos, que vai fazer um último piquenique onde casara e de onde possui as mais belas recordações. Já, Dona Benedita Sena, 77, relembra das horas passadas ao sol, cuidando das suas plantas e frutas. Agora, passa os dias assistindo televisão e sonha com o “novo Bento”, enquanto Ricardo Gabriel da Silva, 22, mostra os destroços do que fora casa e tenta encontrar em piadas, a alegria para espantar a tristeza. Ele fala sobre a prima e o tio que foram engolidos pela lama, sobre a saudade que sente... Bento mudou, mas permanece.

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Identidade

Identidade

Ser e não estar País, região, estado. Somos do nosso “lugar”, vivendo dentro da cidade de Mariana. Porque ser marianense é ser de Cachoeira do Brumado, de Padre Viegas, de Paracatu, de Bento, do Santo Antônio, do Cabanas... Moradores sempre serão moradores. Anos de convivência compõem a biografia de cada pessoa. Mas uma tragédia pode mudar essa identidade.

Texto: Francielle Ramos e Lillian Indrusiak Foto: Felipe Nogueira e Samara Araújo Arte: Ingryd Rodrigues CURINGA CURINGA | EDIÇÃO | EDIÇÃO 17 19

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A experiência é intransferível. Diz respeito ao que é sentido por um indivíduo que vivenciou determinado acontecimento. O vínculo afetivo estabelecido entre os moradores e as áreas afetadas é resultado de experiências vividas entre gerações e que contribuem para a formação de uma identidade coletiva tão intensa que se mistura com a identidade individual. O sociólogo Zygmunt Bauman, em seu livro Comunidade, reforça que o convívio comunitário é estabelecido por meio de interações entre as pessoas e os espaços compartilhados, intensificando a memória coletiva. Essa memória coletiva é fundamental na construção da identidade do próprio sujeito, visto que existe um esforço para moldar o próprio “Eu”. Para o psicólogo Geraldo Ribeiro, 31, um acontecimento de grande proporção, como foi o rompimento da barragem de Fundão, gera traumas, interferindo nessa construção identitária. “A marca do trauma ecoa pelas lembranças do que foi perdido, como, plantações, moradias, familiares. Há um luto pela própria história de vida, a perda de um ambiente em conjunto com suas singulares referências”, explica Ribeiro.

Não lugar Paracatu continua. Para as pessoas que viveram lá, como Silvia Inês Anacleto, 33, no novo terreno não será a mesma coisa. “Para nós, moradores, nunca será algo válido. Será erguida à base de memórias sofridas. Não terá nossa horta, os animais criados, as lembranças da infância, muito menos a casa que batalhamos para construir com o suor caído do nosso rosto.” A ideia da construção do novo terreno já impacta a comunidade. O que antes era um relacionamento comum entre vizinhança, tornou-se um conjunto de reuniões entre a mineradora Samarco, atingidos e movimentos. O marido de Silvia, Jaci Geraldo de Souza, 35, faz aniversário no dia oito de novembro, três dias após a

Antônio Geraldo da Silva.

data da tragédia. “O pior presente que eu poderia ter recebido”. Era zagueiro do time de futebol de Paracatu. Orgulhoso, conta as glórias do pequeno clube amador do qual fazia parte. Tudo que o casal possuía foi construído através de muito trabalho. Jaci trabalhava com a terra, enquanto Silvia era cabeleireira. Os irmãos Júlia e Yuri, são filhos do casal e já sonham com um futuro, assim como os pais. Com 10 anos, Júlia já sabe o que quer ser quando crescer, “professora em Paracatu”. Hoje, ela vai à “Escola de Paracatu” em Mariana e tem aulas em uma turma somente com crianças e uma professora do distrito. Antônio Geraldo da Silva, 28, amigo do casal, atualmente vai para Águas Claras, distrito vizinho, quando quer jogar bola. Com a destruição do “Bar do Jairo” lugar onde trabalhava, ele perdeu o emprego. O que antes era rotina, como encontros com os amigos, conversas ao fim da tarde, se perdeu. Ele continua em sua casa, sozinho. Durante a semana, cuida da propriedade, das plantas e animais. Ao pensar no novo lar, Antônio não tem dúvidas: não quer deixar sua casa. Ele nasceu em Furquim, distrito de Mariana, mas exalta onde foi criado: “Eu sou de Paracatu.”

Em Mariana Após um ano da tragédia, a situação permanece praticamente estagnada. Promessas ganham destaque quando o assunto são as construções dos novos subdistritos - “Novo Bento” e “Nova Paracatu”. Atualmente em Mariana, os moradores dos subdistritos estão dispersos. O casal Jaci e Silvia estão no São Gonçalo, bairro de grande porte que destoa da realidade anterior. Já Antônio, permanece no subdistrito por não conseguir desvincular-se fisica e emocionalmente do local que tanto gosta. O pagamento do aluguel da casa onde estão morando e o auxílio financeiro mensal ficam a cargo da Samarco. Neste caso, a empresa foi obrigada pelo Ministério Público a acatar as decisões.


travessia


Fragil equilibrio Texto: Flรกvio Ribeiro e Thamiris Prado Foto: Larissa Lana e Rodrigo Sena Arte: Lara Massa e Nathรกlia Fiuza


A presença ostensiva da Samarco sobre as áreas em que atua na região de Mariana pode ser explicada por meio dos dados históricos de arrecadação da empresa e de seus repasses, gerando uma controversa relação entre o público e privado. Um jogo milionário de interesses e projetos revela o lado oculto de uma tragédia anunciada.

