Revista Curinga Ed. 17

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Revista Laboratรณrio | Jornalismo | UFOP

Junho de 2016 | Ano VI

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Expediente Curinga é uma publicação da disciplina Laboratório Impresso II. Revista produzida pelos alunos do curso de Jornalismo da Ufop. Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA). Departamento de Ciências Sociais, Jornalismo e Serviço Social (DECSO). Universidade Federal de Ouro Preto. Professores responsáveis Frederico Tavares - 11311/MG (Reportagem) Talita Aquino (Planejamento Visual) André Luiz Carvalho (Fotografia) Editores de Texto Anna Chaves, Caio Aniceto Editoras de Arte Clarissa Castro, Letícia Cristiele Editores de Fotografia Caroline Hardt, Eduardo Rodrigues Editores de Multimídia Gabriel Campbell, Mariana Macedo Botão Redatores Aleone Higidio, Ana Rafaela, Gabriela Ramos, Gabriela Santos, Ingridy Silva, Júlia Cabral, Laene Medeiros, Lorena Lima, Moises Mota, Monique Torquetti, Rayssa Amaral, Sílvia Cristina Silvado, Thaís Medeiros, William Vieira. Diagramadores Brunello Amorim, Camila Gonçalves, Carol Rooke, Fábio Melo, Igor Capanema, Mariana Rennó, Lara Cúrcio, Luísa Rodrigues, Rodrigo Almeida, Taíssa de Faria, Thatyanna Mota. Fotógrafos Anna Flávia Monteiro, Cleo Silva, Francielle Oliveira, Gabriella Pinheiro, João Vitor Marcondes, Larissa Pinto, Lívia Monteiro, Lucas Campos, Mariana Araújo, Thiago Barcelos, Wendell Soares. Arte das capas Clarissa Castro Foto da capa Thiago Barcelos Monitores Felipe Augustos Passos Catarina Barbosa Agradecimento especial ao Prof. Dr. Mauro Koury (UFPB) Endereço: Rua do Catete, 166 - Centro 35420-000, Mariana - MG Junho/ 2016 Curinga Online: www.revistacuringa.ufop.br

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Revista Curinga


Pesadelos Ensaio: enclausurado

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Ecos do passado

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temer pelo Brasil?

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cultura de tormentos

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Preconceito que mata

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Posso?

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Ser quem sou

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Foto: Eduardo Rodrigues


EDITORIAL Desde sempre, ele se fez presente. Sussurrando, à espreita. Sua chegada se anuncia nos calafrios, nos tremores e nos silêncios da escuridão noturna. Entre marteladas de coração, gritos no peito e inspirações ofegantes, ele aflora o que há de mais primitivo na existência humana. Nesta edição da Curinga, exploramos as várias faces do medo, da parte mais obscura do inconsciente até seu papel essencial nas pequenas batalhas do cotidiano. Pela primeira vez, invertemos nosso modo de olhar. Olhamos primeiro para o mundo em nós, passamos por uma travessia e chegamos ao nosso próprio papel no mundo. De um mundo de medos para outro, de enfrentamentos. O sentimento de clausura, paralisia e impotência provocados pelo medo encontram representação na fotografia e na identidade visual que demos à revista, equilibrando tonalidades escuras e cores vivas, com o objetivo de evidenciar a dualidade presente na narrativa deste exemplar: a luz e a sombra, o terror e a coragem. Quando olhamos para o mundo em nós, encontramos temores intransponíveis e que muitas vezes não podem ser explicados. Abrimos a edição com um ensaio fotográfico sobre fobias, estas que representam o terror em sua forma mais pura. Nos porões da tortura, encontramos os fantasmas do passado, e seus ecos resvalam sobre o presente. O futuro, no entanto, é incerto, e permeado de receios. Atravessamos também pelo fascínio que o desconhecido nos provoca: se o sono da razão produz monstros, identificamos nas lendas e na cultura popular narrativas que procuram explicar os mistérios que a humanidade não solucionou - além de tudo aquilo que nos repulsa e que, ao mesmo tempo, nos atrai. Ao refletir sobre nosso lugar no mundo, refletimos sobre o medo da morte e da opressão. O medo, no entanto, possui um papel mais importante - sem ele, nossa espécie jamais teria sobrevivido. Como o dia e a noite, os temores se transformam dentro de nós. Nas próximas páginas, desafiamos você a encarar o abismo e permitir que ele te olhe de volta. Boa sorte! Caio Aniceto e Anna Chaves


MUNDO EMMIM

Foto: Caroline Hardt

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Sensação

Texto: Monique Torquetti Fotos: Larissa Pinto e Thiago Barcelos Arte: Mariana Rennó


Enclausurado Pânico. Incapacidade. Sudorese. Taquicardia. Falta de ar. Formigamento. Ansiedade. Já pensou em passar por tudo isso? São sintomas de alguém diante de uma fobia, transtorno que atinge cerca de dez por cento da população mundial. “Nome genérico de várias espécies de medo mórbido, aversão a alguma coisa”, é como a fobia é descrita no dicionário Michaelis. Já o medo é caracterizado como “perturbação resultante da ideia de um perigo real ou aparente da presença de alguma coisa estranha ou perigosa; pavor, susto, terror. Apreensão.” A fobia vai além do pavor comum. É fruto de um medo acentuado, imobilizador e faz com que as pessoas busquem se esquivar daquilo que temem. Distingue-se por ser algo irracional, que na maioria das vezes escapa do controle. Sua origem varia: pode ser resultado de traumas provocados na infância, mas sua causa, às vezes, é mais obscura. Está relacionada a instintos da espécie humana, desenvolvidos ao longo da sua evolução. Lugares fechados, escuridão, animais e até palhaços. São muitas as facetas do medo, e ninguém está livre delas.




Identidade


Identidade

Ecos do passado Texto: Moises Mota Foto: João Vitor Marcondes Diagramação: Rodrigo Almeida Um feixe de luz surge no breu do espaço. Não vejo quem está do outro lado, mas posso sentir a dor que me espera. Amarrado pelos punhos, sou arrastado pelo chão como um saco. Sujo e machucado, sangro pelas mãos. Penso em gritar, pedir ajuda, mas seria uma glória para meus algozes ouvir o grito daquele que implora por um fio de vida. Desisto da insana tentativa de escapar do então desconhecido. Jogam-me no canto de uma sala. Recebo, aos montes, socos e pontapés; perco um dente. Mas não fará falta, não há motivos para sorrir. Pelos cabelos, sou levado a um tambor com água e creolina. Por lá fico torcendo para que meu corpo não resista, que a libertação venha de outra maneira. Eles gritam, mas não os escuto mais. O ambiente se torna instável, tomo um soco na barriga, perco a respiração. Caio no chão. Em uma cadeira de ferro, levo um tapa, sinto gosto de sangue. Fios são amarrados em meus pés, nas mãos, dentro do nariz, nos ouvidos e na boca. De um aparelho qualquer, partem cargas elétricas. Recebo um choque que atravessa meu corpo. Minha carne enrijece, mordo a língua de dor, grito, urro. Outra carga, mais forte, mais dor, mais grito. Desmaio. Éter é jogado no meu ânus, sinto dor descomunal, grito e peço a morte, eles riem de mim. Mais éter é colocado e sinto minha garganta apertar. Minha língua fica inchada. Pauladas na cabeça, chutes nas costas. Tenho as unhas arrancadas. Dor. Em um instante, sinto que os golpes não são agressivos como antes, os choques são mais fracos, a dor vai sumindo, acho que eu também estou sumindo. A escuridão volta, e, com ela, o silêncio. Já não sou eu, já não existo aqui.

Relato construído a partir de depoimentos de torturados políticos no período ditatorial de 1964 no Brasil.

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O SR. JAIR BOLSONARO (PSC-RJ.) - Neste dia de glória para o povo brasileiro, um nome entrará para a história nesta data pela forma como conduziu os trabalhos desta Casa: Parabéns, presidente Eduardo Cunha! (Manifestação no plenário.) O SR. PRESIDENTE (Eduardo Cunha) - Como vota, deputado? O SR. JAIR BOLSONARO (PSC-RJ.) - Perderam em 1964. Perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve... Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do Cel. Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff! (Aplausos no plenário.) O SR. PRESIDENTE (Eduardo Cunha) - Como vota, deputado? O SR. JAIR BOLSONARO (PSC-RJ.) - Pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, por um Brasil acima de tudo, e por Deus acima de todos, o meu voto é “sim”! (Manifestação no plenário.)

“(...) vivemos em uma ‘democracia capenga’. Temos ainda os entulhos da ditadura introduzidos no governo pela Constituição Federal.” Amelinha Teles

O discurso proferido pelo deputado Jair Bolsonaro em 17 de abril de 2016 incitou mais um embate entre direita e esquerda. Frases lidas pelo deputado carioca foram pensadas com o objetivo de desestabilizar parlamentares contrários ao processo de impedimento da presidente, e alcançaram sucesso. Suas falas pesaram sobre a bancada progressista e foram respondidas mais diretamente pelos deputados que vieram após sua fala: Jandira Feghali (PCdoB-RJ) e Jean Wyllys (PSOL-RJ), este que chegou a lançar uma cusparada na direção de Bolsonaro em ato de protesto. Os elogios e menções foram entendidos como agressões pessoais aos inimigos políticos da bancada progressista e à presidente afastada Dilma Rousseff. Em sua fala, Bolsonaro foi contra as políticas educacionais que promovem a igualdade de gênero. Foi contra o comunismo e a conferência de partidos políticos de esquerda da América Latina, o Foro de São Paulo. O voto do parlamentar questionou os preceitos democráticos. A jornalista Míriam Leitão foi presa no período militar. Em sua coluna no jornal O Globo do dia 18 de abril de 2016, questionou a postura do deputado: “A democracia tem mesmo que conviver com quem a ameaça, como o deputado Jair Bolsonaro? Há quem considere que a democracia é um regime tão tolerante que convive até com quem queira acabar com ela. Será?”. Essa instabilidade política que hoje vivemos fez com que muitas pessoas relembrassem os anos de exceção do país, e, com isso, um medo de que voltemos a esse período. A viúva do jornalista Vladmir Herzog, Clarice Herzog, tem dúvidas quanto ao futuro do país. “Algumas vezes me dá

uma certa insegurança porque não sei se o país está estruturado, forte, fazendo as coisas acontecerem”, afirma.

