Revista Curinga Ed. 15

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Revista Laborat贸rio | Jornalismo | UFOP

Julho de 2015 | Ano V

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Expediente Curinga é uma publicação da disciplina Laboratório Impresso II. Revista produzida pelos alunos do curso de Jornalismo da Ufop. Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA). Departamento de Ciências Sociais, Jornalismo e Serviço Social (DECSO). Universidade Federal de Ouro Preto.

Professores Responsáveis Frederico Tavares - 11311/MG (Reportagem) Lucília Borges (Planejamento Visual) André Luiz Carvalho (Fotografia)

Fotógrafos

Diagramadores

Redatores

Editor geral Ana Clara Oliveira Subeditora Marília Ferreira Editor de Arte Renatta de Castro Subeditora de Arte Daiane Bento Editor de Fotografia Ariadne Selene Subeditor de Fotografia Inaê Costa Editora de Multimídia Amanda Sereno

Adrean Larisse, Cíntia Adriana, Danielle Campez, Doulgas Gomes, Katiusca Demetino, Letícia Afonso, Luiza Mascari, Matheus Maritan, Pamela Moraes, Pedro Ewers, Raquel Satto, Samuel Perpétuo. Charles Santos, Débora Simões, Edmar Borges, Elis Regina, Fran Vilas Boas, Isânia Silva, Júlia, Laís Diniz, Natane Generoso, Núbia Azevedo, Paloma Ávila.

Alessandra Alves, Aprigio Vilanova, Bruno Arita, Edione Abreu, Eduardo Moreira, Hugo Coelho, Kaio Barreto, Lucimara Leandro, Pedro Magalhães, Raquel Lima.

Monitor: Túlio dos Anjos Agradecimentos especiais à Loja Bela Noiva, Thiago Sabino e Fredd Amorim. Endereço: Rua do Catete, 166 - Centro 35420-000, Mariana - MG Julho/2015

IMPRESSÃO: MJR EDITORA GRÁFICA Rua Carlos Pinheiro Chagas, 138 - Ressaca CEP: 32.113-460 - Contagem - MG tel: (31) 3357-5777


Revista Curinga Convida você para a comemoração de sua 15ª edição

Atrações 06 16 22 30 33 38

Amor (entre) Divas Ensaio: Ouro Preta Corpos Ditos e Sentidos Ocupe-se, pois Ocupa-se Cidade em Palavras Um Novo Quadro Negro


Editorial “O mundo não é. O mundo está sendo. (...) meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre, mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências.” (Paulo Freire) Dar voz ao outro. Uma das principais funções do jornalismo. Dar voz e visibilidade para aqueles que, marginalizados, lutam por um espaço na sociedade. Lutam por maior participação política, por educação, por moradia, por respeito, pela liberdade de ser quem se é... Lutam por voz! Resistem! Resistir é preciso porque vivemos em uma sociedade ainda desigual. Resistir é preciso porque o mundo ainda oprime. Resistir é preciso porque vozes ainda são caladas. Resistir é preciso porque a mídia ainda é dominada por interesses econômicos e políticos. Resistir é preciso porque a intolerância existe.

E foi isso que - em sua 15ª edição - a debutante Curinga quis fazer: dar voz aos que precisam e querem ser ouvidos. Sejam eles sujeitos, movimentos, grupos sociais. Dar voz a essa luta diária que é resistir em meio ao preconceito, à marginalização, à intolerância. Nas próximas páginas, vamos além: servir à; servir como instrumento de intervenção e não fazer das histórias aqui presentes apenas relatos. Resistir. Como diz o dicionário: não ceder ao choque de outro corpo; opor força à força, defender-se. Essa edição é expressão. É saída do armário. É romper com os estereótipos e permanecer forte na luta por um mundo com mais igualdade e respeito. A Curinga é resistência! Ana Clara Oliveira e Marília Ferreira

Cartas do Leitor Para comentar as matérias ou sugerir pautas para a nossa próxima edição, envie e-mail para: revistacuringa@icsa.ufop.br


EU NO MUNDO


Identidade

Amor

(entre)

divas Texto: Douglas Gomes Foto: Débora Spanhol/Divulgação Arte: Júlia Pinheiro


Paetês. Brocados. Cristais. Saltos altíssimos. Brilho. Cor. Laquê. Glamour em sua expressão mais icônica. Poder de um arco-íris de luxo. Sempre impecáveis, seja na performance, seja na indumentária, divas são sempre divas! Esse substantivo feminino refere-se não apenas às divindades mitológicas; também fala de “deusas” dos palcos, telas, revistas e passarelas. E quando duas divas se encontram, o que acontece? Overdose de clicks e flashes? Sim. Mas, nesse caso, o resultado é um casal de drag queens. Isso mesmo: não apenas um par, mas um casal.

Há 12 anos, se conheceram em Curitiba, capital do Paraná. Vinicius Lavezzo, make up artist e Thiago Vilas Boas, hair stylist. Há 11, formam a dupla de drag queens “As Deendjers”. Tiveram seu nome inspirado na atriz Ginger Rogers, que flutuava no sapateado ao lado do astro Fred Asteire em musicais clássicos de Hollywood. Vinicius, a “Deendjer V” é de Astorga, interior do Paraná. Thiago, a “Deendjer T” é de Piranguinho, interior de Minas Gerais. A noite gay curitibana era o ponto de encontro desde o início do namoro. Fizeram amizade com agentes desse meio e, influenciados por algumas drag queens famosas da cidade como Brigitte Beaulieu, estrearam suas próprias personagens exatamente um ano depois, na Parada do Orgulho LGBT’s da cidade. Além do amor que une o casal há mais de uma década, os dois rapazes têm em comum a paixão pelas artes e pelo mundo glamouroso das divas

hollywoodianas da Era do Ouro. Neste período, entre as décadas de 1930 e 1940 o cinema norteamericano produziu clássicos de estilo, atrizes que representavam o que havia de mais feminino, luxuoso e digno de ser copiado na época. Nessa última década, Vinicius e Thiago têm-se dedicado a “se montar” e se apresentam por boates pelo país e paradas do orgulho LGBT’s. A primeira vez em que as Deendjers ganharam vida foi em uma parada da capital paranaense e, desde então, têm conquistado uma legião de fãs. Com mais de 21 mil seguidores em seu perfil no Instagram (@deendjers) e 17 mil na página do Facebook (facebook.com/as.deendjers), os fãs das Deendjers aclamam e acompanham a carreira de suas musas e verdadeiras rainhas. Viagens, shows, escolha e criação de figurinos, tudo registrado pelo casal que compartilha um pouco de sua intimidade e, além da admiração, serve de inspiração para seus fãs.

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NO PAIN, NO QUEEN Desde o início da trajetória, muitas companheiras de “montação” das Deendjers desapareceram da cena drag, atribuindo a dificuldade à renovação e lutas constantes. O trabalho envolvido na concepção de uma drag queen requer dedicação e reinvenção a cada aparição ao público. Artesãs de várias habilidades, elas confeccionam pessoalmente todos os figurinos com tecidos preciosíssimos e acabamento elaborado, assim como todo o processo. As perucas imponentes, maquiagem exuberante e coreografias milimetricamente ensaiadas e executadas, presentes no clipe da música Right Now, do grupo pop estadunidense Pussycat Dolls, dublado e gravado pelas Deendjers são exemplo disso. Tudo isso, a fim de exibir um resultado “o mais perfeito possível” quando as luzes se acendem e o show começa. Por trás das cortinas dessa magia incorruptível, encontram-se artistas que trabalham incansavelmente para realizar seus sonhos. Vinicius se dedicou às artes cênicas, fez teatro itinerante durante cinco anos de sua vida e tentou investir em uma carreira, antes de encontrar com Thiago, que já fez aulas circenses de malabares e pirofagia. Nasceram para brilhar e através das Deendjers eles se realizaram, juntos. Dividem sua rotina em dupla jornada entre o salão de cabeleireiro, onde atendem por agendamento de clientes. É comum irem para casa nos intervalos do trabalho para costurar os vestidos das apresentações, que acontecem geralmente em fins de semana que não estão maquiando alguma noiva, por exemplo. Outras drag queens do mundo pop contemporâneo também estão presentes na carreira das Deendjers, inspirando-as. Da paixão pelo cinema hollywoodiano, têm Carmen Miranda, Rita Hayworth, Liz Taylor e Jean Harlow como divas inspiradoras. Porém, a musa das musas das Deendjers é a atriz Marilyn Monroe, nascida Norma Jeane Mortenson, que despontou como um dos ícones eternos de estilo e feminilidade. Polêmicas à parte, os cabelos loiros laqueados, batom vermelho, vestidos justos-justíssimos e a pinta no canto da boca

