Bastião #11

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a tua hora vai chegar edição 11 ano 1 2012

sus

www.bastiao.net

o que existe além da fila?

nani marchioretto

lembranças de um eterno tutti giorni

digitalização do cinema os dois lados da transição

albergue municipal um lugar feito de sonhos


editorial

A

cena é comum em praticamente todas as cidades do mundo: homens e mulheres que vivem nas ruas. Sem as mínimas condições de vida, apenas com as mínimas condições de subvivência. E é aí que muita gente se pergunta: de quem é a culpa? O Governo não investe? Não existem casas suficientes para todas as pessoas? Não existe comida suficiente para todas as pessoas? Não existe dignidade suficiente para todas as pessoas? O mais fácil e rápido é sempre culpar o governo e os políticos. É fácil porque tira a culpa de nós mesmos, ajuda a esquecer que vivemos em uma democracia onde todos nós temos o direito de escolher quem vai governar. Talvez o que falta hoje em dia é humanidade. É conseguir se doar mais um pouco. Enxergar nos outros um pouco de nós mesmos, encontrar semelhanças nas diferenças. Ir além da tinta e do papel de um cadastro ou do número de uma senha de espera. Parar de procurar o problema em outras pessoas e afastálo de nós. Não, o problema não está lá longe, nem a culpa. Eles estão nas mãos de cada um de nós, que apontamos dedos lá longe quando devíamos estender as mãos aqui perto. Não podemos nos transformar em peças de um sistema que exclui e ignora. Somos gente, antes de sermos qualquer outra coisa, também é bom lembrar disso.

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Nada é mais impenetrável que uma cabeça dura, nos traduz a cena do desenhista e grafiteiro Amaro Abreu. Somos todos castelos em nós mesmos. Contemple e tente compreender cada cérebro de pedra que encontrar flickr.com/xamarox

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torre à vista! Redação André Lacasi, Arthur Viana, Carlos Machado, Cíntia Warmling, Douglas Freitas, Gabriel Hoewell, Gilberto Sena, Luiza Müller e Sérgio Trentini | Projeto gráfico e editoração Ana Elizabeth Soares e Ramiro Simch | Revisão Lisiane Danieli Capa Rodrigo Steiner | Arte André Lacasi, Dante Roman, João Filipe Padilha, Lucas Monteiro, Paulo H. Lange e Ramiro Simch Relacionamento Ana Paula Neri e Samantha Diefenthaeler | Fotografia André Lacasi e Maurício Pflug Colaboradores Carol Melo, Rodrigo Steiner e Santiago Web bastiao.net | twitter.com/revista_bastiao | facebook.com/revistabastiao Tiragem Mil e quinhentos exemplares Praça Júlio de Castilhos, 74/152 - Porto Alegre - RS - Brasil | (51) 3311.1025 | Julho de 2012


veja bem

TÁ FECHADO, MESTRE No último dia do histórico bar Tutti Giorni no viaduto Otávio Rocha, Nani, o proprietário, relembra histórias e busca explicações para o fechamento

A

s cadeiras empilhadas dão o clima triste do Tutti Giorni. Em outros tempos – até a véspera, na verdade –, elas estariam todas ocupadas ao meio-dia. Em poucos lugares, além daquela pequena caverna no topo do viaduto Otávio Rocha, em Porto Alegre, se podia almoçar por R$ 1,99. Era só lá também que era possível encontrar reunidos os maiores cartunistas do estado e grande parte dos ícones da cultura gaúcha. Naquele 26 de junho, Ernani Marchioretto, o Nani, fumava um palheiro em frente ao seu amado bar e restaurante. Parecia buscar consolo. Estava lá apenas para comunicar às dezenas de pessoas que chegavam para o almoço que estava fechando aquele memorável lugar e que procurava um novo estabelecimento. Era o último dia do Tutti Giorni, afirmava. E naquele final de manhã relembramos a história de um dos pontos culturais mais importantes de Porto Alegre. “Eu perdi o Tutti aqui porque não paguei o condomínio. Não paguei porque sofri um acidente de carro, fiquei em coma por quase três meses e quase morri. O que acontece? Eu, olhando as jurisprudências que existem com relação a lojas versus condomínio, todas elas dizem que proprietários de lojas à parte, com entrada independente, não pagam condomínio. É o meu caso, eu não uso nada do prédio: não uso elevador, não uso material de limpeza, a iluminação interna, a portaria. Então por que pagar condomínio? Existem essas jurisprudências que dizem que eu tenho razão. E eu perdi o imóvel confiando nas leis de jurisprudência – que são as criadas pelos juízes. E elas não valeram.”

Olha os vidros, estão todos quebrados, ninguém cuida de nada. Outra coisa: um pouquinho antes de ir a leilão, há uns 2, 3 anos, eu tentei negociar, para pagar o condomínio, mas o prédio não aceitou. Eles parcelaram para um monte de gente aqui do prédio, menos pra mim. Isso é uma represália violenta que fizeram comigo: tiraram meu ganha-pão, meu sustento, minha moradia. Se minha namorada me mandar embora eu não tenho onde morar. O único imóvel é esse, devia ser impenhorável, mesmo sendo comercial, é onde ganho meu sustento. Tu não pode chegar num dentista e penhorar os materiais de trabalho dele. Os caras penhoraram meu imóvel. Outra coisa, na convenção do condomínio diz assim: os atuais proprietários dessa loja tem direito exclusivo de explorar o terraço com antenas ou aparelhos que venham a ser ligados em cima do

prédio. Tá cheio de antenas da Net, Sky, DirecTV lá em cima e eu não ganho nada. O que o juiz alegou? Que os atuais proprietários eram os “atuais proprietários” da época da convenção. Só que a convenção está em vigor até hoje e é a mesma. Quando comprei essa loja comprei os direitos, não só os deveres. Os atuais proprietários não existem mais, estão mortos, esse prédio tem 70 anos. – Fechou, mestre, infelizmente fechou. Tô aguardando na Andradas. – Valeu, boa sorte. Eu sou um cara consciencioso. Mas se as leis me beneficiam, com relação a lojas versus condomínios, por que eu perdi? – Fechou, mestre, desculpa. – Deu movimento legal semana passada, né? – Bah, terça foi uma muvuca violenta. Quando vocês começaram aqui? O Tutti Giorni começou aqui em 1989. Era eu, o Emílio Pedroso e o meu pai. Nós abrimos o bar

