Bastião #14

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reeleição de José Fortunati no dia 7 de outubro é uma vitória a ser celebrada. Não pela recondução ao cargo de prefeito de um homem que tenta, pelos meios que se fizerem necessários, silenciar as ruas da cidade. Não pela manutenção de uma máquina pública que se propõe a dar fim às artes e manifestações populares. Não pela permanência no poder de um governo que justifica suas ações violentas porque é assim que Porto Alegre vai “Porto Alegrar”. Nada disso faz o Bastião comemorar a vitória de José Fortunati. A nossa felicidade vem da motivação que esse resultado – que, sim, tem tudo para ser trágico – carrega. Muitos relembram nostalgicamente dos tempos em que jovens iam às ruas protestar por seus direitos, inconformados com os rumos que o Brasil tomava. Pois se as gerações posteriores se acomodaram em frente a um computador é porque a geração dos protestos conseguiu o que queria. É graças ao sangue derramado no passado que vivemos hoje em uma democracia que, apesar dos pesares, funciona. É quase uma ironia que essa mesma democracia, conquistada com tanto suor e tão comemorada, tenha dado a vitória a Fortunati e a nomes como Valter Nagelstein na Câmara de Vereadores. Mas celebremos, amigos, pois assim temos contra quem lutar. E com um trunfo: sabemos de antemão as verdadeiras intenções dos homens no poder. Estamos preparados e motivados. A arte de rua corre risco de vida, e cabe a nós protegê-la. Então tomemos de volta o que é nosso e deixemos a alegria se espalhar pela cidade. De todas as sensações que nos perpassam após essa eleição, nenhuma contagia mais como a de olhar para o lado e perceber que, em meio a tudo isso, não estamos sozinhos. Sim, a alegria prevalecerá.

A tomada da consciência é representada pelo olho, pelo detalhamento ou abuso das linhas em nanquim, enquanto o cotidiano se faz presente na pintura a café, combustível da rotina. O cotidiano e a consciência sustentam o Bastião e impulsionam o trabalho do ilustrador Rafael Puig. facebook.com/rflpuig

Redação André Lacasi, Arthur Viana, Carlos Machado, Cíntia Warmling, Douglas Freitas, Gabriel Rizzo Hoewell, Gilberto Sena, Luiza Müller e Sérgio Trentini Projeto gráfico e editoração Ana Elizabeth Soares e Ramiro Simch Revisão Lisiane Danieli

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Tiragem Mil e quinhentos exemplares Comercial (51) 8480.1360 / bastiao@bastiao.net

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Colaboradores Ingrid Haas Pilar, Paulo Ziegler e Rafael Puig

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Relacionamento Ana Paula Neri e Samantha Diefenthaeler Fotografia André Lacasi e Maurício Pflug

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Capa Ingrid Haas Pilar e Ramiro Simch Arte André Lacasi, Dante Roman, Paulo H. Lange e Ramiro Simch

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Sidinei Brzuska

veja bem

O COLAPSO DO SISTEMA PRISIONAL Em conversa com Sidinei Brzuska, juiz da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre e Região Metropolitana, o Bastião tenta compreender como a situação dos presídios gaúchos chegou ao ponto de primitivismo que se encontra atualmente entrevista Arthur Viana

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incapacidade dos governos e da sociedade de resolverem suas mazelas fica escancarada quando analisamos o grau de desumanidade que se encontram os presídios atualmente. É constrangedora a forma como esses seres humanos são tratados – às vezes pior que lixo. Ainda assim, nada é feito e a situação é a mesma há décadas. O preconceito cresce e afasta a sociedade da raiz do problema. Enquanto isso, dentro dos muros dos presídios, a ordem é subvertida e a lei vem debaixo. A ausência do Estado fez o mundo das penitenciárias estabelecer-se sob seus próprios regulamentos: manda quem pode e obedece quem tem juízo. “Hoje, há uma administração compartilhada: os presos controlam algumas coisas e o Estado controla outras.” A afirmação é de Sidinei Brzuska, juiz da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre e Região Metropolitana. Ele circula com facilidade por lugares onde seus semelhantes não ousam entrar. Negocia com presos, media conversas, entra e sai livremente dos presídios. Conquistou o respeito de ambos os lados. Graças à sua ação, a falência do sistema prisional extrapola pátios e galerias onde se amontoam condenados e a discussão invade as ruas. Aos poucos, a sociedade abre os olhos: “Enquanto nós não assimilarmos que os presos são problemas nosso, gerado por nós e que nós temos que administrar, nada vai mudar.” Lugares onde o ser humano vale tanto quanto lixo não têm o poder de reabilitar uma alma.


