Revista Curinga Ed. 14

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Revista Laborat贸rio | Jornalismo | UFOP

Abril | 2015

Ano V

14


Expediente Curinga é uma publicação da disciplina Laboratório Impresso II. Revista produzida pelos alunos do curso de Jornalismo da Ufop. Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA). Departamento de Ciências Sociais, Jornalismo e Serviço Social (DECSO). Universidade Federal de Ouro Preto.

Professores Responsáveis Frederico Tavares - 11311/MG (Reportagem) Lucília Borges (Planejamento Visual) André Carvalho (Fotografia)

Redatores

Edione Abreu, Elis Regina, Fran Vilas Boas, Isânia Silva Santos, Júlia Pinheiro, Kaio Barreto, Lucimara Leandro, Marília Ferreira, Natane Generoso, Núbia Azevedo, Pedro Magalhães, Raquel Lima.

Diagramadores

Ana Clara Oliveira, Aprigio Vilanova, Cíntia Adriana, Douglas Gomes, Eduardo Moreira, Hugo Coelho, Letícia Afonso, Luiza Mascari, Pamela Moraes, Renatta de Castro, Samuel Perpétuo.

Fotógrafos

Editor geral Charles Santos Subeditora Alessandra Alves Editor de Arte Edmar Borges Subeditora de Arte Danielle Campez Editor de Fotografia Bruno Arita (Foto capa) Subeditora de Fotografia Amanda Sereno (Fotos capas internas) Editora de Multimídia Katiusca Demetino

Adrean Larisse, Ariadne Selene, Daiane Bento, Débora Simões, Inaê Costa, Laís Diniz, Matheus Maritan, Paloma Ávila, Pedro Ewers, Raquel Satto.

Monitor: Túlio dos Anjos Agradecimentos especiais a Rodrigo Eustáquio, Restaurante Lua Cheia e aos demais colaboradores. Endereço: Rua do Catete, 166 - Centro 35420-000, Mariana - MG Abril/2015


menu Cultivo como opção

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Tradição na mesa

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O enigma da maçã

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Homem primata, canibalismo selvagem

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Alimente sentimento

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Sementes na lua, comida no prato

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Fetiche por comida?

Você tem fome de quê?

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Editorial Comer é um hábito, uma necessidade desde o começo dos tempos. O alimento da Curinga é um prato cheio para quem tem fome de leitura. A revista se torna um “Atelier das Palavras” na gourmetização da vida. Viemos ao mundo comendo. No útero, ligados pelo cordão umbilical, nos alimentamos através de nossas mães. Depois somos servidos por elas, porque ainda criança, chorar é o único meio que encontramos para pedir comida! Ah a comida! É uma das protagonistas no desenvolvimento da nossa coordenação motora, quando conseguimos levar nosso próprio alimento à boca.

Na vida adulta, desfrutamos do momento da refeição como uma oportunidade de lazer, aquele respiro em meio à correria. O encontro à mesa reúne e é aí que comer vira uma festa. Em certos casos a união se dá ainda no plantio. No entanto, às vezes compramos sem necessidade. Comemos com os olhos. Comer o outro é proibido? Afinal de contas, a comida também serve para saciar o prazer. Mas isso é pecado? De acordo com a Bíblia, o paraíso acabou por causa do fruto proibido. O vilão se redime ao cair na cabeça de Isaac Newton e se torna protagonista no desenvolvimento da física. Retorna às suas origens envenenando a frágil prin-

cesa. Hoje é símbolo do desenvolvimento tecnológico, mas tentação ao consumo. Pare, ofereça a comida em forma de agradecimento, alimente a alma. A fome é relativa e cada um precisa satisfazer sua vontade. No fim, voltamos ao que éramos, com uma dieta regrada e muitas vezes sem graça. Porém, com a sensação de ter experimentado diversos aromas e sabores. E depois disso tudo? Será que matamos completamente nossa fome? Vivemos todas experiências possíveis? A 14ª edição da Revista Curinga questiona: do que você tem fome? Porque na vida, temos uma única certeza: o que restar de nós, a terra há de comer.

Charles Santos Alessandra Alves

Cartas do Leitor Para comentar as matérias ou sugerir pautas para a nossa próxima edição, envie e-mail para: revistacuringa@icsa.ufop.br


EU NO mundo


Habitar

Texto: Isânia Silva Santos Foto: Débora Simões e Pedro Ewers Arte: Letícia Afonso

Cultivo como opção A comida tem poder fascinante! Atrai pelo cheiro, pelas cores, pelo sabor, pelo prazer de comer. Mas não é só. Muitos são fascinados pelo árduo trabalho de produzir a comida. Arar a terra, jogar as sementes, ver brotar e tirar o sustento da família. Assim é a agricultura familiar!


De acordo com a Companhia

Torfizinho e o Jorge cuida do leite. É os que mais sofrem com o despreparo Nacional de Abastecimento (Conab), muito trabalho pesado, mas é bonito técnico e a falta de incentivos sociais e agricultura familiar consiste em uma de ver”, relata sorridente dona Vânia. econômicos. organização social, cultural, econômiEsta carência de assistência provoca e ambiental na qual são trabalhadas Cenário atual ca, entre vários fatores, o uso excessivo atividades agrícolas de base familiar. de agrotóxicos. Segundo a OrganizaDesta atividade vive o Tofir Ibraim com A atividade agrícola familiar corresção Mundial da Saúde (OMS), o Brasil sua esposa Vânia e dois filhos adultos, ponde, segundo o Ministério do Desené o maior consumidor de agrotóxicos Jorge e Tofir José, de uma comunida- volvimento Agrário, a 70% dos alimendo mundo desde 2008. O engenheiro de do interior de Minas Gerais. É em tos que entram no prato do brasileiro. Agrônomo da Empresa de Assistência Goiabeiras, distrito da cidade de Ma- A porcentagem chama a atenção, uma Técnica e Extensão Rural do Estado riana, que a família investe sua força de vez que no cenário econômico do Brade Minas Gerais (Emater), Ronaldo trabalho. “Já estive fora, trabalhei com sil, a agroindústria tem mais destaque Venga, alerta que o uso de agrotóxicos a mineração. Voltei a trabalhar na roça no volume de produção. Contudo, não na agricultura familiar ocorre em todo porque consigo ter renda, estou próxi- se pode avaliar a importância da agrio país. Entretanto, há uma crescente mo à minha família e é mais tranquilo cultura familiar a partir da contribuipreocupação com incentivos que estão de viver”, relata Tofirzinho que faz o ção praticamente nula que esta tem na contra mão do uso destes produtos. caminho inverso de muitas pessoas das na exportação. O pequeno produtor É o que acontece no município de áreas rurais. De acordo com o último brasileiro é responsável por boa parte Mariana onde Venga atua. Destaca que censo realizado em 2010 pelo Institu- do abastecimento do mercado interno, “além de ocupar pouca terra por serem to Brasileiro de Geografia e Estatística abrindo espaço para uma atuação mais propriedades pequenas e corresponder (IBGE), a ocupação urbana e o desin- confortável das grandes empresas na a uma significativa parcela da produteresse pelo emprego rural prevalecem. economia internacional. ção, a agricultura familiar na região Na pequena propriedade, a família De acordo com dados da Conab, as ganha na qualidade dos produtos. Dudo senhor Tofir cultiva hortaliças como famílias que trabalham no campo são rante o cultivo, são utilizados adubos couve, alface, cebolinha e salsinha, responsáveis pela geração de mais de orgânicos tendo com isso produtos além de milho, banana, feijão, chu- 80% da ocupação no setor rural e cormais saudáveis e com alto valor nutrichu e beterraba. Cria porcos, galinhas, respondem a sete em cada 10 empregos cional”. Finaliza ressaltando que esta vacas para produção de leite e queijo. no campo. Portanto, falar em impactos prática, mesmo que ainda tímida, tem “As hortas ficam por minha conta e do e incentivos econômicos e sociais sem crescido no Brasil, no intuito de trazer destacar o pequeno agricultor brasileimelhor qualidade de vida através dos ro é praticamente impossível, pois são alimentos.