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Documentos aos quais a Curinga teve acesso revelam que o Sistema de Disposição de Rejeitos (SDR) - projeto que pretendia construir uma barragem a 1,2 km no subdistrito de Mariana - estava nos planos da Samarco desde 2009. Com análises que acumulam quase 600 páginas, a mineradora tinha informações detalhadas sobre a comunidade, com o propósito de transferir os 418 habitantes daquela época para um dos 12 possíveis locais na cidade. Nomeada como Barragem de Rejeitos Mirandinha, o projeto teria capacidade para armazenar 417 milhões de metros cúbicos de rejeitos - uma espécie de sobra da extração do minério. A quantidade equivale a 167 piscinas olímpicas, e representa sete vezes mais do que comportava a barragem de Fundão. Ainda de acordo com os documentos da Samarco, a conclusão do projeto garantiria “a continuidade e expansão da empresa” por mais 30 anos. Os estudos sobre Bento Rodrigues realizados pela consultoria YKS Serviços, em junho de 2013, incluíam relatórios sobre o perfil dos moradores, como por exemplo, quem eles visitavam, como se transportavam e porque faziam isso, além de como sustentavam a casa e se dependiam de auxílios como o Bolsa Família. Reunido em cinco relatórios, o estudo apre-

senta o perfil do projeto SDR e a análise das famílias daquela região, as possibilidades de remanejamento e as pesquisas sobre os locais pretendidos para o futuro da comunidade. O documento ainda traz uma recomendação sobre o que deveria ser feito em caso de falha de leitura de segurança da barragem. De acordo com a avaliação, o impacto de um possível rompimento da barragem projetada seria um “acidente fatal, com destruição da comunidade”. Como medida de correção de uma possível tragédia, a análise aponta o pagamento de indenizações às famílias das vítimas. Os relatórios apontam que durante a fase inicial do projeto, por volta de 2013, a Samarco já havia contratado ao menos três empresas para iniciar estudos relacionados à Barragem Mirandinha, sendo elas a Lume Estratégia Ambiental (2009), a Geoestável - Consultoria e Projetos (2011) e a Agroflor Engenharia e Meio Ambiente (2013). Importante ressaltar que a primeira das três fases de implementação do projeto SDR previa o alteamento - processo de aumento da capacidade de armazenamento de rejeitos - das barragens de Fundão e Germano e, em seguida, a unificação dos dois reservatórios. A terceira fase seria a construção da Barragem Mirandinha, sendo justificada - no tópico “objetivo” do estudo feito pela consultoria YKS - como uma “necessidade de viabilizar novas áreas para a disposição [de rejeitos]”. Conforme laudo do Ministério Público Federal de 2016, a barragem de Fundão chegaria ao esgotamento da sua capacidade já em 2009. Segundo o parecer técnico expedido pela Superintendência Regional de Regularização Ambiental Central Metropolitana (Supram CM, MG) - proveniente de dois relatórios de vistoria realizados pela consultoria Sete Soluções e Tecnologia Ambiental, em dezembro de 2013 e junho de 2014 -, a Samarco obteve licença para altear e unificar as barragens de rejeitos de Fundão e Germano pelo prazo de seis anos. Enquanto o planejamento do SDR continuou, se tornava cada vez mais provável o “esvaziamento incentivado” da comunidade. Descrita como uma das possibilidades de realocação dos moradores, tal proposta tinha como objetivo a indenização pelas propriedades e o afastamento da vizinhança indesejada. Optando por essa alternativa, não haveria “a necessidade de construção de novas residências por parte da Samarco”, diz um trecho dos relatórios.


Et labo. Lit vitia quatur sam fuga. Ut vitiuri scius, corporecusam nonsendam, ut volo omni utem. Ut dillab intor re destibus.

A construção do Dique S4 afetará o acesso aos monumentos não destruídos pela lama.

Cerco fechado A exemplo do que apontam a consultoria contratada e pedidos da Samarco encaminhados aos órgãos públicos, moradores e familiares de proprietários de terrenos da região confirmam as especulações por parte da empresa. Paulo Henrique de Andrade, 39 anos, conta que a Samarco sempre fez a sondagem de fazendas e terrenos que cercavam o subdistrito, o que evidencia a possibilidade de expansão das obras da empresa, em função da crescente extração de minério. A mineradora tentou negociar uma das fazendas em nome de José Felipe dos Santos (ex-sogro de Paulo Henrique) no distrito de Camargos, próxima à divisa com Bento Rodrigues. Simária Quintão, 42, moradora do subdistrito desde que nasceu, relata que, apesar dos rumores e das conversas amedrontadas, funcionários da mineradora garantiam que a empresa não pretendia tirá-los do local para construir outras barragens, e nem mesmo continuar expandindo as já existentes, destacando sempre que “o lugar deles [dos moradores] era ali”. Quando fala sobre as tentativas de compra dos terrenos

Vista panorâmica de parte da região que será alagada em Bento Rodrigues.

por parte da Samarco dentro do subdistrito, Simária nega qualquer investimento da mineradora. “Não, lá eles só compraram ao redor. Somente as partes maiores. A gente questionava, perguntava se iam tirar a gente… nunca falaram que iam tirar a gente de lá.” Documentos obtidos pela reportagem da Curinga atestam que a empresa efetuou, entre outros, a compra de propriedade medindo mais de 234 hectares de terra. A certidão de compra comprova que o loteamento está “próximo ao povoado de Bento Rodrigues”, fazendo divisas com o próprio terreno de José Felipe, além do Córrego Santarém, do Rio Gualaxo e do Córrego Mirandinha - áreas essas que seriam afetadas pelo projeto SDR Mirandinha. Na descrição dos relatórios de 2013, as planilhas de informações sobre a comunidade dão conta de que, ao final de cada entrevista, os pesquisadores contratados respondiam questões de percepção e análise comportamental em relação às respostas dos moradores. Naquele período foram estimados - sem que a população pudesse saber, de acordo com

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Samarco assumiu o controle do território de Bento Rodrigues desde o rompimento da barragem em 05 de novembro de 2015.

pedidos feitos pela própria Samarco à consultoria -, os valores de propriedades de 118 famílias. O número das indenizações, caso a mineradora decidisse comprar todas as casas no subdistrito, alcançaria cerca de R$ 19,5 milhões. Dentro desta análise, levantou-se o número de famílias proprietárias dos imóveis (quitados), a fim de diagnosticar o nível de dependência financeira e o grau de resistência dos moradores em relação à uma possível mudança do subdistrito. No processo de cruzamento dos dados a esse respeito, os relatórios constam que as pessoas que residiam entre 6 a 10 anos em Bento Rodrigues apresentaram alta resistência à possibilidade. Dentre elas, 75% revelou-se contra à mudança. As informações sobre as quais a mineradora possuía do local chegam a ultrapassar o conhecimento da Prefeitura. “É uma pena que nós não tivéssemos tido essa percepção antes. Eu não consigo nem me situar onde está essa barragem de Mirandinha”, admite o atual prefeito, Duarte Júnior (PPS).