Sidinei Brzuska

Precariedade nas instalações é evidente

Arthur Viana

Existe alguma chance de o preso ser reabilitado no sistema prisional de hoje? É muito difícil. Eu não posso alegar que a reabilitação seja algo impossível, mas ela ocorre por exceção e muito mais por esforço pessoal do preso. Pelo sistema em si, não. O sistema não favorece a ressocialização, mas não é impossível: nós temos exemplos de pessoas que conseguiram sair. Mas, como eu disse, mais por um esforço pessoal, uma força de vontade muito grande, pelo apoio da família e por alguém que assessore essa pessoa. Com essa dificuldade de reabilitação, aumentam as chances de reincidência no crime? Nós temos que rediscutir o sistema prisional e teremos, talvez, que reconstruir esse sistema. Isso passa por uma transformação radical. Para começar, o regime fechado: as casas prisionais teriam que ser capazes de conter a criminalidade. O Estado teria que ter controle sobre o que acontece nas galerias, nos pátios, etc. Essas casas prisionais ficariam livres de celulares, de drogas, teriam regras bem estabelecidas, com disciplina. Ou seja: contenção. Depois, em um segundo momento, nós precisaríamos ter um investimento fortíssimo no regime semiaberto – que hoje não há, é um regime relegado. Hoje, é simplesmente uma válvula de escape do fechado: ele serve para as pessoas fugirem. Eles – semiaberto e fechado – teriam que funcionar em casas pequenas, para melhor controle. As prisões seriam pulverizadas, independentes e próximas do local onde as pessoas têm seus vínculos. Durante a fase da contenção, no fechado, a pessoa ficaria livre de telefones, drogas, facções. Ali, ela teria que ser preparada mental e profissionalmente para chegar ao semiaberto com uma melhor condição profissional. Isso teria que seguir no semiaberto, com uma condição de trabalho, algo que lhe rendesse uma remuneração. Isso nós não temos hoje. Nós não temos prédios, estrutura funcional, material... nós não temos nada. O sistema deveria ser reconstruído.

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Como se chegou a tamanho descontrole sobre o que entra ou sai dos presídios?

Esse descontrole começou porque o Estado, sem a capacidade de manter os presídios – estrutura defasada, falta de recursos – começou a fazer concessões aos presos. Nessas concessões, o Estado foi empregando a administração dos presos. Hoje, há uma administração compartilhada: os presos controlam algumas coisas e o Estado controla outras; isso gera o descontrole. Para pegar o exemplo do Presídio Central: em menos de dois anos, foram 2.800 telefones celulares apreendidos; em dois anos e meio, foram apreendidas 47 armas de fogo industriais e 50 quilos de droga. Isso se encaixa nesse contexto de você ir entregando o presídio para os presos. Tu faz uma concessão: não consegue conter o preso na cela, então abre a cela, eles ficam na galeria; não consegue controlar o pátio, então entrega o pátio para os presos; não consegue controlar a alimentação, entrega a alimentação; não consegue controlar a manutenção da unidade, ou seja, reformas hidráulicas, elétricas, etc., entrega isso para os presos. Chega um ponto em que o funcionário passa simplesmente a controlar quem entra e quem sai. Então existe conhecimento, por quem trabalha no presídio, de que se tem acesso a todos esses aparelhos e armas? O uso é livre? Não é que seja livre, mas todo mundo sabe. A nossa situação aqui está tão deteriorada que os nossos presos não sabem mais o que é cadeia. Eles acham que prisão é isso, que a família tem que levar colchão, carne, creme dental, roupa. É a família que sustenta o preso, e acham que isso é normal. É cultural. O preso não sabe o que é prisão, o funcionário também não. No semiaberto, o preso não se sente preso, e nem o servidor o considera preso; ele acha que o semiaberto é isso mesmo. A reforma que o sistema tem que ter, antes de mais nada, é uma reforma mental, cultural. Nós temos que resgatar o sistema prisional. Não vejo isso possível de ser feito nessa geração. Tem que gastar muito dinheiro para reverter isso aí. Nós tivemos um retrocesso gigantesco no sentido do controle que se tinha. O que mantém o regime fechado em pé é a chance de o preso fugir do semiaberto. Nós temos, aqui na Região Metropolitana, mais ou menos 13 mil fugas por ano. Dentro desse quadro, é correto afirmar que a superlotação é o principal problema do sistema prisional? A superlotação é causadora de vários outros problemas, mas não é o único. Nós temos a PASC (Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas), que não tem superlotação; no entanto, os presos não trabalham, não estudam, têm acesso às drogas e ao telefone celular. Ela não tem superlotação, mas nós temos uma cultura, dentro do sistema, e ela acontece também na PASC, na qual a família provê o preso. O Estado não dá para o preso uma colher ou uma escova de dente. Não dá nem creme dental. Quem é que dá isso para ele? A família. E se a família não dá, quem vai dar? Outro preso, e ele vai se tornar refém. Acaba surgindo uma espécie de mercado dentro dos presídios. O Central tem uma cantina regular, contratada licitamente. Tá na lei. Essa cantina deveria ser para o preso poder comprar aquilo que o Estado não dá: uma bolacha diferente, um picolé, um refrigerante... mas o que se vende na cantina do Central? Arroz, feijão, sabão. Itens básicos. Essa cantina paga algo entre R$ 40 mil e R$ 50 mil por mês de aluguel. Aí tu imagina o quanto ela vende.