são marcas icônicas de Monroe. São essas referências que o casal evidencia em suas personagens. No começo deste ano, realizaram o sonho de visitar Los Angeles: estiveram na calçada da fama e no túmulo de Marilyn, onde prestaram homenagens e reverenciaram a diva-musa-inspiradora. Vinícius coleciona, desde criança, lembranças que remetem a atriz. Nessa mistura, ainda há espaço para as princesas da Disney e seu mundo mágico. Essa é a expressão das Deendjers: a divindade do glamour e da feminilidade.

TIME TO BE FREE! Conhecidos pela aparência exagerada e o porte imponente, as drag queens surgiram como um movimento urbano e tem conquistado cada vez mais espaço e reconhecimento. São uma representação caricata do feminino, em seu expoente mais exuberante e expandido. Elas usam de alegorias com fins artísticos para criação e sua definição não é associada a orientação sexual ou de gênero, e, sim, pelo seu trabalho artístico como personagem. As drags se apresentam não apenas em festas de boates LGBT’s, mas em festas particulares. Desde 2009, o reality show exibido na tv norteamericana RuPaul’s Drag Race, apresentado pela drag RuPaul é sucesso de audiência. Com participantes de diversos tipos físicos, gêneros e orientações sexuais, o reality tem sido um espaço de visibilidade, não apenas para o backstage da vida das artistas drag queens, mas para reflexão de questões sociais que envolvem preconceitos sobre sexualidade e gênero. É um sonho das Deendjers participar do programa e mostrar seu trabalho para o mundo. Qualidade e perseverança não faltam a elas! No Brasil, seguindo moldes parecidos, o reality show “Academia de Drags”, disponível no Youtube e apresentado pela veterana e ícone da cena drag brasileira, Silvetty Montilla, também é um sucesso. As Deendjers acreditam na imponência desses espaços, pois dão reconhecimento ao caráter artístico das legítimas perfomers que são as drag queens.


e oprimiu a classe artística. O teatro era um dos meios de expressão impedidos de ganhar força. Com toda pressão sofrida, os artistas da época tentavam buscar formas de expor sua arte. Então, surgiu a ideia do Teatro do Oprimido: a oportunidade de representar, nos palcos, as vivências do dia a dia. Um dos atores da época, Augusto Boal foi destaque da luta pelo teatro através dos textos emblemáticos que produzia; e por isso partiu para o exílio, em 1969. Quando voltou ao país, criou o Teatro do Oprimido (TO). Em 1986, surgiu o Centro do Teatro do Oprimido (CTO), no Rio de Janeiro. O TO é a forma de expressão das camadas oprimidas da população, que pressupõe valorizar a resistência dessa classe. A proposta é que as próprias pessoas levem suas histórias de problemas e situações que viveram, mas não conseguiram resolver. Assim, através das encenações do Teatro do Oprimido, elas podem buscar alternativas pra modificar essa relação e tornam-se protagonistas de suas próprias vidas. O grande diferencial do TO é a participação da plateia, entrando em cena para resolver a questão proposta pelos atores.

Na Maré Em 2015, o CTO está com novo projeto no complexo de favelas da Maré, zona norte do Rio de Janeiro. A área tem cerca de 130 mil moradores e uma das piores rendas per capita da cidade, com baixíssimos indicadores de desenvolvimento humano. Geo Britto, coordenador político-artistico do CTO acredita que o local tem uma grande história de resistência, coincidindo com as atenções e interesses do TO. “São pessoas que saíram de várias regiões do Brasil e lutam para montar uma casa própria”, conta. “A ideia do CTO na Maré é potencializar uma rede de parceiros para construir políticas públicas em prol da juventude, a fim de auxiliar na superação das dificuldades de se viver numa comunidade”, explica Geo. Os jovens participantes tem a oportunidade de transmitir nas peças, situações de opressão como, por exemplo, o preconceito no mercado de trabalho com moradores de comunidades pobres, o machismo, a questão de gênero, a violência sexual dentro de casa.

Habitar

No auge da ditadura militar, o regime censurou

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ência Livre

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Sensação

“Eu sou um nômade.” Assim se autodenomina Newton. Quinze minutos de trilha dentro de uma área de preservação ambiental, sem mapas ou placas, chega-se ao lugar no qual ele habita. Newton possui uma habitação e não uma moradia. Essa distinção é muito importante para compreender seu estilo de vida, pois, quem reside possui vínculos administrativos com a sociedade. Contas à pagar, serviços à cumprir, normas à respeitar, além de uma série de outras convenções sociais. Newton não tem endereço, inscrição cadastral, contrato de locação, escritura. Seu nome não está na lista telefônica, seu perfil não está no Facebook, e seu currículo não está no Linkedin. Em cima de uma pedra, está sua cabana, construída por ele mesmo, a quarta desde que chegou em Ouro Preto. Dentro, a falta de mobília, roupas e utensílios abre espaço para os livros, os minerais, e algumas plantas. Fora, a mata é seu quintal; sua horta, seu galinheiro; sua terra, suas plantas. Assim vive Newton, resistente aos meios tecnológicos e ao sistema que ele considera antiquado e opressor. Por mais que seja praticamente invisível nas redes sociais, e viva mato a dentro, ele mantem sua relação com as pessoas da cidade e participa das atividades sociais comuns a todos os cidadãos. Das coisas que cultiva, uma parte é para sua alimentação, e outra parte é para sua fonte de renda. O que é plantado, utili-

za para o seu próprio bem-estar; e o que sobra, ele vende para pessoas conhecidas. Com o dinheiro arrecadado, Newton ajuda algumas pessoas da região que sofrem vulnerabilidade social; compra alguns alimentos mais difíceis de produzir, como arroz, feijão e café, além de guardar uma parte desse valor para um tratamento dentário que necessita.