Inversão de poderes A Prefeitura de Mariana nega que a administração tivesse qualquer conhecimento oficial sobre os planos da Samarco para o subdistrito. “Nós fizemos uma reunião com a mineradora cerca de 60 dias antes do acidente [do rompimento da barragem de Fundão], mas para falar sobre os investimentos que estavam sendo feitos para a área, como o asfalto. Nunca houve por parte da empresa alguma proposta de comprar aquela região”, afirma ele. Et labo. Lit vitia quatur sam Na reunião citada, exatamente no dia 6 de outubro de fuga. Ut vitiuri scius, corporec2015, o prefeito Duarte usam nonsendam, ut voloJúnior omni reuniu moradores para apresentar os planos para a comunidade. A moradora Simária utem. Ut dillab intor re destibus. Quintão, que presenciou o evento, conta que a população recebeu a notícia sobre o asfaltamento da estrada que liga o subdistrito a Mariana com entusiasmo, tendo em vista que a infraestrutura era uma promessa do atual e de governos anteriores à comunidade. Para ela, tal investimento da Prefeitura junto à Samarco simbolizava um acordo entre a empresa e o poder municipal para favorecer os projetos mantidos pela mineradora na região. “Eu vi como uma moeda de troca, assim como foi a vida inteira. A Samarco prometeu essa moeda de


troca para a prefeitura: fazer o asfalto de lá e em troca teriam a licença para fazer a Mirandinha”, suspeita Simária. O asfaltamento da estrada ligando Mariana a Bento Rodrigues se tratava, na verdade, de uma das obras incluídas no projeto “Estrada Parque - Caminhos da Mineração”, que previa ainda criar uma rota turística, com o asfalto entre Bento Rodrigues, os distritos de Santa Rita Durão e Camargos. Trechos do documento obtido pela reportagem indicam que a mudança da estrutura de transporte poderia se reverter em “credibilidade, respeito e admiração” pela mineradora. “Ainda, caso a empresa queira investir em visibilidade, poderia ser estabelecido no subdistrito um Centro de Apoio ao Visitante da Samarco, de maneira que a comunidade fosse referenciada não como impactada pelo empreendimento [Mirandinha], mas como uma parceira da empresa”, completa o trecho. Documento emitido em 2014 pela Supram CM mostra que a empresa Sete Soluções e Tecnologia Ambiental, responsável pelo registro de dados sobre o subdistrito, caracterizou a comunidade como pouco significativa economicamente: “O comércio de Bento Rodrigues é pouco diversificado, registrando-se grande dependência de Mariana. Observa-se a existência de bares e restaurantes, além de mercearias com pouca relevância em termos de geração de emprego ou mesmo de recolhimento de tributos”. Desorientado com tal afirmação, Duarte Júnior desconhecia a análise apresentada no documento, além de não possuir quaisquer dados sobre a economia do subdistrito. Para a Samarco, entretanto, o território de Bento Rodrigues havia se tornado cada vez mais importante para os negócios da empresa, conforme apontam os papeis de 2013. Em caso de não remanejamento da comunidade, a mineradora possuía como indicação elaborar um plano diretor para o subdistrito, com o objetivo “da ordenação e regularização no uso das áreas, tanto pela comunidade, quanto pelas empresas mineradoras presentes na região, pela população e eventualmente por novos investidores”. Sendo assim, a empresa se tornaria responsável por planejar o “desenvolvimento de Bento Rodrigues a curto, médio e longo prazo” - atuando, então, em uma tarefa que deveria ser exclusividade da Prefeitura. Ainda hoje, após a destruição da comunidade que já estava, indiretamente, sob seu poder, o território do que res-

tou do subdistrito continua às vistas da mineradora. Em setembro de 2016, dez meses após a tragédia, a Samarco foi autorizada pelo Governo do Estado a construir o dique S4 empreendimento que alaga cerca de 56 hectares da área já afetada, impactando o entorno de patrimônios tombados, como a Igreja de São Bento. A obra, segundo a mineradora, é uma medida “emergencial” para conter os rejeitos do Dique S3, além de controlar a lama durante o período de chuvas. De acordo com a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), órgão ligado ao Governo de Minas Gerais, o não impedimento à obra do Dique S4 levou em consideração “as discussões sobre as medidas que poderiam ser adotadas após o rompimento da barragem do Fundão. Com vistas a minimizar os danos à saúde e ao meio ambiente.” Para o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), que abriu inquérito para investigar o SDR Mirandinha, a suspeita é de que o Dique S4 seja uma obra com finalidades além

Ao fundo da imagem, avista-se o que restou da igreja de São Bento, do século XIX, e que agora corre o risco de ser inundado após obras da Samarco.

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das que foram anunciadas, inclusive voltadas para o retorno das operações da empresa e seus consequentes lucros. “A linha de raciocínio é de que a Samarco, com a alegação de que os diques são de segurança, na verdade projeta a construção de uma grande barragem ali no local [de Bento Rodrigues]”, afirma o promotor de justiça Carlos Eduardo Ferreira Pinto. O prefeito de Mariana diz concordar com a construção do Dique S4, aceitando as justificativas apresentadas pela Samarco. Segundo Duarte Júnior, a circunstância demanda que ele atue “mais como um observador do que fiscal”.

Novo Bento A estranha relação entre empresa e poder executivo permanece quando o assunto é o chamado “Novo Bento” e as demais “novas” comunidades a serem destinadas aos atingidos da tragédia de 05 de novembro de 2015. O Termo de Transação de Ajustamento de Conduta (TTAC), assinado pela Samarco junto aos governos Federal, de Minas Gerais e do Espírito Santo, em março de 2016, prevê o prazo de três anos para o término das obras. Com a responsabilidade, há expectativas de que a mineradora se envolva ainda mais diretamente com a Prefeitura de Mariana. Um novo cenário de infraestrutura entre o público e privado surge em meio às incertezas. “Nós, como município, acontecendo do novo Bento Rodrigues ser no terreno de Lavoura, temos como intenção asfaltar [a estrada que liga Mariana ao território]”, diz o prefeito Duarte Júnior. A promessa é a mesma realizada para a antiga localidade, há 35 Km de Mariana. A mineradora alega que “todos os aparelhos públicos” serão reconstruídos na nova comunidade de Bento, assim como os itens que possam remeter ao sentimento de pertencimento e memória dos moradores. O terreno de Lavoura, comprado pela mineradora e escolhido pelos antigos moradores como local para o “Novo Bento”, possui 350 hectares e está localizado a oito quilômetros de Mariana e a nove do subdistrito de Bento Rodrigues. De acordo com o antigo coordenador de reconstrução das comunidades, Alexandre Pimenta, foram realizados estudos de expectativas dos ex-moradores em relação aos novos ambientes. Porém, os problemas não se encerram aí. As casas possuem padrão limitado de construção, sendo quatro modelos de moradias, com três plantas. O TTAC prevê programas de recuperação ambiental e socioeconômica das áreas diretamente afetadas pela tragédia.