Tu acha que a solução para a crise do sistema prisional depende da classe política? Acho que não, depende mais da questão popular. A classe política é um reflexo da questão popular. Falta conscientização. Não temos maturidade social pra debater certas coisas – pena de morte, liberação de drogas, aborto – e não conseguimos debater o sistema prisional. É um atraso cultural. Um caso que dou do nosso atraso cultural é o exemplo da Noruega, daquele rapaz que matou dezenas de pessoas. Qual foi o pensamento do povo? “Onde nós falhamos?”. Se fosse aqui no Brasil, nós estaríamos debatendo a pena de morte. Então vai demorar um pouquinho. Nós não consideramos um problema nosso: consideramos o preso um problema do Estado. Enquanto nós não assimilarmos que eles são problemas nosso, gerado por nós e que nós temos que administrar, isso não vai mudar.

E os presos pagam com dinheiro? Com dinheiro. É a história da concessão: o Estado permite que entre dinheiro. Porque se ele não permitisse, como o preso iria comprar o que o Estado não dá? Como ele iria comprar papel higiênico? Como ele compraria coisas básicas, como azeite? Cada visita no Central pode levar 300 gramas de carne – o Central recebe, por ano, 250 mil visitantes. Qual a capacidade e qual a população carcerária no Estado? Esse é um dado muito falacioso. O Estado teria algo como 18 mil vagas para 30 mil presos. Mas isso é errado porque as vagas que nós temos são muito ruins. Se você for olhar a vaga certinha, que obedece às regras, como a dos seis metros quadrados, essas vagas praticamente não existem. No último levantamento que eu fiz aqui na Região Metropolitana, há dois anos, o número de presos que estavam em vagas de acordo com a lei era de aproximadamente 2,5%. Nossas vagas são péssimas. Tu vai considerar o Central: tem 2 mil vagas para 4 mil e poucos presos. Mas, na verdade, essas 2 mil vagas estão todas destruídas. Nosso problema é bem mais grave do que os números que se veem por aí. Existe um nível mínimo de condição de vida lá dentro? Não. Nem quanto à saúde. Só para tu ter uma ideia: em levantamento recente, que analisa os presos que morreram até a semana passada no Hospital Vila Nova, 37% morreram antes dos 30 anos e 48% morreram antes de cinco dias de internação. O que isso quer dizer? O sujeito é levado para o hospital para morrer. Está havendo uma falha. Eu tenho um mapeamento maior que mostra que mais ou menos 75% morrem de doença respiratória, 78% antes dos 50 anos. Há um levantamento que nós estamos fazendo agora – então isso não está bem confirmado –, mas a expectativa é que 30% da massa carcerária tenha hepatite C. O grau na população não presa é de 2%. O tratamento da hepatite custa aproximadamente R$ 30 mil por pessoa. Aí tu faz a conta. Usando o exemplo do Central, que parece ser o presídio em situação mais catastrófica: como é a divisão de alas? Existem facções e brigas por poder? Existem regras dentro da cadeia, que foram estabelecidas por acordos, por tradição. Essas regras são cumpridas, e são elas que mantêm o sistema. Por exemplo: quem comete crime sexual ou contra a criança é considerado “preso seguro”, não entra em galerias. A pessoa que já trabalhou também não entra mais em galerias – tem muitos presos que não querem trabalhar porque depois não têm onde viver no sistema, que não aceita o preso que trabalha. Esses presos representam 10% da massa carcerária. Não entram em galerias, ficam separados. Depois, nós tínhamos as facções ideológicas, que com o passar do tempo foram perdendo essas ideologias. Ainda mantêm um pouco. O resto se pulverizou na questão do tráfico. Hoje, basicamente, nossas facções são de tráfico, não mais com ideologia. O esquema é o lucro. Daí cada um tenta manter os seus espaços internos, porque isso representa mais dinheiro para o tráfico. Há duas semanas, por exemplo, uns presos da PEC (Penitenciária Estadual de Charqueadas) fizeram um buraco para fugir, mas outros presos foram lá e taparam o buraco, porque isso é contra o sistema. A polícia pegou esses presos e eles foram transferidos. Quando chegaram à outra prisão, foram vaiados pela massa carcerária, porque “ratearam” e perderam o espaço que havia sido conquistado. Em agosto, tu comentou que o número limite de presos no Central deveria ser de 4.650 pessoas. Por que esse número, se ele está bem além da capacidade máxima do presídio? O Central tem um grave problema hidráulico, cloacal. O sujeito defeca lá em cima e aquelas fezes vão caindo, in natura, até o pátio. Aí eu estabeleci que os pavilhões não pudessem ter mais que mil presos (os pavilhões grandes). Para fazer os pavilhões chegarem a mil presos, o presídio teria que estar em 4.650. Então é esse o número. Hoje, por força de outras interdições, ele está com menos que isso, aproximadamente 4.200 presos.

