Revista Curinga Ed.12

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Revista Laborat贸rio | Jornalismo | UFOP

Outubro de 2014 | Ano IV

12


Expediente Professores Responsáveis Frederico Tavares - 11311/MG (Reportagem) Lucília Borges (Planejamento Visual) Marcelo Freire (Fotografia)

Redatores

Aldo Damasceno, Bianca Cobra, Danilo Moreira, Fernanda Belo, Héllen Cristina, Israel Marinho, Tácito Chimato, Thaís Corrêa

Diagramadores

Ana Amélia Maciel, Daniella Andrade, Éllen Nogueira, Jéssica Moutinho, Joyce Mendes, Lara Pechir, Sarah Gonçalves, Túlio dos Anjos

Fotógrafos

Editora geral Tamara Pinho Subeditora Teka Lindoso Editora de Arte Janine Reis Subeditora de Arte Mylena Pereira Editor de Fotografia Iago Rezende Editor de Multimídia Marllon Bento Subeditor de Multimídia Thiago Anselmo

Ana Elisa Siqueira, Anna Antoun, Cristiane Guerra, Fernanda Marques, Flávia Gobato, Isadora Lira, Roberta Nunes

Foto capa: Iago Rezende Monitora: Tamires Duarte Agradecimentos especiais a Frederico Moreira, Alice Ruffo, Gláucia Venâncio, Naty Torres, Nuno Manna e Yasmin Nunes. Endereço: Rua do Catete, 166 - Centro 35420-000, Mariana - MG Outubro/2014

www.jornalismo.ufop.br/revistacuringa

Curinga é uma publicação da disciplina Laboratório Impresso II. Revista produzida pelos alunos do curso de Jornalismo da UFOP. Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA). Departamento de Ciências Sociais, Jornalismo e Serviço Social (DECSO). Universidade Federal de Ouro Preto.


Era uma vez

Fantástico mundo real

pg.6

pg.14

Literatura de fantasia pg.18

SU MÁ RIO

Na trama dos sonhos

Quando a memória se perde em fantasia

pg.32

pg.40


Editorial Ontem eu era uma rainha, vivia em um castelo e tinha um cavalo branco. Hoje sou mochileira que pede carona e conhece países. Amanhã ainda não decidi o que serei. Enquanto dormia no ônibus não lembrava que ao meu lado estava um desconhecido. A única imagem na minha mente era a de mundos e lugares que eu ainda não conheci, ou que até mesmo não existem. As fantasias não têm fronteiras, elas são os sonhos e esperanças do ser humano. Por meio delas pode-se ser o que quiser, ir a lugares longínquos sem virar a esquina, conquistar o mundo sem sair do laboratório. Pensando assim, a décima-segunda edição da Curinga traz ao leitor o universo do fantástico, a mistura entre os sonhos e a realidade. Queremos mostrar como a fantasia faz parte do nosso cotidiano, até mesmo dos mais céticos. Como eu posso viver em meio a fantasia? A editoria “Eu no Mundo”, aborda como nós nos inserimos nesse “mundo de fantasias”. As crianças que são estimuladas, pela leitura, a criar novos mundos, ou os jogadores de RPG, que encarnam personagens, têm em comum a imaginação. A chave para transformar qualquer coisa em realidade. A “Travessia” vem para unir os mundos presentes na Curinga. Ela nos apresenta a Literatura Fantástica, um estilo que conquista, cada dia mais, pessoas de todas as idades. Conversa com autores do gênero e revela a abstração do místico por meio de um ensaio fotográfico. A fantasia ultrapassa fronteiras e constrói um “Mundo em Mim”. Nos meus sonhos, que às vezes em lucidez eu posso controla-los, ou pela doença, que, mesmo que involuntária à minha vontade, divide comigo um mundo que eu não conheço, ou que já esqueci que existia. E antes que passe despercebido, esta edição tem mais um motivo para ser especial. O número 12. Considerado como místico, foi base para construção de sociedades e religiões. São 12 meses no ano, 12 signos no zodíaco, 12 horas diurnas e 12 noturnas e agora 12 edições da Revista Curinga. Se a Curinga sobre fantasia tem um objetivo, é o de levar o leitor a viajar em suas páginas, aprendendo mais sobre o tema, concordando ou discordando com o que está escrito. Queremos que, assim como um livro nos permite viajar em suas páginas, quem ler a revista viaje em nossas matérias. Para mostrar a fantasia além de temas de filmes, livros, bares. Ela é um tema para vida, pois o que seria da vida se não pudéssemos fantasiar um pouco a realidade? Tamara Pinho

Editores

Cartas do Leitor Para comentar as matérias ou sugerir pautas para a nossa próxima edição, envie e-mail para: revistacuringa@icsa.ufop.br


eu no MUNDO mundo


foto: roberta nunes arte: daniella andrade

Era

uma

Habitar

texto: bianca cobra

vez...


Marina

Moreira

existe

nesse mundo há quatro anos, mas um mundo pra ela é pouco. Ela faz questão de inventar pelo menos mais dois, três. É pouca idade e muita imaginação. São tantos pensamentos e tantas ideias, que às vezes as palavras não conseguem acompanhar seu ritmo e acabam se perdendo ou se afogando na maré alta dos oceanos dos seus outros mundos. Ela estuda na Escola Municipal de Passagem, distrito da cidade de Mariana, na turma de Educação Infantil I. Suas covinhas mandam mensagens secretas para quem a olha e revelam a criança sapeca que é quando ela começa a falar a professora já avisa: “Essa daí é a dona das ideias”. A professora Jaqueline Tavares mantém seus alunos em

contato frequente com a leitura. Todos os dias ela conta uma historinha diferente para eles. E quando são daquelas maiores, ela espera chegar em uma parte bem interessante e para. Entre os gritos de empolgação de alguns e das tentativas de abrir o livro e descobrir o final da história de outros mais espertinhos, a professora pede que eles façam um desenho em casa com o que eles imaginam que acontece e só na aula seguinte descobrem qual é o desfecho do livro. A historinha de hoje se chama “As cinco ovelhinhas”. É sobre um filhote de lobo que está tentando dormir, mas não consegue. Quando pede a ajuda de sua mamãe para conseguir dormir ela fala que é para ele contar

ovelhinhas. Contando ovelhinhas o lobinho ficaria com sono e conseguiria dormir. Mas o problema é que ele só sabia contar até cinco. Então começa: 1, 2, 3, 4, 5. E nada. 1, 2, 3, 4, 5. E as ovelhinhas pulando para lá e para cá. 1, 2, 3, 4, 5 e foi assim por mais umas três vezes. Até que elas param de pular e dizem que estão cansadas. A historinha é interrompida ai. Logo que Jaqueline fecha o livro, vários finais começam a aparecer nos gritos das crianças. E pra você? Como você acha que o lobinho vai conseguir dormir? As crianças já acharam várias saídas!

Mamãe voltou no quarto e cantou pra ele dormir. Arthur Dutra, 5 anos O lobinho saiu procurando um outro lugar para dormir, não achou, se perdeu e ficou perdido pra sempre. Marina Moreira, 4 anos

A ovelhinha fez ele dormir. Maria Fernanda Nepomuceno, 4 anos

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...O príncipe

livro

A imaginação das crianças vai longe nessas horas. E a dona das ideias, Marina, cada hora pensava em um final diferente. Ficava em silêncio e logo dizia: “tenho uma ideia!” Em seguida ficava quieta e, apontando com os dedinhos: “tenho duas ideias! Tenho três!” Mas mesmo com tantas ideias, nem ela nem ninguém conseguiu adivinhar o final da história. O lobinho adormeceu sem perceber e já estava sonhando quando as ovelhas disseram que estavam cansadas e desistiram de tentar fazê-lo dormir. Ele, com raiva, comeu as cinco ovelhinhas com uma bocada só e logo ficou com muita dor de barriga. Então acordou chorando e sua mamãe foi ver o que estava acontecendo. O lobinho, nervoso, sem entender nada e ainda com muita dor na barriga falou das ovelhinhas pra mamãe lobo. Ela, sendo mãe, entendeu que o que ele sentia era fome e deu uns biscoitinhos para o filhote dormir. Então, com a barriga cheia, o lobinho se acalmou e dormiu tranquilo, sem pesadelos e sem dor de barriga. É visível o interesse das crianças quando a professora lê a história. Eles ficam agitados e ansiosos, mas logo que ela começa a ler e a mostrar as imagens os alunos se acalmam e começam a entrar no mundo dos diálogos e da narrativa. É como se os seus olhos refletissem as imagens das páginas dos livros. O que senti naquela sala de aula foi uma aura de encantamento e magia que tomou conta do lugar e foi possível até fazer com que eu voltasse a me sentir criança, a acreditar no impossível e a habitar vários mundos ao mesmo tempo.

Marina diz que adora os livros. Ainda não sabe ler, mas quando pega um livro conta sua própria versão da história. Vai virando as páginas e passando o dedinho por cima das frases, como se estivesse lendo as palavras. Os desenhos abrem caminho para a imaginação, mas os detalhes ficam a cargo dos seus sonhos. Conta também que quer muito aprender a ler e que quando isso acontecer vai ler muitas histórias para seus pais. “Agora são eles que leem para mim, mas eu que vou ler pra eles quando eu aprender”, promete Marina. Quando seus pais leem as historinhas para a pequena dormir, ela diz que não sonha com os personagens que acabou de imaginar, mas sim com o dia em que for princesa. E, com os olhinhos brilhando, conta que vai morar em um castelo gigante, usar lindos vestidos de festa e que se ela não for princesa nessa vida, não vai ser nada mais. O tempo passa, os anos chegam, duas mãos vão se tornando pouco para mostrar quantos anos a gente tem. O interesse pela leitura pode não ser tão grande, como para Gabriel da Silva, 10 anos, que acredita que ler é uma perda de tempo e que os desenhos animados são muito mais legais. Porém, mesmo com pouca idade e pouco gosto pelos livros, as crianças entendem a importância deles. Para Breno Camargo, 13 anos, a leitura é importante para “arrumar serviço” e para Bianca Custódio, 8 anos, a prática ensina muitas coisas, principalmente a fazer os trabalhos da escola. Apesar de, para alguns, o desenho animado ser mais interessante, ninguém pode negar que histórias inspiram a imaginação. Os desenhos prendem a atenção, mas a margem para a criação própria e a “fuga para um outro mundo” é muito mais fácil quando guiadas pelas linhas de um livro. “Quando uma criança tem contato com a leitura, ela está, acima de tudo, brincando”, diz o psicólogo Natanael Soares. Para ele, a relação com os livros pode trazer muitos ganhos para o desenvolvimento da criança. Mas primeiro, é importante pensar que tipo de contato ela tem com a leitura e isso é determinado a partir da faixa etária.