No caso do “Novo Bento”, um fator de risco nas proximidades do terreno escolhido para o recomeço preocupa as autoridades. O aterro sanitário de Mariana está a 2,5 quilômetros de Lavoura e pode prejudicar os planos da Samarco, tanto com relação aos prazos de entrega, quanto à oferta de novas ameaças à segurança e à salubridade da população. O prefeito Duarte Júnior alega que as obras não serão autorizadas caso o Município não aprove a construção da comunidade em Lavoura. A mineradora não comentou o caso. A Curinga tentou repetidos contatos com a empresa Samarco durante todo o processo de apuração da reportagem. A assessoria de imprensa da mineradora respondeu parte dos questionamentos por meio de notas padrões encaminhadas aos veículos de comunicação. Questionamentos específicos sobre as informações citadas durante o texto foram reencaminhados à Samarco, porém não se obteve respostas.

Desde junho de 2016, o único indício de exist ê ncia do “Novo Bento” era uma placa. A nova comunidade ainda é uma incerteza.


o mundo em mim CURINGA | EDIÇÃO 17

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Sensação

Texto: Alicia Milhorance Arte: Pedro M e n e g h e t i

Watu

Kwen,

o rio que morreu

Na língua dos Krenaks, a expressão Watu Kwen quer dizer: o Rio Doce morreu. Hoje não sei se quem fala é o Rio morto ou o morto Rio. Se ele pudesse voltar no tempo, teria tomado um outro rumo. Se estivesse congelado, talvez esse limo marrom não o tomaria por inteiro, nem conseguiria arrastar suas tristezas ao longo do seu leito.


Após 17 dias do rompimento da barragem de Fundão, a força destruídora dos rejeitos tomou conta de 663 km ao longo de toda a bacia do Rio Doce - pelos afluentes Gualaxo do Norte e do Carmo, na região central de Minas Gerais - consolidando o que ele vinha sentindo há algum tempo. Seu curso estava amargo e seu perecimento já era certo. A partir desse momento, a tragédia de Mariana deixava de ser o responsável somente pela morte do Watu, mas também a causadora de uma catástrofe em sequência em grande parte do litoral dos estados do Espírito Santo, Bahia e Rio de Janeiro. Destruição das matas ciliares, soterramento da serapilheira e do banco de semente, comprometimento da estrutura e função de ecossistemas, foram algumas das consequências que a devastação de 1.469 hectares. O duto aberto pela lama só acelerou o processo de degradação que já caminhava por uma amarga trajetória. Na última seca, suas forças já estavam muito reduzidas e era difícil conseguir desaguar no Oceano Atlântico. Abrangendo 83.400 km², sua bacia hidrográfica conseguia sustentar uma população de 3,5 milhões de habitantes e mesmo assim seu manancial era o 10º mais poluído do país. Hoje, a composição dos sedimentos encontrados em suas águas não é diferente dos componentes que eram detectados antes da tragédia, mas as concentrações estão muito mais acentuadas. Foram identificados 36 elementos da tabela periódica, dos 118 existentes. Por isso, não é de agora que sofre com o acúmulo de metais pesados lançados pela indústria siderúrgica e pela mineração, e seus “filhos” são os mais afetados. Uma pena que os Para os índios da etnia Krenak, o outros filhos (boa Watu (nome dado por eles ao Rio Doce) parte dos homens brané considerado mãe e pai do povo. Seus peicos) não pensem assim. Prova xes servem para a alimentação, sua água disso é a falta de cuidado do lado para matar a sede, para limpeza e ritude fora da reserva indígena, onde a ais. Seu território para os animais, sua saúde estava mais frágil. sobretudo daqueles que vivem A história do Rio Doce e a dos Krenas matas em seu entorno. naks nunca foi fácil. Originários do Baixo Eles não dependem apenas Recôncavo Baiano, eles chegaram até o Rio Doce, dessa área para sobrevivência, no século XIX. A partir de 1903, milhares de Kremas também para a manunaks foram sumindo à medida que fazendeiros vieram tenção de sua cultura. Para apossar-se das matas do rio para abrir seus latifúndios no os índios, o Rio Doce é a espaço geográfico onde se localizam hoje os municípios de sagrada fonte de vida. Resplendor e Conselheiro Pena, em Minas Gerais. Nessa época, o território por eles habitado foi palco da construção da ferrovia Vitória/Minas, da mineradora Vale, que atualmente é responsável pela Samarco, juntamente com a anglo-australiana BHP Billiton. Mineradoras, hidrelétricas e siderúrgicas, não é fácil aguentar. Não é nada fácil viver assim, com tanta exploração. Ele sentia que algo tinha acontecido, poderia acontecer, estava acontecendo...

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Watu hoje No estudo feito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em abril de 2016, identificou-se as principais mudanças causadas no ambiente marinho e apontou os possíveis impactos ambientais, como níveis de nitrato muito acima do estabelecido pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Dessa forma, três espécies de peixes (roncador, linguado e peroá) e duas espécies de camarão (rosa e sete barbas), em especial, passaram por análises. Grande percentual das amostras de espécies coletadas apresentou níveis de metais como chumbo, cádmio, manganês e arsênio acima do estabelecido pela legislação ambiental.

Ecos do Sistema Dentre as consequências do acidente que afetaram outros usos da água podem ser destacados: impactos na geração da energia hidrelétrica; na atividade industrial; na irrigação e pecuária; na balneabilidade e turismo e na pesca.