O torturador Ustra é considerado ícone da tortura no Brasil no período militar. O vereador da cidade de São Paulo, Gilberto Natalini (PV-SP), foi torturado pelo chefe do Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) e explica essa alcunha. “Ele era chefe de um centro de tortura e morte. O DOI-Codi era uma coisa horrível, só quem entrou lá e viveu aquilo é que pode dizer”, relembra. O pai do coronel Ustra, Célio Martins Ustra, e seu tio, Lupes Ustra, participaram da Coluna Prestes. Seu tio morreu durante a marcha e seu pai revoltou-se contra Carlos Prestes por ter abraçado o comunismo como causa política. De seu progenitor, herdou essa ojeriza pela luta de esquerda e pelo comunismo. Nos anos de chumbo, Ustra tinha como missão “combater terroristas que queriam implantar o comunismo no Brasil”, e assim comandou o DOI-Codi a pedido do general José Canavarro Pereira, ex-comandante do 2º Exército. Recebeu essa incumbência como uma missão, conforme disse em entrevista ao jornal Zero Hora em março de 2014. Ainda nessa oportunidade, afirmou que as acusações feitas contra ele por crimes cometidos têm a ver com a “ideologia comunista” e “revanchismo, raiva de terem perdido a guerra”. Contudo, manteve uma rotina doméstica ao lado da mulher, Maria Joseíta Silva Brilhante Ustra. Seu segundo livro, “A Verdade Sufocada” (2006), que está na sexta po-


sição dentre as obras mais vendidas no país, conforme publicou o jornal Folha de S. Paulo de 3 de junho de 2016. O coronel reformado, falecido em 2015, foi declarado torturador pela justiça de São Paulo na ação proposta pela família Teles, por ter torturado Maria Amélia Teles, o marido, César Teles, a irmã, Criméia de Almeida, pelo sequestro dos filhos do casal e pela morte de Carlos Nicolau Danielli em 1972. A família Merlino também abriu um processo por danos morais contra Ustra pela morte do jornalista Luiz Eduardo Merlino, assassinado aos 23 anos em 1971.

encontram-se aquelas que pedem a punição aos torturadores e a localização dos restos mortais dos desaparecidos.” Rousseff também foi vítima da repressão do período militar, presa e torturada na Operação Bandeirantes (Oban), em São Paulo. Sobre o episódio, Dilma disse em outubro de 2001 ao filósofo Robson Sávio: “O estresse é feroz, inimaginável. Descobri, pela primeira vez, que estava sozinha. Encarei a morte e a solidão. Lembro-me do medo quando minha pele tremeu. Tem um lado que marca a gente pelo resto da vida”. A Comissão Nacional

Justiça

“Algumas vezes me dá uma certa insegurança porque não sei se o país está estruturado, forte, fazendo as coisas acontecerem”.

No primeiro mandato da presidente afastada Dilma Rousseff foi sancionada a lei 12.528/2011, que cria a Comissão Nacional da Verdade (CNV), com o objetivo de investigar e propor ações sobre o dever de memória e crimes contra os direitos humanos cometidos no período 1964-85. Para Maria Amélia Teles, mais conhecida como Amelinha Teles, o trabalho da comissão terminou com algumas lacunas: “A CNV não aprofundou na pesquisa dos arquivos militares e nos arquivos do Ministério das Relações Exteriores porque não tiveram acesso aos documentos. Este Ministério se negou a colaborar com as investigações.” E completa: “em que pese tudo isso, a Comissão tem um valor político enorme. No relatório final, apresentaram uma lista com 377 nomes de torturadores. Entre as 29 recomendações,

Clarice Herzog da Verdade foi composta por sete membros no âmbito da Casa Civil da Presidência da República. Esse trabalho teve como resultado um documento dividido em três volumes, que somam 4.328 páginas. O relatório final foi entregue à presidente Dilma em cerimônia oficial no Palácio do Planato, no dia 10 de dezembro de 2014, somando assim 134 semanas de atuação.

Dever de memória Amelinha Teles foi presa em São Paulo juntamente com a família. Hoje

ela movimenta a bandeira da memória e sempre fala sobre o que viveu durante sua prisão política. Para ela, “aqueles crimes cometidos pelo estado terrorista de exceção aconteceram e não foram apurados e julgados como deveriam. Leis autoritárias ainda existem”, reflete. Em 2014, o Índice de Confiança na Justiça Brasileira (ICJBrasil) realizou uma pesquisa que aponta um alto índice de receio da população nas instituições democráticas. Segundo o estudo, 65% das pessoas não confiam nas forças políciais, 70% no poder judiciário e 93% nos Partidos Políticos. Mesmo com todo o nosso histórico de repressão e crimes contra os direitos humanos, 67% das pessoas entrevistadas acreditam nas Forças Armadas. Segundo Maria Amélia Teles, temos um entulho autoritário em nossa constituição, que é a militarização da polícia. “O estado repressivo se mantém hoje com mais de 20.000 desaparecidos; na sua maioria, pobres, negros, moradores de periferias”, diz. Nosso estado democrático vive o presente com sombras do passado e isso ocorre no dia a dia, principalmente nos grandes centros urbanos. Para Míriam Leitão, “esse processo de resolver o passado não foi enfrentado pelo Brasil”. Segundo ela, as forças repressoras estão presentes. “Eles estão lá, eles pensam a mesma coisa, eles reproduzem o mesmo pensamento, eles ensinam para os jovens as mesmas coisas; nos colégios militares, é a mesma coisa, esse pensamento se reproduz. É um pensamento antidemocrático e perigoso”, conclui.

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Comum

Texto: Ana Rafaela e Silvia Cristina Silvado Fotos: Cleo Silva Arte: Thatyanna Mota

Você TEME pelo Brasil? Incerteza e medo são palavras que definem a situação política e econômica do Brasil


O Brasil tem sido palco de momentos extremos na política. As indefinições deixam os brasileiros à espera de desdobramentos, quase sempre inesperados. Completa o quadro incerto a crise econômica. Para o doutor em Ciência Política, professor da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Antônio Marcelo Jackson, o contexto nacional pode ser traduzido como um labirinto. Tem raízes na própria formação social brasileira, com fortes relações escravistas que ele afirma ainda existirem, além de ser uma sociedade patrimonialista, onde o cidadão não distingue o público do privado, se apropriando da coisa pública em seu benefício. Na avaliação de Jackson, a classe política não difere do restante da sociedade e leva essas características para as esferas do poder. No governo interino Michel Temer, podem ser consideradas ações patrimonialistas as nomeações para os Ministérios, com nomes vinculados a seu interesse particular e partidário, mesmo envolvidos em inúmeras denúncias. Sobre o afastamento da presidente Dilma Rousseff, na perspectiva econômica, Antônio Marcelo acredita que foi positivo para alguns atores, como o governo dos EUA, já que com Temer há uma tendência a um enfraquecimento do Brics grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Para o professor de Ciências Econômicas da Ufop, André Mourthé, o governo interino tende a uma política unilateralista, mais alinha-

da aos EUA, em detrimento do multilateralismo, que priorizava as relações com o Brics, sobretudo. A política foi determinante no processo de crise econômica. Além dos problemas do governo na condução da economia, a oposição inviabilizou várias tentativas de saída da recessão. “É só lembrar as pautas bombas colocadas pelo Congresso em 2015, aumentando despesas em dezenas e dezenas de milhões”, diz Mourthé. Segundo ele, isso cria uma expectativa desfavorável, uma situação de ida para o descontrole absoluto, somado a um governo sem capacidade de reagir. Conclui que parte da responsabilidade pela crise cabe também à oposição.

O começo da crise O governo Luís Inácio Lula da Silva (2003/2010) foi um momento de intenso crescimento. O ex-presidente contou com a sorte em quase todo o seu mandato, com um contexto internacional favorável, que aproveitou. Mesmo vivenciando a crise internacional de 2008 e 2009, adotou uma política econômica para aliviar seus impactos no país. Nem o processo do mensalão foi capaz de atingir significativamente seu governo e popularidade. Dilma não teve a mesma sorte. O contexto internacional ficou mais grave entre 2013 e 2014 com a desaceleração da China; a crise recessiva europeia ficou mais aguda, o que contribuiu para o

agravamento da crise no Brasil. A queda do preço das commodities também foi negativo, já que o país tornou-se muito dependente da exportação desses produtos no mercado externo. A crise brasileira se agravou entre 2013 e 2015 por diversos motivos, destacando-se os erros na gestão do governo Dilma, os problemas políticos enfrentados por seu governo e o contexto externo desfavorável. Para o ex-professor da Universidade de Campinas (Unicamp), especialista em Finanças Públicas, Fabrício Oliveira, a crise, na verdade, está anunciada desde o governo Lula, que não enfrentou os problemas econômicos estruturais. Assim, não conseguiu resolver as limitações que travavam a economia para ingressar num período de crescimento mais sustentável. No segundo mandato de Lula, a política anti crescimento adotada no primeiro foi mantida, mas começou a ser flexibilizada para dar maior sustentação ao crescimento com o objetivo de realizar investimentos em infraestrutura econômica. Porém, a iniciativa de um crescimento sustentável foi interrompida pela crise internacional das hipotecas de alto risco nos EUA, a crise do subprime, que começou em 2007 e se tornou mais aguda em 2008. Isso prejudicou os efeitos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e o governo voltou-se para a promoção de uma política anti cíclica para aliviar os efeitos dessa crise no Brasil. Essa política foi apoiada na expansão

Ato pró-Dilma e contra Temer na Avenida João Pinheiro, Belo Horizonte, MG, no dia 15 de maio de 2016.

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do consumo com a liberação de crédito, ampliação dos programas sociais, das transferências diretas de renda, incentivo aos investimentos, obtendo uma taxa de crescimento de 7,6% em 2010, mas causou várias rachaduras no modelo adotado. A inflação deu mostras de acelerar e os superávits primários, que eram o compromisso assumido, caíram. Quando Dilma assumiu, o modelo apresentava vários problemas. Segundo Fabrício, ela tinha duas opções: corrigir os problemas do modelo ou mudar o próprio modelo.

Governo Dilma Entre corrigir os problemas e continuar com o modelo ortodoxo, ou mudar a política econômica, o governo Dilma optou de início por corrigir os problemas. Porém fez uma política inversa a que foi feita no final do governo Lula. O ex-presidente adotou a política anti cíclica, para manter o crescimento, a dela o restringiu para amortecer as pressões inflacionárias, permitir ao estado voltar a gerar superávits primários mais elevados, entre outros motivos. A partir de 2010, o mundo se recuperou da crise do subprime e se de-

MARIANA e REGIÃO

1745 postos de trabalho deixaram de existir na cidade.

parava com a dívida soberana europeia em um momento em que o Brasil passava por uma política econômica restritiva. Com uma desaceleração muito forte, o governo modificou a política em meados de 2011. Para Fabrício, essa modificação sem a realização das reformas estruturais foi problemática. “Com uma política econômica inconsistente; taxas de juros nas alturas; problemas de infraestrutura econômica que aumenta muito o custo Brasil e não dá competitividade à produção nacional; problemas no mercado de trabalho; problemas do estado pesado. Nesse quadro internacional desfavorável; vários problemas internos, a política econômica adotada no segundo governo Dilma não poderia dar certo”, analisa. Outro agravante, segundo Mourthé, foram as escolhas erradas da equipe econômica. Apesar disso, ele acredita que o governo teria condições de recuperar o quadro se houvesse condições políticas para isso. “A economia já bateu no fundo do poço. Se fizermos uma análise de mercado simples, não estava afundando mais”, conclui. Em sua concepção, o processo de impeachment da presidente Dilma foi

apressado porque a oposição fez uma leitura de que haveria possibilidade do governo recuperar a economia.

A crise em Mariana No segundo semestre de 2015, com o agravamento da crise, os setores de comércio e serviços começaram a demitir mais expressivamente. Morador de Mariana, MG, Frederico Ferreira, 41 anos, há três sem emprego, cortou gastos: fechou conta no banco, vendeu o carro e cortará a internet. “As pessoas no Brasil não são preparadas para viver momentos de crise. Está sendo muito difícil. Tenho três filhos e estou conseguindo me sustentar com parte da renda que obtive nos 14 anos empregado, mas agora acabou e estou dependendo exclusivamente de conseguir um emprego”, conta Frederico. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), divulgados em maio pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o desemprego subiu em todas as regiões do país. Em Minas Gerais, já são 1,2 milhão de desempregados e o setor que mais de-

Foram criadas, em Mariana, nos 4 primeiros meses de 2016, 777 vagas de emprego. No primeiro trimestre de 2016, foram pedidos no SINE 458 seguros desemprego.