A criança que não sabe ler e apenas ouve a história, ou seja, tem um contato com a história oral, irá desenvolver a formação cognitiva e emocional. “É preciso que ela fundamente o ambiente em que vive, construa um mundo simbólico a partir do que ouve para se encontrar e poder aprender”, explica. As que já leem e possuem uma relação com a história escrita tem uma formação cognitiva mais desenvolvida, já entendem mais o mundo em que vivem e desenvolvem com a leitura a imaginação, pois um livro que só tem palavras e não tem imagens possibilita que a criança imagine e crie muito mais. A professora Jaqueline acredita que o contato com as letras e o alfabeto antes das crianças aprenderem a ler é fundamental. “Todos os dias, em sala de aula, eu leio com eles as letras do alfabeto. Todos repetem e já são capazes de identificar as letras. Além disso trago músicas e poesias. Enquanto passo o dedo pelas estrofes eles vão repetindo comigo. Ao fazer isso as crianças vão se relacionando com as letras desde cedo e ainda brincam enquanto aprendem”. De acordo com Natanael, a criança aprende através do lúdico. Quando pega um livro para ler ou senta para alguém lhe contar uma história, ela passa a participar daquilo. Mergulha no conteúdo e aquilo toca tanto a criança que ela passa a se enxergar, a se ver na narrativa. Vendo seu reflexo na leitura ela amadurece e aprende. “Uma criança que tem dificuldade em falar dos próprios sentimentos consegue se expor quando conta uma história. Ela se expressa através dos seus personagens, elabora seu dilema a partir da fantasia e também aprende a diferenciar o bom do mau, os valores da sociedade, assim como a pensar de forma encadeada, acompanhando o começo, meio e fim que as histórias possuem”, explica o psicólogo. Natanael aponta que querer ser como as princesas é algo normal e natural. É um processo de transição, é quando a criança passa a se apoiar em um personagem fictício para chegar no próprio desenvolvimento. Mas quando isso começa a se tornar uma obsessão e a fugir do controle é sinal de que algo não vai bem no cotidiano daquela criança. É quando a realidade está tão pesada que ela se apoia na fantasia. Se sonhar é saudável, portanto, Marina pode continuar sonhando com seu mundo encantado quando deita a cabeça no travesseiro, fecha os olhos, coloca seus vestidos de festa e dança como princesa nos corredores do seu castelo gigante.

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Alternativa

Jogos reais,

personagens

virtuais

Quem nunca sonhou em ser um super herói? Ou um personagem com capacidades que superam a de um ser humano comum? E ainda, poder usar essas habilidades em um mundo repleto de magia e aventura? Pois os jogos de RPG possibilitam que tudo isso se torne algo muito próximo da realidade.

Criado pelos norte-americanos Gary Gygax e Dave Arneson, o Role Playing Game, ou RPG, surgiu nos Estados Unidos em 1971, com o lançamento do jogo The Fantasy Game, rebatizado em 1974 como Dungeons & Dragons. O game chegou ao Brasil na década de 1980, por meio de estudantes universitários que fotocopiavam os livros e distribuíam entre os amigos que se reuniam para disputar as partidas. Para jogar, o RPG exige de seus participantes quatro componentes básicos: o livro, que contém a história com as regras e as instruções do jogo; a ficha de personagem, que traz as características de cada um dos possíveis personagens que podem ser escolhidos pelos jogadores; os dados, que dão movimento e dinamismo ao jogo, e o narrador, responsável por explicar e desenvolver a história criando desafios que precisam ser superados pelos participantes juntos aos seus personagens.


O estudante Marconi Vaz de Mello começou a jogar RPG em meados de 2002 e percebeu que esses games têm grande incentivo sobre a criatividade. “Você precisa imaginar o que está acontecendo, afinal, quase nada lhe é dado visualmente. Cada cidade, cada encontro, cada personagem. É preciso falar por seu personagem, decidir cada palavra. Há mesas que se parecem mais a um teatro do que um jogo, contendo um personagem jogando como Bardo (músico), por exemplo, que realmente toca o seu violão durante a partida”, comenta o estudante. Hoje, a internet também pode ser utilizada para a prática do RPG, uma opção que se torna ideal para grupo de amigos que morem em longas distâncias ou não tenham tanto tempo para se reunir e jogar. O Play By Email, por exemplo, permite que as aventuras sejam narradas via e-mail ou por uma lista de discussão e, nesse modo de jogo, cada participante pode jogar na hora e no local que puder. Mas as partidas demoram mais tempo para terminar.

RPG eletrônico Os “Computer Role Playing Games” (CRPGs), ou simplesmente RPGs eletrônicos, termo utilizado para jogos de computador e videogames se assemelham aos RPGs analógicos, porém no lugar das mesas, os computadores são o “palco”do jogo. Nesse formato de game, além da internet, os jogadores contam com mais um elemento, os recursos visuais. “A realidade desses jogos é um pouco diferente dos tradicionais RPGs analógicos, pois o jogador não precisa ficar imaginando como seria o cenário ou o seu personagem, porque tudo já está explícito na tela do computador ou da televisão, o que se torna o principal atrativo no RPG eletrônico”, afirma Guilherme Guimarães, que trabalha como criador de games há dois anos. Guimarães aponta que no mundo dos jogos, a fantasia se torna realidade, o que acaba tornando os desenvolvedores de games em criadores de sonhos.

“Percebo que, a partir dessa perspectiva, conseguimos fazer que um rapaz ou uma moça, aparentemente pessoas comuns, se tornem grandes heróis como um guerreiro ou um forte e poderoso soldado, e assim, dentro do jogo, sentem-se realizados por atingir seus objetivos, o que resulta em uma sensação que só quem joga é capaz de sentir”, completa ele que atualmente desenvolve o game “Universal Police”. Jogador de RPGs eletrônicos desde 2004, o estudante de 24 anos, Lucas Ribeiro, aponta outras características desse formato de game: “para vencer as partidas, estratégias e táticas elaboradas pelos times se tornam elementos fundamentais. Por isso, tento estudar a parte tática, o ‘off game’ ao máximo. Vejo também os replays das partidas pois, apenas vendo nossos erros, podemos melhorar mais rápido que os demais jogadores”. Ribeiro também destaca a sensação que vive durante as partidas, “com certeza, enquanto jogamos, esquecemos por algum momento a vida real e vivemos dentro do game. Criamos identidade com o personagem que estamos jogando, e isso torna o jogo muito melhor, mas quando saímos do jogo, voltamos também para o mundo real”. Lançando em 1991 pela extinta editora GSA, Tagmar, foi o primeiro RPG nacional. Precursor de RPGs produzidos no Brasil, o game tem inspirado centenas de criadores, como Guilherme Guimarães, a se empenharem em produzir outros jogos (analógicos ou digitais) para que, a partir desses, vários outros jogadores possam viver uma fantasia, sendo personagens de uma grande aventura.

Texto:Aldo Damasceno Arte: Sarah goncalves

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Sensação

Ode

ouropretana

Texto: Aldo Damasceno e Israel Marinho Foto: Naty Tôrres | Festival de Inverno Arte: Túlio dos Anjos


As ruas históricas e íngremes de Ouro Preto compõem um cenário propício para o mundo imaginário aflorar de uma forma bem evidente. Em cada bairro existe um conto em que o mundo lúdico se apresenta. Palco de inúmeros espetáculos artísticos, a cidade recebe, por ano, em média 500 mil turistas. Uma dessas atracões são os diferentes espetáculos teatrais que se espalham pelos seus bairros aproveitando o cenário que serve de inspiração para roteiristas nacionais e até internacionais. A cidade já foi palco de várias produções audiovisuais como filmes, comerciais e telenovelas. Não é difícil encontrar, durante todo o ano, algum cinegrafista ou ator praticando sua arte pelas ladeiras históricas. Seja de cara limpa ou incorporando um personagem, eles interagem com o público de uma forma envolvente, transformando o cotidiano dos moradores. Nas casas de espetáculo, as várias companhias de teatro, formadas principalmente pelos estudantes de Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), estão sempre ensaiando ou preparando uma nova peça teatral. Inspiradas nas histórias da cidade, as peças contam o cotidiano real e fantástico usando artifícios que atraem a atenção do público com apresentações fortes e estridentes. A iluminação noturna de Ouro Preto é utilizada em apresentações onde a maior característica é o drama. Já o cenário histórico, ajuda a recriar o século XVII e XIX, onde os personagens, usando trajes da época, levam os visitantes a reviverem o passado. Os adros da igrejas são alvos preferenciais de palcos onde diversas apresentações são realizadas como musicais ao ar livre de bandas locais como o Festival ocorrido na cidade no mês de setembro que reuniu todas as corporações do município. A Praça Tiradentes é outro local bem visado por possuir características para atender a demanda de público necessária para determinadas atracões como o musical “Milton Nascimento – nada será como antes” que trouxe a homenagem ao compositor mineiro que emocionou as pessoas que presenciaram o evento. Não são apenas os profissionais da arte que se inspiram com as ruas da cidade. Os moradores vivem esse cenário todos os dias e acabam criando maneiras de demonstrar o que sentem pela cidade em forma de arte. Nos últimos anos, vários artistas locais apareceram recriando histórias que vivenciaram principalmente durante a infância. Alem disso, autoras levaram ao conhecimento do público lendas desconhecidas pelo moradores como a escritora Angela Leite Xavier, autora do livro “ Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto”, que usa da fantasia para mostrar a Ouro Preto desconhecida. A cidade fantástica.