Em 75% das amostras de camarão rosa e em 100% das amostras analisadas de peroá foram constatados níveis elevados de arsênio. Além da contaminação, os relatórios apontaram a existência de estresse fisiológico nas espécies, além de outros fatores como o risco de eventual contaminação humana pelo consumo do pescado.

De doce agora, só carrega a esperança. Como dizia Drummond, “pedras de sangue e choro macularam a vertente”, sua água corre escura, densa e triste. Sofre sim, e há tempos sentia-se fraco. Hoje há uma dualidade de sentimentos na população acerca do futuro do rio Doce, para muitos a solução está na pesquisa idônea e independente, onde o foco não seja defender interesses de corporações e grupos políticos, mas sim preocupações da população e a busca por soluções viáveis e bem fundamentadas tecnicamente para amenizar os danos ambientais e recuperar a saúde ambiental dos rios afetados.


Comum

texto: priscila ferreira foto: janaína oliveira arte: fabiano alves

Limiar da mineração A primeira capital de Minas Gerais nasceu quando bandeirantes paulistas acharam ouro e outros tipos de minério em seu território. Os extrativistas vieram e ficaram. Isso aparece na missão da mineradora Samarco, que surgiu em 1977: “Produzir e fornecer pelotas de minério”. Os bandeirantes acreditavam neste mote. Extraíram as riquezas da colônia e exportaram para o império. Mariana traz no seu DNA a cultura da extradição: “O local se transformou em um dos principais fornecedores de minério para Portugal”, diz o website oficial da Prefeitura. A cultura da extradição é real, mas segundo o historiador Danilo Souza Ferreira, ela é também construção de uma classe que não aceitava ser reconhecida de outra forma. “A história de que Minas Gerais sobrevive só de mineração não condiz com a realidade. É uma formação de um mito criado pela nobreza daquela época”.

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O pacote da extração Minas Gerais, no século XVII, era conhecida como “quitandeira”, por conta da alta produção de comércios de pequeno porte. As mulheres livres lideraram essa forma de renda, mas a sociedade na época considerava a atividade efêmera. Já a extração era vista como um ofício de alto escalão. Por isso, a nobreza impulsionou essa atividade e apesar de não ser a única forma de renda, tornou-se a principal. Assim, o resultado da extração foi se reverberando ao longo dos anos. A Samarco é uma consequência de quase três séculos desse extrativismo que antecedem a empresa. Falar de Samarco hoje é, na verdade, falar de seus acionistas: BHP Billiton Brasil Ltda e Vale S.A, que possuem partes iguais na divisão do bolo, ou melhor do ouro. A australiana BHP Billiton é uma das maiores mineradoras do mundo. Em 2012, segundo a revista Exame, a empresa bateu pelo 12° ano seguido o recorde de produção de minério de ferro. “De acordo com a mineradora, sua produção aumentou 19% no ano fiscal encerrado em junho, para 159,5 milhões de toneladas”. Em 2015, menos de um mês antes do rompimento da barragem de Fundão, a mineradora anunciou que “aumentou sua produção trimestral de ferro em 7%”. Nessa mesma semana, a Vale anunciou, também, um “recorde de 88,2 milhões de toneladas de minério de ferro”. A Vale é a líder mundial na produção de minério de ferro, pelotas e níquel. No penúltimo trimestre de 2016, anunciou um ganho um lucro líquido de R$ 1,842 bilhão. O historiador Danilo Souza Ferreira explica que antes de serem sócias, em Mariana, as empresas eram rivais. “A Samarco surgiu na década de 1970, como estratégia do governo civil militar, e pelo aumento do investimento do capital estrangeiro no país. Naquela época, a BHP Billiton controlava toda as ações da empresa, mas por ser construída em

um território brasileiro servia de propaganda nacional.” Ele afirma que foi nessa década que surgiu o bairro Inconfidentes, na cidade de Mariana, como forma de abrigar os trabalhadores pertencentes aos maiores cargos da empresa. A Vila Samarco, outro bairro, foi construído para isolar o restante dos trabalhadores com o objetivo de facilitar o deslocamento da mão de obra “já que o que importava era a produção e não a condição.” Para isso a Samarco construiu hospital, escola e restaurante. Em paralelo, a concorrente Vale tinha estratégias diferentes. A empresa propunha que os seus trabalhadores fossem morar na cidade e tivessem um contato direto com a comunidade. Todas as vezes que os trabalhadores iam aos comércios da cidade, tinham que estar com o uniforme. Na época, a Samarco percebeu que essa estratégia resultou em uma profunda identificação com a empresa e começou a agir da mesma forma com os seus funcionários. Essa estratégia, segundo o historiador, tinha dois ápices: a identificação e a produção. Os moradores, observando os funcionários das empresas, que sempre estavam com o uniforme e alimentavam o comércio, passaram a acreditar numa suposta dependência da mineradora. “Ela realizou uma espécie de ‘manipulação’, para fazer frente a uma concorrência que mais tarde iria comprá-la.” Na década de 1990, a Vale comprou metade das ações da Samarco. E a ideia de que Mariana possui a mineração como única ou principal forma de renda foi se intensificando, inclusive pelos diversos projetos que a instituição começou a apoiar e investir nem toda a cidade.

Mais de 80% da arrecadação de Mariana vinha da mineração. Porém, a relação de benefícios enfrentou uma mudança no dia 5 de novembro de 2015