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Economia e qualidade As feiras livres, que fazem parte do cenário de muitas cidades brasileiras, são um dos ambientes com diferencial em que a produção da agricultura familiar é escoada. São nestes lugares que os próprios produtores oferecem seus produtos, geralmente orgânicos, livres dos agrotóxicos. É o que faz o pequeno produtor Waldir Pollack que leva hortaliças todo sábado para a feira livre de Mariana. Maria Geralda Mendes conta que frequenta a feira há muitos anos “venho aqui todo sábado. Gosto das verduras e do fubá de moinho d’água. Já tenho até amizade com o pessoal das barraquinhas”.

De porta em porta, vai o pequeno produção. Agricultores familiares que agricultor Nereu Carneiro que, com fazem parte do Programa Nacional de sua família, cultiva alface, agrião, Alimentação Escolar (PNAE) promocouve, rúcula, salsinha e cebolinha vem uma alimentação variada e de no distrito de Monsenhor Horta, muqualidade a milhares de crianças. Senicípio de Mariana. Com muita simgundo o representante da Secretaria patia, Nereu vende sua produção na de Desenvolvimento Rural, Wander área urbana.Tem uma clientela que Moreira Alves, em Mariana 34 famíconta com produtos frescos e saudálias fazem parte do programa, “além veis. “Tem vinte anos que faço isso e de trazer qualidade e variedade na vivo disso. Tudo que tenho como casa, alimentação dos estudantes, a geração carro e conforto vieram dos meus de trabalho garante a manutenção das canteiros”. Diz enquanto organiza as famílias em suas propriedades”. É o verduras no carrinho de mão adaptaexemplo da Maria Caetana e suas duas do. Além das feiras e dos vendedores filhas, Aparecida e Conceição. ambulantes, escolas e creches municipais e estaduais recebem parte desta

Agricultura familiar agrega afeto e dignidade “Fico feliz em saber que além do retorno financeiro, produzo coisas saudáveis” Sandra Silva, produtora em Goiabeiras

“A agricultura familiar promove a inserção no mercado. São pessoas vivendo do seu próprio trabalho” Ronaldo Venga, engenheiro da Emater

“Investi um pouquinho de dinheiro que tinha e consegui. Hoje tenho um ganho do meu trabalho” Maria Aparecida, produtora em Goiabeiras

“O trabalho das famílias inseridas na agricultura familiar dá a oportunidade e poder de aquisição”. Paulo César Carvalho, Secretário de Desenvolvimento Rural de Mariana - MG


Alternativa

Comida Ostentação Como explicar a moda gourmet?

Do dicionário de língua portuguesa: Gour.met - 1. Pessoa, geralmente entendida em vinhos e em gastronomia, que preza a qualidade e o requinte culinários. 2. Diz-se de produto de elevada qualidade. O termo foi difundido pelo gastrônomo francês Jean Brillat-Savarin no livro “Fisiologia do Gosto” ainda no século XIX, e surgiu para designar produtos sofisticados. Stefano Spinardi, chef de cozinha de Belo Horizonte, compartilha dessa idéia. Para ele, a palavra também deve ser utilizada para designar “os melhores produtos, ferramentas e técnicas em uma receita, elevando o nível gastronômico daquele prato”, confirmando que, para o apreciador, qualidade é essencial. Spinardi diz ainda que apóia a gourmetização, desde que ela seja fiel ao significado real da expressão, pois “muitos aproveitam a febre gourmet para vender um produto simples por um preço maior”.

Texto: Raquel Lima Fotos: Débora Simões e Laís Diniz Arte: Samuel Perpétuo

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Gourmetizar virou tendência Tudo começou nos Estados Unidos, após a 2ª Guerra Mundial, onde muitos caminhões que vendiam comida por um preço acessível, circulavam por onde não haviam restaurantes, mas muita gente. Isso durou décadas. A crise de 2008, que desestabilizou os negócios do país, levou muita gente à falência. Quando os donos dos restaurantes começaram a se recuperar dos danos que a crise causou, tiveram a ideia de levar a comida sofisticada que preparavam em seus estabelecimentos, para esses mesmos caminhões que antes alimentavam a população dos distritos e periferias. Era a solução, pois não havia aluguel, impostos e outras tantas burocracias que fazem parte do diaa-dia de um restaurante. Como a ideia deu tão certo lá, rapidinho a moda chegou no Brasil. Foi um pulo para que a padaria do bairro passasse a ser “Ateliê do Pão”, o salão da rua “Estúdio de Beauté,” e o barzinho da esquina, “Bistrô” , tudo assim em francês, que é pra deixar bem chique. Então, através do marketing, a palavra passou a ser usada, já no século XXI, para induzir a população ao consumo, já que esses produtos podem ser vendidos por um preço elevado, por serem classificados como itens com “distintivo de qualidade”. É por isso que ultimamente vemos ‘’gourmet’’ escrito em todo canto. Quem nunca viu um um produto gourmet? O ex-professor da Universidade Federal do Paraná, Carlos Roberto dos Santos, autor do livro “A Alimentação e seu lugar na História: Os tempos da memória gustativa” explica o porquê: “A historicidade da sensibilidade gastronômica explica as manifestações culturais e sociais como espelho de uma época”. Neste sentido, afirma o professor, “o que se come é tão importante quanto quando se come, onde se come, como se come e com quem se come.”


Qual a fronteira?

Para Santos, “os hábitos e práticas alimentares de grupos sociais fazem com que o indivíduo se considere inserido num contexto sociocultural que lhe outorga uma identidade”. O alimento que consumimos nos nutre, mas também nos diferencia, pois é essa mesma sociedade a qual buscamos estar inseridos, que ensina desde cedo que caviar é ‘’coisa de rico’’. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), utiliza como um elemento para determinar se um país é desenvolvido o consumo da população, além do acesso a uma alimentação rica e balanceada. Em outras palavras, comer bem é requisito para definir o desenvolvimento de um país. O que não significa que um país desenvolvido só utiliza produtos gourmet e vice-versa. Isso não surpreende Aline Araújo, estudante de Gastronomia no Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) - Campus Ouro Preto, ‘’se comida sempre foi um indicador social, em pleno século XXI não deixaria de ser elemento de distinção”. Aline também toca em um assunto importante quando se trata de gourmetizar, “após os males das comidas industrializadas terem sido escancarados, a preocupação com a qualidade e procedência dos produtos é crescente”.

Isabela Vasquez morou no exterior durante um ano e meio e diz que começou a apreciar o gourmet quando ainda estava no Canadá. Para ela ‘’é diferente tomar um cafézinho no copo americano ou ir a uma boa cafeteria e beber um latte [café com leite], não é só pelo sabor, é pela experiência, pela forma como o latte é servido e o conforto que uma boa cafeteria pode oferecer. Não que o cafézinho de casa não tenha seu valor (risos)’’. Percebe-se uma série de diferenciações quando se trata de comer “bem’’, ser gourmet não é tão simples assim. É preciso ter cuidado com a elaboração, a procedência do produto, o trabalho, a apresentação. E isso também vale para os estabelecimentos que foram projetados para propiciar experiências que se diferenciam pela sua forma de atendimento e originalidade. Se vivemos em uma sociedade onde temos tanta coisa simples, mas gostosa, e tanta coisa sofisticada, mas exagerada, qual a fronteira para definirmos o que é gourmet? Para a Isabela, vai de cada um, ‘’cabe a nós não banalizar’’.

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Sensação

Evolução em

Conserva

Texto: Júlia Pinheiro Foto: Daiane Bento Arte: Luiza Mascari

A falta de comida em períodos de escassez levou as civilizações a compreender que os alimentos deveriam ser armazenados e conservados. A evolução dos métodos transitou entre a defumação, iniciada na pré-história, até a invenção dos refrigeradores, na metade do século XIX.


Dona Conceição há cinco décadas comanda a cozinha da família Silva. Desde então acompanha o aprimoramento das maneiras de conservação dos alimentos. “Quando pequena, eu via minha mãe e avó salgarem a carne para comermos ao longo da semana. E acredite, o sal dava mesmo conta do recado”. Segundo ela, não haviam instrumentos como geladeiras e estufas, portanto, a salga e a secagem eram primordiais para manter a qualidade dos mantimentos. “Muita coisa mudou. Quando eu comecei a cozinhar não haviam sequer fogões elétricos. Eu secava os alimentos com o calor dos fogões à lenha, o que contribuía para a não proliferação de insetos. Hoje além dos eletrodomésticos, grande parte da comida industrializada permanece por muito tempo na minha dispensa”.