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Identidade

Fantástico

mundo real

São seis horas da manhã. Já tomei meu banho e agora caminho até o ponto de ônibus para ir ao trabalho. De olhos abertos, mas ainda dormindo e sonhando. Sento no ônibus e coloco aquela música que não sai mais da cabeça, aquela que me diz “Do you still believe in magic?” do Coldplay (“Você ainda acredita em mágica?”) e sigo escutando- a repetidamente. O trajeto ainda é longo, mas fica curto com tanta imaginação. Vejo o que vou fazer no meu dia, tento me organizar, coloco uma pitada de sonho e vou seguindo com meus planos. No trabalho, o telefone não para de tocar. Pessoas andando para lá e para cá. Quero calma. Quero paz. Quero ir para a praia nesse exato momento. Ficar de frente ao mar, ouvir o barulho das ondas. - Bruna, cadê meu relatório para reunião das quatro horas? Pergunta meu chefe. E meu momento de devaneio fica mais distante. Queria tanto sentir o cheiro de praia, pisar o pé na areia. Mas sigo no meu dia. - E o relatório, Bruna? A reunião começa daqui uma hora. Vá imprimir! Digo para mim mesma. Ainda faltam cinco horas nessa sala fechada do décimo primeiro andar desse prédio, com tantos outros inúmeros andares. O movimento no escritório parece diminuir. Olho pela janela e o céu já está escuro. Conto um pouco do meu dia para que você também olhe para o seu e pense um pouco mais sobre o que gostaria de fazer e não sobre o que deveria fazer. E ver que a fantasia tem seu espaço na nossa rotina, que não é algo bobo ou supérfluo. A fantasia tem seu valor! Vamos deixar nos conhecer melhor e seguir nossos desejos. Continuar pensando em estar na praia. Sentir aquele cheiro do mar e ver o pôr do sol...

Mais de 600 bonecas em um quarto. O dono desse cômodo é o figurinista de 30 anos, Vitor Carpe, que coleciona em sua casa em Belo Horizonte essas “dolls”, como chama carinhosamente. O interesse pelas Barbies ganhou força devido à escolha profissional de Vitor. Elas servem de inspiração e fonte de pesquisa, já que coleciona bonecas voltadas para o universo da moda. Há quatro anos, em 2010, ele começou a colecionar, quando a Mattel lançou uma coleção com quatro bonecas negras. O colecionador diz não ser muito tradicional encontrar exemplares negros no Brasil e por isso não demorou e comprou logo a coleção. Para adquirir as bonecas, os meios variavam desde lojas nacionais a leilões em lojas virtuais. “As bonecas às vezes ajudam a dar uma relaxada, arrumá-las e dar manutenção ajuda a pensar”, conta Vitor, que não tem uma “doll” preferida. Tem vez que gosta mais de uma, mas logo depois muda de ideia. Essa fantasia aproxima o figurinista de grandes estilistas do mundo, já que em maior parte da sua coleção tem roupas reduzidas dessas marcas. Além de ser possível perceber o padrão de modelagem, costura e a identidade das marcas. Homem. Coleção de Barbies. O colecionador conta que como já trabalha em um universo feminino por meio de produção de moda e figurino, a coleção causa menos estranhamento nas pessoas. O que impacta é a quantidade de bonecas. Bonecas essas que servem de válvula de escape. Vitor acredita ser importante construir um refúgio para esses dias agitados da rotina, por isso sua coleção está em sua casa, lugar onde se acolhe e se recarrega como ele diz, “bateria à Elke Maravilha: Erguemos em nossa casa nossa altar”! Para a socióloga Luciana Dulci, os colecionadores buscam reunir objetos de gosto pessoais, seja para hobby, lazer ou diversão. E este hobby pode, também, facilitar as trocas e as amizades com pessoas de interesses semelhantes. Mas também ressalta que, se o colecionador usa o hobby como compulsão, quando gasta mais tempo e dinheiro do que poderia, prejudica suas relações sociais e suas condições de saúde material ou física, colecionar deixa de ser considerada uma ação saudável.

MATEL ©

MATEL ©

Barbie mania


Texto: Fernanda Belo Foto: Fernanda Marques Arte: Éllen Nogueira

Lar com vida Desde criança, o webdesigner de 34 anos, Bruno Barbosa, junto com seus amigos, tinha a ideia de fazer uma casa na árvore. Todos cresceram, seguiram suas vidas e o projeto da infância ficou para trás. Mas não por muito tempo. O dono da casa da árvore em Passagem de Mariana trabalhava em Belo Horizonte, rodeado de prédios. Um dia no sítio de seu pai, enquanto limpava o entorno da árvore, sentiu um vento e na hora pensou quão bom era o que estava sentindo. Subiu na árvore. Pensou em uma casa ali, toda de madeira. Bruno mora com sua esposa na casa da árvore há três anos. A casa é moderna, com televisão, internet e luz. Mas do lado da cama um pedaço de galho da árvore. De repente, pássaros entrando. A manga nascendo, se transformando. Cada dia é uma surpresa. “É morar em uma casa com vida”, diz Bruno. A magia da casa da árvore está em cada detalhe que ela proporciona. É sentir estar em outro mundo, em algo que é só seu. “Chegar de um dia estressante da faculdade e do trabalho, e poder descansar e dormir em casa. É relaxante. Minha casa é uma casa diferente”, comenta o webdesigner. Bruno responde que não conseguiria levar a vida de outra forma, que a casa é o “mundinho” dele, é respirar a natureza, o porto seguro.

E ainda acrescenta: “Se tem algo difícil durante o dia, lembro-me de quando comecei a construir a casa e vendo o esforço para montar, a vejo pronta e sei que é possível passar por qualquer dificuldade da vida”. É uma fantasia realizada. Um lugar mágico. Daqueles que a gente se pergunta em um domingo de manhã quando fazemos o café se esse lugar realmente existe. É como viver em um filme. O revestimento do espaço, a iluminação, os móveis e os objetos pequenos fazem parte de uma decoração que busca trazer conforto e beleza para o ambiente onde se passa a maior parte do tempo; por isso deve ter o estilo do morador e ideias que ele valoriza, comenta a socióloga Luciana Dulci. Bruno, por exemplo, tem um sentido para sua casa: a reutilização. Tudo é reutilizado. Os móveis, o material para a construção da casa, feita com madeira não mais utilizada que levou cerca de um ano e meio para juntar. Parte de nós, a fantasia também se faz presente no cotidiano. Segundo Luciana Dulci, ao reunir objetos de características comuns e ao decorar o ambiente em que se vive, as pessoas buscam com suas fantasias “embelezar” o dia a dia. Acredita que isso acontece como uma forma de respiro para aquilo que é mais difícil e para o que envolve trabalho e vida. CURINGA | EDIÇÃO 12

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Opinião Texto: Thaís Corrêa Arte: Joyce Mendes

Seria possível explicar o comportamento imaturo e a dificuldade de se relacionar e encarar as obrigações da vida adulta que algumas pessoas têm? Segundo o psicólogo Dan Kiley, sim. Ele é autor do livro Síndrome do Peter Pan, de 1983, que explica que não se trata exatamente de uma doença, mas sim de um desvio de comportamento. Essa questão já foi abordada sob os mais diversos focos por jornalistas e curiosos, que fizeram, na maioria das vezes, de adolescentes rebeldes, homens imaturos em seus relacionamentos e astros da música, as maiores vítimas. Não que eu questione essa hipótese, aliás, a considero bem fundamentada, inclusive acredito que cada caso desses tenha sua especificidade e seu agravamento. Vejamos, por exemplo, Michael Jackson. O ícone do pop dizia viver na “Terra do Nunca” e chegou a construir um parque de diversões no quintal de sua mansão com esse nome, sem falar dos demais conflitos pessoais pelos quais passou durante a vida toda e se tornaram escândalos públicos, que provavelmente são frutos confrontos mal resolvidos. No entanto, acho necessário questionar o que há de mais profundo nesse universo de transtornos comportamentais e dar a devida importância para o assunto. Para mim, muito menos desdobrado na mídia, é a síndrome do Peter Pan, incorporada às crianças comuns, que poderiam ser nossos sobrinhos, filhos, conhecidos, e que em silêncio são reféns de pais e familiares desequilibrados e carregam para sempre verdadeiros traumas, consequência da violência doméstica. Acredito que seja preciso desmistificar o tabu criado em volta desse assunto e que faz de nossas crianças futuros adultos solitários, imaturos e infelizes. Se já temos uma explicação em mãos para entender pelo menos como essas crianças se comportarão para o resto de suas vidas, precisamos abrir os olhos e não deixar que apenas psicólogos, pediatras e pedagogos tratem desse tema tão delicado e que é latente em nossa sociedade.

Abrindo os olhos

para uma história real


TRAVESSIA


O mundo imaginรกrio da

de

LITERATURA FANTASIA


Texto: Danilo Moreira Foto: Anna Antoun Arte: Túlio dos Anjos

Marina tinha sete anos quando leu

seu primeiro grande livro. Sempre acostumada a ler e ouvir histórias cheias de fantasia, entre fábulas e contos inventados pela mãe, sua relação com a literatura mudou ao conhecer a saga “Harry Potter”. “Todo o universo criado por J. K. Rowling fez imediato sentido para mim”, enfatiza. A possibilidade da existência de um universo alternativo facilitou a compreensão de outras culturas e diferentes costumes, além de colaborar com sua socialização e evitar preconceitos. Marina cresceu ao lado das tramas do famoso personagem bruxo que, assim como ela, ganhou maturidade, passando, pelos livros, da literatura infantil à literatura adulta. Na adolescência, conheceu as obras de J. R. R. Tolkien. Ela lembra os principais elementos presentes em “Senhor dos Anéis” e que cativaram sua leitura: “há idiomas alternativos, vários povos e raças, além de um nicho cheio de fantasia, que conta, por exemplo, com criaturas de morais próprias e códigos de conduta diversos”. Consumir as duas séries de livros foi determinante para uma geração inteira de leitores, assim como foi para Marina. O gosto pela literatura influenciou nas escolhas de vida, como o que cursar na faculdade, por exemplo. Envolvida pelas palavras, Marina Santos, hoje com 21 anos, estuda Comunicação. E sobre o gênero literário que tanto a marcou, conclui que “o mundo da fantasia simplesmente encanta por encantar, é amor à primeira vista”.