Caminhos a serem percorridos Desde novembro de 2015, o trabalho da Samarco deixou de ser mineração e tornouse de controle, na tentativa de frear os danos causados pela tragédia. “O Dique S4 a ser implantado, com previsão de janeiro de 2017, formará um lago na parte já impactada de Bento Rodrigues. (...) é a nossa última etapa [de contenção] antes do rio Gualaxo do Norte”, diz o coordenador da obra do Dique, Eduardo Moreira. A empresa não confirma a volta das atividades e também não nos informou as datas previstas. O futuro dos trabalhadores ou ex-empregados da mineradora também é incerto. Segundo o diretor do Sindicato Metabase de Mariana, Sérgio Alvarenga, os funcionários que foram demitidos terão prioridade na contratação quando a empresa voltar às suas atividades, contudo estes deverão passar pelo processo seletivo novamente. Luciano Gonçalves Martins, 40 anos, trabalhou na Samarco durante oito anos até ser convidado a participar do Pedido de Demissão Voluntária (PDV), iniciado em 2016. “Esse pedido de demissão voluntária foi só uma maneira de fazer pressão porque eu não arrumei outro emprego. Ou você saía ou quando começasse as demissões você iria embora sem nada”, conta o técnico em mecânica industrial. O PDV surgiu como estratégia para reduzir 40% do quadro de funcionários, ou seja, mais de mil empregados. De acordo com o Sindicato Metabase, a proposta partiu unicamente da mineradora, mas os representantes

dos trabalhadores sugeriram algumas modificações. “A colaboração do sindicato foi apenas de dar opções dos benefícios a serem incluídos no programa e lutar para que a proposta fosse decente.” Quem aderiu teve direito a plano de saúde por seis meses, meio salário por ano trabalhado - com teto máximo de R$ 7.500,00 - e cartão refeição durante seis meses”, explica o diretor do sindicato. A Samarco ainda alega que o pedido foi “construído em conjunto com os sindicatos Metabase (MG) e Sindimetal (ES) para minimizar os impactos dos desligamentos”. Luciano explica que após o PDV enfrenta dificuldades em pagar a faculdade, escola para os filhos e outras despesas. Além disso, vê problemas em voltar a trabalhar na empresa já que acredita que a prioridade não é a garantia do emprego. Por isso, resolveu se reinventar e migrar para outras atividades. O diretor do sindicato metabase Inconfidentes acredita em alguns caminhos para o futuro. “Essa empresa tem que ser estatizada e sob o controle dos trabalhadores”, explica. Também afirma que a segurança e saúde do trabalhador deve ser controlada pela própria categoria. “Nós acreditamos que todas as empresas de mineração, que têm maiores risco em atividade econômica, deveriam eleger comissões de trabalhadores para que eles mesmos assegurassem que acidentes como o rompimento da barragem de Fundão não acontecessem novamente”. O lugar que recebeu escravos e acolheu senhores propiciou, em 2014, a receita bruta de R$7,6 bilhões à mineradora Samarco.

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Comum

Justiça em desalinho Defensora mortal da lei e da ordem. Têmis, deusa grega, seria responsável pelo destino das ações judiciais. Hoje, observamos o ápice da litigiosidade. A tramitação de um processo pode levar algumas semanas, meses ou anos perdidos. Cada passo é ritualizado por uma sequência burocrática quase infindável. O maior desastre ambiental do Brasil já é também corroído pela morosidade da justiça.

Texto: Alex Galeno Arte: Mariana Ferraz

Na Constituição Federal do Brasil, vigora o dever que o Estado tem sobre o controle do meio ambiente. Segundo o 225º artigo, “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Caso isso fosse cumprido, ainda existiria Bento Rodrigues. As causas oficiais do rompimento da barragem de Fundão, que destruiu o subdistrito de Mariana, são incertas. Versões são rebatidas entre órgãos oficiais e a mineradora Samarco, mesmo passados 365 dias. A tragédia é classificada pelo IBAMA, em laudo técnico preliminar de novembro de 2015, como um “desastre de muito grande porte”. Tal designação refere-se aos prejuízos vultosos e de difícil superação pela comunidade. Segundo o relatório, a

barragem de Fundão possuía 50 milhões de metro cúbicos de rejeitos de minério. Com o rompimento, quase 70% desse volume foi despejado no meio ambiente e percorreu aproximadamente 664 quilômetros até desaguar no litoral Capixaba. A primeira multa prescrita pelo órgão se deu seis dias após o ocorrido. Hoje, já são totalizados sete autos de infração aplicados contra a mineradora Samarco. Juntos eles superam a marca de R$ 292 milhões que ainda não foram pagos aos cofres públicos. As multas continuam sendo contestadas em juízo pela mineradora. Dados do Tribunal de Contas da União (TCU), apontam que apenas 3% das multas ambientais aplicadas pelo Instituto são pagas ao Estado. Vale ressaltar que as multas aplicadas no Brasil são baixas quando comparadas a desastres internacionais. Em 2010, a British Petroleum pagou R$ 20,7 bilhões pelo vazamento de petróleo no Golfo do México.


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Processos No dia 10 de dezembro de 2015, foi instaurado, na justiça de Mariana, a Ação Civil Pública n. 0400.15.004335-6 para otimizar os processos movidos pelos atingidos contra a mineradora. Essa modalidade de processo permite que um coletivo de pessoas possa requerer na justiça uma indenização por um ato cometido contra todos os envolvidos. Sua principal vantagem é a de não cobrar o pagamento de honorários advocatícios e custos judiciais. De acordo com o Ministério Público Estadual, sem a ação conjunta, haveria a abertura de quase três mil processos. O promotor Guilherme Meneghin aponta que a ação civil em andamento envolve moradores dos distritos e subdistritos de Bento Rodrigues, Paracatu, Pedras, Ponte do Gama, Campinas e Camargos. Nas outras cidades impactadas, ocorre a abertura de processos individuais. Em Juiz de Fora, foram abertos mais de 30 mil processos e na cidade capixaba de Colatina, cerca de 15 mil. Após um ano da tragédia, o processo continua em fase inicial. Até este momento foram tomadas medidas emergenciais que pretendem amenizar o impacto sofrido por essas famílias que foram antigidas pelo rompimento. A ação civil transcorre com uma sequência de ritos diferentes. Antes do julgamento final do processo ocorrem várias rodadas de conciliação entre as partes envolvidas. Ainda não houve nenhuma decisão judicial e sim a consagração de acordos que assegurem os direitos dos atingidos, além do bloqueio de quase R$ 300 milhões da mineradora Samarco.