“A reforma que o sistema tem que ter, antes de mais nada, é uma reforma mental, cultural”

“No Presídio Central, os presos fazem ‘barricadas’ com cobertores para evitar que as fezes dos esgotos se espalhem pelos pátios” Sidinei Brzuska

Há muito preconceito por parte da sociedade? O preconceito já foi pior. O problema é que o sujeito não tem qualificação nenhuma. Ele fica entre os outros presos e não evolui, não se qualifica, sai de lá tatuado, viciado, com uma gíria toda de prisão, sem nenhum documento e só com a roupa do corpo – que é uma regra do sistema fechado: tudo que foi levado para o preso enquanto ele estava na cadeia fica na galeria. Por que o PCC [Primeiro Comando da Capital] se fortaleceu em São Paulo? O PCC faz aquilo que o Estado não faz. Oferece ao preso alimentação, transporte, mantém a família em contato, paga advogado para quem não tem. Essas facções só existem no vácuo do Estado. Hoje, aqui, se nós retirarmos facções do sistema, o sistema cai. Os presídios funcionam em cima da mão de obra do preso, e quem controla a mão de obra dos presos são as facções. Sem elas, não sai nem as audiências no Foro. Quem retira um preso da galeria para ir para a audiência? É outro preso. O Estado não tem condições? O Estado não tem condições de entrar em uma galeria do Central e retirar um preso. Até pode fazer isso, mas vai ter que parar toda a cidade, mobilizar todos os brigadianos e entrar lá para tirar um prisioneiro. Quem retira o preso é um preso; quem abre a porta é um preso; quem faz a comida é um preso; quem faz a limpeza é um preso; quem troca a lâmpada é um preso. Mas vamos ser claros: o problema da Previdência Social não são os aposentados; o problema da educação não são os alunos; o problema da saúde não são os doentes; e o problema do sistema prisional não são os presos. Eles são fruto disso aí. O que tu acha de medidas punitivas mais extremas, como a pena de morte? Se tu pesquisares, vai ver que quem morre vítima de homicídio é preso. Mais ou menos 45% das vítimas são pessoas que recém saíram do sistema prisional. Esse número pode chegar a 80% se


Tu acha que a privatização é uma das soluções possíveis? Sou totalmente favorável à terceirização dos serviços penitenciários. Isso quer dizer o seguinte: alimentação dos presos? Entrega para a instituição privada. Ela que vai comprar o arroz, o leite. Ela que, se quiser, vai contratar um preso. Vai pagar os encargos sociais, FGTS, eles vão trabalhar com carteira assinada dentro do presídio. O preso vai se profissionalizar no ramo. Há empresas terceirizadas que limpam todos os prédios do sistema público. Então terceiriza no sistema prisional também. Essa empresa vai contratar gente, vai remunerar, aí já começa, dentro do sistema prisional, a gerar empregos. O Estado vai encolhendo. Ele fica cuidando da questão da segurança. Depois, privatiza 10% do sistema. Privatiza mesmo, para ter o referencial, para ver como é. Um fechado e um semiaberto. Deixa a sociedade julgar quem é melhor. Tu vai gerar uma competição. Isso vai gerar, no Estado, uma obrigação de pelo

Sidinei Brzuska

É possível, nesse cenário, trazer mudanças com a participação dos presos? É possível, mas tem que ter investimento pesado. O Brasil já tem alguns exemplos disso. Começou em São Paulo, que não seguiu. Minas Gerais copiou o exemplo, que é o sistema da APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados). O presídio é controlado pelo preso, assim como é aqui. Só que aqui é controlado pelo mau, lá pelo bom. O sistema APAC se autocontrola e tem algumas regras bem simples: o preso assina que quer ir para a APAC e, assim, se sujeita às regras. Lá não tem drogas, não tem telefones, os presos vão para audiências sozinhos, sem escolta, e voltam sozinhos. Não que isso seja uma solução, mas é uma alternativa. A APAC é para o preso que não quer mais conviver com o crime. Tem muita gente que não quer sair do crime, então a APAC não serve para esse tipo de gente.

menos tentar fazer alguma coisa, o que hoje não existe. Na educação, você tem um comparativo: tem a escola pública e a escola privada. Não é do Estado a obrigação da educação? A questão da segurança é obrigação do Estado também. Todos os prédios públicos têm segurança privada. Por que preso não pode ter? Privatiza 10%. Sou favorável. Não tenho nenhum problema quanto a isso.

Superlotação é causa de muitos problemas, mas não é único

Sidinei Brzuska

considerar pessoas que tiveram vínculo com o sistema. Por isso os homicídios não impactam a classe média. No Brasil, temos muitas penas de morte, mas aquela pena “não oficial”. Todas as semanas, nós temos pessoas sendo assassinadas e o Estado não se preocupando com isso. Estive conversando com um xerife da Califórnia. Lá eles têm pena de morte. Perguntei: “Qual foi o último que vocês mataram?”. E ele me respondeu que não lembrava. Lá, o policial dá um tiro e fica afastado sete dias, no mínimo. Entrega a arma e é apurado se aquele tiro devia ou não ter sido dado, e quem investiga isso não é a própria corporação. Aqui no Brasil, é comum a polícia matar, colocar como legítima defesa e o caso sequer ser investigado. Isso é uma pena de morte também, mas quem acaba julgando a pena de morte no Brasil é quem matou. Temos que deixar de ser hipócritas. As pessoas só se preocupam com o tráfico se tiverem um viciado na família. Não vendendo para os meus filhos, está bom, entendeu? O pessoal que controla o crime já tem essa noção de que o tráfico tem que sobreviver do tráfico. O tráfico não tem que investir no patrimônio, isso incomoda a classe média e, se incomodar a classe média, os caras vêm com jornal e vão querer nos incomodar. Então em várias áreas o pessoal proíbe furto, roubo, faz o tráfico girar em cima do tráfico. Se tiver que matar alguém nesse circuito, ninguém se importa. O que não pode é roubar um carro e machucar a pessoa do carro. Aí que dá problema. Se matar o sujeito que não pagou a conta, o viciado, isso tudo é acerto de contas dos presos, queima de arquivo. Essa é uma das razões pela qual não tem motim. Esse sistema dá lucro para quem o controla.