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Bastião - Não houve possibilidade de recurso? Nani - Recurso houve, fui até Brasília. – Tá fechado, meu. Tô procurando outro endereço, talvez lá na Andradas. Infelizmente, me... E aí fui até Brasília e perdi em todas as instâncias. Só não entendo por quê. Por que pago condomínio aqui?

Ana Elizabeth Soares

entrevista Ana Elizabeth Soares e Gabriel Rizzo Hoewell


veja bem e já bombou de cara, em função do Emílio. Ele trabalhava, na época, no jornal da Fecotrigo. Daí ele conhecia o Edgar Vasques, o Santiago, e esse pessoal todo começou a frequentar o bar. Na época, nem sonhavam que existiria a Grafar [Grafistas Associados do Rio Grande do Sul]. AÍ começou a vir gente de todas as áreas, de música, de jornal, de televisão, de cinema. Começou a surgir o pessoal da “jovem guarda”, os cartunistas novos. Tinha a velha guarda – o Santiago, o Edgar, o Uberti, o Canini. O Ziraldo sempre que vem a Porto Alegre vem aqui. Da jovem guarda veio o Iotti, o Simch, o Hals, o Lancast, o Bier. E agora veio a jovem guarda da jovem guarda: o Rafael... enfim, se citar o nome de todos vou esquecer alguém.

“O Tutti Giorni faz parte da noite de Porto Alegre. Só lamento que o poder público esteja acabando com os bares da cidade. Eles estão indo contra o que eles querem”

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Como surgiu a ideia do carreteiro a R$ 1,99? Desde o inicio, nós servimos o almoço – Bah, fechou, infelizmente! – O que que houve? – Fechou, tô procurando um espaço lá na Andradas, aí vamo vê, acho que vai dar certo. Eu tenho essa comida popular, que faço aqui a um-nove-nove, então o pessoal vem de longe. A ideia surgiu há uns 15 anos. Tinha muita mulher que vinha aqui almoçar e elas queriam uma comidinha mais simples, um prato não tão cheio. Então surgiu a ideia de fazer carreteirinho, com feijãozinho e uma saladinha. E pegou e hoje virou o carrochefe do Tutti Giorni no almoço. Claro que dá pra fazer dar certo. Tu pega um quilo de guisado ou salsicha. Eu faço salsicha, guisado, linguiça,

charque, sempre mudo. E aí tu põe um quilo de arroz com a carnezinha picada e um pouquinho de feijão e uma fatia de pão, ou então uma folha de alface, e vende a R$ 1,99. Pô, tu faz 15, 20 almoços com um quilo de arroz. Dá dinheiro, tu consegue sobreviver. Eu, inclusive, numa época trabalhava só com almoço. Ultimamente tenho feito em torno de 80, 90 almoços por dia.

Palco de inesquecíveis

O senhor já conversou com esse pessoal que vem almoçar aqui? Como eles vão fazer? – Que número vai ser ali, senhor? – 1780. Esse pessoal simples não tem o que fazer. Tem gente que vem aqui e chora: “Se não fosse o senhor, eu não almoçava”. Meu objetivo é continuar com esse carreteiro a R$ 1,99. – Grande professor! Fiquei sabendo que a festa foi grande. – Terça-feira foi horrível. Horrível não, horrível de grande! Quando começou a grande movimentação nas terças-feiras? Em função da Grafar. No início sempre teve uma movimentação, aí depois tive o acidente de carro e fechou à noite. Já frequentava aqui a velha guarda da Grafar, só que eles se reuniam na Casa de Cultura Mário Quintana, mas lá era meio caro. O Rodinério [da Rosa], um dos cartunistas que frequenta o bar também, sugeriu que viessem pra cá, porque naquela época o Tutti Giorni era fechado na noite, e o pessoal começou a vir. Em função da Grafar começou a vir gente de outras áreas, e de dois anos pra cá a coisa bombou. Naquela época nós tínhamos a Aline Higa, artista visual, então tinha um público bem bacana da área da cultura que começou a frequentar. Através dela começou a vir bastante gente. O pessoal foi aglomerando, aglomerando, e tu sabe que onde tem aglomeração de gente cada vez tem mais. Aí virou essa coisa... Há uns dois anos, mais ou menos, a coisa saiu um pouco do nosso controle, tomou uma proporção... Porque o objetivo era atender o povo, lógico, mas assim ficou fora do nosso controle. O Tutti sempre reuniu, além do pessoal envolvido com arte e cultura, aqueles que vinham

pela comida barata? Sim, teve épocas que tava o presidente da AJURIS [Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul]... – Fechou, amigo, só vou abrir na Andradas daqui a um tempo. Talvez semana que vem ou na outra. – Tem o endereço lá? – 1780, mas não tá definido. Então o público era bem variado: estava o engraxate com a caixinha dele, o presidente da Assembleia, o Ivar Pavan, a assessora dele, o cara que era presidente da AJURIS, o camelô, o hippie. Essa foi a proposta desde o início: atender o povo. – Tá fechado, senhora, tá fechado. Acho que vou lá pra Andradas. Tá difícil, mas acho que


momentos, o Tutti foi eternizado no traço de grandes cartunistas

vai dar certo. O povo esse que tem menos condições começou a descobrir e vir direto, porque é mais barato que uma torrada. – Hoje não. Fechei, né. Tô tentando espaço na Andradas, agora tô na fase de fechar o bar aqui, de fechar e ficar chorando. É 1780, se der certo. Subindo a lomba ali, naquele espaço de cultura que tem ali. Tomara Deus que dê ali, porque é a cara do Tutti, bem bacana. Qual é a cara do Tutti? É um espaço aconchegante, onde tu te sente bem. Aqui acho que as pessoas entram, veem que tá tudo bagunçado, os banheiros, a cozinha... o pessoal entra e se adapta, acha lindo, né! Lá vai ter uma estrutura bem melhor.