Comportamento partilhado Como Newton, existem outras pessoas, grupos, e comunidades que mantem um estilo de vida diferenciado, no qual outros valores e costumes são agregados aos seus cotidianos, como é o caso da comunidade Temple Source em Cunha, São Paulo. Neste local, as pessoas pregam o altruísmo e o amor ao próximo. Deixaram pra trás suas rotinas, seus trabalhos, suas famílias para se dedicarem à evolução espiritual. Segundo “Chris”, morador do Temple Source, esse mundo no qual estamos adaptados é uma virtualidade. Para ele, as sensações verdadeiramente reais estão dentro de cada um, e podemos exercer o domínio de filtrar o que é bom ou ruim. Na comunidade Temple Source vivem pessoas de diversas partes do mundo, quase uma Torre de Babel, repleta de idiomas. Ainda assim, a comunicação acontece de maneira fluida e


eficaz. Diferente de Newton, eles utilizam as redes sociais para propagar o que consideram relevante na vida, como as diretrizes do livro “Curso dos Milagres” e a ideologia de persistir no amor ou persist love, como é conhecida mundialmente. Apesar de terem acesso à internet, utilizarem serviços bancários e possuírem um endereço, também são nômades. Estão sempre em fluxo, seja de lugares ou de ideias. Muitas pessoas, inclusive, já extinguiram seu nome de registro e adotaram outro que, segundo eles, condiz mais com essa nova etapa de vida e “evolução”. Tanto Newton quanto as pessoas do Temple Source se relacionam de maneira muito harmônica com a natureza, não apenas na relação de plantio e cultivo de alimentos e plantas medicinais, mas também, na forma como os bens de consumo são utilizados, descartados e/ou reciclados, além das construções serem ecologicamente sustentáveis. Resistência, liberdade e ideologia se confundem nesses estilos de vida, pois são diversas forças que influenciam nas tomadas de decisões das pessoas e

na forma como elas enxergam a sociedade. No caso de Newton, a influencia para o nomadismo começou cedo e se estendeu à vida adulta. Órfão de pai e de mãe, ele foi criado pela madrinha em torno de uma grande vulnerabilidade social, e já adolescente seguia a vida de maneira independente. Há quem diga que é loucura abdicar-se de hábitos que proporcionam nosso conforto. Mas o que é conforto para uns, não é conforto para outros, porque o bem-estar é algo muito particular. Ao ser questionado se é um resistente, Newton afirma que sempre considerou seu comportamento como um movimento próprio da sua individualidade. Acredita que o afastamento territorial proporciona uma mente mais livre para obter as reflexões que considera necessárias à sua sanidade: “eu enxergo a sociedade como um corpo social. Sendo um corpo social e fazendo parte dessa espécie, eu sou atuante, dentro ou fora. Eu estou dentro para as questões relevantes, mas estou fora para as questões superficiais”.

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Sensação

Resistir não é remediar

Medicina tradicional ou alternativa? A escolha por diferentes tratamentos significa mais que a busca pela cura do corpo.

G Texto: Samuel Perpéuo Foto: Alessandra Alves Arte: Charles Santos


O abuso de remédios tarja preta, além de causar dependência pode desencadear outras doenças. Primeiro começa com um antidepressivo, que causa problemas na pressão. Da pressão o medicamento acelera o coração. Do coração o diabetes, e quando se percebe, a pessoa está consumido mais de 20 tipos de medicamentos, diariamente. Em comprimidos e capsulas, parece existir uma solução na dose exata para cada problema da vida. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil está entre os três maiores consumidores de remédio controlado do mundo, junto com os Estados Unidos e Argentina. O uso de medicamentos tarja preta disparou nas últimas décadas. Karen Rafaela Santos, psicóloga do CAPS em Mariana, revela que um dos grandes desafios do profissional, atualmente, é diagnosticar e diferenciar o sofrimento da depressão. As pessoas não encaram mais adversidades humanas como tristeza, medo e sofrimento. “Nosso desafio é entender que as pessoas podem sofrer. Hoje em dia a gente vive em uma sociedade em que as pessoas não podem mais sofrer, não podem mais chorar, não podem mais entristecer. Quando se entristecem e choram é depressão, precisam de remédio. O que esse remédio vai calar? Algumas coisas precisam aparecer”, afirma Karen. A procura de uma saída rápida para um problema que deveria ser encarado e não mascarado com medicações, vem aumentando cada vez mais o abuso de remédios, o que Karen chama de “Medicação da Vida”.

que o sintomas que eles tratam. Tomar um chá de boldo, por exemplo, cura bem mais sua ressaca do que um Engov. Quando você toma uma remédio pra queimação no estômago, o remédio pode afetar seu fígado e assim por diante”. Outra medicina alternativa de grande adesão é a homeopatia. A homeopatia surgiu há pouco mais de 200 anos com os estudos do médico alemão Samuel Hahnemann. Considera doença como o desequilíbrio da energia vital. Diferente da alopatia, que é conhecida como medicina tradicional e busca tratar os sintomas das doenças, a homeopatia não busca combater ou anular sintomas, mas sim compreender o seu significado e importância de medicar o paciente no sentido total da sua recuperação, fazer com que a força vital volte ao seu equilíbrio. Em Mariana, a farmacêutica homeopata Gishia de Fátima Horta Moreira trabalha com essa medicina há mais de cinco anos. “Cansados dos tratamentos tradicionais, alguns pacientes procuram outra forma para tratar a sua doença”, comentou. Ela acredita que apesar da medicina tradicional ainda ser a primeira opção da maioria, a procura pela homeopatia tem aumentado. Segundo a farmacêutica, uma boa parte das pessoas que vão ao médico alopata se queixam de não ser bem atendidas. Com isso, cria-se um mal estar para o paciente e ele procura outras alternativas de tratamento. “No meu ponto de vista, a medicina tradicional é mecanizada e as medicinas alternativas e a homeopatia são humanizadas”, afirma. De qualquer forma, procurar um profissional antes de iniciar qualquer tratamento é sempre a melhor opção.

Existem outras alternativas? Por outro lado, as terapias não convencionais estão se tornando cada vez mais populares entre um grupo de pessoas. Deles destaca-se duas populares que são a fitoterapia e a homeopatia. A fitoterapia acredita na “cura através das plantas”. Surgiu na medicina chinesa e é um conhecimento que muitas pessoas usam mesmo que desconheçam seu poder curativo, mas que foram passados de geração em geração. Um dos adeptos dessa medicina, o estudante de Pedagogia Edson Vinício de Oliveira Soares, só utiliza a medicina tradicional em casos graves onde não resta outro recurso. “Eu nasci na roça e tomava chá quase todos os dias. Os efeitos colaterais dos remédios tradicionais são bem piores

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Identidade

Religião para todos A historiadora Sidnéia dos Santos, 39, conta detalhes sobre a existência de quatro gerações de escravos que tiveram seus cantos e ritos perdidos, na hoje chamada Região dos Inconfidentes. Os negros que trabalhavam na extração do ouro, em Ouro Preto, eram trazidos de uma região da África conhecida como Costa da Mina, que atualmente abrange Gana, Togo, Benim, Nigéria e parte da Angola. Os reinos que pertenciam a região possuíam mais de 1.500 dialetos diferentes. Eram estrangeiros entre si, tentando se reorganizar socialmente, além de proibidos de praticarem suas crenças. Uma das poucas formas de culto permitidas na colônia acontecia através das irmandades de negros, como a do Rosário, de Santa Efigênia, de Santo Elesbão, São Raimundo e de São Benedito. Assim nasceu o sincretismo, em que divindades africanas se tornavam santos católicos aos domingos, único dia da semana em que o escravo podia ir à missa e também trabalhar por conta própria, para subsidiar a existência da irmandade. Hoje, as religiões de origem africana resistem em terreiros espalhados pela cidade, que é famosa por suas igrejas centenárias.