O número de desempregados na região subiu 40% com o fechamento das empresas Samarco e Vale.

O SINE atende por mês, em média 2500 pessoas.

20% da população está desempregada, ou seja, mais de 11 mil pessoas.


sempregou no estado foi a indústria, com redução de 11,4% de vagas. De acordo com o Sistema Nacional de Emprego (SINE) de Mariana, no eixo Mariana/Ouro Preto/Antônio Pereira, as vagas não atendem a todos os cadastrados no banco de dados. “Temos em torno de 150 a 200 vagas, mas não atendem nem 10% do número de desempregados”, enfatiza Gustavo Ribeiro, coordenador do SINE de Mariana. Agravando a situação, o número de desempregados na região subiu 40% com o fechamento de duas empresas importantes: a mineradora Samarco S.A., que interrompeu suas atividades desde novembro de 2015, e a Vale Manganês S.A., que encerrou 160 postos de trabalho. “O fim das atividades das empresas na região, afeta a cidade como um todo. Cai o rendimento dos trabalhadores e da cidade. Como consequência, o comércio começa a demitir também”, comenta o coordenador do SINE. Para ingressar no mercado de trabalho a situação é mais complicada. As vagas exigem experiência mínima. “Candidato sem experiência não está tendo chance. De janeiro até agora ainda não vi”, enfatiza Gustavo.

A estudante da Ufop, Lissa Trench, 23 anos, está passando por isso. “Não encontrei nada, está muito difícil conseguir algo. Exigem experiência, mas ninguém quer oferecer o conhecimento”, afirma.

Perspectivas Sobre o futuro, nenhum especialista ousou ir muito além, já que o quadro é bastante incerto. Antônio Marcelo analisa que o governo Temer mostrou-se inviável desde o início. Ele acredita que Dilma pode voltar ao poder, mas o problema continua, porque a realidade da formação da sociedade brasileira não se altera. Para ele as perspectivas não são nada boas: “Já tivemos dois anos perdidos, vamos completar quatro”, diz. Sobre a equipe econômica do governo Temer, Mourthé diz ser uma equipe muito conservadora: o pobre não caberá no orçamento. “É aquela perspectiva economicista: vamos tentar equilibrar o orçamento, mas sabemos que isso para eles significa corte, que acaba provocando ainda mais recessão no curto prazo, então acaba intensificando a crise e agrava sig-

nificativamente a crise social”, diz. Para o economista, eles criarão uma narrativa de que isso é positivo, que a perspectiva e construção desse equilíbrio é importante. “Ninguém quer uma dívida descontrolada, sabemos o que isso significa, mas para se obter um equilíbrio da conta existem estratégias diferentes, formas de produzi-las diferentes”, argumenta. Ele acredita que é possível o país voltar a crescer, mas a desigualdade social também crescerá. “O problema é combinar com a sociedade se ela vai aceitar ou não a expansão dessa desigualdade. Eu acredito que não, então teremos períodos turbulentos”, opina. Desde que assumiu, Temer é alvo de manifestações populares contra seu governo, que questionam sua legitimidade e as medidas propostas, consideradas por muitos como ameaça aos direitos sociais conquistados. Apesar disso, Mourthé diz que ele tem apoio: “Da justiça, da mídia, da finança. Isso não significa que o andar de cima seja monolítico, tem divisões ali dentro. Mas ele está agora na coalizão mais articulada e forte. Não sei definir se ela vai quebrar ou não no curto prazo, mas pode quebrar”, conclui.

Fila em frente ao SINE Mariana em 23 de maio de 2016.

BRASIL

Índice de desemprego durante o governo Dilma 2012: 5,5% 2013: 5,4% 2014: 4,8% 2015: 8% 2016: 11,2% (primeiro semestre)

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Habitar Habitar

Depois da lama, depois de Bento Sete meses após o maior desastre ambiental do Brasil, o que resta é conviver com o medo do que está por vir José das Graças Caetano, conhecido como Zezinho Café, de 63 anos, mora atualmente no Jardim Santana, em Mariana. Mas nem sempre foi assim. Há mais de sete meses, as cartas endereçadas a ele chegavam à Rua São Bento, número MG 420, no subdistrito de Bento Rodrigues. A mudança aconteceu depois do dia cinco de novembro de 2015, quando Zezinho voltava da Cachoeira do Ouro Fino e foi alertado pela vizinha, Paula, de que a barragem havia rompido. Só com a roupa do corpo, sem se importar com mais nada além de sua filha e suas duas netas, ligou o carro e foi até a casa delas. No caminho salvou várias pessoas e não teve como não olhar na direção da onda de lama que destruiu cada canto de Bento. Essa visão ficou presente por muito tempo na cabeça de Zezinho. Junto à ela, permaneceu o medo. No dia da tragédia, este medo apareceu como a incerteza do que seria dali para a frente. Sete meses depois, ele não mudou. A principal insegurança das pessoas que tiveram que abandonar suas casas e seguir rumo a um futuro que não planejaram é o hiato de três anos, que divide o presente até o prazo que a Empresa Samarco S.A. pediu para a construção da nova Vila de Bento. Bruno Carneiro Gonçalves, 19, morava em Paracatu de Baixo. Seu maior medo é que a desunião entre as pessoas continue. “Aqui fica um em cada canto. Aqui você sai na rua, todo mundo é desconhecido”, conta. Bruno tem medo do futuro porque sabe que, enquanto ele não chega, as consequências do cinco de novembro de 2015 vão se materializando. Uma delas apareceu no seu pai, que hoje está com depressão. Não foram poucas as pessoas que ficaram com sequelas. Para me receber na atual casa de cinco cômodos em que mora, Zezinho explica que lembrou de tomar dois comprimidos porque “não ia dar conta de conversar”. Ele já tinha histórico de depressão, mas depois que perdeu a vida que tinha em Bento, a situação se agravou. Quem tomou os mesmos remédios para nossa visita a Bento Rodrigues foi Dona Enedina Fernandes Pereira, 56.

Ela nunca precisou de antidepressivos, mas nos últimos meses não conseguiu sair de casa sem eles. Uma semana depois de chegar à Mariana, Dona Enedina foi caminhar pelo Centro Histórico e quis tomar um sorvete. Enquanto tomava, viu “a montanha de lama se aproximando” e quis correr para o hotel. Hoje, ela tem medo de não conseguir viver sem esses comprimidos. Zezinho conta com tristeza na voz que a única coisa que faz na sua nova casa de quatro cômodos é chorar. Há dias em que Dona Enedina também chora ao se lembrar de Bento, por isso avisa que tem horas em que ela não quer conversar sobre lá. Em Bento, ela pediu que eu tirasse fotos dela em frente à sua antiga casa, no interior — que hoje não está mais coberto por um telhado — e junto à sua goiabeira, que conseguiu resistir. A todo instante pediu desculpas antecipadamente, caso viesse a chorar. Quando avançamos pelo que sobrou das ruas e descemos até uma das partes que foram mais devastadas, ela não conteve as lágrimas ao me mostrar o local onde ficava a casa da falecida mãe. O único sinal de que aquele lugar já tinha sido um lar era o contorno de madeira no chão. Quando saímos dali, Dona Enedina confessou que tem medo de que fique cada vez mais difícil regressar a Bento para visitar o túmulo de seus pais no Cemitério, ao lado da Igreja das Mercês. A adaptação em Mariana é resumida por Zezinho na palavra “difícil”. Ele quer seu terreno de volta para começar tudo novamente: erguer sua casa de sete cômodos, plantar seus dois pés de manga, um de jabuticaba e criar galinhas, já que as 23 que tinha morreram afogadas. A parte mais importante, deixa claro, é que seja dele, não uma casa alugada. Por trás da vontade de reconstruir sua vida, Zezinho não consegue ignorar o tempo de espera. “Mais três anos, isso que dói. Mais três anos assim. Saber que tem mais três anos pra frente pra ficar nessa agonia toda. Tem que rezar muito pra Deus pra dar certo, a gente nem sabe se vai dar certo ainda. É terrível”, desabafa.


Texto: Gabriela Santos Fotos: Anna Flávia Monteiro Arte: Taíssa de Faria

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Dona Enedina visita sua antiga casa, revivendo o que era seu cotidiano.

Nas paredes da escola municipal do distrito, o desabafo: Bento resiste.

Ao caminhar pela rua na qual morava, seu Zezinho conta histórias do lugar.

Se o prazo proposto for cumprido, para Dona Enedina e Zezinho serão 1279 dias de espera desde o momento em que perderam suas casas. Três anos e seis meses roubados da vida de duas pessoas que representam tantas outras em seus medos, tristezas e lembranças que fazem Bento e Paracatu de Baixo em Minas Gerais ainda existirem. Tanto Dona Enedina quanto Zezinho mantém Bento Rodrigues vivo nas memórias que carregam. No trajeto até suas antigas casas, os dois nomeavam os donos dos lugares por onde passávamos. Ao chegarmos até o local das casas que não estavam destruídas, a sensação era de que em algum momento um vizinho iria aparecer e desejar um bom dia. Mas ninguém apareceu. Agora aquele Bento era um distrito fantasma. Há lugares que temem se tornar Bento. Em Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto, Célia Antunes Passos, 51, não se sente reconfortada mesmo após a visita que a Empresa Vale S.A. realizou na Barragem Doutor com os líderes da comunidade, numa tentativa de tranquilizar os moradores do distrito. “Dá medo. Por mais segura que ela esteja, a gente ainda tem um receio. Teve que acontecer primeiro [em Bento] pra gente ter esse receio das barragens”, explica. O rompimento da barragem de Fundão tornou a vida da família da moradora de Antônio Pereira, Zilda Maria dos Santos Boaventura, 68, mais triste. Ela conta que seu primo é a única vítima da tragédia que não foi encontrada. A dor que se estende até hoje justifica o medo de enfrentar mais perdas. Na cidade de Barra Longa, a situação não é diferente. Mesmo não havendo uma barragem tão próxima, Jurciléia Aparecida Alexandrino, 29, teme as consequências da lama que chegou pelos rios da região na madrugada seguinte ao cinco de novembro. Ela evita ir até à parte da cidade que foi atingida por causa da lama que se tornou poeira. “A gente não sabe o que está vindo nesse pó. Eu tenho medo. Eu, por exemplo, só levo as meninas pra escola e volto pra casa”, revela. Além do risco a saúde de suas duas filhas, Jurciléia também tem a mesma preocupação que as moradoras de Antônio Pereira: um novo rompimento. A apreensão de Jurciléia tem explicação. Um estudo encomendado pela Samarco S.A., a pedido da justiça, e divulgado pela Folha de São Paulo em janeiro de 2016, considera a possibilidade de vazamento das barragens de Santarém e Germano. Nele, a empresa de consultoria Pimenta de Ávila avalia cinco possibilidades da barragem de Santarém transbordar ou romper. Isso aconteceria após a ruptura da barragem de Germano, que fica atrás de Santarém. Segundo as previsões da empresa, o município de Barra Longa seria atingido em onze horas. Os três lugares estão ligados pela incerteza. Entre tantos outros medos, Dona Enedina teme não encontrar o retrato de seu pai. Zezinho teme os dias em que perguntará novamente a Deus o que fazer de agora em diante. Célia, Zilda e Jurciléia temem o risco de viver o que os dois já viveram.