Como o senhor se sente vendo seu bar como centro dessa movimentação cultural? Ah! Eu já perdi quase 10 quilos, 80% de lágrimas. As pessoas ligam pra mim e eu começo a chorar, porque italiano... Se tomar um vinho, então... Se tomar um vinho e alguém ligar pra falar do Tutti... O Tutti Giorni sempre teve essa cara cultural bem grande. Inclusive, eu perdi o Tutti por não saber que podia ter entrado com processo de tombamento cultural. Se eu tivesse entrado, não teria perdido, porque daí ninguém penhora, não pode fazer nada, é um espaço público. O Tutti Giorni faz parte da noite de Porto Alegre. Só lamento que o poder público esteja acabando com os bares da cidade. Eles estão indo contra o que eles querem. Eles querem revitalizar o Centro, mas querem fechar os bares. Tu não vai revitalizar o Centro se fechar os bares, tu vai abandonar ele. Com o Tutti Giorni fechando, tu pode ter certeza que as pessoas não sobem o viaduto aqui. Qual foi a importância do Tutti pro viaduto? Vários moradores aqui já me falaram: “Só subo o viaduto quando tem movimento.” Porque geralmente as luzes estão apagadas e as pessoas não sobem, de medo. Aliás, o viaduto aqui deveria ser todo tomado por bares, por lojinhas, ser um espaço central. Fizeram o camelódromo... por quê? O camelô quer ficar na rua. Coloca aqui, por cima do viaduto, embaixo do viaduto. Estaria resolvido o problema do camelô. Ninguém vai no camelódromo. Camelô vende quando está na rua. Assim tu humanizaria o viaduto, daria segurança, daria vida. Como o senhor avalia essa relação dos donos dos bares com os moradores das redondezas? Ninguém quer barulho na sua janela, eu também não gostaria. Mas o meu problema é ou-

tro. Só abro na terça e minha mercadoria é até 23h30min, meia-noite. É uma coisa simples: meia-noite encerra o bar. E todas as terças-feiras chamavam a polícia porque dava movimento na rua. Tá, mas querem o quê? Querem ficar vendo a novela? Fecha a janela e pronto. Se fosse todos os dias... Inclusive o síndico aqui do prédio é muito camarada e acha que tenho razão. Ninguém quer barulho na sua janela, só que existe bom -senso. Eu tenho certeza que essa senhora que comprou aqui, se vender para alguém, esse cara vai abrir todos os dias e vai dar problema. Mais do que antes, quando a meia-noite encerrava, tocava a campainha e o pessoal ia embora. Claro que demoravam um pouco pra ir, porque era um monte de gente na rua e até sair demora um pouco, mas o bar em si está fechado 23h, meianoite. – ¡Hola, señora! Almoço só na Andradas. O senhor vai se candidatar a vereador. Como que tá planejando essa candidatura? – Bah, bicho, tá fechado. Vou ter que sair daqui né, tchê. Eu vi um filme em que o Jim Carrey tinha que dizer “sim” pra tudo. E a vida dele começou a mudar. E aí comecei a dizer “sim” pra tudo, vamos ver agora. A base da campanha é moradia, prédios abandonados em Porto Alegre. Tem um milhão de prédios abandonados e as pessoas não têm onde morar; e os caras dê-lhe fazer prédios. Olha aqui uma experiência maravilhosa que deu certo [Utopia e Luta]. Assim como esse aqui, tem um monte em Porto Alegre abandonado. Outra [base de campanha] é a comida a R$ 1,99. E outra é... Eu moro ali naquela rua do Hospital de Clinicas. Em uma ponta está o Posto de Saúde Modelo, na outra o Clínicas. Eles chamam de “Modelo”. Modelo de quê? Aquele posto só abre em horário comercial, não abre em fim de semana. Ele tem que ser um ponto de triagem do Clínicas, porque 80% da emergência do Clínicas é dor de garganta, febre devido à virose, que um médico resolveria. E, no entanto, tem gente que chega mal lá no Clínicas e não consegue ser atendido, porque o cara tá examinando alguém com dor de garganta. O posto podia fazer uma triagem, mas a estrutura está abandonada. Será que o Estado não tem condições de pagar três, quatro médicos para ficar com meia dúzia de enfermeiros lá pra atender? Não acredito que não tenha. A saúde está desse jeito por falta de vontade política. – Fechado, mestre. Desculpa. Tô aguardando novo espaço lá na Andradas. – Quê?! Não vai abrir mais aqui? – Aqui não, infelizmente me tomaram a loja.

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O Tutti sempre teve uma movimentação cultural interessante... Sim, tivemos o Projeto Vice-verso. O Tutti Giorni foi pioneiro nos saraus. Acho que o primeiro bar que teve em Porto Alegre com sarau foi o Tutti Giorni. Era dirigido pelo Irineu Guarnieri e pelo Oscar Simch. Tinha os poetas que vinham aqui

todo sábado fazer sarau, né. Bem bacana. Depois tivemos o festival anual da música brega. O festival era assim: o homem e a mulher brega da noite ganhavam troféus, e quem participaria da parte musical tinha que trazer uma música gravada e com a letra escrita para os jurados analisarem. O pessoal botava o CD pra escutar e escolhiam a música brega da noite e ganhavam o passarinho de ouro. Amado Batista é cult perto dos bregas que já rolaram aqui nesse festival. Isso aconteceu todos os anos, até 2011. Em uma dessas eu conheci minha esposa, há sete anos. Aí me casei e tô feliz até hoje (risos).