Texto: Adrean Larisse Nunes Fotos: Aprígio Vilanova e Edione Abreu Arte: Laís Diniz

Um dia no terreiro Na descida da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar até as proximidades da Estação Ferroviária de Ouro Preto está localizado o Centro Sete Poderes. São cinco da tarde de uma segunda-feira e junto com um fotógrafo da Revista Curinga estou indo, pela primeira vez, a um centro de Umbanda. Sou recebida por Seu Zequinha, 61, aposentado, pai de dois filhos, que reserva boa parte do tempo como diretor do centro instalado em sua própria casa e que abre as portas toda segunda e quarta-feira. Pouco a pouco pessoas chegam para o atendimento com os médiuns. São eles que incorporam as entidades que irão dar conselhos aos que estão ali. Com a casa já cheia, me sento com Zequinha. Para ele, a principal dificuldade no entendimento social da religião de matriz afro-brasileira é que poucos médiuns divulgam a doutrina de forma mais aberta. Quando falamos em Ouro Preto o problema se agrava: praticar umbanda em uma cidade muito católica pode trazer riscos. Em outro espaço do centro, sentado enrolando fumo, está um médium que nos fala um pouco mais sobre as peculiaridades da umbanda. Mesmo sendo kardecista fico um pouco nervosa com a ideia, pois não sei muito bem o que perguntar ou como devo me portar diante da entidade. O médium, enquanto fuma, explica que as ervas usadas nos rituais são geralmente conseguidas em matas próximas ao centro. Ao fim da conversa, ganho um rosário e um preparo para banho. O

A fala de Pai Jacó me faz perceber o quanto a umbanda está sincretizada com o catolicismo, uma herança de quando os escravos não podiam cultuar os deuses africanos de forma livre em terras brasileiras. Depois disso procuro saber mais sobre como essa religião e outras de matrizes africanas foram abafadas pela coroa portuguesa. Do meu mergulho em religiões que antes, por medo ou preconceito, nunca tive coragem de saber mais, ficou só uma certeza: assim como Pai Jacó revelou, o que é preservado é o amor, que mesmo sincretizando Ogum em São Jorge, Iansã em Santa Bárbara e Oxalá em Jesus, é o mesmo que se busca em qualquer outra crença. Voltei para casa acreditando mais no respeito a outros credos. Como disse Pai Jacó, o que deve prevalecer é o amor ao próximo, seja ele da umbanda, do candomblé, catolicismo ou qualquer outra doutrina. Afinal, de axé e amor todo mundo precisa.

A religião verdadeira cada um de vocês carrega em seu coração. É através do amor, da fraternidade um com o outro. Fui descrente. Hoje estou na verdadeira fé. A fé não está escrita em nenhum livro. A fé está dentro de vocês. Pai Jacó da Jaula

rosário é emprestado, para que eu volte. Pouco depois sou levada ao Preto Velho, conhecido como Pai Jacó da Jaula. É ele quem começa a falar. Pai Jacó diz que veio de um mundo espiritual que muitos chamam de Aruanda. Segundo ele, na existência carnal foi trazido da Guiné em um navio quando criança e começou a trabalhar como escravo em uma fazenda de café. Diz que aceitou a condição de escravo “para aprender a necessidade dos filhos”, sendo que, em outra vida havia os rejeitado. Ele então vê o rosário em meu pescoço e pergunta se eu o ganhei, assim como o banho de ervas. Quando respondo que sim, que o banho irá me ajudar com problemas de saúde, Pai Jacó diz que “pode ver de nada que tá com medo de tudo”, fazendo menção a uma gastrite nervosa para a qual o banho irá servir. CURINGA | EDIÇÃO 15

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Identidade

Foto: Bruno Arita

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Eduardo Moreira


Arte: Edmar Borges

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TRAVESSIA


Corpos ditos e sentidos


TexTO: leTíCiA AFOnsO FOTO: KAiO bArreTO ArTe: nATAne generOsO

Limitar um corpo é impor que suas emoções, gestos, palavras, sejam enquadrados em padrões de comportamento. Cerceada a liberdade, delimitadas as regras que oprimem... Ao corpo feminino foram atribuídas diversas características que restringiram e ainda restringem suas escolhas. Opressões que vêm disfarçadas em atos cotidianos. Assim, libertar os corpos é justo e necessário... Resistir às opressões, experimentar o mundo, expressar os afetos. Há quem faça isso!

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Ao olhar para cada indivíduo notamos algo diferente. Isso porque o corpo carrega classificações sociais. Por exemplo: Este corpo é de uma mulher ou de um homem; Este corpo de mulher tem a pele negra; Este corpo veste roupas femininas. Portamos rótulos para que sejamos identificadas e aceitas por todas as outras pessoas. De acordo com a historiadora Guacira Lopes Louro, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), as pessoas são percebidas por sua aparência, que é “algo que se apresenta ou que se representa. Vê-se o que se mostra, o que aparece; e ao que se vê se atribui significados. Pele, pêlos, seios, olhos são significados culturalmente”. Uma das formas de classificar e rotular o ser humano é o gênero, construído e mantido pelas pessoas organizadas em instituições. Na maioria das sociedades, os corpos são diferenciados como feminino ou masculino, e é comum vê-los reduzido ao determinismo biológico, uma delimitação pautada nas verdades aparentes de um corpo. Nesse processo, as características culturais da humanidade são reduzidas à fisiologia em detrimento da cultura. Os rótulos dados às pessoas evidenciam os modos aceitáveis de serem percebidas. Em tal processo, por vezes, a imagem exterior do corpo torna-se justificativa para as limitações do indivíduo ante a sociedade, e assim, é necessário resistir a alguma situação de opressão no cotidiano. As lutas travadas pelo feminismo em busca da igualdade de gênero advêm desse processo. Questionam os lugares subalternos reservados para o feminino na sociedade, impostos, historicamente, pela autoridade e prestígio social atribuídos à figura do patriarca. Conforme os ideais de gênero pautados no patriarcalismo presente em diversas culturas, as mulheres não poderiam atuar dentro de esferas sociais, como instituições de ensino, políticas, jurídicas, econômicas e religiosas. Nesse viés, cada uma dessas organizações sociais, à sua maneira, teria um papel conformador na identidade de todas as pessoas. Por muito tempo, não foi aceitável que as mulheres fossem matriculadas em instituições de ensino. Isso era uma regra, e quem ousasse quebrá-la sofreria com as punições. O ingresso das mulheres na educação pública no Brasil, por exemplo, se deu apenas em 1880, com a fundação da Escola Normal no Rio de Janeiro. Apesar disso, o conhecimento passado ao ser feminino era censurado. Somente homens aprendiam matemática e física, e tinham acesso às leis conformadoras da sociedade. A prioridade na educação para mulheres era ensiná-las a portar-se diante das outras pessoas, e principalmente do seu companheiro.

De acordo com Josenia Antunes Vieira, professora aposentada da Universidade de Brasília (UnB), a identidade feminina abriga experiências particulares, emoções e vivências culturais, pelo fato estar sujeita aos discursos restritivos em momentos históricos específicos. Em artigo de 2005, a professora afirma: “determinados comportamentos discursivos comuns à cultura masculina são proibidos à feminina e vice-versa. No universo das mulheres, pela construção social a que está sujeita a linguagem, geralmente são interditadas certas palavras relativas ao sexo e às partes sexuais”. A educação seria um dos fatores que contribuiria para a exigência e o exercício de direitos civis, sociais, econômicos e políticos. Para garantir espaços sociais, é necessário conhecer e ter acesso às possibilidades de atuação diante dos outros indivíduos. O conhecimento, atrelado a ideais políticos e comportamentos questionadores, foi importante elemento para a busca da liberdade corporal e mental da mulher ao longo da história.

Autonomia sexual O corpo não deve ser desassociado da mente, pois ambos coexistem e são afetados pelo estar no mundo. A sexualidade, tal qual o gênero, está atrelada a ambos e pode ser pensada em termos psicológicos, biológicos, e culturais, uma construção do convívio social. É também uma maneira de experimentar o que nos afeta. Quando a identidade sexual dos indivíduos é limitada por padrões repressivos, pode haver culpabilidade ao ato sexual, gerando traumas psicológicos e comportamentais. Esse processo é usual, pois a sexualidade foi e ainda é rigidamente controlada por normas corretas de conduta. Há papéis sexuais atribuídos a cada gênero. Para as mulheres, o prazer foi edificado como motivo de penitência, pois seu sexo era estritamente procriativo e limitado pelo gozo do homem. A conduta sexual feminina foi mitificada de acordo com os padrões de gênero, e controlada por meio da culpa gerada pela moralidade. Isso evidencia o processo de repressão sexual comum às minorias, que não se reconhecem na binaridade de gêneros homem/mulher, masculino/feminino. Tendo a sexualidade praticamente anulada e pouca possibilidade de atuação no domínio público, a mulher foi reduzida ao âmbito doméstico. Onde deveria expressar virtudes e dons que transpusessem a fraqueza da carne por meio da libido. Sua função era cuidar dos afazeres domésticos e da família. Ainda hoje, para muitas daquelas que trabalham fora, a casa e os filhos permanecem exclusivamente sobre seus cuidados.