Enquanto isso nas prateleiras... De acordo com o gerente de hipermercados Nício Carneiro, uma das principais estratégias para controlar a qualidade dos produtos é a limpeza frequente das prateleiras e a conferência constante dos mantimentos. “As mercadorias chegam a todo momento, portanto, é preciso estar atento para as substituições. Com os produtos perecíveis o cuidado é ainda maior, pois eles dependem Morangos frescos de ar refrigerado para permanecerem estáveis”. O comerciante declara que muitos fornecedores optam por reembolsarem o estabelecimento quando os itens estão próximos de ultrapassar os prazos de validade. “Quando os alimentos se aproximam da data de vencimento, os fornecedores os pegam de volta e nos reembolsam. Isso impossibilita que aqueles que possam trazer riscos para a saúde dos consumidores sejam comercializados”. Sobre a fiscalização, Nício atenta para as visitas da Vigilância Sanitária e para a cobrança dos próprios clientes. “A prefeitura fiscaliza e nós cumprimos a nossa parte. Os clientes ao consumirem estão cientes das formas como a comida chega das fábricas e também das maneiras como buscamos conservá-la”.

O avanço da ciência Especialista em Ciência dos Alimentos, Franceline Lopes afirma que o ato de conservar mantimentos é essencial, pois, abrange questões relacionadas a saúde dos consumidores – previne doenças causadas por possíveis contaminações – atendendo inclusive a aspectos geográficos. “A conservação é fundamental, pois, além de permitir prolongar as condições de consumo dos alimentos, com a utilização de freezers e aditivos químicos é possível transportar produtos específicos para regiões com restrições de plantio e colheita”. Dois dias depois

A pesquisadora salienta que atualmente existem diversas técnicas aplicáveis voltadas para a manutenção. Cada forma depende da finalidade de conserva dos alimentos, ou seja, busca proporcionar sabor ou aroma e até mesmo retardar o amadurecimento. “Hoje além dos procedimentos tradicionais como a desidratação, pasteurização e esterilização, ocorreram avanços consideráveis em relação ao desenvolvimento de novos recursos de conservação. A radiação é um exemplo bem amplo e recorrente para a manutenção de alimentos. Além disso, atende as principais demandas da indústria alimentícia”, afirma. Reconhecido como estratégia de conservação após a Segunda Guerra Mundial, o método funciona de acordo com as dosagens de radiação que os alimentos recebem em laboratórios antes da venda. O processo controla com precisão a estabilidade de legumes, carnes e grãos, atuando também na redução da deteriorização de algumas frutas. O morango, por exemplo, possui baixa durabilidade. Sua forma de conservação é considerada desafiadora pela ciência. Aspectos peculiares como cor, sabor, textura e aroma exigem estratégias eficazes voltadas para a manutenção do fruto, considerado fresco Após uma semana e perecível. Estudos apontam que não há métodos viáveis para a conservação do morango, porém, com a chegada da radiação é possível prolongar ainda mais sua durabilidade. “Alimentos frescos recebem mais atenção durante o processo, que quando aplicado propõe reduzir o tempo da deteriorização. Suprindo os métodos tradicionais, que também funcionam, a radiação veio para proporcionar vida longa aos alimentos, tanto nas prateleiras dos hipermercados e hortifrutis, quanto nas despensas e refrigeradores dos consumidores”, conclui Franceline Lopes. CURINGA | EDIÇÃO 14

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Comum

Texto: Kaio Barreto Foto: Daiane Bento Arte: Renatta de Castro

Festa da Jabuticaba Onde: Cachoeira do Campo (Ouro Preto) Quando: Outubro Primeira Edição: 1993 Pratos Típicos: Jabuticaba e seus derivados

Festival do Cuscuz Onde: Padre Viegas (Mariana) Quando: Outubro Primeira Edição: 2004 Prato Típico: Cuscuz

Festa da Viola e Culinária Onde: Santo Antônio do Leite (Ouro Preto) Quando: Setembro Primeira Edição: 2013 Prato Típico: Pastel de Angú

Festa da Goiaba Onde: São Bartolomeu (Ouro Preto) Quando: Março Primeira Edição: 1990 Pratos Típicos: Goiabada e outros derivados da goiaba


Tradição na mesa Goiabada, licor de

Festival da Panela de Pedra Onde: Cachoeira do Brumado (Mariana) Quando: Julho Primeira Edição: 2006 Pratos Típicos: Preparados na Panela de Pedra

jabuticaba, cuscuz, umbigo de banana, bambá de couve, feijão tropeiro, frango com quiabo e muitos outros pratos típicos da rica culinária mineira que ameaçavam se perder nos livros de receitas ganharam o “estrelato”. As festas realizadas anualmente por sete distritos de Ouro Preto e Mariana levam movimento aos povoados. Desde o século XVIII o carrochefe desses distritos era abrigar o contingente populacional de movimentos como febre da extração mineral, criação da estrada de ferro ou intensa atividade comercial. Hoje, graças ao investimento das próprias comunidades, esses distritos passaram a buscar formas de gerar renda e atrair olhares para o resgate da culinária local. Confira quais os principais festivais gastronômicos distritais, seus alimentos e datas neste Guia Gastronômico temperado com muito carinho pela Revista Curinga. Servidos?

Festival Gastroarte

Festival de Cultura e Culinária

Onde: Chapada (subdistrito de Lavras Novas, Ouro Preto) Quando: Setembro Primeira Edição: 2007 Pratos Típicos: Frango com Quiabo e Galinhada

Onde: Santo Antônio do Salto (Ouro Preto) Quando: Agosto Primeira Edição: 2001 Pratos Típicos: Umbigo de Banana e Bambá de Couve CURINGA | EDIÇÃO 14

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identidade

Texto: Elis Regina Gonçalves Fotos: Lais Diniz Arte: Aprigio Vilanova

Saber os sabores Liandra e Ellen. Duas pré-adolescentes criadas em ambientes distintos: uma da zona rural e a outra do zona urbana. Rotinas parecidas e alimentação nem tanto Segundo a psicóloga Cláudia Itaborahy, “do que se gosta e do que não se gosta vem, primariamente, da experiência”. As teorias do desenvolvimento de aprendizagem, elaboradas pelo filósofo e psicólogo Piaget, apontam que já no primeiro ano de vida muitas das nossas preferências se apresentam e o paladar, ponto inicial de prazer em uma criança (fase oral), se desenvolve desde a amamentação. A princípio, o bebê comerá o que se come em sua casa e na medida em que a vida social se amplia, novos sabores serão experimentados, na escola, na casa de coleguinhas e outros familiares. O gosto se modifica ao longo dos anos e, independente do ambiente de vivência, as experiências sociais somadas a esses gostos determinam os hábitos alimentares.


Liandra Ferreira, 13 anos, filha de Geraldo e Rita de Cássia, nasceu e foi criada na zona rural, no distrito de Santo Antônio do Leite, em Ouro Preto. Num ambiente saudável, sem barulhos nem agitações, vida sossegada, propício à boa alimentação. Nasceu de parto normal e se alimentou do leite materno até os três meses de vida, quando já lhe foram ofertados outros tipos de alimentos: mingau de amido de milho feito com leite de vaca in natura e a partir dos seis meses, comidas variadas, sem restriçoes, com os mesmos temperos utilizados para os adultos da casa. Sempre lhe foi oferecido todo tipo de alimentos, mas desde pequena demonstrava sua preferência por alguns deles. Apesar de ter muitas verduras e legumes fresquinhos, pois sempre teve horta em casa, nunca foi amante. Entre elas, escolheu a couve, mas rejeita quase todos os legumes. É apaixonada por batatas, fritas é claro. Consome vários tipos de frutas, tendo o privilé-