Alternativa

Onde está o

Alternativa

Caboclo D’água Moradores da Zona da Mata mineira perceberam o sumiço do Caboclo D’Água após o rompimento da barragem da Samarco. Curiosa com o paradeiro do lendário animal, a equipe da Curinga entrou em contato com a Associação de Caçadores de Assombração de Mariana (ACAM) para encontrá-lo e bater um papo

Texto: Ingridy Silva Fotos: Wendell Soares Arte: Luísa Rodrigues

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Revista Curinga: Podemos gravar a entrevista e tirar uma foto para divulgação na revista? Caboclo D’Água: NÃO! O Caboclo D’Água procura se atirar novamente no rio de onde surgiu. Sua voz é rouca pelo pouco uso e as palavras saem atropeladas, dificultando sua compreensão. RC: Tudo bem! Sem fotografias ou gravações! O senhor pode explicar o motivo de não gostar de ser fotografado? A minha pergunta parece um tanto quanto óbvia ao animal. Ele se vira de forma brusca, e começa a responder rapidamente. CA: Os humanos são todos iguais. Mesquinhos. Só pensam em dinheiro. Se colocarem a minha foto na revista de vocês, logo o povo vai começar a me caçar de novo. E caçar em troca de quê? Dinheiro. Tudo o que é incomum para os humanos vira atração e fonte de dinheiro. Até os meteoritos! Quando caem na terra são vendidos a altos preços. Os humanos conseguem achar esses fragmentos. Qualquer coisa que caia nas mãos imundas de vocês, humanos, vira moeda. Isso me dá nojo. O mesmo nojo e repulsa que vocês têm de mim. Os meteoritos que não são vivos não sofrem, mas os animais que os olhos de vocês não acreditam, sim. Os extraterrestres, coitados, vivem na mira dos gananciosos. Eu e minha família nem se fala. Somos perseguidos há gerações. RC: Então o senhor tem família?

CA: Mas é claro! Como você pensa, criatura, que somos vistos em tantos lugares diferentes? No Dilúvio foi aquele aguaceiro. Cada um por si. Você sabe da história? Um par de cada espécie. Viemos cá. Escolhemos viver nas curvas dos rios da região porque preferimos ficar escondidos, mas os intrusos humanos teimam em nos pertubar e correr atrás de mim e da minha família. Direto um quer uma foto. Que nem você. RC: Você vai me comer? CA: Prometi que ia te dar uma entrevista. Não que ia te comer. Uma humana magrela, pequena e enxerida não me interessa. Bancando a esperta com esse ramo de hortelã no bolso - Fico assustada com essa revelação e ele percebe. - Se posso ver a noite, como não veria dentro do seu bolso encardido, criatura da ganância? Além disso, acabei de encher a barriga. Comi um bode. O Caboclo D’Água bate na barriga peluda e redonda. Solta um arroto que me deixa completamente surda por alguns segundos. RC: Mas você não come só tripas? CA: Se você come uma galinha e não come as tripas dela significa que você comeu ou não a galinha? RC: Boa resposta. Tenho uma dúvida. CA: É só isso que você tem? RC: Ouvimos que você tinha se mudado por causa do rompimento da barragem de Fundão.

CA: Já falei que os humanos são gananciosos? Não percebem a hora de parar! DE PARAR! Fico assustada com esse grito repentino. O Caboclo D’Água está furioso. CA: Os animais não. Somos mais atentos que vocês aos sinais da natureza. Sentimos a natureza avisando que não suportava mais tanta crueldade com suas montanhas, seus rios. Ela iria sucumbir. Ela avisou. Alguns dias antes do rompimento da barragem de Fundão eu vi um funcionário filmando os bichos fugindo da área que logo seria invadida pela lama. TOLO! Vê os animais desesperados pela tela, mas nada de agir. Vocês, criaturas, só agem depois que o estrago já foi feito. Eu levei minha família para outra direção, mas continuo na região. RC: Você pretende voltar para o Rio Doce um dia? CA: Não. O estrago que fizeram no Rio Doce não tem reparo. Não dá para contabilizar o que vocês estragaram, nem hoje, nem nunca. Outros animais também fugiram pra nunca mais voltar. Os que conseguiram sair dali, claro. Não posso nem imaginar quantos morreram naquele lamaçal. Tantas espécies que, como eu, sobreviviam das águas do Doce, nunca vão contar essa história, porque a história deles acabou. Eu nasci do Dilúvio, mas não foi de um dilúvio de lama. O meu Dilúvio aconteceu para garantir o futuro. Foi com água. Já esse foi de lama e da lama não sai vida, só morte.


Travessia

Foto: Caroline Hardt

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Texto: Rayssa Amaral e Thaís Medeiros Fotos: Larissa Pinto e Lucas Campos Arte: Camila Gonçalves

Bit aut fuga NeqEntp Oleste quos aut volorro elender feribea venietur atquam, sa et ut volorat emporuntibus rem cuptat.


Fábrica de tormentos Da cultura popular à indústria cultural, buscamos as diferentes formas de medo, do inconsciente ao sobrenatural

As narrativas do medo sempre estiveram repletas de dualidade. É possível que tenham sua origem na mitologia greco-romana, que além de apresentar monstros como Medusa e Minotauro, traziam nos deuses figuras de grande contradição. Ao mesmo tempo em que assumiam o papel de seres benevolentes — capazes de trazer graças e salvação —, eram também responsáveis por grandes desastres quando tinham sua fúria provocada. Os deuses, então, deveriam ser amados, mas especialmente temidos. Realidade que se assemelha à relação com a religiosidade durante a Idade Média, período popularmente conhecido como a Idade das Trevas. Foi nele que a Igreja Católica criou a Santa Inquisição, condenando à morte aqueles que, entre outras coisas, ela acreditava possuirem poderes sobrenaturais. Iniciava-se, assim, a “caça às bruxas”, ao mesmo tempo em que as primeiras lendas sobre vampiros, lobisomens e outras criaturas demoníacas começavam a surgir. De acordo com a pesquisadora Paula Lagarto, os séculos XIV e XV foram marcados por preconceitos e superstições, o que fazia com que as lendas sobre criaturas monstruosas se propagassem pela Europa, algo que aumentou significativamente com as epidemias de peste negra. “Estas epidemias eram consideradas obras do demônio. Muitas pessoas eram enterradas sem se confirmar a sua morte. Quando os túmulos eram abertos, encontravam-se vestígios

de sangue, muito provavelmente resultantes de uma longa agonia no caixão. Para os crédulos, os fatos eram entendidos como sinais demoníacos”, explica. Essas lendas, surgidas na Idade Média, ainda hoje influenciam a produção cultural, especialmente a literatura e o cinema. A forma de representar o monstro, no entanto, sofreu alterações com o decorrer do tempo. Em 1983, o historiador e professor, Luiz Nazário, em seu livro “Da Natureza dos Monstros”, conceituou que “o monstro define-se, em primeiro lugar, em oposição à humanidade. Ele é o seu inimigo mortal, aquele contra o qual ela só pode reagir pelo extermínio”. Segundo o historiador, essas criaturas podiam ser caracterizadas também como seres que não amam, ou que não sabem amar. Seriam, assim, capazes de entender somente uma relação selvagem, resultando no ataque das figuras belas e inocentes, que se oporiam à sua monstruosidade. A ideia de oposição também se manifestava no conflito entre criador e criatura presente em grandes clássicos de terror, como “Frankenstein: ou o Prometeu Moderno” e “O Médico e o Monstro”. Nesse contexto, de acordo com o artigo “Monstros como metáfora do mal”,do professor de letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Júlio Jeha, Frankenstein e a sua Criatura, por exemplo, funcionariam como duplo um do outro e como uma representação dos males de sua época A metáfora, no entanto, é mais abrangente, fazendo com que os monstros possam ser encarados como espelho da corrupção humana. Para o professor de psicopatologia clínica da Universidade de Campinas (Uni-

camp), Mário Costa Pereira, em entrevista à revista Galileu, é justamente essa representação do mal que gera o fascínio pelas histórias e criaturas do terror. Segundo Mário, “há um lado da personalidade humana que se identifica com aspectos do mal representado. Por isso, vampiros e perseguidores são personagens clássicas: há sempre um lado perseguidor e sugador dentro de cada um de nós”, afirma. Embora ainda seja possível vê-los como criaturas malignas e assustadoras, a representação dos monstros sofreu fortes alterações nas últimas décadas. Criados para serem a encarnação do vilão, aos poucos essas figuras foram se humanizando para se tornarem os heróis das histórias. Isso nos traz a um cenário no qual é possível encontrar inúmeras produções com vampiros, lobisomens e até mesmo zumbis apaixonados, ou que vivem em conflito com sua monstruosidade. A desconstrução desse papel pela indústria cultural reflete a mudança dos tempos e a transformação do horror em uma fantasia que mexe com o imaginário de quem se identifica com esses monstros e suas particularidades. Para a estudante de biomedicina, Nathália Laboissière, que durante a adolescência foi uma grande consumidora de histórias de amor entre monstros sentimentais e mocinhas ingênuas, é interessante acompanhar essas alterações do fascínio por esses personagens. “Toda mudança é necessária para nos adequarmos ao desenvolvimento dos humanos e da tecnologia. Além disso, torna possível nos identificarmos com essas supostas criaturas das trevas, ao conhecermos um novo lado delas.” CURINGA | EDIÇÃO 17

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O medo entre as linhas

Terror vs. Horror

Medo e coragem são palavras de sentidos aparentemente opostos, mas isso não quer dizer que não possam andar de mãos dadas. Foi o desejo de se provar corajosa que fez a escritora Samila Lages, se interessar pelas histórias de terror. Um anseio que surgiu durante sua infância e apenas cresceu com o tempo. A princípio, filmes levemente assustadores eram suficientes para despertar seu lado destemido. No entanto, acabou descobrindo que era “corajosa até demais”, o que a fez se aventurar pelo universo do horror, em busca de produções que realmente a assustassem. Foi assim que, por volta dos 11 anos, conheceu os contos fantásticos do francês Guy de Maupassant, algo que, além de lhe despertar para a literatura de terror, teve forte impacto na produção de seus textos. Com dois livros publicados e um blog de contos, Samila não esconde a admiração por Guy de Maupassant. “Ele é meu escritor favorito e influenciou fortemente minha narrativa. Gosto da forma que ele mistura lirismo à prosa, criando uma coisa bela, mesmo quando o tema é horrendo”, conta. Outra influência para a escritora foi H.P. Lovecraft. Autor de grandes clássicos do terror, como “O Chamado de Cthulhu”, Lovecraft costumava justificar o surgimento de uma forma literária dedicada ao estranhamente horrível, comentando que o medo é a emoção mais antiga e forte da humanidade, algo que ganha proporções maiores quando se trata do medo do desconhecido. Desconhecido que, para Samila, se expressava com precisão nas obras do escritor, especialmente por “suas descrições pouco tangíveis e muito imprecisas, dizendo as coisas através do que se sente, e não do que se experimenta.”, diz. Essa forma de desenvolver o medo se assemelha à narrativa de Edgar Allan Poe, reconhecido como um dos mais influentes escritores do gênero. Em suas obras, Poe trabalhava o sobrenatural de forma subjetiva, permitindo que a imaginação do leitor se manifestasse, criando a falsa sensação de ausência de narrador. Nos dois casos vemos escritores que brincavam com o que pode ou não ser visto, permitindo que a imaginação do leitor trouxesse parte do medo que a obra provoca. O que, de acordo com Samila, é importante nesse gênero pois, ao contrário do senso comum, ele não trabalha necessariamente com o susto, mas com uma série de sensações de desconforto. “Sou muito exigente com o terror. E não precisa necessariamente me assustar ou provocar medo, mas se me causar espanto, angústia, raiva ou asco, já está valendo. Acho que o terror precisa fazer você sentir algo primal, nem que seja a surpresa”, explica.