André Lacasi

especial

texto e reportagem André Lacasi e Cíntia Warmling

Q

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´ das filas Alem

uantas vezes você já usou os serviços do Sistema Único de Saúde (SUS)? Nenhuma, pode ser a sua resposta, e é provável que você esteja enganado. Se você foi ao banheiro de manhã, passou na farmácia ao meio-dia ou fez um chá da tarde com água da torneira, em todos os momentos usou os serviços do SUS. Ao contrário do que muitos pensam, o sistema não se limita ao atendimento em hospitais e postos de saúde: ele é uma rede que abrange muito outros serviços, como saneamento básico, tratamento da água, e lazer. Um levantamento feito em 2011 pelo Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS) aponta que 34,3% das pessoas afirmam nunca ter utilizado qualquer serviço do SUS. As pesquisas também mostram que o SUS é mais bem avaliado por aqueles que declaram utilizar o sistema. Desses, 30,4% consideraram o serviço bom ou muito bom, enquanto, dos que disseram não utilizar, apenas 19,2% declararam o mesmo. Da mesma forma, o número de pessoas que consideram ruim ou péssimo é maior entre

os que dizem não utilizá-lo: 34,3%, enquanto entre os que utilizam o número cai para 27,6%. Nota-se a desinformação daqueles que não utilizam o serviço – que tem falhas que devem ser solucionadas –, mas é preciso ir além e investigar toda a estrutura de um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo. O SUS é um serviço que se baseia em três preceitos: universalidade, para que todos tenham acesso; equidade, para que quem precisa de um atendimento diferenciado receba esse atendimento; e integralidade, com a visão de saúde não como ausência de problemas, mas sim como a garantia de uma vida saudável. Até 1988, a ideia que se tinha sobre saúde era apenas a de não ter nenhuma doença. Com a nova Constituição veio outro viés, que traz a saúde como resultado da integração de vários elementos importantes e necessários na vida de um cidadão, como alimentação, trabalho e lazer. O direito à saúde, nos termos da Constituição Federal, indica que o Estado, como um todo, deve garantir não apenas serviços públicos de

proteção e recuperação da saúde, mas também adotar políticas econômicas e sociais que melhorem as condições de vida da população, evitando, assim, o risco de adoecer. Por isso, a existência de programas de assistência social, como bolsa-família, vale-gás e fome zero. Também são campos de atuação do SUS: saneamento básico, vigilância sanitária, doação de sangue, proteção ao meio ambiente, distribuição e controle de medicamentos, fiscalização de alimentos e o desenvolvimento científico e tecnológico, dentre outros. E você, ainda acha que não usa o SUS?

Eficiência X lentidão A cena é comum: do lado de fora, filas enormes, pessoas impacientes, cansadas: uma espera que parece não ter fim. Dentro, pessoas quase que empilhadas, mas em geral sempre satisfeitas após o atendimento. Afinal, vencida a longa espera, o atendimento é garantido e de qualidade. Daniel dos Santos sempre utilizou o SUS e se diz completamente satisfeito com o atendimento. “Uma coisa que eu acho interessante do SUS: o


pior problema é tu entrar, aquela espera. Porque depois que tu entra, tu recebe todo o atendimento, todos os exames. Já ouvi pessoas dizerem que o melhor plano de saúde é o SUS, no sentido de tu nunca ser barrado.” O tempo de espera para ser atendido é o que causa revolta, e, por vezes, a piora no estado de saúde. Na fila para marcar consultas encontramos Eloá de Souza, de Porto Alegre, há um ano com o pulso quebrado, esperando por uma cirurgia que só pôde agendar agora. Além disso, Eloá tem câncer de mama e só agora conseguiu marcar a consulta que poderá encaminhá-la para os procedimentos necessários. Paulo Correia, com câncer de pele, também espera por uma cirurgia há dois anos, mas nem ao menos conseguiu agendar o atendimento. Um relatório do Tribunal de Contas da União expõe que pelo menos 58 mil pacientes de câncer não conseguiram fazer radioterapia em 2010, o que representa 34% do total de pessoas que precisavam. Outros 80 mil (53%) demoraram muito para conseguir uma cirurgia. O tempo médio de espera por uma quimioterapia foi de 76 dias, sendo que o prazo recomendado pelo Ministério da Saúde é de 30 dias. Há instituições capazes de realizar o atendimento contra o câncer na maioria dos estados, no entanto, elas não são suficientes para atender à demanda. Pra chegar aos hospitais, se não for pela emergência, é preciso vir encaminhado pelo município, processo realizado pelos postos de saúde da cidade. Na teoria, isso deveria funcionar bem, mas na prática torna-se mais difícil, visto que nem sempre as pessoas têm consciência de que precisam ir primeiro ao posto de saúde e, também, que o agendamento de consultas em certas especialidades pode demorar. Segundo o Ministério da Saúde, os postos de saúde, responsáveis pela atenção básica, deveriam atender 80% dos casos, mas não é o que acontece. De acordo com Eunice Hilleshein, enfermeira do Posto de Saúde da Vila Herdeiros, na capital gaúcha, esse número não chega a 40%. A maioria das pessoas vai direto aos hospitais. É um hábito cultural que vem antes da implementação do SUS, quando se acreditava que o