Por determinação do desembargador Afrânio Vilela, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), em 26 de janeiro de 2016, todos os processos relativos à tragédia de Bento Rodrigues foram deslocados da Justiça Estadual (primeira instância), em Mariana, para a Justiça Federal (segunda instância), em Belo Horizonte. A decisão partiu da análise de recurso da Samarco, que requereu a união dos processos das duas instâncias. Com este movimento, a mineradora solicitava que os processos fossem julgados em um mesmo âmbito judiciário, otimizando o desenvolvimento do processo. O promotor do caso em Mariana vê com estranheza essa situação de julgamento apenas na Justiça Federal. “Não pode um advogado trabalhando lá em Brasília querer decidir sobre o seu direito aqui em Mariana. Isso sem nunca ter pisado aqui e conversado com os antingidos.” O processo ficou parado por quase seis meses até o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir a quem caberia. Apenas em 23 de agosto de 2016, o STF decidiu fragmentar a ação: os crimes ambientais ficam na Justiça Federal, em Belo Horizonte e os de ressarcimento dos atingidos na Justiça Estadual, em Mariana. A desembargadora Diva Malerbi pautou seu relatório perante o inciso I do artigo 109 da Constituição Federal. “A competência é da Justiça Federal, uma vez que o acidente envolveu atividade de mineração, afetou um rio federal, e provocou danos em territórios de dois estados pertencente à União.” Na decisão ficou esclarecido que a “Justiça Estadual ficará apenas pelo julgamento de ações pontuais como forma de facilitar o acesso à justiça das pessoas atingidas pelo desastre ambiental”.

Os Tribunais Superiores estão sobrecarregados com processos de recurso, o que representa 89% de suas demandas.

Na justiça brasileira existe um total de 74 milhões de ações em tramitação até o final de 2015.

A ação civil pública em Mariana é composta por 21 volumes. Em média são 250 páginas em cada, ou seja, aproximadamente 5.250 folhas. Em Minas Gerais estão guardados em diversos galpões espalhados pelo estado, aproximadamente 40 milhões de processos. É algo equivalente a 300 quilômetros de pilhas de até um metro de papel.

A Justiça Estadual é o segmento responsável por 69,3% da demanda e 79,8% do acervo processual do Poder Judiciário.


Acordo Por meio de uma Ação Civil Pública, a União pretende firmar um acordo que custeará a recuperação da Bacia do Rio Doce. A ação foi celebrada entre a Samarco e os estados de Minas Gerais e Espírito Santo, sem a participação efetiva dos atingidos. O documento com 260 cláusulas foi costurado tentando atender aos interesses da mineradora. O acordo previa a destinação de R$ 20,6 bilhões de reais para a recuperação de toda a bacia hidrográfica. Esse valor seria pago em parcelas gradativas a partir de outubro de 2016. Em julho o STJ cancelou o acordo atendendo ao recurso do MPF. Segundo a ONU “o acordo ignorava os direitos humanos das vítimas, e sua suspensão é uma oportunidade perfeita para realizar uma completa revisão baseada em direitos humanos das devidas reparações e compensações para as vítimas, com transparência e participação pública”. A Samarco entrou com recurso solicitando a manutenção do documento e sua posterior homologação judicial.

Denúncia A tragédia, considerada como o maior desastre ambiental brasileiro com rejeitos de mineração, levou o país a ser denunciado à Organização dos Estados Americanos (OEA). Em 27 de maio de 2016, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em conjunto com 15 coletivos da sociedade civil apresentou relatório à OEA que aponta a falta de participação das cercas de 3,5 milhões de pessoas atingidas.

Despesas do Tribunal de Justiça de Minas Gerais em 2015 Recursos Humanos: R$4.396.909.894 (95% do total) Outras R$231.870.485 (5% do total) Total de gastos: R$4.628.780.379

No documento, são citados outros 13 casos de acidentes envolvendo atividades minerais que causaram danos socioambientais ao país. Na maioria deles ainda corre processo sobre a responsabilidade dos acidentes. As entidades criticam, no caso de Bento Rodrigues, a formulação de um acordo de reparação de danos que foi construído sem a efetiva participação dos reais impactados pela tragédia.

Corte de Haia Desde de 2009 o ativista político e Nobel da paz, Adolfo Pérez Esquivel defende a ideia de que os crimes ambientais sejam tipificados como crimes contra a humanidade. Essa definição tornará casos que resultaram na destruição grave do meio ambiente ao julgamento pelo Tribunal Penal Internacional (TPI). Conhecida como Corte de Haia (Holanda), a organização atua de maneira independente e possui funcionamento colaborativo com a Organização das Nações Unidas (ONU) que é responsável por designar os 18 magistrados que compõem a Corte. Em junho de 2016 foi aprovado pelo conselho da Corte que o julgamento de crimes ambientais passaria a fazer parte da jurisprudência do TPI. A legislação internacional passou por modificações para que situações como a do desastre provocado pelo rompimento da barragem de Fundão possa ter julgamento na jurisdição internacional, provendo a independência do veredicto em relação ao seu país de origem. Hoje, apenas casos que não estejam em tramitação no seu país de origem podem ser levados ao tribunal internacional.

Tempo de sentença na Justiça Comum – 1º grau: 3 anos e 10 meses Justiça Comum - 2º grau: aproximadamente 9 meses Números de Magistrados no Tribunal de Minas Gerais - Efetivos: 1015 / Vagos: 630

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Comum

Espreme qu Texto: Daniela Felix Foto: Gabriella Visciglia Arte: Lara Massa

Primeira

Semana

Seis

meses


ue sai lama

A mídia fez e continua fazendo perguntas relacionadas ao desastre ambiental provocado pela mineradora Samarco. E o modo como ela conta as histórias por trás das respostas importa. Pensando nisso, a Curinga realizou uma coleta de notícias relacionadas ao rompimento da barragem de Fundão, com o propósito de analisar os eventos e termos que mais receberam destaque. Foram escolhidos os jornais “Folha de S. Paulo” pelo número e variedade de leitores, “Estado de Minas” por estar inserido no estado de Minas Gerais, e “Brasil de Fato” por ser um veículo intitulado independente. A pesquisa foi feita com o auxílio do software Lippmannian Device, que possibilitou a coleta de notícias a partir de palavras-chaves como “Bento Rodrigues”, “Mariana”, “lama”, “Samarco” e “barragem”, publicadas durante a primeira semana, após seis meses e quase um ano depois do desastre. Foram analisadas cerca de 40 notícias por veículo e período de publicação, contabilizando mais de 300 textos.