Um dos principais aspectos apontados pelo comentário de Samila é a diversidade de sensações que podem ser despertadas pelas narrativas do medo. Algo que surge como consequência da variedade de histórias possíveis dentro do conceito do assustador. Ann Radcliffe, uma das primeiras autoras de romances góticos, apontava uma possível divisão em dois grandes gêneros: o horror e o terror. Segundo a escritora, as histórias de horror tratam do medo em seu estado psicológico. Nessa categoria, estariam incluídas as narrativas que apresentam os horrores secretos da personalidade humana, o medo do que nos é estranho, ou o pânico provocado por assassinos em série. O terror, por sua vez, flerta com o sobrenatural, trazendo ao leitor um mundo de monstros, demônios, espíritos, zumbis e anomalias. Algo que amedronta por estar inserido na esfera do desconhecido. Para Nathália Laboissière, toda essa variedade de gêneros, assim como a diversidade de produtos, é muito bem vinda. Apaixonada por histórias que despertam o medo, desde que consegue se lembrar, a estudante não se limita à literatura e consome todo tipo de produto que as envolva, especialmente filmes e jogos. Segundo Nathália, tanto fascínio se deve à possibilidade de acompanhar as reações humanas em situações críticas. “Colocar o medo em foco permite que o sintamos na pele. Porque ainda que seja terror fantasioso, ficcional ou baseado em fatos reais, a sensação que provoca é real e, como todas as emoções, tem grande impacto em nossas atitudes”, comenta. Já para o cirurgião e cinéfilo Roberto Teva, o medo é o que promove prazer, nos dando certo controle. “Há uma extrema beleza no medo e os que o entendem como parte indissociável da vida consomem um maravilhamento, que nossa curiosidade cria diversos tipos de arte com o desconhecido”, afirma. Curioso por natureza, o ser humano não aceita as coisas sem explicações, centraliza tudo em qualquer filosofia ou religião que o faça buscar o entendimento, dando a resposta que existe o bem e o mal. Roberto explica que “geralmente o que não entendemos ou tememos, mantemos em oculto ou não reproduzimos. Mas a cativa curiosidade humana nos motiva a ver e entender essas coisas”. Assim passamos a imaginar monstros, vampiros, demônios e o próprio inferno para saciar nossa curiosidade de colocar as más coisas em algum plano adversário à nossa fé e filosofia. Talvez seja no medo que buscamos a sensação de alívio de estarmos vivos, sentimento mais intenso depois que passamos o espanto pelo transcendente.


No escuro do cinema... Sentadas no escuro, mãos frias e ansiedade extrema. Gritos, rostos, luzes, sombras e todo o imaginário que rodeia cada história que traz euforia e medo. Nos preparamos para as fortes cenas que estão por vir. O filme vai começar. A pintura e a literatura já exploravam o medo muito antes do surgimento do cinema. Era questão de tempo até que a sétima arte passasse a explorá-lo também. O cinema expressionista alemão do período entre guerras foi o pioneiro, transferindo as monstruosidades da literatura e pintura como “Nosferatu” e “O Golem”, que antes só podíamos imaginar, para uma experiência de movimento e imagem que só o cinema tem. O cinema alemão ainda nos brinda com dimensões mais humanas do medo, aquele do subconsciente e do comportamento, explorado em filmes de pesadelos fúnebres como “O gabinete do Dr, Caligari” (1920) e “M. O vampiro de Dusseldorf” (1931). Em determinado momento, a indústria cinematográfica procurou chocar e usar dessa curiosidade humana para mostrar elementos ocultos do sobrenatural. O filme “O Bebê de Rosemary” foi a primeira produção satanista em que o mal residia na

Big Apple, junto à reprodução do filho do diabo. Anos mais tarde, o filme Poltergeist (1982) mostra graficamente o maior medo dos religiosos se concretizar numa possessão demoníaca. Algo que nunca ninguém pensou ver e muito menos de forma tão violenta, por isso foi um sucesso na época, gerando um imaginário do bem contra o mal. De diversas formas, a arte explora com harmonia a construção dos personagens e seus medos, amores e fantasias. A representação no audiovisual transfere a imaginação das leituras e coloca o espectador dentro da cabeça do personagem. David Lynch e Alfred Hitchcock usaram e abusaram de simbolismos para nos tirar da zona de conforto e enxergar além do que se vê em seus filmes. Roberto Teva nos dá um exemplo do filme Eraserhead (1977), de Lynch. Segundo o cinéfilo, “a construção te transporta para um pesadelo tétrico onde você não sabe o que é real ou sonho. Várias imagens e simbolismos são usados ali para te colocar na cabeça do personagem e te fazer sentir angústia e claustrofobia, assustando muito mais que filmes de monstros, zumbis e serial killers”.

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Sobre a identificação com personagens do terror, o artista plástico Sagui Gepeto, 43, afirma que “personagens perturbados e sobrenaturais são livres para agir dentro das nossas manifestações mais egoístas. Não existem amarras, estes personagens são livres no mais extremo das acepções, eles podem fazer simplesmente tudo e qualquer coisa que lhes vier a cabeça, mesmo que ao custo da liberdade alheia, sem freios sociais e/ou morais, eles têm a liberdade do tirano; de poder usar e, de preferência, abusar dos seus poderes com requintes de crueldade e egoísmo sem ter que responder por seus atos, ou acreditando na ideia de que não vão responder”. A construção dos personagens dos filmes de terror seguem as teorias do psicanalista Carl Gustav Jung e demonstram o porquê de termos tanto receio dessas histórias. Jung descreve a persona como a máscara que colocamos para cada situação que nos é acometida, além da busca pela aprovação da sociedade desde o período da infância. Descreve, ainda, o arquétipo Sombra como a repressão daquilo que é contrário à moral, nosso ego mais sombrio. A sombra se relaciona à violência, comportamento agressivo e aos impulsos. Talvez por isso seja o conceito básico para entendermos

o subconsciente da criação de uma personalidade no terror e o modo como nos identificamos com o que é apresentado. Um exemplo é o filme “Psicose” (1961), de Alfred Hitchcock. Talvez exista em todos nós um personagem psiquicamente perturbado, e não é brincadeira! Há muita coisa guardada em nosso inconsciente que insistimos em esconder. Há quem se excite com pessoas sendo comidas vivas ou sendo esquartejadas. Há quem sinta prazer em ver o sofrimento. É esquisito isso tudo? Sim, claro! Contudo, é fato que nosso inconsciente guarda informações e perspectivas que reprimimos o tempo inteiro. Portanto, quase sempre sentimos empatia pelo psicopata perturbado ou a alma desencarnada possuindo uma criança. Para Sagui Gepeto, o medo é uma emoção que nos acorda e coloca em um modo que não resta nada além de “correr e fugir”. O que agita nosso corpo e mente, e diferente de outras emoções, aparece de forma mais intensa em nós. “Ninguém se borra de amor ou se mija de raiva, mas pode muito bem se borrar e mijar de medo. O medo é algo que naturalmente evitamos, mas podemos sentir em uma intensidade que nos modifica física e mentalmente. É o máximo da emoção que talvez possamos suportar”, conclui o artista.

Dúvidas sobre o mundo sobrenatural? (Confira a contracapa)


Foto: Caroline Hardt

EUNO MUNDO CURINGA | EDIÇÃO 17

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Habitar

Texto: William Vieira Foto: Francielle Oliveira Arte: Brunello Amorim

UM TEMPO A MAIS Saber que estamos destinados à morte é um medo e uma certeza. Para tentar burlar o destino, entra em cena a guerra contra o envelhecimento

“Ser imortal é coisa sem importância. Exceto o homem, todas as criaturas o são, porque ignoram a morte. O divino, o terrível, o incompreensível, é considerar-se imortal.” As palavras do escritor Jorge Luis Borges no conto “O Imortal” perderam-se no tempo e agora vagueiam solitárias, ao contrário do desejo humano de se fazer duradouro. O medo de partir e a busca pela imortalidade, traduzidos na caçada pela jovialidade, não são recentes, e as práticas tendem a se inovar e a aumentar. Hoje, tecnologia e medicina são dois agentes envolvidos nessa empreitada. Por contradição, o risco de enfrentar a morte em uma mesa de cirurgia, onde se atribui o intuito de enganar justamente o fim, acaba em segundo plano quando o assunto é permanecer na juventude. A Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) afirma que, de 2008 a 2012, só os procedimentos cirúrgicos estéticos realizados em adolescentes entre 14 e 18 anos aumentaram 141%, saltando de 37.740 operações no primeiro ano para 91.100 no último. Já as cirurgias estéticas em adultos cresceram 38,6%, indo de 591.260 intervenções para 819.900. Em 2013, o Brasil foi recordista mundial em cirurgias plásticas estéticas. Nesse período, conforme relatório da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética

(Isaps, na sigla em inglês), a lipoaspiração (remoção do excesso de gorduras) e o aumento das mamas figuraram entre as intervenções operatórias mais realizadas no país. Segundo a SBCP, “ao passo que a cirurgia plástica pode melhorar aspectos do corpo e da vida, existem riscos que não podem ser desprezados”. Um total de 94% dos procedimentos em que ocorrem complicações são realizados por profissionais não especializados, apontam dados de 2014 da organização. A entidade recomenda aos pacientes se informarem antes de optarem por cirurgias e certificarem-se de que suas expectativas são reais. Um caso de cirurgias plásticas que desfiguraram a fisionomia do operado é o da socialite suíça Jocelyn Wildenstein. Colunas sociais atribuem a ela o título de “recordista de plásticas” e estimam que o valor gasto em suas cirurgias seja de 2 milhões de libras (10,5 milhões de reais). José Luiz Furtado, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), acredita que, na sociedade consumista atual, “a velhice torna-se duplamente culpada: por ser improdutiva e por ser anticonsumista”. Para o professor, daí surge o tom imperativo assumido pela juvenilidade, que, de fase transitória, toma o posto de essência


da existência e “pauta-se pela ideologia da liberdade sem responsabilidade, da festa, de todas as formas de gozo erótico, da aventura, da beleza e da saúde, e de uma vida em eterno ócio consumista”. José Luiz ressalta que, “na impossibilidade de vivermos a juvenilidade, aderimos aos seus símbolos”. A morte está associada ao avanço da idade, por isso a rejeição ao processo de envelhecer e a busca da imortalidade por meio do rejuvenescimento mantêm-se constantes. É uma procura perene e sem prazo de validade, marcada por rearranjos no tempo. Um de seus primeiros registros está na procura de Alexandre, o Grande pela fonte da juventude, há cerca de 300 anos antes de Cristo. Depois, na Idade Média, passou à busca pela pedra filosofal de Nicolas Flamel, a qual produziria o elixir da vida dos alquimistas. No século XVI, o conquistador espanhol Juan Ponce de León voltou a procurar pela fonte da juventude. Por último, na contemporaneidade, as figuras míticas perderam força e deram lugar ao ômega 3 (vendido como substância da longevidade), às pesquisas sobre resfriamento celular e aos procedimentos de cirurgias plásticas, entre outros. Ora busca pela juventude, ora busca pela imortalidade. Ora lenda, ora prática tecnológica. As nomenclaturas, as intenções iniciais, os registros na história e as alternativas se alteram, mas o desejo de evitar o fim permanece. Ao se lembrar de uma anedota sobre o assunto, o professor José Luiz diz que “há e haverá sempre variados modos de fugirmos da morte, pois é de fato assim que para ela caminhamos”, conclui.