André Lacasi

dinheiro destinado à saúde deveria ser utilizado em pessoas já doentes, ao contrário do que o Sistema prega e prioriza atualmente. “A gente tenta trabalhar numa lógica de consciência de saúde, que significa trabalhar com a saúde e com a qualidade de vida. A nossa ideia é que as pessoas não fiquem doentes para então procurar ajuda. A nossa ideia é atacar o problema antes que ele se agrave”, explica a enfermeira. Se o paciente é do interior, deve primeiro realiSuperlotação na emergência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre zar a consulta no posto de saúde mais próximo a sua cidade de origem, e, lha, em um micro-ônibus da Prefeitura, e se tracaso necessário, será encaminhado para o próxita em Porto Alegre há 10 anos. Foi operado por mo centro que possuir a estrutura necessária para uma hérnia na virilha e precisa de novas consulo atendimento. No Rio Grande do Sul, na maioria tas a cada 6 meses. Jacob Levy Filho levou um das vezes, o único lugar com essa estrutura é Porano para conseguir marcar uma consulta com um to Alegre, o que coloca os pacientes em listas de urologista em Alvorada, mas logo em seguida foi espera para consultas. “O município é responsáencaminhado para Porto Alegre para realizar um vel por atender as demandas da sua população. procedimento cirúrgico. Já Iracema Rossa é de Existe um sistema de rede de informática que Chapecó, Santa Catarina, e doou um rim para o funciona pra rastrear as vagas existentes em todo filho, 14 anos atrás. Ela não gosta de ter que volo município. O que ocorre é que existem alguns tar a Porto Alegre uma vez por ano para realizar especialistas raros na rede, como neurologia e orconsultas, mas afirma que, desde o procedimentopedia”, conta Eunice. to, sempre foi muito bem tratada e que não há Aí está um dos grandes problemas: dependendo que reclamar. Osmeri Mocellin vem de Tapes do da especialidade, o tempo de espera pode lee levou seis meses para conseguir uma consulta var anos, e é de onde surgem as histórias de pesna capital para procedimentos bucofaciais. Diz soas que foram chamadas para o atendimento que o único problema foi para realizar a primeira depois de já terem falecido. No entanto, quando consulta, “esse processo de aguardar é cansatio atendimento já está garantido, o SUS se prontivo, mas necessário, porque é muita gente.” Mesfica a providenciar até mesmo o transporte para mo com o deslocamento, quem vem do interior os hospitais e centros de saúde. se sente satisfeito com os serviços do SUS, pois É o caso de várias pessoas que encontramos sabe que em suas cidades não há a estrutura para em uma manhã de sexta-feira, no Hospital Santa realizar os procedimentos dos quais necessitam. Clara, da Santa Casa. Os grandes hospitais têm Segundo Eunice, “a gente sabe que já existe difidias específicos para receber pessoas do interior. culdade em atender os usuários de Porto Alegre, Sérgio Martins vem de Santo Antônio da Patruimagina, então, trazer pessoas de fora, incha ainda

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especial

Fonte: PICCAP - Hospital de Clínicas de Porto Alegre

mais. A ideia é que cada município gerencie a sua demanda pensando na regionalização da saúde.”

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Fora dos hospitais Antes da constituição de 1988, só tinha direito à saúde pelo sistema público quem trabalhava e contribuía para a previdência. O SUS começou a ser implantado em 1989 e foi regulamentado no ano seguinte. Antes, era o governo federal que administrava a saúde, agora, os estados repassam as verbas e os municípios é que são responsáveis por gerenciá-la, podendo trabalhar independentemente na realização dos projetos mais necessários para sua população. O SUS prevê que se tenha uma unidade básica próxima a casa do cidadão, para que ele realize a prevenção e receba atendimento para situações corriqueiras de saúde. Segundo Simone Beier, assistente social do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, “o hospital é um pedacinho pequeno de todo um sistema. A maioria dos grandes hospitais deveria atender apenas situações de alta complexidade. Não é o que acontece, porque o resto da pirâmide não funciona muito bem. As unidades básicas nem sempre dão conta e não têm a estrutura preconizada pelo SUS”. Isso faz muitas pessoas tentarem conseguir exames e atendimento médico por meio da emergência, o que acarreta nas enormes filas e na longa espera. Eunice explica que durante muitos anos pensavase em atender o paciente no hospital, e, por isso grande parte da verba para saúde foi investida em tecnologia e estrutura de hospitais, havendo uma precarização no atendimento básico. Essa é uma realidade que está mudando nos últimos anos. “Em vez de esperar que essas pessoas fiquem doentes para daí então usufruir de serviços hospitalares e inchar as emergências, agora está acontecendo um

processo de inversão: as pessoas estão conseguindo entender que a atenção primária é o local em que os investimentos devem ser priorizados para que as pessoas não fiquem doentes”, explica a enfermeira. É aí que entram estratégias do SUS que grande parte da população desconhece, como a Política Nacional de Promoção da Saúde. Firmada em 2006, ela foca na prevenção de aspectos determinantes para o processo de adoecimento de uma população, como a falta de saneamento básico, a habitação inadequada e a qualidade do ar e da água. Ou seja, o Sistema Único de Saúde não age apenas na solução de problemas de saúde, mas também na prevenção de doenças. Além de consultas, exames e cirurgias, o SUS garante uma série de outros serviços de saúde, como equipamentos e medicações que garantem a qualidade de vida dos pacientes. O uso de oxigênio em casa é um deles. Porto Alegre possui convênio com uma empresa que, após avaliação médica, instala os aparelhos na residência do paciente. Assim também é com medicamentos e já há uma lista de remédios que são liberados quase automaticamente pelo SUS, quando necessários. É o caso de leites para recém-nascidos, que custam em torno de R$ 500 cada lata. As famílias que não podem arcar com essas despesas têm o produto pago pelo Estado. Diferentes programas brasileiros têm sido apontados pela Organização Mundial da Saúde como modelos para países em desenvolvimento. São os casos do tratamento de Aids, diabetes e hipertensão, por exemplo. O SUS também conta com ações de vigilância, campanhas de imunização, programas de prevenção e tratamento reconhecidos internacionalmente, além da produção de tecnologia e conhecimento. Segundo a pesquisa do SIPS, o programa Saúde da Família