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LITERATURA FANTASTICA Segundo a Teoria Literária, a fantasia pode ser considerada uma subdivisão do “fantástico”, que abrange ainda a ficção científica e o terror. Inicialmente, todo texto dito fantasioso possui elementos imaginários, que fogem da realidade humana. Neste caso, os exemplos vão desde dragões a discos voadores. O maior poder do “fantástico” reside em poder flutuar entre o real e irreal. Como explica o linguista búlgaro Tzvetan Todorov, em seu livro “Introdução à Literatura Fantástica”, de 1970, “o fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, em face de um acontecimento aparentemente sobrenatural”. Para o escritor argentino Jorge Luis Borges, “a irrealidade é a condição da arte”. Borges fez parte de um estilo latino-americano de literatura do século XX conhecido como “realismo fantástico”. Autores consagrados, como o também argentino Julio Cortázar, além do colombiano Gabriel García Márquez e do brasileiro Murilo Rubião, fizeram parte desse movimento. Nas obras de Borges, por exemplo, há uma intertextualidade em que diversos elementos são usados como “portas/passagens”, que levariam o leitor a redescobrir a realidade em que vive. Uma das principais características do “realismo fantástico” baseia-se na transformação do comum e do cotidiano em uma vivência que inclui experiências sobrenaturais ou extraordinárias. Neste ponto, assemelha-se à fantasia como é apresentada hoje. O ponto de união entre diferentes realidades é o mote da maioria dos livros fantasiosos.


A FANTASIA MUNDIAL É inegável a posição da fantasia como principal representante da literatura atual. Inicialmente, esse panorama pode ser pensado a partir de uma amizade entre dois dos mais consagrados escritores da modernidade. Em 1926, C. S. Lewis chegou a Universidade de Oxford, na Inglaterra, onde J. R. R. Tolkien já trabalhava desde 1921. O constante diálogo entre os dois influenciou diretamente suas produções literárias. No livro “O dom da amizade”, o autor Colin Duriez indica que as trilogias de ficção científica “Ransom”, de Lewis, e “O Senhor dos Anéis”, de Tolkien, surgiram de um desafio decidido no cara-ou-coroa: Lewis escreveria uma obra “viajando” no espaço, e Tolkien no tempo. O resultado dessa aposta influenciou as duas principais vertentes da literatura recente, a ficção científica e a própria fantasia. Esses dois estilos, aliás, herdaram a discriminação atribuída à literatura infanto-juvenil. O empenho dos dois autores para que o conto de fadas pudesse ser consumido também por adultos foi significativo. Tanto que esse cenário passou a se modificar justamente com as obras de Tolkien (a trilogia de “O Senhor dos Anéis”, principalmente) e de Lewis, com a série de sete livros de “As Crônicas de Nárnia”.

A literatura da segunda metade do século XX foi fortemente influenciada por essas histórias, que formaram gerações de leitores em todo o mundo. No fim da década de 1990, houve outra “explosão” literária em nível semelhante: a britânica J. K. Rowling lançava o primeiro dos sete livros de Harry Potter. Foram dez anos entre a publicação de “Harry Potter e a Pedra Filosofal”, em 1997, e o lançamento do último livro da série, “Harry Potter e as Relíquias da Morte”, em 2007. A saga do menino bruxo, que é notadamente inspirada também nas obras de Tolkien e Lewis, influenciou e impulsionou a indústria cultural dos anos 2000. Amostras disso são, por exemplo, a série “Crepúsculo”, de Stephanie Meyer, e a série “Jogos Vorazes”, de Suzanne Collins, além de “Guerra dos Tronos”, de George R. R. Martin. Um fator determinante no alcance de todas essas obras são as adaptações cinematográficas e televisivas, que reforçam ainda mais a capacidade de envolvimento com o público. Essas produções audiovisuais permitem que a literatura de fantasia alcance um novo nível, com capacidade de atingir uma parcela muito maior de consumidores.

A saga “Harry Potter” vendeu mais de 400 milhões de exemplares em todo o mundo, traduzida para pelo menos 65 idiomas.

“Game of Thrones” é a série de maior audiência da história da emissora americana HBO, com média de 18,4 milhões de espectadores.

“Harry Potter e as Relíquias da Morte – parte 2” é o filme com a quarta maior bilheteria da história do cinema mundial: mais de 3 bilhões de reais arrecadados.

“Senhor dos Anéis – O Retorno do Rei”, por sua vez, é a oitava maior bilheteria: arrecadou cerca de 2,7 bilhões de reais.

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JOVENS NO COMANDO

MERCADO BRASILEIRO No Brasil, o espaço dedicado à ficção aumenta constante e notoriamente. O gênero, consumido principalmente por jovens, atrai cada vez mais interesse – do próprio público, dos autores e das editoras. Na Bienal Internacional do Livro de São Paulo, realizada no fim de agosto de 2014, a literatura de fantasia foi a atração principal. Uma das mesas centrais da Bienal, “Literatura Fantástica – a fantasia ganhando espaço”, demonstrou como é forte a ascensão do gênero. São dezenas de livros lançados e, consequentemente, diversos novos autores no circuito. Os três principais nomes do segmento no país são André Vianco, Eduardo Spohr, ambos de 38 anos, e Raphael Draccon, de 33, chamados de “trinca fantástica”. Juntos, venderam cerca de 2 milhões de livros. Em termos nacionais, este número é muito expressivo. A importância do público leitor é destacada por Eduardo Spohr que atualmente trabalha em um novo livro e durante a Bienal afirmou que “os principais nomes da nossa literatura são e sempre foram os leitores, não os autores”. O autor reforçou que, dentro desse processo, os protagonistas são os leitores, que movimentam a “máquina” literária do país. O nicho das narrativas fantasiosas despertou o interesse das editoras. A grande evidência disso é que duas importantes casas, a Rocco e a Leya, seguiram os passos da Record e, recentemente, criaram selos próprios para abrigar esse tipo de livro. Assim, além da “Galera Record”, a “Fantástica Rocco” e a “Fantasy – Casa da Palavra” representam o papel fundamental que essa “nova” literatura desempenha no cenário nacional.

A escritora carioca Thalita Rebouças, 39, já vendeu, sozinha, mais de 1 milhão e 500 mil livros. Já a mineira Paula Pimenta, 39, conquistou uma legião de meninas, fanáticas com suas obras. Ela foi uma das autoras incluídas na coletânea “O Livro das Princesas”, que reúne releituras de contos de fadas e possui textos da celebrada Meg Cabot, escritora americana e autora de “O Diário da Princesa”. A ideia de adaptar contos de fadas à atualidade também se faz presente em “Princesa Adormecida”, lançado por Paula em 2014. “O desconhecido atrai as pessoas. Pensar na possibilidade de existir um mundo parecido com o nosso, mas com possibilidades que não temos, é inspirador”, afirma Paula, presente na lista dos 100 brasileiros mais influentes do ano de 2012 pela revista Época.


POUCA LEITURA? Os índices de leitura no Brasil, entretanto, não são muito promissores. Conforme dados do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) de 2013, o desempenho dos estudantes brasileiros em leitura piorou comparativamente aos anos anteriores. O país está com níveis abaixo de nações como Chile, Uruguai, Romênia e Tailândia. De acordo com a UNESCO, setor da ONU responsável por educação e cultura, só há altos índices de leitura em países onde ler é uma tradição nacional. O hábito de ler deveria vir de casa e assim, consequentemente, seriam formados novos leitores. Esse panorama está longe da realidade brasileira. Em pesquisa divulgada pelo Instituto Pró-Livro, é revelado que o brasileiro encara a biblioteca como uma extensão da escola. Dos 24% que frequentam o espaço, 80% são estudantes. É preciso notar que, em muitas cidades, a biblioteca é o único equipamento cultural. Porém, fecham à noite e nos fins de semana, além de contar com acervo desatualizado. Isso explica porque, para 33% dos brasi-

leiros, nada seria suficiente para convencê-los a ir a uma biblioteca. O ministro da Educação, Henrique Paim, afirmou em setembro de 2014 que os recursos investidos pelo Brasil em educação, apesar de terem crescido, ainda são baixos. Todavia, segundo ele, há boas expectativas de melhora. Dados do MEC indicam, por exemplo, que o valor por aluno investido no país cresceu 181% nos últimos 10 anos. Essa perspectiva positiva se deve a diversos fatores. Um deles, bastante considerável, é o atual contexto da literatura no país. A diversidade de histórias de fantasia, principalmente, atrai uma nova onda de interesse de crianças e jovens, que se tornam potenciais leitores. Uma vez que a literatura ficcional ganha forças nacionalmente, o leitor brasileiro tem maior possibilidade de desenvolvimento. Segundo a pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, a maior parte da população brasileira tem consciência da importância do livro. Do total de entrevistados, 64% afirmaram que o livro significa fonte de conhecimento para a vida. Não poderiam estar mais certos. CURINGA | EDIÇÃO 12

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Texto: Danilo Moreira Fotos: Frederico Moreira Arte: Túlio dos Anjos