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Vergonha

Abandono

Preconceito

Terror

Dependência Repressão

Paralisia

Aprisonamento

Apoio

Isolamento

Compreensão

Confusão

Ajuda

Dor

Doenças silenciosas Bloqueio

Sensação

Negação

Solidão

Como os efeitos da vida contemporânea repercutem na saúde mental das pessoas Texto: Lorena Lima Foto: João Vitor Marcondes Arte: Carol Rooke O mal desse século não é motivo de poesia como o amor foi nos tempos do Romantismo. O imediatismo nos dias de hoje vem acompanhado de efeitos colaterais como o medo que culmina em diversos transtornos psicológicos. Entre os mais comuns estão as crises de ansiedade e de pânico. A falta de conhecimento sobre essas doenças pode gerar, em muitos casos, um diagnóstico, acompanhamento e tratamento errados. Sthéfanie Louise Horta, 26, pensava ter gastrite ou úlcera antes de descobrir a depressão e crise de ansiedade generalizada. “Fiquei 3 meses passando de médico em médico e nada era diagnosticado. Passei por internações, teve madrugadas que levei quatro ou cinco agulhadas, mas não me lembro de ter sentido nenhum alívio”, relembra. Uma das dificuldades para chegar ao diagnóstico é reconhecer o problema. Jayananda Donadio, 25, luta contra a depressão há mais de um ano. Além disso, sofre com crises de pânico e ansiedade constante. Ela reconhece que só entendeu sua condição após meses de sofrimento sem justificativa. “A doença psicológica é, em todos os casos, psicossomática. Cresci e me tornei uma pessoa ansiosa. No início de 2014 sofri um assalto em São Paulo e aquilo foi o start de todo o sufoco que passei e, com menos frequência, passo até hoje’’ conta. Especialistas no assunto afirmam que não é possível premeditar as crises. Independente do transtorno, elas podem acontecer durante uma atividade comum e subitamente um medo anormal toma a vítima. Os sintomas mais frequentes são taquicardia, tremores pelo corpo, tonturas e falta de ar. A maior diferença é o estado mental no qual a vítima fica: nenhum lugar parece seguro e a sensação de morte é constante. “Após sofrer esse assalto, sempre que me deitava pra dormir minha mente criava imagens do que poderia ter acontecido comigo naquela tarde. Cheguei a cogitar ideias de como fugir dos bandidos, como reagir ou como seria a minha morte. Eu conseguiria dizer algumas últimas palavras ou morreria lentamente?’’ relata Jayananda.

Um novo estudo realizado pelo Instituto de Estatística do Reino Unido indica que enquanto as crises de ansiedade são originadas geralmente de tensões e insatisfações diárias, a síndrome do pânico costuma ter sua fonte em traumas vividos anteriormente. Hoje em dia, Renan Antunes, 28, vê que a ansiedade sempre foi presente e um peso na sua vida. ‘’Eu sempre tive dor de barriga antes de ir para a aula. Antes de cada prova eu tomava um remédio pra não vomitar e outro para não dar dor de barriga’’ conta. É comum que tal condição seja julgada como um exagero da vítima. Mas, deve-se compreender que o medo e a ansiedade afetam a todos em graus diferentes. “Há uma pressão familiar de que é tudo da sua cabeça. É como algo de errado que existe e ninguém quer ou gosta de falar’’, afirma Renan. De acordo com a psiquiatra Ana Beatriz Silva, em sua obra ‘’Mentes Ansiosas’’, apenas quando os transtornos se tornam insuportáveis e afetam a vida dos pacientes é que estes buscam ajuda profissional. “Durante um tempo eu resisti a diagnósticos, tratamentos e até mesmo sintomas. Menti para mim mesma. Eu queria acreditar que eram apenas emoções passageiras. Precisei chegar a um estágio extremo para que não houvesse mais alternativa, eu precisava de ajuda. Caí de cama, fiquei dependente, perdi o sono, perdi a condição de sequer me levantar de uma cadeira sozinha’’, conta Sthéfanie. É importante frisar que, quanto antes o transtorno for diagnosticado, maiores as chances de cura. Nos casos em que não é buscado auxílio médico, o paciente pode desenvolver fobias que aos poucos limitam sua vida e o afastam do convívio social. O SUS (Sistema Único de Saúde) ainda não disponibiliza tratamento para todos os casos de transtornos psicológicos. Porém, através dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), é possível participar de terapias em grupos.


Identidade

O preconceito que mata Texto: Aleone Rodrigues Foto: Mariana Castro Arte: Igor Capanema

A.B.M., 20 anos, gay, sentiu as consequências da homofobia dentro de casa, ainda na infância. Seu pai o insultava verbalmente com as palavras “bichinha”, “viadinho”, “boiola”. Quando criança, foi colocado para trabalhar à força na lavoura e era espancado com frequência por agir fora da norma social. O jovem enfrenta, hoje, a realidade de um país que registra um crime de ódio contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTTs) a cada 27 horas. CURINGA | EDIÇÃO 17

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O relato de A.B.M. ilustra o que Daniel Borrillo, professor de Direito da Universidade de Paris, defende no livro “Homofobia: história e crítica de um preconceito”. O estudioso acredita que homofobia não pode ser entendida como uma violência simples. “A homofobia é um fenômeno complexo e variado que pode ser percebido nas piadas vulgares que ridicularizam o indivíduo efeminado, mas ela também pode assumir formas mais brutais, chegando até à vontade de extermínio, como foi o caso na Alemanha Nazista”, escreve. Borrillo entende que a violência homofóbica se manifesta do mesmo modo que a xenofobia, o racismo ou o antissemitismo, em que o diferente é designado como contrário, inferior ou anormal. Essa ideia de anormalidade estaria associada à homossexualidade por causa da legitimação da heterossexualidade como a norma a ser seguida pela sociedade. “Me batia com tudo que tinha em casa: mangueira, taco de sinuca, talher, fio de aço do varal, cabo de roseira de espinhos, vassoura, rodo”, afirma A.B.M.. Na escola, também ouvia xingamentos constantes, mas não chegou a ser agredido fisicamente por nenhum colega porque o pai era um dos funcionários. Questionado sobre essa dualidade na atitude do pai, o jovem conclui: “Meu pai era uma espada de dois gumes. Me protegia dos outros mas não me protegia dele mesmo”, conta. A violência homofóbica só terminou quando A.B.M. completou 18 anos e decidiu expulsar o pai de casa.

“natural”, mas que é, para Judith Butler, construída a partir da vivência social. Tuty Mantelato, transexual, 25 anos, nunca se encaixou nas normas de gênero. Na infância percebeu que, apesar da sociedade enxergá-lo como menina por causa do seu sexo biológico, sempre se sentiu menino. Ele também já gostava de vestir roupas atribuídas ao gênero masculino. Tuty conta que sempre se sentiu incomodado com seu corpo. “Desde que eu me entendo por gente, quando eu tomo banho, não consigo olhar pra baixo. Eu não consigo me ver nesse corpo”, diz. Na adolescência, como não conhecia o que era transexual, Tuty se assumiu lésbica. “Transexualidade é uma coisa muito complicada para as pessoas que não vivem isso entenderem, mas muito mais complicada pra gente que vive, pelo menos no começo”, relata. Tuty se lembra de um episódio em que foi vítima de transfobia. Ele estava na porta de uma casa de festas, em Mariana e, ao sair para fumar, conta que foi hostilizado. “Veio um casal (...) e passou na minha frente. Eu estava de boa, fumando. Ele me viu e disse: ‘tá vendo? É isso que eu abomino.’ E cuspiu na minha testa. (...) Essa foi a única vez que me senti bem pra baixo e falei: Caraca! Eu só tô aqui de boa, não tô fazendo nada.”, conta.

Ser homem ou mulher não é natural Atualmente, a sociedade entende que há uma ideia de subversão da sexualidade e de gênero padrões (o masculino e o feminino). Isso seria usado para reforçar normas sociais, que atribuem papéis específicos ao homem e à mulher. Judith Butler, teórica feminista e professora na Universidade da Califórnia, defende no livro Gender Trouble: Feminism And the Subversion of Identity, publicado originalmente em inglês, em 1990, e traduzido em português, em 2003, para “Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade”, a ideia de que o gênero é uma performance. Ou seja, o que define a forma como homem e mulher devem agir, se vestir e se comportar seria produzido pelos discursos sociais (religioso, político e etc) que criam regras sobre os corpos e sexualidade das pessoas. Isso significa que o que muitos entendem como sendo a forma natural de ser homem e mulher seria, para Butler, imposto - e herdado - a partir de comportamentos pré-estabelecidos. A forma como as pessoas se sentem (homem ou mulher), também traz a discussão sobre o preconceito em relação à expressão e identidade de gênero diferentes da norma heterossexual. As violências motivadas pela aversão aos papéis de gênero que fogem à essa norma são conhecidas por transfobia. Dessa forma, mantém a mesma ideia de hostilidade à homossexuais, mas que, neste caso, são atribuídas à violência sofrida por pessoas trangêneras (travestis e transexuais). Esse tipo de discriminação ocorre quando a identidade de gênero da pessoa difere do que a sociedade entende como

Tuty Mantelato, transexual: “Desde que eu me entendo por gente, quando eu tomo banho, não consigo olhar pra baixo. Eu não consigo me ver nesse corpo”. Lívia Maria, bissexual: “A gente tem que passar e tem que enfrentar. A gente não vai ficar se escondendo”, namorada de Tuty sobre o medo que ela e o namorado sentem de sofrer transfobia quando passam em frente aos bares do bairro Bauxita, em Ouro Preto.”


Movimento queer Desde 1960 existe um movimento que discute a ordem sexual e de gênero imposta à sociedade, geradora da homofobia e transfobia. O movimento é tratado no livro “Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças”, do professor da Universidade Federal de São Carlos (UFScar), Richard Miskolci. O movimento chamado queer faz críticas à heterormatividade, que é descrita pelo sociólogo como a “ordem sexual do presente, na qual todo mundo é criado para ser heterossexual, ou - mesmo que não venha a se relacionar com pessoas do sexo oposto - para que adote o modelo da heterossexualidade em sua vida”. Para Miskolci, esse modelo, muitas vezes, é adotado por gays e lésbicas normalizados que vivem um padrão heterossexual para serem aceitos e não sofrerem com a rejeição social. Quem não enquadra no modelo padrão ou não segue os padrões de gênero é considerado anormal ou estranho. Ainda segundo ele, o queer não é uma defesa da homossexualidade e sim “a recusa dos valores morais violentos que institui e fazem valer a linha da abjeção, essa fronteira rígida entre os que são socialmente aceitos e os que são relegados à humilhação e ao desprezo coletivo”. Apesar de A.B.M, gay, e Tuty Mantelato, transexual, não se encaixarem dentro das normas sociais, ambos resistem, no dia-a-dia, à todas as violências LGBTTfóbicas. Eles vencem a rejeição social e transformam suas vidas em uma luta constante pela existência.