Ellen também tem 13 anos. Segunda filha do senhor Carlos e dona Fabrícia Elisabeth de Souza Saquett, têm mais três irmãs. Nasceu em Itabirito onde viveu até o ano passado, quando os pais decidiram mudar para Ouro Preto. Ellen veio ao mundo de parto cesariano, foi alimentada com leite materno até um ano de vida. Depois desse período sua alimentação, comum aos demais da família, era reforçada com mamadeira de amido de milho. Apesar de morar na cidade e não ter horta e nem frutas fresquinhas, desenvolveu hábitos alimentares bastante saudáveis. Desde muito cedo foram oferecidos a ela todos os tipos de alimentos, aceitos sem resistência. Apesar disso, depois de certa idade, talvez por influências, começou a estranhar o sabor do chuchu e do jiló, os únicos legumes que ela recusa atualmente. Gosta muito de refrigerantes,

gio, por morar na roça, de saborearlas colhidas na hora. Mesmo assim, não é fanática por nenhuma, às vezes as deixa estragar na fruteira preferindo o biscoito ou o pão. Prefere também refrigerante ao suco, e não troca um prato de arroz, feijão e batata frita por um hambúrguer. É apaixonada por doce, puxou ao pai. Se deixar come sem medida, principalmente chocolates. Sua rotina de alimentação talvez não seja muito diferente de outras meninas de sua idade: faz seu desjejum às 6h30, se alimentando com pão e leite com açúcar, às 9h30 faz o lanche na escola, com cardápio de almoço, elaborado por uma nutricionista. Após a aula, no retorno para casa, por volta de 12h30, almoça ou às vezes faz um lanche com pão, biscoito ou o que tiver para comer. Mais à tarde, por volta de 16h, faz outro lanche e janta por volta de 18h ou 19h. Liandra adora praticar esportes e é para o futsal, seu esporte preferido, que ela dedica três tardes de sua semana.

hambúrguer, pizza ou um prato de fritas, mas são alimentos que consome eventualmente. Tem preferência pelos alimentos salgados, nunca foi amante dos doces, mas tem uma inexplicável paixão por chocolates. Se pudesse comeria todos os dias e muito. Sua rotina alimentar diária, não se difere muito do dia a dia de Liandra. Toma café da manhã às 6h00 e às 9h30, faz o lanche da escola, comendo de tudo que lhe é oferecido. No término da aula, já em casa, sempre almoça. No período da tarde, faz um lanche que, na maioria das vezes, é um pão francês e café com leite. À noite, por volta de 19h, faz sua última refeição do dia, também sem restrição de qualquer alimento que sua mãe prepare. Ellen não gosta muito de esportes, se diz preguiçosa para essa prática, participa com dedicação das aulas de Educação Física na escola e nada mais. CURINGA | EDIÇÃO 14

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Habitar

Dilema nosso de cada dia

Alimentação consciente Ê uma demanda da mente e do corpo


Texto: Lucimara Leandro Foto: Paloma Ávila Arte: Hugo Coelho

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“temos que admitir: saber [o que é saudável ou não] não nos leva necessariamente às práticas corretas”.

No ato da compra, você é capaz de avaliar o produto que coloca em seu carrinho para além da marca ou preço? Critérios como a matéria prima, a mão de obra utilizada, a responsabilidade sócio ambiental da empresa, distribuição e comercialização dos produtos são fatores que fazem você desistir ou optar pela compra? Esses são alguns dos questionamentos cotidianos do chamado consumidor consciente, seu objetivo é unir satisfação pessoal e sustentabilidade. Mais que comprar, ele assume uma postura crítica acerca de seus hábitos de consumo. Algumas ações são uma constância no cotidiano desse consumidor, por exemplo: comprar apenas o necessário, planejar as compras, reutilizar as embalagens, descartar o lixo corretamente, dentre outras. A alimentação ganha um espaço significativo nesse modo de agir. Adquirir alimentos orgânicos, ou mais naturais, adotar medidas sustentáveis como hortas, são atitudes que além de interferir na saúde pessoal contribuem para o meio ambiente. De acordo com a nutricionista Maria Eugênia Ribeiro de Castro Cabral uma alimentação sustentável implica em mais consciência: “deve-se levar em consideração a maneira como o alimento foi cultivado e produzido e qual o impacto gerado no meio ambiente com essa produção”. Porém, somente possuir os conhecimentos básicos sobre o consumo consciente não resolve o problema, outro desafio para a mudança é a consciência. Somente com a conscientização haverá uma postura de compromisso com a preservação ambiental.

Busca pela consciência Segundo a psicóloga Sandra Augusta de Melo consciente são todas as informações que se pode manipular mentalmente. “As informações que recebemos sobre os alimentos, por exemplo, ou o conhecimento do que é ou não saudável, as classes de alimentos e seus valores calóricos, etc, são conteúdos conscientes”, explica. Os conteúdos pouco acessíveis,

aos quais só se consegue chegar através de análise, insights e construção dos sonhos são chamados de inconsciente. A interferência do inconsciente em ações da vida consciente é a razão pela qual a relação do indivíduo com a comida não seja objetiva, mesmo sabendo sobre o que é saudável ou não, ou que precisamos evitar o desperdício, “temos que admitir: saber não nos leva necessariamente às práticas corretas”, explica Sandra. Para o psicólogo Dione Dias é o inconsciente que faz a pessoa quebrar regras. A relação do individuo com a comida será sempre uma ambivalência entre consciente e inconsciente, não bastará informá-lo sobre as práticas de consumo sustentável se ele não adotá-las. Como afirma Dione, “se eu pudesse comeria um Cheese Bacon todo dia, mas tenho a consciência de que isso vai me fazer mal”. Para ele as pessoas só se tornam conscientes quando adquirem coragem para mudar o comportamento. Outra questão a se pensar como alerta o psicólogo é o status da comida. Segundo ele a alimentação tem sempre conotações inconscientes relacionadas. Quando se escolhe determinado alimento em detrimento da marca, do status social ou quando se alimenta para suprir carências psicológicas a comida ganha outras significações para além de alimentar-se. Todas essas escolhas, sejam conscientes ou não, ultrapassam as fronteiras individuais. O ciclo de consumo consciente é estabelecido de modo diminuir os impactos ambientais.

Rotas de sustentabilidade A estudante de Serviço Social da Universidade Federal de Ouro Preto tomou a decisão de inserir praticas de consumo consciente em seu dia-a-dia.

Thaíssa Gonçalves adotou a dieta vegetariana em sua vida há pouco mais de dois anos. Uma das justificativas da estudante foi sua preocupação com o meio ambiente. “O desmatamento promovido pela indústria da pecuária seja para a criação do gado ou plantio de soja, que serve para a produção de farelo (matéria prima da ração dos bovinos) foi decisivo na minha decisão de parar de comer carne vermelha”, explica Thaíssa. A estudante diz que sua iniciativa não é capaz de influenciar muito, mas acredita que ações individuais são um começo para a mudança coletiva. De acordo com a nutricionista Maria Eugênia “quando existe mudança nos hábitos de consumo existe uma grande diferença na questão sustentável”. É ao tornar-se consciente que o individuo é capaz de adotar outro comportamento. Para a também estudante de Serviço Social, Ritielly Santos os consumidores deveriam ser esclarecidos sobre o quanto se perde desde a produção, uma medida seria pressionar o governo para que coloque nos rótulos a proporção de desperdício nas safras. “O erro é achar que apenas o consumidor final é o único responsável, o desperdício começa na produção, segue na distribuição e termina nas casas. Esclarecer essas etapas ajuda na formação da consciência coletiva”, completa Ritielly. É preciso ressaltar que todo consumo gera reações, seja na natureza ou no indivíduo. Pensar todo o processo desde a aquisição até o descarte dos alimentos ajuda a minimizar os efeitos nocivos do consumo. Avaliar o impacto gerado e fazer escolhas sustentáveis é consumo consciente. Algo que só se adquire com o habito, através de pequenas mudanças cotidianas que garantam a melhoria da condição de vida no planeta.

“deve-se levar em consideração a maneira como o alimento foi cultivado e produzido e qual o impacto gerado no meio ambiente”.


travessia


TEXTO: Edione Abreu FOTOS: Pedro Ewers E Adrean Larisse ARTE: Eduardo Moreira

O enigma da maçã Ela é uma das frutas mais conhecidas e saborosas do mundo. Vistosa e suculenta, mas ao mesmo tempo ácida e frágil. Intrínsecas à sua imagem existem representações que permeiam o imaginário de diferentes épocas, sobretudo no Ocidente. Mito, conhecimento, fantasia, tentação, sedução, pecado. Sua iconografia remete à dualidade entre escolha e consequência, o bem e o mal. Entenda os muitos significados que envolvem o cardápio de interpretações do fruto proibido.