Na fronteira

entre a

realidade e o fantástico Adriano Messias tem uma vida inteira dedicada ao fantástico. São cerca de 50 livros publicados, direcionados principalmente ao público infantojuvenil. Natural de Lavras, interior de Minas Gerais, desde criança foi influenciado pelo contato com a literatura e as histórias da oralidade popular, aquelas “que nos deixam no lusco-fusco entre a crença e a dúvida”. Graduado em Jornalismo e Letras, Adriano é mestre em Comunicação e Sociabilidade. No seu doutorado, em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), aborda o fantástico no cinema e na literatura. Em conversa com a Revista Curinga, Adriano Messias fala de sua carreira, da relação com o universo fantasioso e dos rumos da literatura fantástica, pois, segundo ele, “sempre haverá uma demanda por esse tipo de produção”. C: Você escreve para crianças. Caso escrevesse para o mundo adulto, quais seriam as principais diferenças? AM: Uma criança que gosta de ler assume a função de leitor crítico exigente. Escrever para jovens leitores é desafiador, porque muito já foi feito e sabemos que a originalidade é ilusória. Já se escreveu sobre tudo. Isso também vale para a literatura adulta. É claro que existem temas e abordagens que não cabem ao universo infantil: o excesso de violência, por exemplo. C: Você acredita que há uma ascensão do “gênero fantástico”? Por quê? AM: Sim, acredito. O fantástico atrai leitores e espectadores por gerações. Desde o século XX, ele deve muito do terreno que conquistou ao cinema. As imagens moventes, pela especificidade de suas condições técnicas, puderam levar ao espectador as mais mirabolantes histórias, frutos do fantástico. Hoje, quando as mídias convergem, torna-se mais fácil multiplicar as expressões fantásticas: um livro conquista seu público, torna-se uma série impressa e em e-books, transforma-se em franquia no cinema, depois passa para o campo dos jogos eletrônicos, ganha sites, comunidades virtuais, fãs, encontros, congressos... A esses fatores, penso que se soma o mal-estar de nossa época: os monstros são, desde sempre, bons indicadores do que emerge sintomaticamente na cultura. Não é por acaso que vivemos o império das produções sobre zumbis, por exemplo. O fantástico tem uma sintonia direta com os sintomas culturais.

C: Seu trabalho como escritor trata da relação da fantasia com o universo infantil. Como você enxerga essa temática nas produções voltadas para o mundo adulto? AM: O inconsciente não tem idade: o chamado livro infantojuvenil e o livro para adultos servem, em grande medida, como categorizações mercadológicas. Há livros feitos para crianças muito profundos e desprezados nas estantes; e livros “rasos” para adultos, nas primeiras gôndolas das grandes livrarias. Noto que vivemos não somente uma onda, mas um tsunami de produções do fantástico, seja para os pequenos, seja para os grandes leitores. Como tudo o que se faz em grande quantidade, os níveis de qualidade, sobretudo no plano estético, variam muito. Enfatiza-se o conteúdo, muitas vezes esquecendose da forma. C: Como o “fantástico” aparece em seus livros? AM: A literatura feita para as crianças é um belo esteio para os temas do fantástico. Em minhas produções infantojuvenis, adoro criar antigas brincadeiras com o leitor: será que isso ou aquilo aconteceu de fato com um dado personagem? E, afinal de contas, ele teve uma alucinação, ou, de fato, foi abduzido por um alienígena? Minha série Contos para não dormir, já em seis volumes, tem esse estilo narrativo. Em Aluado e outros contos de alumbramento, por exemplo, cada conto traz um universo fechado, de estranhamento não finalizado, para que


C: Qual seria sua definição para “literatura fantástica”? AM: Eu escrevi longamente em minha tese sobre os numerosos e vãos (apesar de bem intencionados) esforços em se definir, no decorrer de dois séculos, o que era a tal literatura fantástica, ou “de fantasia”, ou “sobre monstros”, ou “do estranho”. Os termos são muitos. Foram todos empreendimentos que não conseguiram abarcar todo o universo em torno do que se chama fantástico. O que me ocorre é que foi feita uma separação, também muito mais para fins de mercado, entre a literatura dita “fantástica” e aquela chamada “realista”. É uma diferenciação problemática. No Brasil, “comprou-se” muito bem uma ideia: a de que tudo o que não retrata a “realidade social”, tudo o que foge das possibilidades “concretas” do cotidiano, é apenas “literatura de evasão”, perda de tempo, distração para leitores “principiantes”. Nessas horas, há que se recuperar os bons defensores da literatura e do fantástico, como, por exemplo, o autor Jorge Luis Borges. C: Em sua opinião, que lugar o lúdico e o delírio ocupam na cultura brasileira? AM: Gostei dessa aproximação entre “lúdico” e “delirante”, apesar de ambos não necessariamente serem correlatos. Mas vou seguir a sugestão: parece-me que nossa história já nasce fruto de um fascínio delirante, ora assustador, ora instigante. Os povos que aqui chegaram depararam-se com civilizações impossíveis, quase às avessas. E com uma natureza belíssima, mas de teor inóspito tantas vezes: florestas monstruosas, rios com aparência de mar, aves raras, insetos famélicos... Uma animália de excêntrica exuberância. Tanto José de Anchieta quanto os índios que ele batizava temiam a horrenda ipupiara, que, séculos depois, foi amalgamada na doce Iara. Adoro ver, nos relatos históricos e literários do quinhentismo, os esboços de caminhos que trariam conformações do que chamamos hoje de cultura brasileira: a confusão, o hibridismo, a mestiçagem. Não se trata, portanto, de um lugar para o lúdico e o delirante, mas, antes, de um processo. Um belo processo.

com isso, ser louco: os homens deslizam entre a fantasia delirante e a realidade do dia a dia, comum e partilhada. Se não fosse assim, não haveria as artes. Ou as guerras. Não haveria amor, nem desamor. O próprio espaço e tempo sofrem com essa função delirante do sujeito: é penosa a travessia de pouco mais de meia hora entre São Paulo e Rio por via aérea para um fóbico. E dois dias inteiros ao lado da pessoa que se crê amar escorrem em segundos. C: Para você, afinal, o que seria o “fantástico”? AM: Jorge Luis Borges nos deixa entrever que a literatura fantástica não seria menos importante do que a dita realista – ao contrário do que sempre quiseram boa parte dos críticos e o próprio pensamento popular –, tampouco desumanizada, irresponsável, escapista, nem mesmo “uma espécie de capricho contemporâneo”, tomando aqui as próprias palavras do grande escritor argentino. A literatura fantástica – ele bem sabia – seria capaz de superar o mundo superficial e oferecer metáforas para a realidade, o que só se daria por meio do rigor e da lucidez. Não há uma linguagem fantástica em si, e aqui recupero o pensamento de Irène Bessière: em cada época, em cada área, o relato dito fantástico é lido (e visto) de uma forma: seja na Antiguidade, no medievo, nas Luzes, no gótico literário, ou sob o olhar da psiquiatria, das artes plásticas, da biogenética. Para fins práticos, hoje diz-se comumente que o fantástico é o que se aproxima do sobrenatural, do monstruoso, do maravilhoso, do impossível. Diz-se também que o fantástico busca violar a norma e a lei instaurando o reinado da inverossimilhança. Mas é preciso fugir da obsessão pela especialização textual: “isso é fantástico, isso não é”. O fantástico me parece, antes, um termômetro para se avaliar não apenas a inventividade de uma cultura, mas também os elementos subterrâneos que a movem. Seus sintomas. Seus recalques. Seus (impossíveis) objetos. Seus desejos. Confira a continuação da conversa com o autor em: www.jornalismo.ufop.br/revistacuringa

FOTO ARQUIVO PESSOAL

o leitor se divirta. Não ponho limites entre a realidade e a não-realidade, não quero que meu leitor conclua facilmente as coisas. Não o subestimo. Recebo muitos e-mails de meus leitores jovens. Vários deles querem saber se certo personagem fez, viu ou era “x” ou “y”. E eu respondo: “não sei”. E, de fato, eu não sei mesmo. Criei meus enredos para que não haja respostas claras: nem para o leitor, nem para mim. Em minha literatura, as cores do crepúsculo são mais interessantes do que as do sol a pino ou as da noite em breu.

C: Para você, qual o limite, se é que ele existe, entre o real e a fantasia? AM: O que penso é que não sei se esse limite deve ser pedido: parece-me que é no interstício, na fresta, na brecha entre a chamada realidade e o fantástico, que tudo acontece. Como na vida, em geral. Falamos em delírio anteriormente. Todo mundo delira um pouco, sem, CURINGA | EDIÇÃO 12