Violência LGBTTfóbica no Brasil O desprezo às pessoas que fogem à norma social vigente na sociedade heteronormativa se transforma em atos de violência contra LBGTTs. Um relatório sobre violência homofóbica no Brasil, publicado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, afirma que, em 2012, foram registradas 3.084 denúncias de 9.982 violações relacionadas à população LGBT, envolvendo 4.851 vítimas e 4.784 suspeitos. Em relação a 2011 houve um aumento de 166,09% de denúncias e 46,6% de violações de direitos humanos contra a comunidade LGBTT. Segundo o documento, esses valores estão subestimados porque há uma subnotificação de dados relacionados a violências em geral e a este tipo de agressão em particular. No relatório consta que, das vítimas, 60,44% foram identificadas como gays, 37,59% como lésbicas, 1,47% das vítimas foram identificadas como travestis e 0,49% como transexuais. Já um levantamento feito pelo Grupo Gay da Bahia, a mais antiga associação de defesa dos direitos humanos dos homossexuais no Brasil, revelou que, em 2015, 318 LGBTTs foram assassinados no Brasil, ou seja, cerca de um crime de ódio a cada 27 horas. O texto aponta que, proporcionalmente, as travestis e transexuais são as mais vitimizadas. O estado com maior número de vítimas, em termos absolutos, foi São Paulo. Se comparados os dados com a população total, Mato Grosso do Sul é o estado mais LGBTTfóbico, com 6,49 de homicídios para cada um milhão de pessoas. Uma pesquisa da ONG Transgender Europe, rede europeia de organizações que apoiam os direitos da população transgênera, revela que o Brasil é o país que mais mata transgêneros no mundo. Entre janeiro de 2008 e março de 2014, foram registradas 604 mortes no país.

Robert Fercor, gay: “Pode até ser que tenham tentado, por diversas vezes, fazerem algo que viria a me ferir, magoar ou entristecer, porém sempre fui uma pessoa forte (...) por consequência da vida, me tornei alguém com uma personalidade alto astral, talvez por isso aqueles que tentaram algo ruim contra mim não conseguiram o que queriam, não na maioria das vezes.”

C. H., gay: “Um dia meu pai me bateu porque eu estava brincando de boneca. Ele sempre fazia isso quando minha mãe não estava em casa, até que, quando eu tinha uns 11 anos, minha mãe viu ele me batendo, entrou na frente e ele quebrou um cabo de vassoura nas costas dela.”

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Opinião

Arte: Fábio Melo

Pensar o mundo sem medo Prof. Dr. Mauro Guilherme Pinheiro Koury*

Pensar uma sociedade sem medo é discorrer sobre uma coletividade humana em letargia. Uma sociedade onde as relações humanas já não tivessem o sabor da descoberta, onde todos os objetos sociais e culturais fossem dados e distribuídos de tal forma uniforme que já não teria necessidade de busca e apreensão. Uma coletividade, enfim, onde o viver não necessitasse de riscos, de ousadia e de criação.O medo faz parte da experiência humana, enquanto categoria social que lida com o processo de criação, com o conhecimento de si próprio e do outro relacional. Que permite a construção social não apenas enquanto projeção, mas como construção objetiva de realidades possíveis. Ao se pensar o medo como uma categoria chave da experiência criativa do social e do cultural, se está pensando a sociedade e os indivíduos que dela fazem parte como uma relação sempre tensa. Relação recheada de ambiguidade, de necessidade constante de negociação, de ajustes, de processos novos que busquem ampliar direitos e autonomias das partes em interação, e, assim, recheada de conflitos. Conflitos estes que se referem aos constrangimentos sociais das normas criadas para uma ação consensual, em um momento e em uma situação dada. Constrangimentos por si só incômodos, limitativos, mas necessários em um momento para uma ação coletiva consequente e para a consecução do projeto coletivo ou individual, mas que já não servem e são incômodos em outro momento e em outra situação seguinte. O que os torna em uma nova camisa de força cotidiana, e precisa ser reajustada sempre. Assim segue em todo e qualquer ajustamento de projetos pessoais e sociais que, na busca de alianças para a sua funcionalidade e ação coletiva e projetiva de

um fim ou de um novo amanhã, têm que ser reajustados para permitir a inclusão de muitas vozes que em certo tempo almejam uma situação similar, mas que, alcançado essa nova situação explodem em solicitações de buscas e autonomia próprias. Novas solicitações e autonomia sempre tensas, conflituais e plenas de aventuras, audácias e riscos, ou seja, repletas de medo. Medo que impulsiona novidades e ampliação de necessidades simbólicas de conteúdos que expandam e assegurem a capacidade de outras vozes como sujeita de si e compromissada com o todo que se abriu para elas, pela institucionalização de projetos de autonomia e de liberdade. É impossível destarte pensar uma sociedade sem medo, a não ser que se pense em uma sociabilidade sempre instituinte que respeite às diferenças e permita que vozes novas e discordantes surjam, assustando as formas institucionalizadas que tendem a se cristalizar a cada momento. Que transforme o sentimento do medo em um movimento onde o aventurar e o arriscar seja vistos como positivos, e pensados como criação permanente, e cujas leis e normas estejam sempre abertas para serem testadas em seus limites. Que os desvios, portanto, processos que conduzem sempre a novas experiências, sempre arriscadas, - de sensoriais a científicas, - sejam sentidos como portadores de sentidos e almejados cultural e socialmente, por fim. O medo assim visto, como imprescindível à criação social e individual, destarte, é uma categoria das mais importantes para um projeto de sociedade autônoma e de indivíduos livres e responsáveis em suas escolhas dentro do campo de possibilidades a eles aberto. Uma sociedade que lide com a diferença e a ousadia é uma sociedade onde não se tem o que temer!

Professor do PPG em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e Coordenador dos Grupos de pesquisa GREM e GREI


Comum

Texto: Gabriela Ramos Fotos: Lívia Monteiro Arte: Lara Cúrcio

POSSO? Autora desconhecida “Quem dera eu ser tratada como ser humano. Não faz sentido, eu sei, mas como mulher eu queria ser vista como ser humano. Eu queria que me vissem além de um pedaço de carne. Eu queria que notassem que eu tenho coisas importantes pra dizer, que eu mereço ser ouvida.”

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Empoderar-se é obter poder sobre si. O empoderamento feminino é a percepção das mulheres como semelhantes e oprimidas pelo machismo e prevê a participação da mulher nas diversas esferas da sociedade. Direito ao voto e ao ensino superior, presença em Olimpíadas e cargos políticos, crescente participação no mercado de trabalho, melhor remuneração, surgimento do anticoncepcional e divórcio. Essas conquistas ilustram a inserção da mulher em lugares, antes, de exclusividade masculina. Apesar dos avanços, todos os dias mulheres são submetidas a algum tipo de violência. A violência sistematizada contra a mulher é o sintoma extremo das desigualdades causadas pelo machismo. De acordo com o cronômetro da violência no Brasil, divulgado pela Agência Patrícia Galvão, são cometidos cinco espancamentos a cada dois minutos; um estupro a cada 11 minutos; um feminicídio a cada 90 minutos e 179 relatos de agressão por dia. Desde 2005, a cada dois anos, é realizada a pesquisa “Violência doméstica e familiar contra a mulher” (DataSenado, 2015). Em 2015, aproximadamente uma em cada cinco mulheres declarou já ter sofrido algum tipo de violência. Entre as mais recorrentes estão as violências física, sexual, psicológica, patrimonial e moral. Desde o início da pesquisa, há 11 anos, há o predomínio da agressão física. Em 2015, cerca de 65% das vítimas apontaram para esse tipo de violência. Merece destaque também o aumento da agressão psicológica, que foi de 38%, em 2013, para 48%. As violências podem causar prejuízos tanto físicos como psicológicos. De acordo com a doutoranda em Psicologia Forense da Universidade de Kent, na Inglaterra, Arielle Scarpati, cada mulher reage de uma maneira particular às agressões. “Isso tem a ver com uma série de questões, como frequência, tempo de duração, tipo de violência, presença de rede de apoio ou não”, diz. No entanto, de maneira geral, a psicóloga afirma que mulheres vítimas de violência podem

desenvolver transtornos písquicos e alimentares como fobias, ansiedade, falta de concentração, pânico, distúrbios do sono, depressão, sentimentos de culpa, anorexia e bulimia. “Algumas mulheres apresentam problemas com a própria sexualidade, dores de cabeça, transtornos de ordem gastrointestinal e dores crônicas”, completa. Além disso, Scarpati cita a restrição de conduta adotada por algumas mulheres como a escolha de roupas, a maneira como usam o cabelo, a maquiagem, os locais que frequentam (e os horários) por medo de sofrerem abordagem ou retaliação. Em 2016, a Lei Maria da Penha completa 10 anos. A doutoranda em Ciências So-

Violência não é só assassinato ou agressão física; existem muitos tipos de violência. ciais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Michele Escoura, ressalta a importância da expansão da lei com relação à noção de violência contra a mulher. “Violência não é só assassinato ou agressão física; existem muitos tipos de violência. Ela abrange a violência patrimonial, por exemplo: se um homem esconde dinheiro e documentos da mulher, se quebra o celular ou o computador dela em um ataque de ciúme, se a obriga a fazer sexo sem camisinha, se a impede de tomar pílula anticoncepcional”, explica. Das entrevistadas pelo DataSenado, 100% a conhecem, e cerca de 56% acreditam que a proteção da mulher está melhor depois da lei. Ainda assim, 90% sofrem ou já sofreram algum tipo de violência, mas apenas 27% denunciaram as agressões em alguma delegacia comum ou especializada. Cerca de 21% não fizeram nada a respeito.

Michele também cita a importância da Lei do Feminicídio, sancionada em 2015, que transforma o assassinato de mulheres decorrente de violência doméstica ou discriminação de gênero em crime hediondo. “Esses crimes antes eram tratados como uma violência neutra, independentemente se fossem contra homem ou mulher”, diz.

Por que elas se calam? De acordo com Scarpati as razões são diversas. As principais seriam o medo e o vínculo com o agressor, pressões familiar, religiosa e social, vergonha, culpa, sentimento de “punição merecida”, não reconhecimento da violência pela vítima e descrédito com relação às autoridades. A psicóloga comenta que desde a agressão cometida até a denúncia ser feita prevalecem sentimentos de dor, vergonha e revolta. “Denunciar faz com que as vítimas mergulhem em uma situação desconhecida. Por outro lado, a ausência da denúncia reforça no agressor e na sociedade a sensação de impunidade, fazendo com que os casos de violência permaneçam socialmente invisíveis”, declara. Além disso, reforça que é preciso dar credibilidade ao discurso da mulher e permitir que ela fale sobre o que houve, atentando para não culpabilizá-la. “É preciso desenvolver programas educativos, buscando aflorar na mulher a competência para se reconhecer como cidadã de direitos, estimulando-a em termos de expressão sobre a experiência da violência e contribuindo para colocá-la como figura central nas ações para definir o próprio destino”, conclui Scarpati.


O medo P.R.W., 29, foi vítima de violência doméstica durante um relacionamento de quase oito anos. Antes das agressões físicas, ela já era vítima de abusos psicológicos: “com quatro meses de namoro engravidei pela primeira vez e fomos morar juntos. Durante a gravidez, L. dizia que eu vomitar ou ficar enjoada fazia com que ele passasse vergonha em público. Como se eu, grávida, fosse culpada de estar passando mal. Cheguei a perder o bebê”, conta. P. relata que era violentada com socos na cabeça, tapas, puxões e era jogada no chão. “Os abusos físicos eram esporádicos, mas os psicológicos eram diários. Ele fazia com que eu me sentisse feia e achasse que só ele era capaz de me amar, que eu não merecia outra coisa”, lembra. Somente a terceira gravidez de P. prosperou. Ela conta sobre a descoberta de alergias alimentares do filho e que por isso precisaram entrar em dieta. “O L. não ajudava, dizia que esquecia e não sabia fazer, e também não se esforçava para aprender. Tudo isso foi cansando. Até que um dia a casa estava revirada. Ele havia faltado no trabalho à tarde, foi buscar nosso filho na creche apenas cinco minutos antes de eu chegar em casa e passou a tarde à toa. Foi a gota d’água. Brigamos muito, houve agressões físicas e os vizinhos chamaram a polícia. Assim consegui sair de casa e fui morar com os meus pais”, diz a vítima.