Tantos

paradoxos

de

interpretações associados à figura da maçã podem ser explicados pelo seu formato esférico, que sugere a representação do mundo e suas sementes, a fertilidade e a espiritualidade. Para a escritora Guiomar de Grammont, talvez este sentido simbólico do fruto venha da sua aparência que remete ao desenho do coração. Até a idade média, este órgão era considerado o cérebro, e dele vinham todos os pensamentos e emoções. “Falamos no coração como fonte de todos os sentimentos e isso simplesmente porque ele é um músculo que reage a todas as emoções”, ressalta Guiomar. A escritora destaca a analogia entre a mulher e a terra nas culturas primitivas, de onde vêm as figuras mitológicas de Pandora e Eva. “O homem lavra a terra e dela retira o seu sustento e ao mesmo tempo quando ele transa com a mulher ele reproduz os frutos da terra e se reproduz com a mulher”. Guiomar aponta a constante presença da fruta na mitologia Grega e cita alguns exemplos, como o 11º trabalho de Hércules no Jardim das Hespérides, de colher as três maçãs de ouro, a maçã ou pomo de ouro, que deu origem à guerra de Tróia; sua alusão ao amor e sexo e ainda quando o filho de Guilherme Tell teve uma delas colocada em sua cabeça, após ser amarrado em uma árvore.

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A mordida Quando na gênesis, supostamente, Deus criou Adão e, em seguida, de uma de suas costelas deu origem a Eva, tudo era perfeito e bom até a chegada da serpente, que oferece o fruto do conhecimento à companheira de Adão, que se vê seduzida pelas vantagens que o fruto lhe dará após o seu consumo. O livre arbítrio, a possibilidade da escolha entre o bem e o mal - embora não seja a proposta deste texto levantar discussões religiosas - é realmente curioso: o que seria este “bem e mal”? Se Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, como pode este mesmo Deus cercear sua criação de desfrutar da “árvore do conhecimento”? Fazendo uma viagem pelas páginas das narrativas literárias, temos o clássico da princesa adormecida após a mordida na maçã envenenada, que só é acordada após o beijo do príncipe. A iconografia da fruta também é vista na cultura Celta, sendo associada a fertilidade, magia e ciência. Existe ainda a lenda da mulher do outro mundo, que se refere ao alimento prodígio e simboliza a imortalidade e a espiritualidade. Seguindo a trilogia maçã/ curiosidade/conhecimento, chegamos ao campo da física, com a descoberta da lei da gravidade de Isaac Newton, em 1685, quando reza a lenda que ele foi tocado à temática após estar sentado sob uma macieira e uma fruta cair sobre a sua cabeça. Na música, a simbologia da temática já serviu para inspirar muitos artistas, como no caso da canção Ave Lúcifer, dos Mutantes. Nos anos 60, o fruto partido ao meio dava nome à gravadora dos Beatles, Apple Records.

“A representação simbólica do fruto proibido no texto bíblico está associado ao problema do bem e do mal, aquilo que é compreendido como mistério”, afirma a filósofa e teóloga Marta Luzie. Segundo ela, o “mal” está ligado às questões existenciais, às perguntas que ficam sem repostas, pois o homem, por mais que tente, não tem a capacidade de dar as repostas a todas as coisas. E este não saber todas as explicações para os dramas humanos traz sofrimento e inquietações que movem a humanidade.


O antagonismo da simbologia da metáfora da mordida na frutinha de aparência vistosa e inofensiva é mesmo um saboroso convite para degustarmos várias discussões, seja na história, literatura, teologia ou filosofia. “A questão é que a maçã representa o não saber humano, o desconhecido. O que causa o sofrimento humano?”, comenta Marta. Ela cita que, em termos científicos, estamos chegando a níveis inimagináveis. Um exemplo é o primeiro transplante de cabeça do mundo, que será realizado na Rússia, em 2017. “Entretanto, este avanço não acompanha questões existenciais e quando isso acontece, o ser humano para e deixa de evoluir”, acrescenta. Um outro exemplo desta controvérsia temperada pelo tema é trazida em uma imagem presente na Catedral de Notre Dame, com a figura de Lilith - aquela que pode ter sido, de fato, a primeira companheira de Adão - com asas de pássaro oferecendo a maçã para Adão e Eva. Guiomar de Grammont reforça que ao termos a maçã mordida como símbolo é como se tomássemos posse deste pedaço e, com isso, adquiríssemos o conhecimento. Algo xamânico, assim como os índios comiam os corações dos seus inimigos para adquirir a força deles. Entretanto, ela alerta que, às vezes, a sedução pela beleza da aparência da maçã (do desconhecido) é melhor que a sua posse. Ela lembra que, quando criança, comia a maçã do amor na Festa da Ponte - tradicional celebração realizada em Ouro Preto, no início de maio, desde 1735 - também chamada de Festa do Amendoim. “Quando você a olhava, era atraente e irresistível, mas na hora que você mordia, aquilo era duro e grudava no dente. Era mais agradável de ver do que de comer, havia a sedução, mas a sua posse não era tão boa assim, algo que acontece com muitos de nossos questionamentos”, finaliza Guiomar.

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O símbolo que se renova

Observando o grande apelo de sedução que a simbologia da maçã sugere, a cultura pop e a publicidade se apropriaram desta imagem para promover vários dos seus produtos e, com isso, se manter viva a mítica que envolve a temática. Um destes ícones mais conhecidos é o da Apple (multinacional norte-americana que desenvolve e comercializa produtos eletrônicos, como software de computador e computadores pessoais). Steve Jobs, cofundador e ex-presidente da Apple, em parceria com seus colaboradores, plantaram a força da marca no imaginário coletivo tecnológico dos consumidores. Milhares de pessoas pelo mundo carregam nos bolsos, mãos e braços os produtos trazidos pela maçãzinha mordida e ficam vidradas nos próximos lançamentos da empresa. De acordo com o MacMagazine, uma das explicações para a simbologia da mordida na maçã da Apple seria uma alusão aos nerds, numa referência ao termo byte (tamanho ou quantidade da memória ou da capacidade de armazenamento de certo dispositivo) e que também pode significar mordida. Esta seria uma maneira de suavizar a marca, e assim não ser confundida com uma cereja. Quando diminuída, as cores representam as faixas coloridas da TV. Na origem da criação da marca, o símbolo remetia a Newton e sua maçã emoldurada com algumas inscrições na borda e uma faixa em volta, com a inscrição Apple Computer. Entretanto, seus criadores perceberam que o símbolo era complexo demais e de difícil aceitação na publicidade.

Outro exemplo do uso sugestivo do cardápio de interpretações que acompanha esta fruta e de que a publicidade se serviu foi usado pelo governo de Nova York na década de 1970, para promover a imagem da cidade e elevar o número de visitantes. E pensar que tudo começou em 1920, com as corridas de cavalos, muito famosas na cidade neste período. Conforme o site novayork.com, Apple seria o prêmio dado aos vencedores. Jockeys e treinadores, que sonhavam em disputar os prêmios, usavam a expressão Around the Big Apple, numa referência às corridas. Nos anos de 1930, a cidade era a favorita para as apresentações do show business, sendo chamada de The Big Apple, principalmente por músicos de jazz, que diziam: There are many apples on the tree, but only one Big Apple (Há muitas maçãs na árvore, mas somente uma grande maçã). Ainda segundo o novayork.com, 40 anos depois a cidade era tida como escura e perigosa. Para tentar mudar esta imagem e atrair mais visitantes, a publicidade do governo passou a utilizar The Big Apple de forma oficial em uma campanha que trazia maçãs vermelhas como símbolo. A intenção era ligá-las à cidade como um lugar brilhante e saudável. Tão apetitosas e saborosas quanto a maçã são as possibilidades de representações simbólicas que esta sugere ao leitor. As provocações metafóricas que envolvem o tema são longas e atravessam a história. Com pitadas de novos elementos, a mítica se mantém e se atualiza a cada dia, ficando a pergunta: já mordeu a sua maçã hoje?


o mundo em mim


Alternativa

Homem primata,

canibalismo selvagem Comer carne humana divide opini천es ao redor do mundo. Para alguns uma atrocidade. Para outros, um costume. Texto: Natane Generoso Foto: Raquel Satto Arte: Edmar Borges e Danielle Campez


O senso comum associa o canibalismo aos indígenas, porém não é uma invenção desses povos. O canibalismo existe desde a pré-história, com vestígios na Europa, Africa e América. Segundo o professor universitário francês Frank Lestringant, desde a chegada de Cristóvão Colombo ao Brasil, em 1492, o canibalismo já aparecia nos registros de viagens do período da colonização. Na ficção, em 1719, o inglês Daniel Defoe, traz Robinson Crusoe, personagem vítima de um naufrágio, que encontra canibais, cativos e revol-

tosos em uma ilha próxima a Trinidad. Segundo o pesquisador francês Yvan Matagon, Alexandre Selkirk, um náufrago escocês, que viveu quatro anos em uma ilha do Pacífico, foi influência para a história de Defoe. Em meio a ficção e a realidade, o canibalismo possui diferentes práticas e motivações, que vão desde casos extremos de sobrevivência até casos considerados cruéis. A presença do canibalismo na sociedade é um enorme tabu. Afinal de contas o que leva um indivíduo a comer a carne de outro da mesma espécie?