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OUTSIDER


Foto: Iago Rezende Arte: Janine Reis

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O MUNDO

em mim


Habitar

texto: hĂŠlen cristina foto: ana elisa siqueira arte: lara pechir


Na trama dos

sonhos

Quando nossos desejos são muito fantásticos alguns detalhes podem atrapalhar: a falta de grana, de talento ou de super poderes. Mas os sonhos, os que temos enquanto dormimos, estão aí para isso. Eles são, muitas vezes, uma válvula de escape para aquilo que, por algum motivo, não conseguimos realizar estando acordados. Segundo o psicólogo Bruno Bueno, sonho e fantasia por vezes se confundem, e não é para menos. Ambos caminham lado a lado na trama do conhecimento mais próprio do ser. A fantasia pode ser oriunda de desejos, de algum medo ou outro sentimento específico, ou até mesmo da mera espontaneidade criativa da mente. Pode estar relacionada àquilo que mais se almeja e sonha, ou àquilo que retrata suas maiores fraquezas. A fantasia pode desafiar valores, ir além do certo ou errado, e vivenciar, através do sonho, tudo aquilo que está reprimido. Já o sonho é uma experiência onírica, carregada de carga afetiva emocional, que se apresenta como uma forma de revelação do ser próprio, influenciada pelas experiências diurnas, pelos desejos e pelas fantasias, com a mesma intensidade e realidade com que experimentamos nosso estado de vigília. E mais que uma válvula de escape, pode ser uma ferramenta de auto compreensão, uma forma de entendermos a maneira como conseguimos absorver nossas experiências e como elas nos afetam. Muitas pessoas têm sonhos aparentemente sem nexo, confusos e na maioria das vezes nem se lembram que sonharam. Outras, no entanto, não apenas se lembram, como

possuem uma habilidade a mais: conseguem se manter lúcidas. Essa capacidade de manter a consciência é conhecida como sonho lúcido porque a pessoa tem a total noção dos acontecimentos e consegue, às vezes, controlar como eles devem seguir. Algumas pessoas se dedicam a estudar este fenômeno e a aprimorar sua técnica, e dizem conseguir até mesmo induzir seus sonhos. Outras, porém, têm limitado seu controle, e são capazes apenas de discernir quando estão sonhando. André Gatti, 25 anos, diz ter sonhos lúcidos a tempo suficiente para não se lembrar do primeiro, mas percebeu há pelo menos três anos que isto não é comum a todas as pessoas. Sem dominar nenhuma técnica de controle, ele alcança a lucidez durante o sonho de maneira espontânea: “por muitas vezes, percebo a surrealidade do que está acontecendo. A partir desse momento começo a ter maior liberdade, não total, de fazer o que quero dentro do sonho”. Ele conta que isto despertou sua curiosidade, mas nunca procurou nenhum especialista no assunto, e não se considera um controlador de sonhos, porque não consegue interferir nas ações de outras pessoas, e às vezes, nem mesmo acordar quando quer. Conta ainda como consegue discernir entre sonho e realidade: “algumas vezes sou enganado, outras não. Concluo pela falta de nexo de algumas coisas, pela lógica em uma situação que está acontecendo... não sei precisar, mas apenas percebo que aquilo que está acontecendo não pode ser uma situação real, o desrespeito às leis da física, por exemplo, é flagrante.”

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Para o psicólogo Bruno Bueno não há a necessidade de controlar o sonho. Ele acredita na necessidade de conservação da saúde mental do ser humano. Segundo ele, por meio da psicoterapia é possível interpretar os sonhos e, a partir deles, tratar sintomas e mostrar novas possibilidades de vida e de realizações ao paciente. “É fazê-lo assumir uma responsabilidade perante suas escolhas e sua autenticidade como ser-no-mundo. É saber usar a criatividade, questionar valores e deixar fluir de maneira mais autêntica seus desejos e fantasias”, conclui. Enquanto algumas pessoas não se lembram de seus sonhos e outras conseguem controlá-los, há ainda as que acreditam que cada sonho traz uma mensagem relevante, mas nem sempre clara. Este é o caso do estudante Bruno Fernandes, 29, ele conta que depois que tomou consciência e desenvolveu mais sua mediunidade a lembrança dos sonhos passou a ser mais frequente, e alguns deles se tornaram premonitórios. “O que me chama mesmo a atenção são pequenos detalhes, pequenas coisas que mais cedo ou mais tarde fazem grande sentido, por mais bobo que pareça aos olhos de terceiros”, diz. Um dos vários sonhos premonitórios que o estudante teve e ainda se lembra com clareza foi com seu avô: “eu tinha 18 anos e meu instrutor de auto escola não me ensinava sobre a embreagem direito, eu simplesmente não conseguia controlar o carro e sonhei que meu falecido avô me explicava como usá-la, inclusive com a teoria por trás da prática. No dia seguinte testei o que havia sonhado... minha carteira tá aqui comigo”, e ele garante não ter lido nem comentado nada com ninguém sobre o assunto antes do exame. Como instinto de defesa, Bruno prefere não contar sobre seus sonhos porque são experiências muito pessoais. Segundo ele, muitas pessoas não acreditam, outras já acreditam tanto que acabam se perdendo no meio das histórias. “São experiências que só eu vivi, não tem como eu mostrar aos outros, a não ser contando, e muitos podem pensar que invento isso para aparecer, mas não é”, diz. O psicólogo Bueno não acredita em premonição, para ele algumas coisas não são percebidas claramente por nós, mas ficam registradas em nosso inconsciente e nos surgem por meio dos sonhos. Quando elas acontecem, determinadas por um contexto mais amplo, acabamos tendo a ideia de premonição. Independentemente do tipo: comum, lúcido, premonitório, os sonhos dizem muito sobre cada um, são um reflexo do que há em nós de mais íntimo, nossos desejos, fantasias e até mesmo aquilo que nos atormenta. Muitas vezes são consequência do que nos acontece no dia a dia. E, em contrapartida, é a forma como interpretamos e reagimos a eles que nos define.

O sonho é o resultado de uma conciliação. Dorme-se e, não obstante, vivencia-se a remoção de um desejo. Satisfaz-se um desejo, porém, ao mesmo tempo, continua-se a dormir. Freud


RuaeAugusta cinema

Magia

Texto: Teka Lindoso Arte: Ana Amélia Maciel Fotos: Divulgação Season One Art & Bar

Central Perk, Beco Diagonal, Bar do Moe, Café 80’s, Ten Forward e Big kahuna. Estes nomes podem ser familiares para alguns, pois são lugares frequentados por personagens de certas séries e filmes. Para os fãs, nada mais marcante do que estar em um destes cenários e se sentir como um dos personagens de suas séries favoritas. Além disso, quem não procura um diferencial na hora de abstrair o estresse e viver a realidade tirando os pés do chão, nem que seja por algumas horas? São Paulo. A megalópole que abriga a maior concentração de bares, restaurantes, teatros e palcos de diversidade cultural, tem muitas opções para os que buscam diferentes tipos de entretenimento. Para quem ama a fantástica fábrica do cinema, encontramos um novo cenário na Rua mais badalada da cidade. O Season One Art & Bar foi inaugurado há pouco tempo, um bar que oferece teatro, cinema, decoração temática, petiscos e também aquela cervejinha gelada pra encontrar os amigos. O mundo da fantasia começa com a lúdica Rua Augusta que mantém sua fama do passado como local de boemia e libertinagem. Hoje acrescenta características da modernidade do pólo paulista, juntamente com a diversidade de um ponto de encontro de várias tribos. A fama da Augusta é conhecida por quem nunca esteve nela. Não há local mais certo de que o real possa se juntar à fantasia quanto nesta via de acesso ao centro velho e às luxosas ruas do Jardins na Zona Sul. A ideia de oferecer um local diversificado com vários temas do cinema, veio da vontade em ter algo especial e diferente para os clientes, contam os donos Aldo Dib e Marcus Ribeiro. Com isso, o Season One abre espaço não apenas como o bar de uma série específica, e sim o bar dedicado a todos os seriados, filmes, tribos, gostos e culturas. Inspirado em um estúdio de gravação, o mundo das telinhas aparece no Season One através da decoração e das atrações ofertadas ao público. Holofotes, refletores, estruturas metálicas, camarim e entrada de estúdio compõem o cenário. O responsável pela criatividade é o designer Roger Arruda que elaborou o local com referências de séries e filmes que os donos da casa apreciam. Alguns drinks do cardápio foram buscados nas receitas originais, como a bebida Cosmo in the City, inspirada na personagem Carrie de Sex and the City, além de nomes como Smallville, Arrow e The Flash. Revivendo a excentricidade nas noites paulistanas, o Season One foi pensado para surpreender e fazer com que o cliente se sinta confortável curtindo seu cantinho do cinema. Além das séries que rolam nos monitores e telão, o Bar apresenta o Teatro Seriado em dias determinados. Em capítulos divididos por semana, o espetáculo “Estilhaços”será apresentado no mês de outubro. O enredo se passa num dia 25 de janeiro, aniversário da capital paulista, onde Paulo é um mendigo expulso do Vale do Anhangabaú. Enquanto perambula pelas ruas, torna-se o protagonista do voyeurismo metropolitano, sendo alvo e espectador das dissensões da cidade. A trilha sonora completa a proposta diferencial do Bar. “Rolam trilhas de filmes, novelas, seriados e também algumas doses de rock, eletrônica e música brasileira”, conta Aldo Dib. O mágico universo das artes no entretenimento das noites paulistanas, é uma boa proposta de vivenciar novas experiências culturais. A brincadeira que envolve o cinema, teatro e as séries, aproxima do público o fantástico mundo das celebridades, da sétima arte e do glamour. A mescla do mundo das artes dentro de um bar traz a imaginação como nova opção para a realidade, para se encantar com a Augusta e inovar enriquecendo as alternativas para o lazer.

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Sensação

Um barato sob prescrição médica Texto: Tácito Chimato Arte: Ana Amélia Maciel

Segundo dados do Relatório Mundial sobre Drogas da ONU (2014), 5% da população mundial já fez uso de substâncias ilícitas.

De acordo com o documento da ONU, as drogas psicoativas do momento são os anfetamínicos, como o ecstasy, ficando atrás em consumo apenas da maconha. Sua origem vem de fins médicos, mas sua forma de consumo mudou, indo desde “uma vez” em uma festa até casos de abuso. “Sexta-feira passada (…) , fui forçado a interromper meu trabalho no laboratório, (...). Em casa eu me deitei e afundei numa condição desagradável de um tipo de desintoxicação, caracterizada pela imaginação extremamente estimulada. Num estado como que em sonho, com os olhos fechados,(...) eu percebia um fluxo ininterrupto de quadros fantásticos, formas extraordinárias como um intenso caleidoscópio de jogo de cores. Depois de umas duas horas esta condição diminuiu.”. O relato acima podia ser de qualquer usuário de alguma droga psicomiméticas, drogas que alteram nossa percepção de realidade. Mas é do químico suíço Albert Hofmann, e data do ano de 1943, conforme seu livro “LSD: minha criança problema”. Hoffman descobriu essa substância durante uma experiência com propriedades de um fungo do centeio, que poderia ajudar em casos de hemorragia durante o trabalho de parto. Assim, ele acabou por descobrir o Lyserg-saure-

diathylamid, o LSD-25, conhecido como “doce”. O LSD fez fama na década de 1960, sendo proibido na década seguinte, inicialmente nos Estados Unidos, e depois no mundo pela pressão do governo Nixon. História semelhante tem o MDMA, popularmente chamado de ecstasy. Criada na década de 1920 como um supressor para a fome, sua história seguiu renegada até a década de 1970, quando um professor na Universidade da Califórnia, Alexander “Sasha” Shulgin, ouvindo um de seus alunos falando sobre uma nova droga, teve acesso a cadeia do ecstasy publicada anos antes em um artigo na Polônia. Impressionado por seus efeitos, “Sasha” resolveu recria-la, e recomendou-a para seus amigos psiquiatras para o tratamento da depressão. Não demorou muito para os próprios consultórios passarem a vender a droga sem receita, e o ecstasy se tornou uma febre na década de 1970, seguindo um caminho semelhante ao do LSD na década de 1980. Ambas as drogas foram formuladas com objetivos médicos, contudo, parte de seus efeitos colaterais mudava as sinapses do cérebro. Sua proibição surgiu após casos de abuso. Mas, então, o que leva alguém a usar drogas com efeitos tão sensíveis a mente, e até abusar?