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O desejo sexual das mulheres foi inibido por processos de repressão social. No estudo publicado em 2008 por Wânia Ribeiro Trindade e Márcia de Assunção Ferreira, professoras da Faculdades Integradas Espírito-Santenses (FAESA) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), baseado em entrevistas com mulheres em um posto de saúde em Vila Velha – ES, a ausência de desejo sexual feminino aparece relacionado “ao esforço das mulheres na luta diária, numa tentativa de garantir com seu trabalho a independência, sua afirmação pessoal e profissional, mas que consequentemente repercutem negativamente nas suas condições de saúde”. As estudiosas defendem a existência de espaços de “discussão coletiva entre as próprias mulheres”, para que compartilhem experiências e se percebam na vivência uma da outra. Isso possibilitaria o reconhecimento de diversos problemas comuns à condição feminina.

Termos de libertação Os estudos feministas traçaram formas de resistência para que as mulheres pudessem ocupar espaços e atuar nas instituições. Foram desenvolvidos à partir dos movimentos sociais femininos, como a convenção dos direitos da mulher em Nova York em 1848. Nesse contexto, a mulher deve ser vista como alguém que resiste às classificações limitantes de sua atuação na esfera pública, posicionando-se como um “segmento” diante das lutas de gênero, classe social, etnia, dentre outras. A partir desses estudos, pautas acerca da vivência feminina vêm sendo levantadas nos últimos anos. E diversos elementos formadores de sua identidade estão presentes no processo de elaboração de pesquisas e debates. A partir da segunda metade do séc. XX passou-se a considerar a inclusão da mulher no mercado de trabalho, o papel dos

meios de comunicação na formação identitária da mulher, as discussões acerca do aborto, a abertura de espaços para discutir gênero e sexualidade nas instituições de ensino, dentre outras. Passou-se a considerar também sua representatividade nas áreas de produção do conhecimento da humanidade. Agora a mulher também tem a possibilidade de se expressar por meio de livros, como a escritora Adélia Prado, artigos científicos como a estudiosa Simone de Beauvoir, músicas como a cantora “Cris” do extinto grupo de rap SNJ, filmes como a cineasta Anna Muylaert. Todas, a sua maneira, empoderam e libertam a figura feminina de estereótipos limitante.

Eu mesma, a outra mulher Ao final desse texto, conto um pouco da minha história e trago com ela o pulso da minha intimidade. Carrego significados em meu corpo, sou indivíduo. Me porto diante da sociedade de acordo com normas compartilhadas. Me reconheço como mulher e, para mim, foi simples a adaptação de alguns padrões de sexualidade. Quando menina, não me perguntava acerca das normas sociais que poderiam cercear minha capacidade de expressão. Mesmo assim, em algum momento de minha história, quis ocupar espaços predominantemente masculinos. Presumia, então, que o melhor seria suprimir características de minha construção identitária como mulher. Me machuquei, mas ainda obtive vantagens na corrida para ocupar espaços na sociedade. Tive acesso ao ensino, saúde, e não precisei resistir às opressões étnicas e sociais. Alguns de nós possuímos meios para se desviar das opressões colocadas no cotidiano. Mas a quem oprimimos, mesmo sem perceber, para que pudéssemos manter nosso conforto e modo de vida?


O MUNDO EM MIM


Sensação

Ladainha da persistência “Que Navio é esse, é o navio negreiro, aqui chegando não perderam sua fé”. É através de cânticos como esta ladainha , escrita pelo mestre Camisa, que os capoeiristas retratam histórias.


A mochila está nas costas e o berimbau permanece entre os dedos. É possível perceber algumas pessoas vestindo calça branca e segurando instrumentos como pandeiro e agogô. O cenário é o da ação do grupo Oxalufã, que pratica a capoeira, na praça Gomes Freire, em Mariana, Minas Gerais. O som do gunga indica que a rodada de gingado irá começar a qualquer momento. Progressivamente dezenas de pessoas vão se rendendo ao encanto da melodia e formando uma roda de espectadores em volta do grupo. O professor Damião Cosmi Leonel, 54 anos, lembra que antes de ser aplaudido e elogiado pelas pessoas por causa do trabalho que desenvolve na capoeira, já sofreu repressão social e racial. Relata, ainda, que em determinadas instâncias foi até perseguido pela polícia por conta da dedicação ao ofício. Para ele, muitos indivíduos ainda persistem em não aceitar a capoeira como uma prática cultural, livre dos preconceitos e da marginalidade.

Ser capoeirista A capoeira surgiu no século XVI. Segundo o pesquisador Matthias Röhring Assunção, que leciona história na University of Essex, ela originou-se na África e veio para o Brasil através dos navios negreiros. Baseada em tradicionais danças e ritmos africanos, a capoeira é uma mistura de esporte, luta e brincadeiras. Ela pode dividir-se em duas vertentes. A primeira é a capoeira Angola, cujo o estilo se aproxima de suas raízes e a principal

característica são os movimentos lentos. O segundo segmento é caracterizado pela capoeira Regional, que incorpora golpes contemporâneos, acompanhados por movimentos rápidos. O mestre Aloísio Augusto, de 43 anos, trabalha como professor de capoeira há mais de 30 anos. Ele conta que se encantou pelo gingado quando ainda era criança, “desde pequeno eu gostava de observar a roda de capoeira, não demorei muito para começar a praticar e logo em seguida tive a certeza que era isto que gostaria de fazer”, lembra. Aloísio explica que a capoeira é um oficio sério e para se tornar mestre as pessoas devem se dedicar. Como o mestre Damião, Aloísio ressalta que ainda há resistência das pessoas em acolher a capoeira como profissão: “muitos nem sabem do percurso que caminhamos e acabam fazendo interpretações erradas sobre nós”.

Conflitos e perspectivas A capoeirista Mara Silva, 38 anos, frequenta o grupo Oxalufã há cerca de dois meses. Para ela ainda há persistência da sociedade em não concordar que mulheres também podem praticar a capoeira, por ser uma manifestação artística que utiliza movimentos de luta. Mara completa dizendo que “a capoeira ainda é mal interpretada pela sociedade. As pessoas só conhecem superficialmente, elas precisam entender a verdadeira filosofia que propagamos. Muitos acham que a roda é um ambiente perigoso para as mulheres”.

O mestre Damião relembra as dificuldades que sofreu quando chegou em Mariana para trabalhar como capoeirista. Segundo ele, houve muita dificuldade em aceitar a capoeira como uma modalidade de arte. A polícia foi uma das principais repressoras, muitos diziam que “nós estávamos trazendo a marginalidade para o município”, relata. O mestre Damião ainda enfatiza que muitas pessoas não aprovam a capoeira por não conseguirem distinguir da religião. A capoeira vai além do que uma simples atividade física. Ela é um dos componentes que definem a identidade brasileira. No dia 26 de novembro de 2014, a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), reconheceu a capoeira como Patrimônio Imaterial da Humanidade. Isso reforça a importância desta arte para a sociedade. Mesmo diante de todas as dificuldades e resistência, o jovem capoeirista de 21 anos, Denis Patrick Vieira, enxerga o futuro da capoeira com otimismo. Segundo ele, a globalização e o fácil acesso da informação está ajudando as pessoas a entenderem o verdadeiro sentido desta arte: “os valores culturais não estão ligados especificamente na performance do gingado, eles estão incorporados na música, nos trajes, nos instrumentos e no comportamento.”