"Escrito na parede da pior galeria do Presídio Central de Porto Alegre"

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especial

UMA PROFISSÃO EM EXTINÇÃO Em breve, carroças e carrinhos estarão apenas nas lembranças das ruas de Porto Alegre reportagem Arthur Viana, Carlos Machado e Gilberto Sena texto Arthur Viana

reportagem Arthur Viana, Carlos Machado e Gilberto Sena

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Arthur Viana Àtexto medida que a água caía, ela subia, e mais a fundo íamos nas entranhas da Ilha Grande dos Marinheiros, em Por to Alegre, em busca de uma profissão em extinção: de acordo com lei proposta por Sebastião Melo – que assume o cargo de vice-prefeito a par tir de 1° de janeiro de 2013 – e aprovada na Câmara de Vereadores da capital, até 2016, todos os veículos de tração animal e humana deverão sair de circulação do trânsito de Por to Alegre. O prazo pode encur tar e as carroças e carrinhos serem proibidos de transitar nas ruas já em 2014, tendo em vista a realização da Copa do Mundo na cidade. A medida pretende desafogar o trânsito no perímetro urbano da capital, mas muitas outras questões se sobrepõem a essa, como as reais condições de reciclagem de lixo e o futuro dos trabalhadores que dependem dos seus cavalos pangarés para o sustento familiar.


da medida, mas demonstra preocupação em relação às futuras mudanças: “As pessoas não têm estudo, são humildes, e elas têm medo quando se trata de lei, então elas pensam em encaminhar os filhos e esperar um galpão de reciclagem para continuar trabalhando. Mas o galpão não vai comportar todos os trabalhadores. O exemplo é a Vila dos Papeleiros: as pessoas têm que sobreviver, mas não conseguem outro trabalho por falta de estudo, de uma boa aparência, de dinheiro, por preconceito...”.

No lado continental, desinformação O cadastramento de veículos de tração animal e humana está sendo feito por regiões. A primeira foi a do Arquipélago. Agora, estão sendo quantificadas as carroças nas regiões do Orçamento Participativo Partenon, Glória, Cruzeiro, Cristal, Sul, Centro-Sul e Lomba do Pinheiro. Contudo, sem prestar atenção aos informativos oficiais do governo e à margem dos acontecimentos, na avenida Voluntários da Pátria, coração da cidade, encontramos Alex Sandro Santana, 39 anos – oito deles dedicados ao trabalho de carrinheiro e à reciclagem. Ele ignora o 12 de outubro e trabalha, mesmo sendo feriado nacional. Sem ter conhecimento da lei que proibirá o tráfego de carroças e carrinhos na cidade, declara não ter sido procurado por representantes do poder público para tratar de seu futuro, pelo menos não até agora. Morador de rua, consegue, com o carrinho emprestado pelos depósitos de reciclagem da