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Entre culturas O termo canibalismo é associado a uma crueldade, podendo ser exofagia (comer o inimigo) ou endofagia (comer membros da própria tribo ou família), enquanto que a antropofagia está relacionada à rituais sociais. As circunstâncias e valores envolvidos mudam de uma cultura para outra. Vários segmentos do canibalismo fogem ao termo literal, como é o caso do Movimento Antropofágico dos anos 1920, das expressões “comer com os olhos” e o “comer” relacionado ao sexo. Segundo a pesquisadora Eliane Knorr de Carvalho, em seu texto Canibalismo e antropofagia: do consumo à sociabilidade, a antropofagia funerária é um costume de algumas tribos, realizada em cerimônias coletivas. A carne era ingerida com o acompanhamento de algum vegetal, mas nem todos poderiam desfrutá-la, o que é o caso das tribos Guayaki (Aché) (Paraguai), os Yanomâmi (Brasil e Venezuela) e os Wari’ (Brasil), está última também se alimentava de guerreiros inimigos mortos. Os parentes próximos que decidiam se os ossos seriam queimados e enterrados ou macerados e ingeridos com mel. Atualmente, os mortos são enterrados. O abandono do canibalismo ocorreu pouco tempo depois da “pacificação”.

Diferente da tribo Wari’, para os Guayaki a carne era proibida para os parentes próximos. O corpo era assado no moquém [um tipo de forno] com palmito e os ossos jogados fora. Atualmente os Yanomâmi são um dos poucos, senão os únicos, que mantém o ritual funerário com consumo dos ossos.

Os “civilizados” Para sociedades em que o canibalismo não é um hábito, sua prática é considerada anti-social, condenada moralmente, sendo divididas em três categorias: fome, tática do medo, crime ou loucura. A primeira é a prática do canibalismo como último recurso de sobrevivência. Por falta de qualquer outra opção, algumas pessoas aderem ao canibalismo para fugirem da morte por inanição. Em 1972, um acidente na Cordilheira dos Anges, envolvendo um time de Rugby, matou 34 pessoas. Os 16 sobreviventes, passaram 72 dias esperando resgate e após o décimo dia aderiram ao canibalismo como uma forma de sobrevivência, devido a escassez de comida e água. A segunda circunstância tem como objetivo imobilizar o outro até exterminá-lo. Segundo a mestranda em Historia Social Débora Meira em “Tupinambá: um discurso para escravização”, esta é uma tática que foi usada na escravização e extermínio dos Tupinambás, durante o seculo XVI. A terceira forma desta prática é quando o canibal é considerado louco ou um criminoso, ou seja, é aquela em que o canibalismo aparece como um elemento a mais dentro de uma situação arbitrária, como o caso do trio brasileiro que comiam e serviam salgados com carne humana no estado de Pernambuco, após matarem suas vítimas. Segundo a legislação brasileira o canibalismo não se caracteriza como crime, enquadrando caso a vítima venha a falecer, tipificando o crime de vilipêndio, que significa desrespeitar o corpo, artigo 212 do Código Penal, além do crime de destruição, subtração ou ocultação do cadáver, artigo 211. O cadáver não pode ser vítima de algum crime porque não tem mais a capacidade de se defender, essa pena não é restrita ao canibalismo.

Segundo o artigo 231, “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”, ou seja, o crime de assassinato ou vilipêndio não se aplica aos indígenas brasileiros.

Cultura POP O fiscal rodoviário João Paulo Mendonça, 22 anos, é um aficionado estudioso do canibalismo desde os 16 e atualmente tem como ideia escrever um livro que relate casos reais, retratando o canibalismo patológico. Segundo João, os casos que mais chamam sua atenção são os de canibalismo coletivo induzido, ou seja, quando um assassino mata, consome a carne e induz outros a consumi-la, muitas vezes alegando se tratar de carne de porco. Existe uma vasta literatura sobre o tema, o mais famoso canibal da ficção triller é Hannibal Lecter. Na Lituânia, na Segunda Guerra Mundial, sua família foi alvo das tropas alemãs. Como consequência do frio e da falta de comida, os hiwis (traidores lituânios) acabaram por matar e devorar sua irmã Mischa, traumatizando Hannibal. Doutor em Psiquiatria, Lecter se torna ajudante do FBI elaborando perfis psicológicos de criminosos. Uma de suas vitimas, o professor Will Graham, acaba revelando o lado sombrio de Hannibal. No Brasil, na década de 1920, Oswald de Andrade dá inicio ao Movimento Antropofágico, baseado no Manifesto Antropófago escrito por ele. O objetivo era a não imitação da cultura estrangeira, ironizando a submissão da elite brasileira aos países desenvolvidos. A história do Brasil é contada metaforicamente, retomando características das culturas primitivas brasileira, indígena e africana. Quase cem anos depois, a intenção de promover o resgate da cultura primitiva a partir dos ideais do Movimento Antropofágico não obteve o sucesso almejado no contexto oswaldiano. Devorar corpos permanece um tabu, mesmo em situações extremas. Os indígenas continuam com a imagem negativa do canibalismo, julgados pela sociedade que se diz evoluída. A sociedade brasileira ainda não conseguiu lidar naturalmente com questões menos conflitantes de sua cultura.

“Abaporu” vem do tupi aba (homem), pora (gente) e ú (comer), ou seja, “homem que come gente”. A icônica obra de Tarsila do Amaral inspirou o Movimento Antropofágico do modernismo brasileiro.


Habitar

ALIMENTE SENTIMENTO Arte: Douglas Evangelista

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Foto: InaĂŞ Martins


Foto: Bruno Arita

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Foto: Ariadne Selene


Foto: Amanda Sereno

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Identidade

Amalá pra Xangô, Acaçá pra Oxalá... As comidas ritualísticas, presentes em diversas religiões de matrizes africanas, fazem parte de um importante processo de união entre homens e deuses. São vários os orixás contemplados pelas religiões afro-brasileiras. Do Candomblé à Umbanda; encontrados também no Tambor-de-Mina. Todas as crenças que possuem descendência africana utilizam-se do alimento como fonte de apreciação das entidades. Popularmente conhecida como comida de axé, as oferendas fundamentam um elo entre os santos e seus apreciadores, participando dos rituais de devoções de seus fiéis com o objetivo de fortalecer esta relação. É para pedir, invocar e cumprir promessas dos devotos aos seus líderes, reforçando e ampliando assim a fé.”É um agradecimento pelo que eles ajudam nós médiuns, nós mães de santo ao longo do ano todo”, relata Mãe Marta, chefe de um terreiro de Umbanda em Mariana, Minas Gerais. Os orixás alimentam-se da energia e vibração da comida ofertada. Para cada um existe um prato específico, que possui alimentos escolhidos a dedo, cozimentos especiais e apresentações detalhistas. “Não pode ser qualquer comida, para qualquer orixá, nem feito de qualquer jeito. Cada orixá tem alimentos e cores que são aceitáveis, e que não podem, que são ofensas, que não tem jeito de você servir”, nos conta Luanda Batista, professora de gastronomia do Instituto Federal de Minas Gerais de Ouro Preto (IFMG).