TexTO : MATheus MAriTAn FOTO: AprígiO vilAnOvA ArTe: isÂniA silvA sAnTOs

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Identidade texto:

Raquel Satto Foto: Lucimara Leandro Arte: Débora Simòes

Ocupe-se, pois ocupa-se


Wall Street, Rosa Leão, Flaskô, Mercado Sul, Ufop. Ocupa-se. Seja contra um sistema econômico ou a especulação que empurra a população para fora de suas casas, ocupar é reivindicar direitos e também a solução para a falta de um deles. Existem ocupações de fábricas falidas, realizadas por operários que são gestores e ressignificam relações trabalhistas, ocupações de caráter colaborativo artístico, que se engajam questionando a função social de construções e o direito à cidade... Occupy, 17 de setembro de 2011. Wall Street como cenário de críticas ao capitalismo financeiro. Com o slogan “Nós somos os 99%” - a população maior em número e menor em poder monetário - o movimento ocupou um lugar simbólico para o sistema que viveu profunda crise. Suas influências foram a Geração à Rasca e o Movimento dos Indignados; que por sua vez bebeu da fonte da Primavera Árabe e de movimentos que derrubaram governos na Tunísia e Egito. Depois de Wall Street, o Occupy se alastrou do México ao Nepal. Com suas particularidades mas semelhantes na mudança. Segundo Felipe de Oliveira, jornalista e doutorando em Ciências da Comunicação, os movimentos de ocupação global “são novas formas de intervenção na esfera pública, antes mesmo de se constituírem como movimentos sociais na plena acepção da definição”. Além disso, as ações contemporâneas constituem “uma proposta de nova esquerda mundial, com lastro na democracia real e em princípios como a horizontalidade para a tomada de decisões, o que gera perplexidade nos campos político, acadêmico e da comunicação.”

Um caso representativo da situação de ocupações habitacionais é o da região do Isidoro, em Belo Horizonte. Segundo publicação no site das Brigadas Populares, as ocupações Rosa Leão, Vitória e Esperança sofrem perseguição por parte do Estado, mesmo após o governador ter se comprometido a não despejar nenhuma comunidade sem alternativa de moradia. Assim como em diversos casos, a grande mídia adota o discurso governista de criminalização dos movimentos e a falta de abertura para se posicionarem. Ocupações também estão presentes no movimento estudantil. Em artigo de 2011, “O espetáculo das ocupações: Estudantes ou Vilões?”, Elionay Marques e Lucas Fano explicam o significado de ocupar: “as ocupações são uma resposta contrária às constantes tentativas de diminuição do espaço público e da autonomia universitária, um ato estratégico na luta pela defesa da universidade pública e, num sentido maior, pela defesa da educação para todos”. É colocado que a mídia se aproveita de casos controversos para espetacularizá-los e não problematizam suas raízes. Em 2015, nos movimentos da Educação, Ocupa é recorrente - de OcupaUFPB a OcupaUFOP - e as reflexões de 2011 são atuais. Cortes de 9,4 bilhões na Educação. Ampliação nas terceirizações. Restrições à pensão por morte e fator previdenciário. Acesso dificultado a seguro-desemprego e abono salarial. O cenário colocado no início de 2015 é caótico para estudantes e trabalhadores, a crise bateu na porta e os movimentos respondem. Lutando, ocupando e incomodando.

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Ocupando entre ladeiras: um relato. (Ouro Preto, junho de 2015) Café e luta são combustíveis. Assembleia e encaminhamento penetram no vocabulário. Qualquer conversa é debate e qualquer lugar é cama. A vivência de uma ocupação estudantil traz reflexões sobre coletividade, seja em revindicações ou no convívio de pessoas diferentes que se unem em prol de um bem comum. O movimento OcupaUfop nasceu, frente a burocracias e apatia geral, para que pautas fossem esclarecidas e atendidas. A “casa” respira, come e bebe política. Histórias de outrora, PLs e MPs se misturam à conversa besta do café. Tudo faz refletir a necessidade da política no dia-a-dia, em pequenas e grandes coisas. Não podemos nos alienar do contexto maior, enquanto indivíduos somos seres históricos e políticos. Não se negocia apenas com a Reitoria, diariamente se vê a necessidade de respeitar lugares de fala e pontos de vista. Saber contrapor o que não é concordado e prestar atenção no que pode ferir se tratado com desleixo. Daí, tudo é problematizado. Urgência e política exalam da ocupação. As emoções ficam à flor da pele, a ansiedade e o cansaço são perceptíveis. Apesar dos desentendimentos ocasionais, é como se os ocupantes se conhecessem há tempos e fizessem parte de uma grande comunidade, onde se divide desde comida até toalha. Além de discordâncias internas, existem as pressões externas, da Universidade ou da parcela que se coloca contra o grupo autônomo. Difícil saber qual a mais persistente. Apesar disso, o foco é o coletivo e a defesa de uma universidade pú-

blica de qualidade, acessível e plural. Ninguém faz ocupação porque gosta: é um processo desgastante psicológica e fisicamente. Mas ainda uma ferramenta válida. Quem trabalha na reitoria se junta aos ocupantes, no café ou ao conversarem sobre a situação delicada em que o país e a universidade se encontram. Um apoio que se sente, cara a cara. A maior manifestação pode ser um simples “que bom que vocês entendem”. A troca de saberes é constante, cada um ensina o que sabe, aprende com a outra, ajuda no que pode. Entre cartas e manifestos, deliberações e protestos, os trabalhos acadêmicos. O período letivo continua. Há marcas em quem participa. Tudo é intensificado e pensado profundamente, as concepções são reavaliadas. O mundo externo é mais difícil de ser encarado quando há o estranhamento. O mundo interno pode parecer uma fuga, mas na verdade é o olho do furacão. Tudo parece estar na ordem enquanto o frenesi reina da porta para dentro. Na timeline, críticas e apoios, notas e fotos. Na linha do tempo da vida que segue, aniversários comemorados, horas de sono perdidas, laços feitos e desfeitos. Uma realidade palpável ao alcance das mãos. Pena que são poucas as dispostas a se colocarem na massa. Mesmo que o horizonte pareça ser distante, as pessoas perdidas e o panorama, conturbado, ainda há quem acredite. Pois como diria Síntese: “Não se ilhe, sonho que se sonha junto é o maior louvor”.


Identidade

Cidade em palavras Curinga entrevista Ferréz, autor do livro “Os ricos também morrem”, lançado em 2015.

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Morador do Capão Redondo, periferia de São Paulo, Reginaldo Ferreira da Silva, 39 anos, é um escritor renomado. Com textos traduzidos em mais de seis países, Ferréz como é conhecido, traz em suas obras um olhar mais próximo da realidade das favelas. Mostra de forma simples e verossímil que o morro tem muito mais para contar do que só as mortes e os problemas exibidos pela grande mídias. Ferréz é lembrado também por ser um dos fundadores da “Literatura Marginal”, gênero no qual os textos refletem a realidade e o cotidiano das periferias. Ele e outros autores utilizam-se do estilo para permitir que a voz das favelas seja ouvida e que estas pessoas possam ser vistas de uma nova forma. Fazem da literatura um dispositivo de resistência, contra uma realidade mascarada e distorcida.