“Bala. A sensação de conforto por que tudo a volta para estar em sintonia com tudo que esta a volta, sentimos que tudo de repente tem uma resposta. Acredito que perdemos a capacidade de mentir... o que torna tudo a volta mais simples e explicável.” - W. 36 anos, ator.

“Ingeri a chamada bala, que na verdade é o ecstasy, ano passado na formatura de uma amiga. Algo que me marcou muito foi a ideia que aquele era um momento perfeito, nunca antes senti algo semelhante com tanta intensidade.” - L. Editor de Vídeo, 24 anos

“Foi uma sensação de liberdade, todos meus sentidos ficaram muito apurados. Em suma, me senti completo: fui para um estado de espírito tão bom que deixei de ligar para as pessoas a minha volta” - M. , 23 anos, estudante.

“Tomei o LSD, quando fui ao cinema uma vez com minha amiga. Foi a primeira e única vez que tomei doce sem ingerir mais nada. Tive uma onda muito boa, e minhas experiências negativas se deram pelo uso de outras drogas conjuntas, como o álcool, e a ressaca moral e física do dia seguinte.” - B., 21 anos, estudante

Do recreativo ao vício Segundo o psicológo português Pedro Godinho, é muito difícil definir uma razão exata para o ser humano buscar o uso: “Há níveis diferentes de consumo”. Ou seja, antes de definir o por quê de uma pessoa usar, deve-se ver o quanto a pessoa está usando: “os consumos podem ser cotidianos, experimentais, ocasionais, de uso nocivo e dependência.” Isso está relacionado a experiências anteriores de cada um: “Quanto a essas experiências aflorarem ou não durante os consumos, depende muito da pessoa e dos efeitos da substância, mas pode acontecer”. O site português “Tu Alinhas” (página virtual do Ministério da Saúde português para prevenção do uso entre jovens) acrescenta que nossos problemas com drogas não passam somente por essa ou aquela substância, mas sim a um comportamento social que o ser humano pode adotar com qualquer coisa: “A dependência/adição torna-se cada vez mais difícil de ultrapassar quando todo o nosso cotidiano, todos os nossos interesses, toda a nossa vida passa a girar em torno de uma substância, do jogo, de qualquer comportamento ou situação compulsiva (que não conseguimos controlar), alterando todo o nosso projeto de vida.”. Porém, ao falar de drogas ilícitas, que causem dependência física, devemos observar o meio no qual o indivíduo está inserido e como a droga é aceita nesse meio. “A experiência de determinados acontecimentos traumáticos, ou marcantes, pode atuar como um fator de risco para o consumo de substâncias. Nesse caso, ao não conseguir lidar de uma forma satisfatória com o “Ri a noite problema, a pessoa pode recorrer a estratégias como os inteira incessantemenconsumos de forma a minimizar o sofrimento.” Complete, os sons da musica eram ta o psicólogo. captados por mim com sensação Uma coisa é certa: se o ser humano sentir que deve de cores e alucinações visuais com passar por determinadas experiências com seu uso, ele formas geométricas - tive uma sendeve estar ciente principalmente dos riscos que corre. sação mais forte relacionada a objeAinda não é possível medir os níveis seguros para cada tos da cor azul, eram os que mais um, mas também não se pode dizer que todo fim será distorciam na minha visão.” brutal. E, para cada caso, vale a pena perguntar se é o que - F. 33 anos, analista de se esperava, ou se foi demais. suportes

“Basicamente fiquei no meu quarto paranóico, e toda a vez que ouvia um som, ou pelo menos achava que ouvi, descia até a sala para conferir se alguém havia entrado na casa. Resumindo: fiquei uma noite inteira no quarto, ora paranoico, ora extremamente agitado. Não tive um minuto de paz e perdi uma noite de sono para acordar acabado” M., Estudante, 23 anos.

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Alternativa

Esoterismo

perto de nós

Você acredita em energia, em esotérico, em mística? Quando pensa em esoterismo, imagina uma senhora cheia de pulseiras, anéis e um turbante na cabeça? Pois bem, existem pessoas que levam esse universo muito a sério e vivem isso no seu dia a dia. Pipoca, com apenas 20 anos mora longe de sua cidade natal e concilia a vida de universitária com um hobby bem diferente para esse contexto. Neta de vidente, joga tarô e runas sem cobrar nada, sempre se considerou sensível às positivas e negativas energias do cotidiano e não liga em ser chamada de bruxa pelos amigos.s. Para ela, a bruxaria em si não é uma religião, e sim, é algo natural, como quando você toma um suco de maracujá pra se acalmar ou como quando toma um banho e se sente renovado. O maracujá, por exemplo, possui uma energia calmante, e a água corrente limpa

e leva o que é ruim embora. É uma arte oculta que trabalha com todas as diversas energias existentes no universo. Explica que o oráculo, que engloba várias das práticas esotéricas, se baseia em maneiras de prever o futuro, ver o passado e se auto conhecer, seja por sonhos, vidência, intuição ou profecia, não havendo brecha para um controle sobre a previsão, quem a tem simplesmente tem, independentemente de buscá-la ou não. A estudante acredita que pode influenciar a vida das pessoas ajudando principalmente no auto conhecimento delas. Sempre existe um ponto que às vezes o consulente nem notava no seu cotidiano e que é responsável por acontecimentos bons ou ruins. Quando você toma conhecimento dessas energias, você tem a escolha de mudá-las, se for o caso. Você aprende mais sobre si mesmo, suas percepções e então, o momento que você está vivendo se


amplia. Mas é um estudo onde existe uma lógica por trás de tudo. Bruxaria é sim conhecimento.” Além do tarô e das runas, existem outros métodos de autoconhecimento e desenvolvimento como a técnica Shivan Yoga, por exemplo, criada pelo mestre Arnaldo Almeida e difundida na cidade de Ouro Preto. Para o mestre, o yoga é um conceito que se refere a disciplinas físicas e mentais e está ligada a práticas meditativas. Já a meditação traz benefícios não só físicos, mas energéticos, emocionais e mentais, sendo possível substituir os pensamentos confusos e perturbados por pensamentos sobre controle, aliviando a mente de tensões. Para sua aluna e adepta da técnica Shivam Yoga, Isadora Guimarães, os retornos físicos são quase instantâneos. Ela não costumava acreditar no poder da meditação, mas nas primeiras aulas pôde perceber o rompimento das tensões com os exercícios e um notável aumento de concentração.“ Apesar de ainda não existir uma estimativa concreta, assim como Isabela, que acredita fielmente em suas práticas esotéricas, muitas pessoas praticam diversos tipos de jogos dessa espécie no Brasil atualmente. Por outro lado, como a própria entrevistada afirma, há o grupo que questiona essas doutrinas, as considerando puro charlatanismo e exploração. Para a diarista Amélia Mendes, de 47 anos, natural de Ouro Preto – MG, práticas como o tarô, vidência e leitura da sorte não passam tentativas de se tirar algum tipo de proveito da fragilidade das outras pessoas. Segundo ela, “é muito fácil dizer o que alguém desiludido quer ouvir. As pessoas que procuram esse tipo de serviço já estão vulneráveis e deixam escapar dicas para os oportunistas.” De forma geral, a ciência não é capaz de definir a energia, mas ela e o esoterismo, como uma prática de tradições e interpretações filosóficas de doutrinas e religiões que buscam desvendar seu sentido oculto, afloram notoriamente cada vez mais na sociedade com suas mais diversas ramificações. Aceito ou criticado, trazendo respostas, dúvidas ou lucro, o surreal instiga as pessoas e pode alterar o cotidiano de quem menos se espera.