Arthur Viana

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oi debaixo de chuva e em cima de muito barro que chegamos à Ilha Grande dos Marinheiros, localizada alguns quilômetros após a ponte do Guaíba, no bairro Arquipélago, quase fora da capital. Já no trajeto, o fluxo de carroças aumentava – a ilha é o local que concentra o maior número deste meio de transporte – e de trabalho – em Porto Alegre, e, por isso, é um dos focos de atuação da prefeitura nessa seara. De acordo com levantamento do poder municipal, há 135 carroças, 139 cavalos e 13 carrinhos em atividade na região. Seguimos, então, os galopes, na certeza de que eles nos levariam ao destino desejado: procurávamos aqueles que serão diretamente afetados pela proibição do trânsito de carroças e carrinhos na cidade. Após idas e vindas na estrada esburacada da ilha, encontramos Venâncio Castro, vice-presidente da Ascarpa (Associação dos Carroceiros de Porto Alegre), cujos olhos azuis, límpidos e juvenis, contrastavam com os cabelos brancos e a voz firme. As mãos calejadas, após tantos anos sobre carroças, descansavam encostadas na direção de um miniônibus, dirigido por ele. Aposentado das rédeas, após ter “criado os filhos como carroceiro”, Venâncio critica a forma como a lei surgiu: “Na verdade, isso foi uma lei imposta. E é uma lei municipal. O Código de Trânsito Brasileiro diz que os motoristas têm que respeitar veículos de tração animal. Então, para uma lei dessas ter validade, tem que trocar o código de trânsito”. Ele reclama da atuação dos vereadores no assunto. Para Venâncio, eles “não pensam em pobre”. “Na minha opinião, a carroça não termina. ‘Tá’ faltando união da comunidade para exigir o nosso direito de ir e vir”, completa. A conversa rolava e as águas turvas do Guaíba, aumentadas pela chuva, subiam e ameaçavam as casas ribeirinhas da ilha, onde, no universo das famílias que trabalham com resíduos recicláveis, 77% depende de carroças e carrinhos para exercer a atividade. De acordo com Venâncio, o primeiro passo para a implantação definitiva da lei já foi dado: o cadastramento de carroceiros e carrinheiros. A quantificação das famílias que necessitam das carroças para viver permitirá um planejamento mais amplo sobre alternativas de renda para aqueles que perderem essa forma de sustento. Porém, Venâncio alerta: “Eu acredito que 30% dos recicladores não se cadastraram. A maioria da nossa comunidade trabalha como reciclador ou papeleiro. Eles começaram a se desfazer das carroças e, aqueles que têm carteira de motorista, começaram a comprar carro, caminhonete, Kombi. Se juntaram e duas ou três famílias trabalham em um carro só, porque o veículo automotor vai mais rápido e traz mais material, sem a burocracia da lei da carroça.” Sebastião Melo, autor da medida, ressalta que “dar efetividade à lei é proporcionar alternativas de trabalho e renda, é incentivar a qualificação dos trabalhadores, é dar atenção às famílias de forma plena, propiciando dignidade a estas pessoas”. Para o futuro vice-prefeito, o trabalho, por envolver a vida de inúmeras famílias que aprenderam na carroça ou no carrinho a única forma de subsistência, é delicado, mas necessário. Ele destaca a criação da Cooperativa dos Recicladores, Carroceiros e Papeleiros da Ilha Grande dos Marinheiros, com a qual a prefeitura pretende “promover a inclusão produtiva, através da geração de trabalho e renda, estimulando a emancipação socioeconômica de seus associados”, e a oferta de cursos profissionalizantes aos interessados: “Já estão em andamento cursos específicos e devem ser ampliadas as possibilidades de qualificação para aqueles que assim desejarem, de acordo com as vocações de cada trabalhador.” Venâncio Castro compreende os lados positivos


Paulo Ziegler

região, fazer entre R$20 e R$30 por dia. “Se acabarem com os carrinhos, acabam com os depósitos”, declara. Luis Jefferson da Silva, 33 anos, compartilha a mesma visão. Ele é dono de um depósito de reciclagem há oito anos, no centro de Porto Alegre, próximo à Voluntários da Pátria, e conta que 70% do lixo trabalhado no local é trazido por carrinheiros. “Não tenho nem ideia do que pode acontecer com meu negócio. O que eu ia querer é que a prefeitura me liberasse uns dois caminhões de coleta por dia para eu poder trabalhar. Seria um meio de sobrevivência para mim e para minha família.” Beloni Antônio da Silva também é dono de depósito. Com 52 anos, dedicou 25 deles à profissão. Diz movimentar cerca de cinco toneladas diárias de lixo e é outro que mostra preocupação ao falar do futuro: “Tenho cerca de 20 carrinheiros trabalhando comigo. Claro que a lei vai afetar, vai ficar ruim.”

O caminho do lixo Um ponto comum aos envolvidos no processo é a crítica ao DMLU (Departamento Municipal de Limpeza Urbana). Luis Jefferson diz que cobram R$10 por dia para coletar o lixo em frente ao seu depósito: “Por isso eu sou obrigado a botar em outro lugar, escondido...”. Mas garante que é correto no despacho do lixo: “Eu tenho que dar exemplo”. Já Venâncio Castro, além da crítica sobre os rumos dados ao lixo pelo DMLU, diz que é praxe entre os carroceiros a parceria com condomínios: “Eles [DMLU] contratam uma empresa alegando que é para recolher o lixo orgânico, mas eles recolhem tudo [seco e orgânico]. Aí [o lixo reciclável] vai para um aterro sanitário e é enterrado lá. Isso está tirando o trabalho de muitas pessoas que necessitam do material reciclável para sobreviver. Os caminhões contratados pelo DMLU não cumprem com o dever, aí os condutores de carroça e carrinho conquistam o ponto, conquistam condomínios. Tu tira o lixo e deixa limpinho, aí não perde mais o ponto. Depois o DMLU nos chama de ‘ladrão de lixo’.” É como se carroças e carrinhos agissem no vácuo do poder público: onde o DMLU falha, eles aparecem, levando o lixo para os depósitos de reciclagem e tirando daí o seu sustento. O futuro vice-prefeito Sebastião Melo crê que “a responsabilidade pela coleta de lixo na cidade é do poder público”, mas que o cidadão também deve assumir sua parcela de responsabilidade. Para ele, sem a conscientização e educação ambiental, de nada adiantará as melhorias e a implementação de sistemas mais avançados na área, como a utilização de contêineres para a coleta do lixo.