Curinga: Como o livro e a leitura influenciaram sua vida? Ferréz: Em tudo, aos 12 anos li meu primeiro livro e comecei a ter uma visão de mundo, fora que desde que li meu primeiro gibi quando tinha 7 anos, que sempre me diverti muito lendo. C: Quais livros e autores te inspiraram? F: Hermann Hesse, Plínio Marcos, João Antônio, e hoje tem muitos outros, como Marcelino Freire, Lourenço Mutarelli. C: Quando surgiu a ideia de escrever sobre/para a periferia? F: Foi no primeiro livro oficial, o Capão Pecado, que ficou pronto em 2000, nele pude abranger esse lado, que muita gente não queria falar sobre isso, foi uma coisa natural, me senti mais a vontade falando sobre o universo que eu conhecia. C: Como se desenvolve seu trabalho na periferia? E como as pessoas se envolvem com o movimento? F: Começou numa crença, eu acreditava que as pessoas tinham que ter acesso a esse mundo que eu estava entrando, o da leitura, e fui organizando pequenos even-

tos onde lia meus poemas, falava da maravilha de se ler, foi natural querer passar isso para frente, então eu pedia para falar em eventos políticos, em shows de hip-hop e assim fui sendo conhecido como o escritor da periferia. C: Como é pra você ver seus textos traduzidos em vários países e saber que a voz da periferia está sendo representada e conhecida? F: É uma coisa que trago com muito orgulho, mas também com responsabilidade, saber falar em plural em vez de ter uma opinião fechada, saber representar essas pessoas que as vezes não se veem bem representadas por onde passam os meios de comunicação. C: Quando você escreve para as crianças, como deseja entrar na cabeça delas? Com que tipo de informação? F: Tento falar de assuntos que geralmente não são abordados, os livros infantis geralmente não abordam nada real, e quando fazem creio que eles menosprezam o saber da criança, então trago temas que geralmente são desconfortantes, mas necessários. Sempre penso que ao terminar o livro ela tenha que ter aprendido algo. C: É mais fácil instigar uma criança ou um adulto a ler? Como uma geração de leitores pode melhorar o senso crítico da população?


F: Mais fácil é criança mesmo, adulto é teimoso, tem pensamentos já concretos, mesmo que errados. Na criança você consegue dar a ideia de aventura, de se divertir e aprender ao mesmo tempo. A leitura melhora e cria o senso crítico, você toma atitudes mais pensadas, vai saber viver com decisões que lhe fazem sofrer menos na sua vida.

mos únicos e podemos sim fazer uma grande diferença na vida do outro, se nos importamos e decidimos também não desistir jamais.

C: Como a literatura pode ser utilizada como ferramenta de resistência? F: Em todos os casos, sem informação não tomamos decisões sábias, e ai a vida nos machuca, com a leitura, você vai saber ser resistente a uma mídia massificante, mentirosa, estereotipada, vai saber se defender dessa grande mentira que nos vendem. C: Você é apresentado como um escritor da Literatura Marginal. Qual o significado disso para você? F: Poder falar sobre temas que são estigmas para a população, saber que temos uma responsabilidade com a periferia. C: Como você se sente em poder representar a periferia através de um olhar diferente daquele que é veiculado nas grandes mídias? F: Me sinto bem em não engrossar esse coro dos descontentes, onde só se vende morte em jornais, e medo em toda a programação ou jornal que você lê, eu não participo disso, sou livre na minha vida. C: A poesia pode tudo? Pode fazer revolução? F: Sim, o amor é mais forte que a dor, e mostrar o amor pela palavra, pela história do outro, isso é ajudar a mudar o mundo.

Foto: Marcus Kawada /Arquivo Ferréz

Obras Fortaleza da desilusão - 1997 Capão pecado - 2000 Manual prático do ódio - 2003 Amanhecer esmeralda - 2005 Ninguém é inocente em São Paulo - 2006 Deus foi almoçar - 2011 O pote mágico - 2012 Os ricos também morrem - 2015 Acesse: http://www.ferrez.com.br/

C: O que é resistência pra você? F: Ficar firme em meio a tanto caos, saber que soTexto: Cíntia Magela Foto: Hugo Coelho Arte: Paloma Ávila

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Habitar


TexTO: peDrO eWers FOTO: rAquel esTevãO ArTe: ChArles sAnTOs

liMA

Cerco aos Coronéis Combater o oligopólio da midia é lutar por uma comunicação livre e plural. A Constituição Federal Brasileira determina que os canais de rádio e tv devem ser divididos em três sistemas de comunicação diferentes e de forma equilibrada: o sistema público, estatal e privado. O sistema público abrigaria os canais sem fins lucrativos, o estatal existiria para dar transparência e comunicar o que acontece no governo e parlamento, já o privado seria financiado por empresas que fazem comunicação a fim de obter lucro. Em teoria, os canais de rádio e televisão do Brasil são públicos e concedidos a terceiros. Devem ter a obrigação de veicular conteúdos culturais e educativos que expressem a pluralidade regional do país. Entretanto, são os políticos que detêm a maioria dessas concessões, criando, historicamente, um oligopólio da comunicação, uma estrutura de mercado caracterizada pelo alto grau de concentração, centralizado em um número pequeno de empresas. Segundo o site Donos da Mídia, que reúne dados públicos e informações sobre os conjuntos de meios da comunicação brasileiros, os políticos com participação direta em emissoras de rádio e TV representam 271 sócios ou diretores, que atuam em 324 veículos. Para a ex-coordenadora da Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação (ENECOS), Mari Buent, “a diversidade cultural, em todos os seus aspectos, não encontra espaço nos grandes meios de comunicação de massa, as definições do setor continuam sendo tomadas em gabinetes, ouvindo apenas o interesse do empresariado”. Para tentar barrar o oligopólio da comunicação, existem organizações independentes e sem fins lucrativos. Os jornalistas dessas mídias trabalham de forma colaborativa. Essas organizações lutam pela democratização da comunicação e junto a algumas entidades como a Intervozes, Sindicados de Jornalistas Profissionais (FENAJ) e ENECOS, fazem linha de frente a campanha “Para expressar a liberdade”, de 2012, que tem como objetivo retirar a concentração das concessões públicas da comunicação das mãos de políticos e transferir o seu controle para a sociedade civil.

Libertar a expressão Além dos danos políticos à sociedade, a concentração de poder midiático provoca redução de postos de trabalho e superexploração da mão-de-obra, gerando concorrência entre os próprios jornalistas. Nos últimos anos, trava-se no país uma batalha de suma importância: o oligopólio da mídia procura convencer a sociedade de que há, na democratização dos meios, uma ameaça à liberdade de imprensa. Mas o que acontece é exatamente o contrário: o Brasil e outros países da América Latina procuram ampliar e arejar os espaços midiáticos, o que resultaria na pluralização do setor. A Constituição Federal de 1988, assegura, no Art. 5º, a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; uma forma de proteger a sociedade de opressão, sendo um elemento fundamental nos pilares de uma sociedade democrática. Entretanto, de acordo com a assessoria da FENAJ, no Brasil a liberdade de expressão “é algo que estamos muito longe de conquistar, se por ela entendemos a capacidade e possibilidade de se expressar livremente (e a respeito de todo e qualquer assunto) ao alcance de toda a sociedade, de toda a população, de todos os grupos sociais e étnicos, sem exceção”. A luta pela democratização dos meios de comunicação tornou-se uma bandeira central para os movimentos sociais e os partidos de esquerda que combatem as desigualdades e injustiças de no Brasil. Enquanto esse processo de democratização ainda não é consolidado, essas organizações independentes lutam pelos diversos movimentos sociais e grupos de minorias, promovendo uma organização social verdadeiramente democrática, permitindo o debate jornalístico e a quebra de um domínio tradicional dos meios de comunicação.

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Um novo quadro negro Em 1997, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apenas 2,2% de pardos e 1,8% de negros, com idade entre 18 e 24 anos, cursavam ou haviam concluído o ensino superior no Brasil. Os números alarmantes indicavam que algo precisava ser feito. A adoção de políticas de Ações Afirmativas, em benefício de pessoas pertencentes a grupos discriminados pela exclusão socioeconômica, entrou em pauta. Estava aberta a discussão sobre as cotas na universidade brasileira.