Um

ano

PRIMEIRA SEMANA

SEIS MESES

UM ANO

(05/11/2015 ã 12/11/2015)

(01/05/2016 ã 31/05/2016)

(01/10/2016 ä 25/10/2016)

Brasil de Fato. Ineficiência do governo e órgãos de justiça em aplicar multas e punições aos responsáveis pelo desastre, memória e luta pela preservação do que restou. Estado de Minas. Construção do Novo Bento, polêmicas entre acordos e uniões, prejuízos causados pela lama, esquecimento das comunidades atingidas, possível reabertura da Samarco. Folha de S. Paulo. Apontamento dos erros cometidos pela mineradora, Acordão Samarco, depoimentos que remetem ao dia do desastre.

Brasil de Fato. Abrange majoritariamente o andamento de processos, multas e indenizações. Estado de Minas. Indenizações contra a Samarco e denúncia de integrantes da empresa por homicídio qualificado, construção do Dique S4, recordações do momento da tragédia. Folha de S. Paulo. Denúncia da cúpula da Samarco por homicídio qualificado, possível retorno do funcionamento da empresa.

Brasil de Fato. Discussão da culpa das empresas Samarco, Vale e BHP, histórico e consequências das atividades ligadas à mineração, relação entre o desastre de Mariana e outras barragens que já se romperam no Brasil. Estado de Minas. Uso massivo de imagens para mostrar a destruição, socorro e atendimento às vítimas, mortes e buscas por desaparecidos, percurso da lama. Folha de S. Paulo. Busca pelos desaparecidos, resgate dos corpos, avanço da lama.

LEGENDA: Brasil de Fato

Estado de Minas

Folha de S. Paulo CURINGA | EDIÇÃO 19

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Opinião

A cobertura midiática do maior desastre ambiental do Brasil

O primeiro contato dos atingidos com a mídia ocorreu logo após o rompimento da barragem de Fundão, no dia 05 de novembro de 2015. Eles avistaram helicópteros de emissoras de televisão sobrevoando Bento Rodrigues enquanto ainda aguardavam resgate. Na mesma noite, Mariana foi invadida por inúmeros profissionais dos mais variados veículos. Drones, câmeras de última geração, bloquinhos, canetas, gravadores. Para cima e para baixo. Em todos os cantos. Por uma, duas, três semanas. Depois, foram embora. As visitas começaram a ser bem menos frequentes. Deixaram a impressão de que haviam se esquecido do caminho, ou acabado o combustível. Mas neste último mês resolveram voltar. Drones, câmeras de última geração, bloquinhos, canetas, gravadores. Tudo outra vez. Passados 12 meses, a forma como a mídia retrata o maior desastre ambiental do Brasil ainda é discutida. A jornalista Márcia Amaral conta que existe um padrão entre as coberturas de catástrofes ambientais. Ela defende que os acontecimentos envolvidos em desastres exigem coberturas complexas, onde os veículos midiáticos deveriam exercer um trabalho crucial de investigação. Entretanto, não é o que acontece em grande parte das produções jornalísticas. Especialista em estudos das relações entre jornalismo e catástrofes, Márcia conta que, dificilmente, em uma primeira fase, o jornalismo dará conta de algo mais do que as consequências do desastre. “Pressionado pela necessidade de audiência e pela concorrência, raramente os veículos tradicionais conseguem ultrapassar o tom do espetáculo. Temos uma cobertura centrada no dia do desastre, com muitas dificuldades de configurar o antes (suas causas), o entorno (complexidade) e suas consequências”, afirma a jornalista. O infográfico apresentado no início desta reportagem comprova a teoria da jornalista, ao mostrar que os jornais “Folha de S. Paulo” e “Estado de Minas” priorizaram, em um primeiro momento, notícias relacionadas a busca pelos desaparecidos, desesperos, luto, dor e sofrimento. Para Márcia, o jornalismo deveria tomar para si um papel na comunicação de risco e na prevenção e alerta sobre desastres, o que não tem sido prática em nosso país. Outro desafio da mídia seria relacionar os desastres ambientais com as forças econômicas e sociais

que os cercam e os interesses envolvidos no caso. “O que faz um desastre chamado ambiental em países como o Brasil é muito mais do que a força da natureza, é, sobretudo, a vulnerabilidade social”. A estudante de jornalismo Marina Fortes pesquisa sobre a cobertura da mídia tradicional sobre o rompimento da barragem de Fundão, mas enfatiza o papel dos veículos independentes: “Acredito que são formas de enxergarmos além do que a mídia tradicional nos mostra”. A existência dessa “alternativa” é ilustrada no infográfico, pois nota-se como a cobertura do “Brasil de Fato”, feita por uma equipe de jornalistas, articulistas e movimentos populares, se diferencia dos demais veículos midiáticos. As reportagens se deslocam do nicho “espetáculo”, para se aprofundar em outras problemáticas, como o histórico da mineração no Brasil. Marina também defende a importância das redes sociais nos dias de hoje: “No Facebook do jornal Zero Hora, por exemplo, os leitores reclamaram e pediram por uma reportagem mais aprofundada. Era uma cobertura com poucas fontes, sem estabelecer quem foi culpado, falando mais das consequências do desastre. Essa cobrança desencadeou a série de reportagens especiais entitulada “Rota da Lama”. O que mostra que com a tecnologia o público pode influenciar e modificar a agenda midiática”. Segundo a estudante, ambas as alternativas surgem como uma possibilidade de não deixar a tragédia cair no esquecimento. O jornalista Reges Schwaab insiste que o trabalho de “nomear, juntar as peças, estender a cobertura a danos que seguem afetando muitas pessoas e lugares assim será por muito tempo. Essa cobertura não tem hora pra fechar, nem pode parar.” Evitar que as localidades afetadas pela lama desapareçam é, inclusive, é uma pauta amplamente discutida e definida como uma das principais funções dos veículos de comunicação. Entretanto, nota-se que a mídia, depois de um certo tempo, tende a perder o interesse por determinado assunto. Ao mesmo tempo, deixa de explorar alguns acontecimentos em detrimento de outros, como mostra o infográfico. Termos como “Rio Doce”, “Valadares”, “Vale” e “BHP” possuem uma oscilação de frequência muito maior que “Mariana”, “Bento Rodrigues” e “Samarco”, pioneiros na coleta dos dados. A lama é também da cobertura.


IMPRESSÃO: MJR EDITORA GRÁFICA Rua Carlos Pinheiro Chagas, 138 - Ressaca CEP: 32.113-460 - Contagem - MG tel: (31) 3357-5777



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