foi considerado muito bom ou bom por 80% dos entrevistados; 69% avaliaram como boa a distribuição de medicamentos; e 60% aprovaram o atendimento por médicos especialistas. Porém, muito está mudando. O Programa de Aceleração do Crescimento já estipulou que R$ 2,5 bilhões sejam investidos na construção de 8 mil unidades básicas de saúde. Isso é um reforço na base da pirâmide do SUS. Uma novidade implantada no final de 2011 foi o programa “Melhor em Casa”, contando com equipes de atendimento domiciliar para prestar serviços custeados pelo SUS na casa do paciente. O objetivo do projeto é humanizar o atendimento e reduzir a demanda nos hospitais públicos, especialmente para doenças crônicas e para idosos. A ideia de que quem tem condições financeiras paga por um plano de saúde não se sustenta na realidade. Cerca de 45 milhões de pessoas utilizam serviços privados no Brasil. Em geral, usam o plano apenas para consultas e internações de custo baixo ou moderado. Quando precisam de um serviço caro e de alta complexidade (transplantes ou remédios contra o câncer), muitos planos não cobrem e acabam encaminhando os clientes para o SUS. De acordo com dados do governo federal, 90% dos clientes de planos de saúde realizam os procedimentos mais complexos pelo SUS. Para a assistente social do Hospital de Clínicas, “todo mundo deveria utilizar o SUS, até para ele melhorar, para poder haver um investimento diferente, para tu poder cobrar, como cidadão, coisas que tu paga com teu imposto.” No fim das contas, todos os cidadãos utilizam o serviço. Pagamos impostos que são repassados para o sistema de saúde, e muitos pagam novamente através de convênios particulares. O SUS já realiza ações que proporcionam saúde e que merecem ser reconhecidas, mas ainda há muitos problemas a serem resolvidos. A estrutura preconizada pelo sistema é referência mundial. O atendimento é eficiente, mas ainda peca no tempo de espera, justamente por não conseguir dar conta do grande número de pessoas que buscam o serviço. Falta, principalmente, mais investimento para que a estrutura funcione como foi idealizada. Segundo o Ministério da Saúde, em 2008, o Brasil gastou apenas 3,6% do PIB com a saúde pública. Os atuais gastos na área ficam abaixo do que é investido por nações que também oferecem saúde gratuita, como Alemanha, Canadá e Espanha, que investem 6%. É papel do cidadão exigir esse direito, para que todos tenham um verdadeiro Sistema Único de Saúde.


o mundo é bão

POR TRÁS DO MAQUINÁRIO O homem que controla a máquina

Mudanças

uando as luzes baixam, entra em cena Adair Souza, o projecionista da Sala Paulo Amorim, na Casa de Cultura Mário Quintana (CCMQ), em Porto Alegre. Os filmes chegam até ele em cinco ou seis rolos de 35 mm. Adair, então, ordena as partes do filme. A cabine de projeção funciona com duas máquinas iguais, e o rolo do filme tem que ser dividido em dois para caber. Há oito anos em meio às máquinas, Adair já sabe facilmente quanto tempo ainda resta de filme. Mede com dois dedos e diz que ali tem mais 20 minutos. Risca, com um lápis, a ponta direita superior do filme para saber quando está na hora de desligar uma máquina e ativar a outra. Pode, então, sentar e ler seu jornal. “Eu vejo todo o filme só na primeira vez que projeto. Mas hoje já não assisto com tanto prazer. Quando levo minhas filhas no cinema, nem entro.” “Em várias sessões noturnas vem só um casal. Aí já viu, né? Eles só veem a luz do projetor e acham que não tem ninguém aqui em cima. Uma vez eu não vi que estava acontecendo o ato sexual e acendi as luzes quando o filme acabou. Quando olho, vejo um casal nu apavorado. Jogaram-se para trás das cadeiras e vestiram as roupas”, Adair conta, sorrindo. O homem que opera as máquinas está ali e, apesar de seu nome não aparecer nos créditos, o filme só roda graças ao seu trabalho. E ainda será assim por algum tempo. Adair acredita que, na CCMQ, os equipamentos não serão atualizados. Ele agradece: “Que graça teria apertar só um botão?”.

Após ser exibido várias vezes, o filme, de material frágil, perde qualidade. Quando se tem acesso à tecnologia de qualidade em casa, o cinema perde um pouco do atrativo. Os exibidores sabem de tudo isso, mas a adaptação ao formato digital custa caro, cerca de R$ 500 mil. Também por isso, a maior parte dos cinemas de Porto Alegre ainda não é digital. Mesmo aquelas que têm equipamento digital, operam em conjunto com as máquinas antigas, devido à demanda de filmes com película continuar superior. Digitalizar, por outro lado, reduz o custo de produção e permite o lançamento em mais lugares ao mesmo tempo, criando um atalho na relação produtor-exibidor, resultando em um mercado mais aberto, sem grandes distribuidoras. Antes, os filmes eram escolhidos a dedo pelas produtoras, com receio de não ter lucro. Com o cinema digital, esse medo deixa de existir. O valor é o mesmo para distribuir – via internet, satélite ou cópias de DVDs – o filme para 10 ou 10 mil salas. O cinema digital é mais barato de produzir e mais fácil de distribuir, mas a transição envolve enormes mudanças. O possível fim das distribuidoras incentivaria as produções. Um grande obstáculo, contudo, é a pirataria, facilitada pela

Q

Ramiro Simch

texto e reportagem Sérgio Trentini

digitalização. Se os custos com as distribuidoras são reduzidos, é necessário gastar com um forte sistema de encriptação.