P. nunca chegou a denunciar o ex-marido. “Não sei dizer ao certo por que não denunciei. Antes era porque não queria sair de casa e sabia que se houvesse denúncia não teria como continuar com ele. E depois que eu saí de casa, foi pelo meu filho, para não interferir na relação deles”, declara. Ela diz que hoje os medos são outros. “Perdi um emprego recentemente por ser mãe solteira”. Além disso, cita que, apenas por ser mulher, tem medo de andar sozinha na rua, de ser assassinada, de usar certas roupas dependendo do local, de ser estuprada, de ser assaltada e violentada, de pegar um simples táxi sozinha. “Tenho medo de ser julgada, e sei que sou a todo momento. Medo de não poder ser quem eu sou pelo simples fato de ser mulher. Espero mesmo que um dia eu possa ver as mulheres numa sociedade igualitária”, lamenta.

escolas e CRAS (Centro de Referência de Assistência Social). A rede especializada pode ser tanto assistencial como estar na esfera do sistema de justiça criminal”, esclarece a assistente social. Dentro dos serviços especializados, a rede assistencial é composta pelo CREAS (Centro de Referência Especializado da Assistência Social), CRAM (Centro de Referência de Atendimento à Mulher) e Casas Abrigo, que servem como refúgio para mulheres e filhos em caso de risco de morte. Já a rede que diz respeito à justiça criminal dispõe de Delegacias Especializadas, Defensorias, Promotorias e Varas de violência contra a mulher. Para saber o serviço mais próximo de casa, as mulheres devem ligar para o número 180, serviço público voltado para a população feminina em todo o país.

Serviços de atendimento Segundo a doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Izabel Solyszko, para vítimas como P., há serviços públicos gerais e serviços especializados. “Os gerais referem-se aos centros de saúde,

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Identidade

Ser quem sou Texto: Júlia Cabral Foto: Gabriella Pinheiro Arte: Igor Capanema

A existência de um “padrão” de beleza ou comportamento é uma construção da sociedade ocidental e pesa sobre as pessoas que não se sentem parte desse modelo. A adaptação à essa norma significa, muitas vezes, perder a própria essência, enquanto a resistência pode gerar oposições de quem nos é próximo. Mesmo com toda pressão e dificuldade, algumas pessoas ainda preferem ser quem são, com muita bravura e sem medo de julgamentos.

“Acho que foi a situação mais ‘pedreira’ até hoje. Eu tinha o cabelo alisado e apenas dois dedos da raiz natural. Fui no salão; na hora que sentei, pensei ‘não vou ter coragem’, mas a moça do salão me deu esse apoio. Eu falei que a minha intenção era tirar toda parte de química do cabelo. Ela perguntou se eu queria ficar olhando e eu disse que não”, conta. Preta, como se identifica hoje, a estudante Ana Carolina da Silva, de 22 anos, teve que buscar sozinha suas raízes culturais. “Então ela virou minha cadeira [de costas para o espelho] e começou a cortar. Enquanto isso eu pensava: ‘o que eu estou fazendo, a minha família não vai conseguir aceitar isso’.” Ana Carolina teve o cabelo alisado desde pequena para se adaptar a um determinado padrão estético que não considera o crespo belo. Para conhecer o seu cabelo natural, Ana decidiu fazer o Big Chop. Big Chop é o termo inglês que significa “grande corte”. É uma transição capilar; quando uma mulher de cabelos crespos mas quimicamente alisados decide cortar seu cabelo tratado, ficando quase careca, para deixar crescer seu cabelo natural. Esse procedimento se tornou um movimento com bastante adesão nas redes sociais. São milhares de textos e vídeos de mulheres do mundo todo, falando sobre a transição e trazendo a discussão da identidade do negro e como a sociedade tende ao “embranquecer”. “Na hora que ela terminou, eu me olhei no espelho. Estranhei, mas falei ‘essa aqui sou eu, agora vou ver como é meu cabelo’. Desde que me entendo por gente meu cabelo é alisado, só fui o ver natural aos 19 anos. Acho que foi a melhor coisa que eu fiz. Causou estranhamento [em casa], muito. Tem dois anos que deixo meu cabelo crescer e até hoje não enten-

dem porque, por mais que eu explique. Ou entendem mas não aceitam. [A família] é o lugar onde você mais espera apoio, e quando é o lugar que te vira as costas, você se assusta”, diz. Segundo a professora de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora Sônia Regina Corrêa Lages, “os modelos de comportamento são construídos e reforçados o tempo inteiro, desde o nascimento, por diferentes instituições – família, religião, educação, trabalho, etc”. A família é considerada um dos pilares da vida de um indivíduo e é de onde provém a maioria dos valores que este constrói. Ao mesmo tempo, também pode carregar opiniões e hábitos que vão de encontro ao que o indivíduo acredita, gerando um conflito entre “ser quem os outros querem” e “ser quem realmente sou”, afirma. Para algumas pessoas, o cabelo é apenas uma característica que se molda às suas vontades por questões estéticas. Para Ana Carolina, seu black vai além de um tema de beleza. “Tem uma história toda por trás disso. [Meu cabelo, minha cor], isso é a minha identidade. Eu me reconheço nisso, me reconheço nas minhas raízes”, conta. Da mesma forma que uma característica física pode ser muito representativa para a identidade de uma pessoa, ela também pode ser vista como apenas parte de um todo com mais a oferecer. É assim que pensa o advogado e professor universitário Rafael Alves Nunes, de 30 anos. Além de sua profissão primária, Rafael é também modelo de moda Plus Size e acredita que seu físico não o define. “Muita gente fala em autoaceitação mas eu acho que não é o caso. É a pessoa fazer um reflexo e ver que ela não se resume a um padrão físico. Ela deve olhar para si e saber que não se resume àquilo.” No caso do advogado, diferente de muitos, não há uma pres-


são familiar ou de outras formas. Ainda assim, ele enxerga uma referência de beleza socialmente imposta, especialmente na “lei da magreza”. Para Rafael, o momento mais claro dessa pressão para se adaptar é na hora de comprar roupas. “A oferta não é grande para quem está fora do 38, 40. Algumas lojas adotaram uma linha Plus, mas que não é real. Uma vez procurei uma camisa social em umas seis lojas e não achei. Elas têm GG, mas um modelo que em momento algum vai caber em uma pessoa que realmente veste GG”, critica. A aceitação dessa regra chega a tanto que algumas pessoas não acreditam ser possível se sentir bem não estando adaptado a ela. “Quando pessoas desconhecidas perguntam o que eu faço, digo que sou advogado, professor universitário e modelo de moda Plus Size. Tendem a não acreditar da parte do ‘modelo’, acham que é brincadeira, que estou querendo falar que sou gordinho, fazendo uma piada comigo mesmo. Aí tenho que explicar que realmente sou agenciado”, desabafa. Rafael, que começou a viver essa experiência com moda recentemente, diz que o mundo fashion é quem dita o que é padrão, e que pode ser um grande vilão para quem ainda tem medo de não se encaixar. “Algumas meninas procuram a agência para melhorar a autoestima. Se a pessoa já a tem baixa, o mercado da moda pode jogar a da pessoa lá para baixo, especialmente na moda Plus Size”, conclui.

Eu prefiro que as pessoas me vejam como eu sou do que da forma que elas querem. Não tenho a mínima vontade de me subteter aos padrões de uma realidade que nao é minha.

Segundo a professora Sônia, a luta daqueles que estão fora da norma é diária e essa imposição pode chegar a situações extremas. “Se a pessoa não estiver dentro dos padrões estabelecidos – magra, alta, rica, feliz, branca etc, ela vai buscar e sofrer por isso. Se nada der certo, uma grande maioria inclusive vai fazer uso de medicamentos. E eu acho tudo isso muito visível, a luta das pessoas para se encaixar nas normas. O que não faz isso, é o desviante, a ovelha negra, aqueles que estão organizados dentro de identidades que são desprezadas.”, explica. Muitas vezes, a autoestima de alguém não depende do que ela pensa de si, mas da opinião de outros sobre ela. Seria então mais fácil se encaixar no padrão para ser aceito? Para Ana Carolina, adequar-se pode ser o caminho mais fácil, mas escolher resistir é escolher a si próprio. “A sociedade oferece um leque de oportunidades para alguém se encaixar. [Ir contra a corrente] exige muita força. Se você não encontra pessoas que estão dispostas a passar por isso com você, dando apoio, você realmente pensa em desistir. Mas eu gosto de olhar no espelho e ver que realmente sou preta e eu não preciso tentar ser aceita. Eu prefiro que as pessoas me vejam como eu sou do que da forma que elas querem, não tenho a minima vontade de me submeter aos padrões de uma realidade que não é a minha, de uma cultura que não é a minha. Me manter assim me mostra que eu sou a minha prioridade”, encerra. CURINGA | EDIÇÃO 17

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Opinião

É engraçado como as certezas da madrugada desaparecem com a luz do dia. Como boa criatura da noite, acostumada a passar madrugadas em claro, nunca tive medo do escuro. Era o nascer do dia, com a necessidade de tomar decisões efetivas e lidar com suas consequências, que sempre me deixou em pânico. Parece fácil pensar em mudanças quando elas se limitam ao campo das ideias. Quando tudo não passa de uma possibilidade, não há motivos para temer. Ainda assim, quando o dia chega, e os sonhos e idealizações da noite parecem perto de se realizar, os monstros começam a deixar o guarda-roupa e se esgueirar para sua pele. Monstros que trazem consigo os demônio das insegurança e os fantasmas das dúvidas. A noite se torna, então, o momento de clareza, no qual é possível refletir sobre o que talvez aconteça e até se encantar com as inúmeras possibilidades. O futuro hipotético parece luminoso e todas as mudanças necessárias. O nascer do dia, no entanto, traz de volta a escuridão e as possibilidades se perdem em meio à incerteza. O pânico se instaura em seu estômago, criando redemoinhos gelados. De repente, a vontade de desistir começa a te dominar. Nos dois casos temos visões extremas de uma mesma situação, visões extremas que não permitem uma análise precisa. Mudanças são inevitáveis e acontecerão independente de nossa vontade. Sendo assim, buscar equilíbrio entre os medos do dia e as certezas da noite se torna importante e necessário. A vida não é feita de trevas ou luz absolutas, mas da combinação crepuscular entre as duas. É feita de momentos de transição, que nos levam para lugares inesperados, colocam pessoas novas em nossos caminhos e nos permitem crescer e evoluir. Mudanças podem ser confusas e muitas vezes retiram nossa segurança e trazem dúvidas infinitas. No entanto, sem elas é impossível vivenciar uma jornada de dias e noites completos. Texto: Thaís Medeiros Arte: Luísa Rodrigues CURINGA | EDIÇÃO 17

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novo

mundo

Abominável Opinião


Arte: Letícia Cristiele

SIM EDIÇÃO 17

CURINGA

NÃO

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ADEUS



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