Texto: Pamela Moraes Foto: Hugo Coelho Arte: Núbia Azevedo


As cotas raciais fazem parte de políticas de reserva de vaga, que teve início na década de 1960 nos Estados Unidos, com o intuito de diminuir a desigualdade entre brancos e negros. No Brasil, ganharam visibilidade em meados dos anos 2000, quando a Universidade de Brasília (UnB) aderiu a esse sistema. Mais de uma década após a pesquisa do IBGE de 1997, a pesquisa de 2011, do Instituto, indicou que o percentual de negros no ensino superior saltou para 35,8%. Segundo Nelson Inocêncio da Silva, professor e coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UnB, o processo de cotas naquela universidade foi desencadeado a partir da reprovação, no final dos anos 1990, de um doutorando negro e homossexual sem justificativas plausíveis, com repercussão negativa para uma parcela expressiva da comunidade universitária. Em sintonia com o movimento negro, dois professores brancos do Departamento de Antropologia assumiram o desafio de formular uma proposta de políticas de inclusão de estudantes negros nos cursos de graduação, apoiados por um conjunto de docentes, discentes e técnicos da UnB. Eles acreditavam que a presença mais significativa de alunos negros representaria um modo eficaz de enfrentamento ao racismo no ensino superior. Foi um longo percurso, que levou anos, desde a formulação da proposta até a aprovação do projeto em 2003. O Sistema de cotas raciais começou a ser implantado no segundo semestre de 2004 com o objetivo de que ao final de uma década o corpo discente da universidade fosse composto pelo percentual mínimo de 20% de alunos negros.

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Inclusão tardia No início do ano 2000 não havia nas universidades brasileiras registros sobre a identidade racial ou de cor de seus alunos. A demanda por ações afirmativas para a educação superior começou a surgir, inaugurando as primeiras iniciativas, na forma de censos e de pesquisas por amostra, a fim de reparar tal deficiência. Essas medidas se espalharam pelo país, e hoje fazem parte da seleção da maioria das Universidades. Para o pedagogo e professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Adilson Pereira dos Santos, a ausência histórica de políticas públicas sociais de inclusão dos negros na sociedade, justificam a adoção de ações afirmativas. “O Sistema de Cotas é o resultado da luta do movimento social negro, que as reivindicou como uma medida de ‘reparação’ da dívida histórica do Brasil com o povo negro”, explica. No momento da pós-abolição não havia políticas institucionais de inclusão do negro nos círculos de exercício de direitos sociais e políticos. Problema que persiste, de muitas maneiras, na sociedade brasileira. Para o estudante e cotista da Universidade Federal de Viçosa (UFV), Danilo Araújo, a política de cotas, enquanto uma das modalidades de ações afirmativas promovidas pelo governo federal tem relevância fundamental para a transformação deste cenário e tem o papel de incluir o negro e de trazê-lo para o exercício deste direito social que é a educação. “A partir da implementação das políticas de cotas nas universidades, o que se intenta é que o acesso dos negros às cadeiras universitárias seja facilitado em resposta às determinantes históricas que o impediram de reunir as mesmas condições dos brancos para chegar a elas”, concluiu o estudante. Se por um lado as medidas foram colocadas em prática pelo governo, cabe a universidade, seja ela pública ou privada, o papel predominante de inclusão, e segundo Adilson, ela não deve se limitar à garantia do simples acesso dos negros, mas deve comprometer-se com a permanência e o seu sucesso acadêmico. “A universidade deve se reconhecer como produtora e reprodutora da exclusão, devendo posicionar-se criticamente e atuar na perspectiva da inclusão”, afirma o pedagogo. Adilson acrescenta também que devem ser incorporados na grade acadêmica aspectos da história e cultura afro-brasileira e africana, historicamente negligenciados nos currículos dos diversos cursos.

Controvérsias e ganhos Com o efeito causado pelas cotas, ouviu-se muito sobre o mérito de cada aluno, seja qual for a definição de raça, como critério para a obtenção de vaga na universidade. No entanto, como


explica o professor Nelson, da UnB, o mérito só pode servir como parâmetro quando, em uma sociedade, todos os indivíduos partilhem das mesmas oportunidades, o que ainda não acontece no Brasil. “Somos desiguais quando tratamos de questões étnico-raciais, quando lidamos com questões de gênero, quando falamos de classe social entre outras iniquidades”, salienta. O estudante Danilo, da UFV, reforça essa ideia, apontando para a inclusão como efeito de redução dessa desigualdade: “como a universidade é no Brasil um dos principais meios de ascensão social, na medida em que os sujeitos negros forem incluídos neste espaço, a sua participação em outros setores da sociedade brasileira poderá ser transformada, alcançando-se mais espaço e representação e combatendo cada vez mais a imposição do racismo sobre sua vida cotidiana”. Walliston dos Santos Fernandes é Engenheiro Civil formado na UFOP, concluiu o mestrado e hoje é o único negro na sua turma de doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Walliston não usou o Sistema de Cotas, pois inicialmente era contra esse sistema e acredita que as pessoas precisam saber a hora de usar quaisquer benefícios, sem tirar do mais necessitado. “Hoje percebi que ele é necessário até que uma quantidade considerável de negros alcance um nível de estudos suficiente ou até que uma parcela significativa de negros termine o ensino superior, pelo menos”, avalia o engenheiro. O número de negros que terminam o ensino superior e se dedicam ao mestrado e doutorado ainda é baixo. Para que esse índice cresça, Walliston acredita que é preciso ter incentivo à educação e políticas de cotas após a graduação. Segundo a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Governo Federal (SEPIR) até o final do primeiro semestre de 2015 haverá uma proposta de cotas para estudantes negros na pósgraduação, garantindo não apenas o ingresso, mas a diversidade de temas pesquisados. Para o professor Nelson, o fato da ausência de docentes negros ter sido tratada de forma natural por décadas, permitiu que a categoria dos docentes nas universidades brasileiras se acostumasse com tamanha exclusão. Onze anos após a implantação, o Sistema de Cotas na universidade brasileira logrou êxito, pois, segundo o professor Nelson, garantiu o acesso de estudantes negros, jovens em sua grande maioria, ao ensino superior. A iniciativa da UnB serviu como estímulo para as demais universidades federais e estaduais, habitualmente responsáveis pela formação das elites culturais desse país. “Até o fim desta segunda década do século XXI acredito que colheremos com maior intensidade os frutos dos investimentos feitos desde 2004. Obviamente que estamos apenas começando,” completa.

Foto: Thiago Sabino

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Opinião

Porque Menina não fala palavrão. Menino não chora. Negro não sofre preconceito. Grafite não é arte. Funk não é música. Você NÃO pode. Você NÃO deve. Você NÃO é... Do momento em que nascemos, e durante toda a nossa existência no mundo, somos cerceados pelo que podemos e devemos, de acordo com a noção que outras pessoas tem de qual seria nosso lugar, nosso papel social, determinado pelo gênero, etnia, classe, sexualidade e uma infinidade de outros fatores. Os NÃOs se acumulam ao longo de nossa infância e nos acompanham por toda a vida. Aprendemos que desobedecer os padrões é errado, feio e algumas vezes até pecaminoso. O NÃO é muro, barreira, porta que se fecha? Seria permanente, limitador? Ou seria ele o berço da resistência? Resistir é uma outra forma de dizer não. Dizer não aos padrões pré-estabelecidos, que nos enquadram nos papéis sociais, aos pré-conceitos, ao machismo, à homofobia, ao racismo. A resistência nasce daqueles que tem a coragem e a disposição para enfrentar os NÃOs da vida, reverter os conceitos e compreender que longe de nos limitar, eles nos impulsionam a pensar e agir diferente, encontrar outros caminhos, outras oportunidades. Em uma sociedade tão cheia de negações, há aqueles que lutam para reverter os padrões e se libertar das amarras que nos são impostas e há aqueles que param, se aquietam, se escondem, com medo da palavra de três letras que carrega consigo tanto peso. Para esses, o NÃO é o fim. Para os que resistem é SIM.

Texto: Luiza Mascari Arte: Elis Regina


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