O trânsito, os animais e o futuro dos carroceiros É em nome do trânsito de carros e também da saúde dos animais que a prefeitura de Porto Alegre investiu no plano de retirar de circulação carrinhos e carroças. Segundo Sebastião Melo, participaram da feitura da lei “representantes de ONGs e cidadãos atuantes em diversas áreas, como meio-ambiente, proteção animal, assistência social, mobilidade urbana e sociedade civil em geral”, acrescentando que o debate estendeu-se aos trabalhadores envolvidos no recolhimento e reciclagem de resíduos. Para Venâncio, a posição das ONGs protetoras de animais não condiz com a realidade: “Eu não vou dizer que não existe maus-tratos, isso existe até na família, com homem batendo em mulher... Mas essas ONGs ficam ‘xaropeando’. Eles simplesmente olham uma carroça com material reciclável, que é um material que dá volume, mas não dá peso, e para eles isso já é maus-tratos. Pergunta para as ONGs quando eles trouxeram um veterinário aqui para orientar os carroceiros, para dizer qual é o remédio que se dá, como cuidar do animal. Isso não tem. É muito fácil criticar sem dar oportunidade”. A proposta da prefeitura, de oferecer cursos profissionalizantes aos carroceiros e carrinheiros, para que assim eles tenham êxito na busca por outra forma de sustento, é vista de diferentes formas. Há quem crie esperanças; há quem desconfie das promessas. Enquanto Venâncio vê o lado positivo da medida, dizen-

do que “nós fizemos, aqui na ilha, um curso de cooperativismo, e o governo municipal integrou os filhos dos catadores em cursos”, os carrinheiros com os quais conversamos sequer foram procurados por agentes da prefeitura. Não foram consultados antes da criação do novo estatuto e muitos ainda não foram – e talvez não venham a ser – ouvidos pelo poder público. Larri Jorge da Silva, 64 anos, trabalha com a coleta e reciclagem de lixo nas ruas da cidade e segue sua rotina normalmente. Mesmo faltando-lhe todos os dentes da boca, o sorriso é fácil, mas o rosto se contrai em preocupação quando o assunto é seu futuro. Como outros colegas de profissão, declara não ter conhecimento da nova lei que o proibirá de seguir recolhendo lixo reciclável com o carrinho. Porém, ele prevê dificuldades para as autoridades que tentarem acabar com a categoria: “Eles não conseguem nos tirar porque somos nós que carregamos o lixo e o colocamos no lugar certo.” Sobre a justificativa da prefeitura de proporcionar cursos aos carroceiros, Larri é direto: “Eu estou com 64 anos, vou pegar curso para quê? Para me aposentar? Eu não tenho estudo. Trabalho no papel e vou continuar no papel.”


PornôClown

o mundo é bão

SEXO COM A CIDADE Uma visita ao mundo do pós-pornô texto e reportagem Giberto Sena

É madrugada no viaduto do Minhocão, centro de São Paulo. A maior cidade do País dorme enquanto ela se entrega às ruas centrais em busca de prazer. Caminha nua na escuridão da noite, sedenta para experimentar tudo. A escadaria da Catedral da Sé vira cama, monumentos viram amantes, garis e moradores de rua são coadjuvantes. A arquitetura do centro urbano excita. O objetivo é único: fazer amor com a cidade.

É

assim, na rua e à noite, que inicia o curta pós-pornográfico Amor com a Cidade, um registro de uma experimentação sexual com as cidades de São Paulo e Porto Alegre. “A galera curtiu muito o filme porque ele não está dentro de nenhuma categoria do pornô tradicional, é uma coisa diferente, então a galera vê com estranhamento e pensa ‘nossa, nunca vi uma cidade erotizada’”, é desta forma que a Doutora em Psicologia Clínica, Juliana Leal Dorneles, membro do coletivo pós-pornô, Pornô Clown, e única atriz do curta Amor com a Cidade, define como foi a reação do público ao assistir ao filme. A produção começou a ser pensada em abril de 2011, nas discussões sobre pós- pornografia do grupo que Juliana é integrante. Participantes de um grupo de mulheres que discutia questões de gênero e sexualidade resolveram montar um grupo a parte para pensar e tentar produzir um conteúdo próprio, já que todos integrantes trabalhavam com cinema, teatro e arte visual. Foi cerca de seis meses trocando vídeos, impressões, curiosidades, até chegar a um roteiro em que o cenário era o Centro da cidade de São Paulo. Era a experimentação do sexo com a exploração da arquitetura urbana. A escolha pelos locais para filmagem deu-se, segundo Juliana, pelo gosto do grupo por arte urbana, arquitetura e por pontos marcantes da cidade que fossem instigantes para o público. No roteiro: o Minhocão, o viaduto Santa Ifigênia, a Praça e a Catedral da Sé. “No início tudo era meio tímido, a poluição e a fuligem davam um certo nojo, havia ainda algum pudor. Mas à medida que