Menu dos orixás Os ingredientes que integram as refeições são comuns e de fácil acesso. Os pratos de santos no Brasil possuem origens e maior influência da culinária africana, dando destaque para o azeite de dendê e pimenta malagueta, porém, encontramos também influências indígenas e portuguesas, como farinha de mandioca, milho e cará. Dentro da culinária dos orixás nacional, encontramos ainda feijões diversos, camarões, canjica, cebola, ovos. Nem todas as oferendas contém sangue e carne de animais, todavia, os pratos assim compostos passam pelo ritual de abatimento desses animais. O processo de preparação da comida de axé, por completo, estrutura o momento ritualístico, específico da religião e casa que os produzem. O cozimento é feito dentro da cozinha do terreiro, local considerado sagrado pelos Orixás. Na maioria das vezes, a mulher é responsável por preparar os pratos. “Tem sempre uma pessoa específica para fazer a comida de orixá e ela é chamada de iabassê,


que significa mãe da comida sagrada, ou mãe do alimento. O pai de santo, principal sacerdote, ajuda a orientar as consultas que têm que ser feitas e a iabassê quem faz o ritual”, relata Luanda. Ela ainda nos conta que a mãe cozinheira possui ajudantes para auxiliar a preparação, todavia, sendo ofertada a comida errada para a divindade, esse deslize se reflete na comunidade, podendo afetar até o axé do terreiro. O cardápio dos orixás é construído através dos mitos. Histórias contadas dos mais velhos e principais sacerdotes aos mais novos. Isso explica tanto o preparo, quanto sua oferenda. Segundo a tradição, com a oferta do alimento, traz-se para a terra o orixá; torna-se o humano divino e os deuses mais humanos, encontrando-se o contato com o espiritual, transcendental. Fortalece-se assim o laço entre o misterioso mundo espiritual que rege essas religiões. Alguns dos pratos conhecidos são o Amalá para Xangô, feito com quiabo, rabada, cebola e azeite de dendê. Para Oxóssi, é ofertado o Axoxo, composto por moranga cozida, milho, coco e mel. Oxum gosta do Omolocum, prato feito com feijão fradinho e ovos. E Acaçá para Oxalá! Que possui como ingrediente canjica branca enrolada na folha de bananeira.

Do terreiro para as ruas Apesar de compor o importante elo entre as entidades e o ser humano, algumas das comidas votivas ganharam as ruas e caíram no paladar da população, como é o caso do acarajé, abará e bobó, vendidos principalmente pelas baianas no nordeste brasileiro. A preparação das refeições fora do ritual é praticamente a mesma. Porém, para alimentação pessoal alguns condimentos e alimentos podem ser adiconados. Proporciona-se assim sabores diferentes daqueles que são ofertados para os deuses. O acarajé é o prato da deusa Iansã, entidade das tempestades, ventos e raios. É um bolinho feito de feijão fradinho, sal, cebola e frito no azeite de dendê. Na Bahia, sua atividade e venda é, em maior parte feminina. São encontrados nos espaços públicos de Salvador e servidos no tão conhecido tabuleiro das baianas. Fora de Salvador, os pratos de orixás também ganharam as cozinhas populares e são servidos em diversos locais. Lembrados pela cultura negra, esses quitutes estão presentes em comemorações afros e no dia da consciência negra. Para Luanda, essa inclusão da comida de santo no popular ajuda a combater o preconceito existente em torno das religiões de matrizes africanas. “São comidas muito convencionais, então a gente quebra esse tabu e todo mundo adora de um modo geral os pratos e começam a perguntar mais sobre a religião. Então, é uma forma de conscientização, de quebrar preconceito”, relata. Trazer ao gosto popular o mundo misterioso das religiões mostra como são crenças comuns e os elementos que as compõe estão presentes no cotidiano das pessoas.

Texto: Fran Vilas Boas Foto: Paloma Ávila Arte: Cíntia Adriana

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Sensação

Sementes na Lua, comida no prato A comida no futuro pela visão do astronauta Marcos Pontes

Em 2006, a Missão Centenário levou ao espaço o primeiro astronauta brasileiro, Marcos Pontes. A missão também conduziu diversos experimentos, sendo oito do Brasil, que abrangiam as áreas tecnológicas, científicas e educacionais. Na Estação Espacial Internacional (ISS), o cosmonauta brasileiro cumpria sua função de manter as operações e sistemas da espaçonave funcionando normalmente, mas também realizava esses experimentos. A Agência Espacial Americana (NASA) pretende lançar, em 2015, sementes de nabo, manjericão e agrião à Lua, por meio de uma cápsula selada. A finalidade é analisar o processo da germinação dessas sementes, pensando na alimentação humana nos satélites naturais e em voos de longa duração. Em entrevista para a Curinga, Marcos Pontes expõe sua opinião sobre o futuro da comida na Terra, a partir de sua experiência no espaco. Curinga: Em 2006, o experimento com as sementes de feijão, das crianças de São José do Campos (SP), tão divulgado na época, obteve algum resultado específico? Marcos Pontes: Claro! Basta acompanhar o desenvolvimento das milhares de crianças que realizaram o experimento comigo e ver como isso teve influência positiva no interesse e aprendizado pelas matérias de ciências. O resultado da Educação é intangível e só pode ser avaliado com o desenvolvimento do país. No Brasil, ainda sofremos da falta de visão geral sobre a importância da educação e ainda estamos na fase infantil de desenvolvimento como nação. Em países desenvolvidos essa influência é clara. Aliás, o experimento da Agência Espacial Brasileira (AEB) para as crianças de São José dos Campos foi copiado pelos chineses e foi muito elogiado por lá.

como elas crescem nas futuras colônias na Lua, Marte ou outros lugares. Nós dependemos de alimentação para viver. Plantas são essenciais para isso.

C: Neste ano, a NASA pretende lançar sementes de nabo, manjericão e agrião à Lua, por meio de uma cápsula selada. Como é o funcionamento dessa cápsula? MP: Pelo que sei, são pequenos “canudos” selados com ar para dez dias e água, que devem permitir o desenvolvimento inicial das plantas e servir como dados para entender

C: Como você vê o futuro da comida na Terra? MP: Com reaproveitamento de água, fazendas de produção como torres nas cidades, genética manipulada (infelizmente) e comidas industriais minimizadas/concentradas (infelizmente ao quadrado).

C: Na sua opinião, por que a alimentação, suas crises e desafios, sempre foi um tema em questão na sociedade? MP: Precisamos de alimentação e nossa cultura foi baseada na plantação e colheita de alimentos. A população cresce, a água disponível diminui, a intensidade das doenças e a poluição aumentam, o clima piora e continuamos a lutar entre nós e a nos matar como espécie humana por razões supérfluas, como o poder. Acho que temos muitas razões para nos preocupar e achar soluções. Alimentação é essencial. Temos mais de 800 milhões de pessoas passando fome no planeta neste instante!


Texto: Marília Ferreira Foto: Inaê Martins Arte: Ana Clara Oliveira

C: Como o desenvolvimento de pesquisas no espaço podem contribuir positivamente para a Terra? Ou seja, como poderia contribuir para que essas questões vistas como problemáticas possam ter esperança de melhoria? MP: Se você pensar na ISS como uma “mini-Terra”, um lugar onde temos suprimentos limitados para conviver e sobreviver, os estudos e dificuldades para a produção de comida no espaço podem ser usados diretamente para a produção de alimentos de maneira mais eficiente na Terra, assim como o trato sustentável dos resíduos. C: A Fundação Astronauta Marcos Pontes elabora projetos e estratégias relacionados ao desenvolvimento sustentável. Existem projetos que envolvem a questão da alimentação? MP: Temos um projeto que aguarda andamento em Roraima, com o objetivo de desenvolver técnicas sustentáveis para o desenvolvimento da região, inclusive no agronegócio. Infelizmente, a política local não conseguiu ainda se alinhar para o início do projeto e acabamos perdendo todos os prazos da parceria com a ONU. Enquanto isso, o povo de lá perdeu milhões de investimento em projetos sustentáveis que melhorariam a qualidade de vida da população substancialmente. C: Há relação entre sua profissão de astronauta e tais projetos? MP: Sim, claro. Lembre-se que “estar no espaço” é apenas a ponta do iceberg de nossas carreiras.

Temos astronautas de diversas carreiras como médicos (muitos), engenheiros como eu, físicos, químicos, etc. Temos projetos em andamento em muitas áreas. C: Então a formação anterior à de astronauta pode influenciar na visão do profissional? Por exemplo, um astronauta médico tem ideias diferentes de um astronauta engenheiro? MP: Sem dúvida. Por isso é muito interessante essa diversidade de backgrounds. Podemos analisar situações de pontos de vista diferentes, mas com uma formação operacional em comum. C: Em que se diferencia um astronauta embaixador da ONU de outros embaixadores que também estão preocupados com questões de preservação ambiental e melhorias de condição de vida (da água, alimentação e desenvolvimento de atividades agrícolas)? MP: Acho que a possibilidade da visão (literalmente) do cenário geral.