Texto: Thaís Corrêa Arte: Ana Amélia Maciel Fotos: Isadora Lira CURINGA | EDIÇÃO 12

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Identidade

Quando a memória se texto:

Hélen Cristina Moutinho

arte: Jéssica


Uma fantástica prova de amor O Alzheimer é uma doença degenerativa e se apresenta como demência, ou perda de funções cognitivas como memória, orientação, atenção e linguagem. Não se sabe por que ocorre, mas são conhecidas algumas lesões cerebrais características dessa doença. As duas principais alterações que se apresentam são o surgimento de placas senis decorrentes do depósito de proteína beta-amiloide, anormalmente produzida, e os emaranhados neurofibrilares, frutos da hiperfosforilação da proteína tau. Outra alteração observada é a redução do número das células nervosas (neurônios) e das ligações entre elas (sinapses), com redução progressiva do volume cerebral. O neurologista Leonardo Brandão afirma que uma forma de prevenção é se manter mentalmente ativo. Segundo ele, é sabido que a pessoa que lê mais, que executa mais atividades que envolvam o cérebro tem uma probabilidade menor de desenvolver a doença. Mas ressalta que é fundamental que seja uma leitura da qual se possa emitir algum tipo de juízo crítico, “não é simplesmente ler; é ler, processar o que está acontecendo e ter uma opinião sobre o assunto. É preciso que esta leitura estimule o cérebro”. Ainda assim, ele destaca que 50% das pessoas com mais de 80 anos de idade terão Alzheimer, isto porque um fator de risco, não modificável, para a ocorrência da doença é envelhecer. A doença não se caracteriza pura e simplesmente pela perda de memória, mas esta é a principal alteração notada pelas pessoas que convivem com portadores do Alzheimer. Geralmente eles se esquecem de coisas recentes, mas lembram com perfeição de fatos que aconteceram há vários anos. E muitas vezes passam a agir como se vivessem no passado. É muito comum também que não reconheçam os membros mais jovens da família, mas em casos mais graves, até mesmo pessoas mais velhas, com as quais convivem diariamente, são esquecidas. Em meio a tudo isto, a figura do cuidador é fundamental, porque na grande maioria das vezes a pessoa que desenvolve a doença não percebe o que está acontecendo, ela é geralmente levada ao consultório médico por familiares que percebem alterações no comportamento. A partir do diagnóstico inicia-se uma nova fase, principalmente para quem vai acompanhar o paciente. O cuidador tem que se adaptar a esta nova realidade e passa também a habitar o mundo particular de quem convive com o Alzheimer. Para alguns, apenas um desafio, para outros, uma lição de vida.

Como você reagiria se corpo e mente não acompanhassem o mesmo relógio? O corpo vai aos poucos envelhecendo, perdendo suas habilidades, enquanto a mente está presa num passado distante. Como seria se a cada dia você se afastasse um pouco mais da realidade e passasse a habitar um mundo só seu, onde o presente está sempre no passado? É assim que vive grande parte dos portadores da doença de Alzheimer. Júlia de Macedo Neves, 94 anos, foi diagnosticada com a doença há oito anos. Tudo começou um pouco antes, quando ela perdeu a visão por causa de um glaucoma. Obrigada a abandonar sua rotina agitada, Jú, como é carinhosamente chamada pela família e amigos, começou a passar seus dias no quarto, ouvindo música e tendo as lembranças como companhia, até que este recolhimento se transformou em doença. Em meio a tudo isso, Maria Aparecida Barbosa da Silva, 71, é figura fundamental. Sobrinha e cuidadora de dona Júlia, também teve que se adaptar a essa nova realidade. Elas sempre viveram juntas e cultivaram uma grande amizade, e isso fez toda diferença na hora de lidar com a doença. Jú teve redobrada toda atenção e carinho que sempre recebeu da sobrinha. “No início foi difícil, às vezes ela ficava duas noites e dois dias seguidos sem dormir, a gente olhava e parecia que tinha dormido a noite inteira. Mas ela foi minha segunda mãe. Sempre tivemos uma ótima relação, e isso continua até hoje,” conta Maria. E se engana quem pensa que o portador de Alzheimer se torna um fardo, pelo menos não para Maria Aparecida. Ela diz que a aceitação e a adaptação à doença aconteceram de uma maneira muito natural, que não saía muito e que já havia viajado bastante, então decidiu que não lutaria contra algo que não tinha solução. “A vida aqui sempre foi muito tranquila, acho que isso tudo passa, e agora estamos vendo as consequências, porque está sendo tudo muito fácil. Jú não é um peso, eu me sinto bem de saber que estou ajudando ela, que nos ajudou muito.” Mesmo com a doença, dona Júlia tem uma vida tranquila. Maria Aparecida faz questão de controlar seus horários, cuida pra que a tia se exercite, caminhando pelo quintal, ou mesmo dentro de casa, em dias chuvosos, e também não deixa de conversar, para que ela não perca totalmente a lucidez, e lembra com entusiasmo da rotina agitada que dona Júlia mantinha: “Jú foi secretária, era muito dinâmica, alegre e muito boa, gostava de ajudar as pessoas. Era ótima em tudo que fazia: crochê, tricô, cozinhava, era uma verdadeira líder”. Todo carinho dispensado à tia tem amenizado os sintomas da doença, mas a perda de memória é algo sobre o qual não se tem controle: às vezes dona Júlia acorda no meio da noite e pede para que preparem a mamadeira do sobrinho, que há muitos anos deixou de ser criança. Apesar de tudo, Maria Aparecida acredita que a falta de memória causada pelo Alzheimer tenha um lado bom: “com a doença ela não tem dimensão do que ela foi, do que ela fazia, ela não tem essa percepção. E isso é bom porque ela não sofre. E eu também não”.

perde em fantasia

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Opinião

Conversa

fantasma

Texto: Israel Marinho Foto: Isadora Lira Arte: Joyce Mendes

Chego à Passagem com a missão de fazer uma entrevista diferente. A ideia é conversar com o fantasma da Mina da Passagem. Conhecido pelos moradores como Capitão Jackes, era um homem importante no final do Século XVIII, responsável pelo envio do ouro das cidades mineiras para o Rio de Janeiro que era Capital do Império. Jackes foi um explorador inglês que comandou vários empregados que trabalhavam na mina e por isso possuía a patente de Capitão. Autoritário, ranzinza, tratava seus subordinados com bastante rigidez. Mesmo sendo rude, ele tinha o simples desejo de encontrar ao menos uma pepita de ouro. Essa era a sua única ambição. Morreu buscando a sua riqueza e até hoje volta às galerias em busca do seu sonhado tesouro. Vou até a Mina e resolvo entrar em busca do fantasma. Depois algum tempo de caminhada nas escuras e estreitas galerias, vejo um vulto. Encontro Jackes sentado. É um senhor de 60 e poucos anos com rugas em todos os cantos do rosto. Usa um chapéu de couro com alguns detalhes prateados. Suas roupas são de uma cor difícil de ser distinguida. Parece um marrom, mas ao chegar perto se tornar mais claro parecendo um laranja. Calça uma bota visivelmente desgastada pelo tempo. Com um olhar um tanto ameaçador, nota a minha presença. Tento balbuciar algumas palavras, mas me interrompe. Resmunga, parece estar incomodado comigo. Abaixa a cabeça e sorri a todo o momento. De repente, se levanta e vem em minha direção e só para quando está frente a frente a mim. Fica me olhando. Continuo parado. Não me intimido e nem me amedronto com a presença dele. Jackes coloca sua mão direita em meu ombro e quando percebe que estou disposto a ouvi-lo, começa a falar. Inicia confessando ser muito sozinho, pois os outros fantasmas da região são muito isolados. Achou bom alguém tentar conversar com ele, pois as pessoas têm medo e não conhecem a sua história. Decepciona-se, pois o conhecem apenas como um fantasma e não como uma figura importante da cultura e da história da cidade. Visivelmente chateado, diz que merece um reconhecimento maior relembrando alguns acontecimentos que presenciou como as várias brigas e lutas dos seus empregados pelo fim da escravidão e se revolta por não poder contá-las para mais ninguém. Após uma pausa, olha pra baixo e diz aceitar a sua situação e que tem a certeza que um dia as pessoas vão procurá-lo para saber mais da sua vida e de tudo que sabe da Mina. Depois de um instante de silêncio e de cabeça baixa, me surpreende com um abraço. Agradecendo a atenção, se afasta, acena e desaparece misteriosamente. Saio da mina feliz e com a certeza de que Capitão Jackes é bom e com a missão de mostrar aos moradores a verdadeira personalidade daquele fantasma camarada de verdade.


Próxima edição

Se tivesse aberto um Jornal do Brasil no dia 03 de abril de 1943,

FOTO ARQUIVO PESSOAL

Texto: Nuno Manna Foto: Marllon Bento Arte: Janine Reis

Zacarias teria encontrado uma legião de combatentes que se lançaram ao mar diante da invasão do inimigo, o falecimento de um eminente homem público, a contratação de um jogador por um time da primeira divisão, a condenação de um homem que aumentou indevidamente o preço do carvão, um cadáver que mesmo depois de quatro anos inhumado permanecia intacto, a Bolsa que seguia regular pela falta de negócios de grande vulto... Quando recorreu ao jornalismo, o pirotécnico urgia por informações que o orientassem pelo caminho entre a vida e a morte, mas nenhuma daquelas histórias solucionavam o paradoxo particular que lhe afligia. Ao sofrer um acidente fatal dias antes, não entendia como podia estar ainda de pé: “Em verdade morri, o que vem ao encontro da versão dos que crêem na minha morte. Por outro lado, também não estou morto, pois faço tudo o que antes fazia”. A ambiguidade fantástica do ocorrido clamava por uma explicação. Buscá-la nas narrativas jornalísticas pareceu-lhe, então, uma solução possível: “obrigava-me a buscar, ansioso, nos jornais, qualquer notícia que elucidasse o mistério que cercava o meu falecimento.” O conto O pirotécnico Zacarias de Murilo Rubião (escritor e jornalista) foi publicado pela primeira vez naquele 03 de abril. Nos noticiários do dia não haveria, de fato, a notícia sobre tal insólito incidente. Certamente se desenharia por ali um mapa sistematicamente organizado para guiar Zacarias e todos nós por uma realidade que é e que pode ser, composto nos devidos limites do possível e do dizível, com as instruções necessárias sobre as formas de viver e de morrer. No entanto, pelas narrativas jornalísticas encontramos inevitavelmente os caminhos obtusos pelos quais a sociedade percorre para narrar sua própria história e compreender a si mesma. Se por elas operamos nossa vontade de domínio sobre nosso destino e regulação de nossas lógicas, também percebemos sempre se constituir a quimera de uma sociedade normalizada e livre do caos. Mas aqui estaremos novamente, repetindo incessavelmente o ritual, tentando encontrar a nós mesmos pelas próximas edições.

Nuno Manna, nosso autor convidado, é jornalista e doutorando em Comunicação pela UFMG, estudioso das ficções do mundo e no mundo. Autor do livro “A tessitura do fantástico: narrativa, saber moderno e as crises do homem sério” (Editora Intermeios, 2014).

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