adentramos nos confins do Centro e num bar onde até fomos expulsos, a cidade foi nos convidando para mais imagens de si. Era quase ela, agora, que era uma densa exibicionista que se mostrava e pedia nosso desejo.” A equipe saiu para as filmagens em uma quinta-feira à noite. Ninguém do poder público foi avisado das cenas eróticas em pleno Centro da capital paulista. Juliana conta que as pessoas que passavam na hora em que as cenas eram gravadas se divertiam e respeitavam a atriz: “A gente não avisou ninguém, mas tinha uns passantes que ficavam olhando. Um cara parou o carro, desceu e ficou ali parado assistindo a gravação. As pessoas estavam se divertindo e foram super respeitosas. Teve um gari que estava trabalhando durante a madrugada e participou de uma cena comigo; teve também um morador de rua que sentou ao meu lado e fez um tour pelo meu corpo, ele colocou a mão na minha barriga e disse ‘aqui é a América’, depois foi descendo e falando ‘aqui é a África e aqui é o Brasil!’ A experiência e as imagens em São Paulo foram incríveis. Foi tão inspirador que resolvi fazer em Porto Alegre.” Na capital gaúcha o roteiro de Amor com a Cidade incluía a escadaria da Rua Duque de Caxias, o Viaduto da Avenida Borges de Medeiros, o bar Tutti Giorni, a Praça da Matriz, o Gasômetro e o Mercado Público. Em Porto Alegre aconteceu a única intervenção policial: um brigadiano abordou a equipe no momento em que eles filmavam na Praça da Matriz. Como não houve nenhuma denúncia da população a respeito das filmagens ou reclamação de atentado ao pudor, o policial apenas quis saber o que estava acontecendo e foi embora.

O movimento pós-pornô e a arte As produções pós-pornôs surgiram nos anos 1990 pelo trabalho da americana Annie Sprinkle. Insatisfeita com o mercado pornográfico voltado somente para o homem, Annie começou a dirigir e a produzir seus próprios filmes. Doutora em Sexualidade, Annie, a primeira estrela pornô com PhD, também é responsável por reali-


PornôClown Para saber mais sobre o movimento Pós-pornô, comece sua pesquisa pelo site da Annie Springle:

zar exibições de filmes pornográficos em centros de arte, universidades e galerias, trazendo à tona o debate entre pornografia e arte. Hoje, a mãe do pós-pornô se dedica a proposta do ecossexo, ecologia sexual e o tesão pelo planeta, pelo cosmos. A editora do Amor com a Cidade, Luiza Só, também destaca que o movimento pós-pornô no Brasil surgiu de um esgotamento da fórmula do pornô tradicional: “O público estava sedento por outra visão da sexualidade, é tão pouco aquele sexo tradicional do filme pornô. Tem gente que gosta, mas estava de saco cheio, querendo mais. As pessoas assistem ao Amor com a Cidade e falam que gostam muito, que é possível pensar a sexualidade de outra maneira em vez de olhar para a sexualidade de forma mecânica.” A psicóloga e também integrante do grupo Pornô Clown, Fabiane Morais Borges, publicou um artigo na revista eletrônica NaBorda (especializada em arte e experimentação artística) dizendo que o movimento pós-pornô busca a criação de alternativas para o padrão pornográfico existente, que é dirigido para o público masculino. Para Fabiane, as feministas mais radicais acreditam que o pós-pornô é um movimento essencialmente feminista, já que são as mulheres as que mais militam na área. Segundo elas, os homens são bem mais servidos com a cultura sexual vista nos filmes pornográficos atuais, nos quais as mulheres ainda são tidas como corpos que servem aos desejos masculinos. Isso ocorre até mesmo no caso dos filmes lésbicos da indústria pornográfica, que mostram o tesão das lésbicas correspondendo ao padrão do desejo masculino. Esse padrão pornográfico dirigido às necessidades do homem também foi tema dos debates sobre pós-pornô do grupo de Juliana Dorneles: “As mulheres não consomem pornografia tradicional e algumas ficam muito incomodadas porque as cenas são feitas para o olhar do homem e não para o olhar da mulher. Aí tu começa a ver que tu não sabe o que te agradaria, o que excitaria o olhar da mulher. Aí pra onde tu vai? Tu vai ter que descobrir, vai fazendo experimentação. É interessante esse campo da mulher fazendo

pornografia porque se trata de uma descoberta. A mulher não vê a pornografia como um elemento masturbatório tão importante quanto o homem vê. As mulheres pensam menos na gozada e mais num uso artístico, poético, divertido da pornografia.” Outra característica do pós-pornô é a transformação da sexualidade em uma criação artística. A atriz Juliana Dorneles acredita que desprendendo a pornografia da tara para trabalhar a experimentação acaba-se abrindo campo para a arte: “São dois campos que em algum momento podem se unir. Talvez a arte precise se sujar um pouco.” Juliana acredita que os atores não se aproximam das produções pornográficas por considerarem o pornô lixo cultural: “Eles não entendem isso como uma produção cultural válida e é isso que os pesquisadores de pós-pornô estão discutindo: a pornografia como uma produção cultural válida porque também se trabalha com imagem, som, interpretação, atitude.” Para Luiza Só, o movimento de inclusão da performance na arte desde os anos 1960, 1970 é o que abre espaço para a pornografia no campo artístico. A editora considera que o pós-pornô “é a exploração da sexualidade a partir da arte”. Com o movimento pós-pornô o feminismo toma lugar no universo da pornografia e faz com que a sexualidade da mulher deixe de ser explorada somente para o consumo masculino.

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