O receio do projecionista Sérgio Luiz é projecionista há dois anos. Trabalha no Arco-Íris, cinema mediano, localizado na Zona Norte de Porto Alegre. Lá o equipamento digital já começou a ser atualizado, apesar de ainda possuírem dois projetores a óleo. Para Sérgio, é muito mais fácil lidar com o software de computador. “Para mim isso não é trabalho. É só apertar esse botão aqui. Eu prefiro aquele lá [35 mm], pois ali eu me faço necessário.” O filme chega via internet e Sérgio o reproduz digitalmente. Com poucos cliques no mouse, ele seleciona o horário em que o filme será exibido. “O problema é que não depende de mim. Caso a internet caia, eu não posso fazer nada. Na máquina analógica eu controlo. Essa aparelhagem digital se controla sozinha, só depende de mim pra apertar alguns botões.”

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cartola

LUGAR DE SONHOS As histórias de quem sonha no Albergue Municipal texto e reportagem Cíntia Warmling e Gabriel Rizzo Hoewell

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É

de chamar a atenção dos olhos mais atentos que, em frente ao consulado da Finlândia – país notável pela elevada renda e pelo impecável Índice de Desenvolvimento Humano –, dezenas de pessoas procurem espaço na calçada para esperar por um lugar para dormir. É que em frente ao imponente consulado, atravessando a Rua Comendador Azeredo, em Porto Alegre, encontra-se um galpão, onde funciona o Albergue Municipal, administrado pela Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC). Luís Augusto Faleiro acende seu palheiro e o traga sozinho, esperando seu nome ser chamado. A chamada é o sinal de que é sua vez de entrar no albergue, tomar banho, jantar e descansar. A vaga já é certa. Luís Augusto – hoje desempregado, após ter trabalhado como metalúrgico e guarda – já é usuário do abrigo há alguns meses e, por isso, tem seu lugar garantido. A espera foi longa apenas na primeira vez, quando teve de chegar às 15h para garantir sua entrada, que só ocorreu por volta das 20h. Depois disso, seu nome foi para uma lista, e passou a ser chamado todas as noites para entrar, a partir das 19h. A princípio, os galpões recebem as pessoas cadastradas por um período de 30 dias. Depois desse tempo, elas são encaminhadas para outros abrigos, como o Instituto Espírita Dias da Cruz e o Abrigo Beneficente Monsenhor Felipe Diehl, para que o Albergue Municipal (o único mantido somente pela Prefeitura) possa acolher mais gente, explica Franke Hendler, gerente do local. Logo que chegam, os idosos, as mulheres e os transexuais são separados do restante. São eles os primeiros a entrarem. Quem já dormiu lá, pelo menos desde a noite anterior, entra em seguida. Se ainda houver vagas, aqueles que estão lá pela primeira vez também podem entrar; senão, procura-se uma solução em outros albergues. No meio-fio, Alexsandro Lopes descansa. Espera a abertura dos portões para repousar suas pernas, cansadas depois de varrer as ruas. As vestes laranjas dos varredores são comuns entre os que esperam na fila. Alexsandro saiu do bair-

ro Guajuviras, em Canoas, há três meses e veio tentar a vida em Porto Alegre, onde se tornou varredor. Aqui, se envolveu com drogas, mas, desde que começou a frequentar diariamente a Igreja Universal do Reino de Deus, se livrou do problema, afirma. Alexsandro é só mais um em meio às dezenas de pessoas que aguardam. A grande fila se justifica. Uma vez dentro do abrigo, o usuário tem 150 camas à disposição, duas refeições completas (janta e café da manhã) e dois banheiros – um masculino e outro feminino. Valdemir Estran, educador social que trabalha no albergue, e Giovana Schenkel, monitora no local, não negam que, por vezes, a estrutura é precária. As divisões entre os quartos são improvisadas; os poucos chuveiros – cinco, quando todos funcionam –, geram grandes filas para o banho; e os vasos sanitários não estão nas melhores condições. Ainda assim, para muitos, é mais vantajoso que ficar na rua. Todas as noites, uma van circula pela cidade, tentando trazer para o abrigo alguns dos 1.203 moradores de rua que a FASC estimou haver, em uma pesquisa de 2008, em Porto Alegre. Os dados são os mais recentes e, ainda que um pouco defasados, permitem também concluir que 49,9% da população de rua porto-alegrense está nos bairros Centro, Independência e Floresta. Isabel Cristina de Borba, que participa de abordagens realizadas pelo albergue, diz que a recepção costuma ser negativa. Ela conta inúmeros relatos de agressões. A resistência por parte dos moradores de rua ocorre por várias razões. Não é apenas o fato de não ser possível consumir drogas no abrigo que afasta as pessoas. Na verdade, esse motivo passa a ser pouco relevante no momento em que o albergue permite a entrada sob o efeito de entorpecentes. Franke conta que alguns até deixam de ir ao albergue porque usuários entram alcoolizados. A questão é muito mais territorial. As pessoas se estabelecem em um local, conhecem as redondezas, constroem relações e, naturalmente, não querem ser retiradas de lá. Isabel ainda questiona uma atitude

comum: “Às vezes, as pessoas, na intenção de ajudar, fornecem comida e cobertores aos moradores de rua. Isso acaba atrapalhando, mantendo eles na rua.”