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Alternativa

Fetiche por Texto: Pedro Mendonça Foto: Ariadne Selene Arte: Pamela Moraes

comida?

Libido, erotismo e prazer. O sexo ligado à alimentação define bem o feederismo, embora essa prática não seja apenas fetichista. Do inglês feederism, originado da palavra feed (alimentar-se), o feederismo trata, basicamente, de um conjunto de práticas que envolvem prazer - seja ele sexual, erótico ou afetivo - em alimentar outra pessoa, ser alimentado ou apenas ver alguém se alimentando. Há também uma relação ao ato de apreciar o próprio corpo ganhando peso por meio da comida. Esse comportamento humano não surgiu do dia para a noite em algum lugar do mundo. Ele ganhou notoriedade com o início da internet, quando os feedists (adeptos ao feederismo) começaram a expor seus desejos e instintos, chamando atenção para esse estilo de vida. Entretanto, pode-se dizer que os EUA foi o primeiro país a criar conteúdo sobre o assunto, por volta de 1984, sendo também de lá os maiores sites e todos os termos relacionados ao tema. Foodee, feedee, feeder, gainer, mutual: existem diferentes personagens feedists. Entretanto, todos eles estão ligados pela comida e pelo prazer em se alimentar. Vênus Willenford é uma

feedee bastante conhecida por ser proprietária do Feederism Brasil, primeiro blog nacional a expor o assunto, sob o ponto de vista de uma feedist. Gorda desde a infância, ela já chegou a emagrecer por influência da família. Voltou a engordar depois de ter o primeiro filho e só adulta pode se sentir bem atingindo um peso elevado, mesmo garantindo que sempre foi autoconfiante. Já F.M. é um foodee que pratica o feederismo desde adolescente, mas que só aos 20 anos descobriu o que de fato significava o prazer em ver sua barriga crescendo. “Gosto de me estufar com alimentos até não aguentar mais, sinto prazer nisso, como se fosse prazer sexual”, afirma. Ele já fez uma dieta hipercalórica para engordar, consumindo de 3000 a 4000 calorias por dia entre doces, refrigerante e fast foods. Numa dieta padrão os especialistas recomendam de 1500 a 2000 calorias diárias, metade do que F.M seguia. Se o foodee tem prazer em comer, a feedee concentra essa vontade para engordar e ter um corpo maior.


Controvérsias Associar feederismo e risco de vida é um erro. Claro, assim como em outras práticas, existem pessoas que acabam se descontrolando no processo de ganho de peso, tornando-se até mesmo imóveis. Mas esses são casos isolados. “Entendemos de nutrição e morbidades mais do que muita gente dita magra”, afirma Vênus. Um foodee que se entrega ao prazer da gula e come muito não necessariamente é descontrolado. Ele não tem a vontade de engordar e controla sua alimentação até mesmo para evitar problemas de saúde referentes a alimentação. Outra questão mal interpretada nas práticas do feederismo é o force feeding (alimentação forçada). Esse ato não possui de fato uma obrigação e nenhum dos envolvidos é forçado a isso. Se assemelha ao bondage (fetiche relacionado ao sadomasoquismo) dentro do BSDM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo), onde o prazer sexual se dá por meio da troca erótica de poder, podendo envolver dor, submissão e tortura psicológica. No caso do force feeding, a pessoa pode ou não ser amarrada e o alimentador vai dando comida até o limite do alimentado. A dor para esses indivíduos é tida como prazerosa. Assim como alimentar o outro à força ou ser obrigado a comer não é considerado prejudicial na concepção deles.

Entenda os termos usados no feederismo Foodee: pessoa que possui prazer em comer até atingir seu limite, se sentir estufado, sendo que nesse caso não há fetiche em engordar demais. Gainer: pessoa que se alimenta propositalmente para ganhar peso. Todos os feedists que têm pretensão de engordar são, portanto, gainers. Feeder (alimentador): é o indivíduo que alimenta um foodee ou uma feedee. Seu prazer está no ato de alimentar o outro, fazendo-o engordar. Feedee (alimentada): Tem como objetivo engordar e sentir seu corpo inflando. Sua alimentação se dá em grandes proporções, com uma dieta que pode chegar a 5000 calorias por dia. Mutual: pessoa que também é um foodee, mas que sente prazer em alimentar o outro. Seu fetiche está em comer e ver o outro engordando.

Muito além do desejo O feederismo, como explica Vênus, tem sua parte fetichista mas não é só isso. Há comportamentos que não passam pela excitação sexual. As feedees, por exemplo, sentem tanto o prazer sexual como o prazer comum das pessoas que amam comer. Já os gainers nem sempre sentem esse prazer erótico pela comida. Eles estão focados em engordar e a comida é apenas um meio pra isso. A busca pelo corpo perfeito e a admiração por corpos exagerados podem ter a mesma relação com o desejo sexual. O sexólogo Daniel Denardi afirma que isso tem vínculo com a necessidade da aceitação de outras pessoas, assim como uma aceitação própria. O culto ao corpo, de acordo com Denardi, está relacionado com a construção do ser, num processo de desenvolvimento humano que começa desde a infância e é direcionado pelo modo como a pessoa é compreendida no seio familiar. A liberdade sexual também deve ser lembrada. Fala-se muito de sexo, mas pouco sobre sexo. “Quando o sexo for de fato discutido de forma mais aberta, talvez teremos um maior respeito pelas diferentes maneiras de ser o que é”, conclui Denardi. Sobre essa questão, Vênus afirma que o feederismo nunca será visto como algo natural porque tudo que foge do convencional sexual e comportamental é tipo como estranho e bizarro. Para F.M., “a maioria que pratica o feederismo esconde por preconceito, discriminação”. Há uma dificuldade da sociedade em aceitar a existência de pessoas que sentem prazer em engordar; que amam seus corpos grandes e em expansão. O feedists está longe de ser apenas um aficionado por sexo com pessoas gordas, uma vez que esse indivíduo é essencialmente um ser durante todo o tempo, sendo o feederismo parte de sua natureza íntima. CURINGA | EDIÇÃO 14

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Opinião

Já diz a música dos Titãs, “a

gente não quer só

comida, a gente quer comida, diversão e

Texto: Núbia Azevedo Foto: Matheus Maritan Arte: Pamela Moraes

arte”. Cultura, justiça, viagens, livros.

E você, tem fome de quê

?

“Minha primeira viagem aconteceu quando eu tinha 20 anos de idade. Um amigo da faculdade sugeriu que fizéssemos uma viagem de bicicleta pela parte mineira da Estrada Real. Aquela primeira experiência de viagem sobre duas rodas foi algo muito especial, que alimentou minha vontade de continuar viajando. Há nove anos, eu resolvi juntar as atividades que eu mais gostava de fazer para transformá-las num estilo de vida e criei o Pedal na Estrada. O objetivo foi compartilhar tudo o que eu aprendia e vivenciava pelo caminho. Quase sempre estou em busca de novas experiências, de sair da minha zona de conforto” Arthur Simões - 33 anos - Fome de Viagem

“O momento mais difícil foi o de cair na real, de que tudo realmente é verdade e que não tem pra onde correr e nem pra onde fugir. Eu estava bem e de repente já não estava mais. É como se fosse um passe de mágica e estava eu com câncer. Aprendi a dar mais valor à vida. Afinal, Deus tem me dado a oportunidade de viver mais um dia. Pense como se não houvesse o amanhã, viva um dia de cada vez. E principalmente não desista e nem desanime, pois a luta é constante, mas maior ainda é a vontade de vencer e viver. Vivo o presente como se fosse meu último dia. É tudo inesperado e a única coisa a fazer é viver.” Rosemere Motta - 46 anos - Fome de vida

“Eu tenho uma estante enorme, os livros sempre estão ali, arrumadinhos, do mesmo tamanho, separados por trilogia. A estante também é o meu lugar favorito da casa, é o único lugar em que organizo na minha vida. Normalmente, na metade do livro eu já estou pensando no próximo que eu vou ler, aí eu já deixo ele separadinho. Ano passado eu li 35 livros aí agora estou voltando a média maior, vou tentar fazer pelo menos uns 60 livros.” Maria Teresa - 24 anos - Fome de Livros


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