Dentro do albergue No albergue, há três tipos de quartos: masculino, feminino e, desde 2004, os quartos para transexuais. A maioria das camas é destinada aos homens, que somam 85% dos usuários, estima Franke. O clima lá é tranquilo e as confusões são raras. “Se há alguma relação na rua de poder, de mais forte sobre mais fraco, aqui a gente não pode permitir isso”, afirma o gerente. Às 19h, a entrada no galpão é liberada. As primeiras a entrar são as mulheres. A expressão dessas 20 pessoas sentadas, enquanto têm seus nomes escritos nos pertences, é triste. Uma das mulheres olha para cima, a buscar um sinal divino, enquanto reza. Outra prefere procurar o transcendental lendo a Caras. As carteiras de identidade, recolhidas na chegada, são devolvidas por um funcionário que já sabe de cor a maior parte dos nomes. E então, as mulheres são liberadas para pegar as toalhas e os sabonetes, fornecidos pelo albergue, e ir para o banho. Logo após, mais 20 pessoas entram no albergue. São idosos e deficientes físicos ou mentais. Seguem o mesmo trajeto daquelas mulheres. Escorados na parede, três amigos, já veteranos de albergue, conversam. Gilberto Luft adora ler. Tem nas mãos uma IstoÉ de dezembro de 2010 – “pra quem não leu ela é atual”. Há algum tempo Gilberto não pode mais trabalhar, pois está com três costelas e uma das mãos quebradas e já desistiu da fila do SUS. Luiz Kern, que está ao seu lado, também luta contra as dores. As sequelas de uma cirurgia na perna deixam seus pés inchados. Recentemente, arranjou um truque na hora de deitar que permite que durma mais aliviado. Durante o dia, no entanto, os pés não têm sossego, caminham pela cidade vendendo “pretinho” para limpar pneus de carros. Os tempos já foram melhores, lembra Luiz. Ele se orgulha de ter jogado futebol no Taquariense, ao lado do hoje


André Lacasi

treinador Paulo Porto. Apesar disso, é torcedor fanático do Cerâmica, de Gravataí, e lamenta o último resultado na Série D. Luiz cresceu em Taquari, onde, brinca, jamais aprendeu o alemão para não apanhar dos colegas durante a Segunda Guerra Mundial. Na vida adulta, chegou a trabalhar no Polo Petroquímico de Triunfo, e fez negócios com a 3M, uma grande multinacional. “Até que o Brizola me fodeu, perdi a esposa e fui para a rua”, simplifica. Gilberto discorda do amigo. Ele, ao contrário, gostava de Brizola. O terceiro homem, Luiz Bortoluzzi, ressalta que foram Collor e Sarney que acabaram com ele. E começa a discussão política. A história de Luiz Bortoluzzi é um pouco mais complexa. Mora há cinco anos em albergues. Na primeira vez, sentiu-se muito desconfortável. Com o tempo, se acostumou. Bortoluzzi procurou os albergues devido a problemas financeiros. Depois de ter emprestado seu nome para um amigo abrir uma empresa, sujou seu CPF e nunca mais conseguiu limpá-lo. As dívidas se acumularam, ele deixou Canoas e veio para Porto Alegre. Nos domingos, ainda volta para Canoas para rever a família. Porém, prefere não ficar lá, quer reorganizar a vida sozinho, conta sentado em um dos bancos do fumódromo, que reúne boa parte dos abrigados após o jantar. Luiz está lutando para se restruturar, não quer se acomodar como alguns de seus colegas, que já moram no abrigo há 15 anos. Maria Jussara Carvalho, entretanto, não teve opção. Há 10 anos em albergues, se sente mais segura lá. Saiu de casa quando sua família se desintegrou, ela perdeu os pais e a casa onde morava ficou para outros herdeiros. Suas filhas moram até hoje com uma conhecida da família. “Eu morei com alguns namorados, mas não deu certo. Tinha problema de alcoolismo, agressão.” Hoje ela trabalha fazendo faxina, e conta: “Às vezes, minhas amigas perguntam por que não junto um dinheirinho, alugo um lugar pra mim. Até já pensei nisso, mas eu tive várias perdas, sabe? Então eu tô tentando me reerguer.” A quebra dos vínculos familiares é a principal causa das pesso-

as que não têm onde morar. “Ninguém brotou do chão. As pessoas têm uma história; às vezes, de violência”, explica Franke. Jussara foi a única das mulheres que se disponibilizou a conversar conosco. “Geralmente as mulheres são mais fechadas, pela história de vida, muitas vezes de abuso”, conta Giovana Schenkel. São várias as histórias e as origens de quem frequenta o albergue. Outro monitor, Caio Basegio, conta que “já estiveram aqui advogados, professores, que passam por situações adversas e, sem uma estrutura que os suportasse, acabaram assim”. Boa parte dos usuários – a maioria deles entre os 28 e os 55 anos – perdeu a família, muitos se envolveram com drogas – quando jovens –, ou com álcool – quando mais velhos. Mas nenhuma história chama tanto a atenção, nem intriga tanto os monitores do albergue quanto a de Ja Young Lee, há menos de um mês dormindo no local. Lee chegou da Coreia do Sul há 30 anos, foi para São Paulo vender tecidos. Neste ano, Lee viajou para Santana do Livramento em busca dos free shops para comprar

o uísque que, segundo ele, todo coreano adora. Depois da passagem pela fronteira, foi conhecer Porto Alegre. Perdido pela cidade, acabou assaltado, perdendo as malas e ganhando roxos pelo corpo. Aqui, se encontra sem carteira de trabalho, nem dinheiro para voltar a São Paulo. A Prefeitura lhe sugeriu que fosse ao Albergue Municipal. Lee procura compatriotas que o ajudem, mas a busca é difícil: “Em São Paulo, somos mais de 50 mil coreanos. Aqui em Porto Alegre tem 35 famílias só.” Nessa procura, se amparou em um chinês e a oferta para trabalhar em seu restaurante no centro da cidade pareceu ser a melhor opção. Para os monitores do albergue, há, nessa história, algo de mal-contado. A documentação coreana – com visto até o ano que vem –, o português ainda com erros e a pouca idade não os deixam acreditar que Lee esteja em terras brasileiras há três décadas. Na verdade, todas as histórias que aqui contamos são incertas. “Muitos dos relatos acabam sendo construídos. Há muita fantasia nessa faixa da população”, completa Caio Basegio.

lima e silva, 240 cidade baixa porto alegre (51) 3224.0560 facebook.com/parangolebar


contracapa

Paulo H. Lange


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