Bastião 20

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EDIÇÃO 20 // ANO 3 // 2014

VILA DIQUE HELENA IGNEZ ESCOLA DO FUNK

bastiao.net


COMO O BASTIÃO SE SUSTENTA?

O legado: receita pronta, preparo indefinido, mal digerido. Cozinhando para poucos o que é de muitos. www.facebook.com/ fperretto

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NA CAPA fEITA PELO LORRAN SIQUEIRA TEMOS DUAS “perspectivas”. EM PRETO, VEMOS A COPA COMO A TELEVISÃO NOS MOSTROU; em vermelho, vemos o “backstage”, uma perspectiva na visão daquele que perdeu sua casa, questionou e efrentou a truculência POLICIAL ao protestar.” www.facebook.com/ LORRAN.SIQUEIRA

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// EDITORIAL Era até bom, não vamos mentir: ter em quem por a culpa alivia a alma, tira o peso insuportável da responsabilidade dos ombros. Se fôssemos coerentes o tempo todo, não nos permitiríamos sequer sorrir ao andar por ruas tão desiguais como as de Porto Alegre ou de qualquer cidade brasileira. Durante meses, no entanto, pudemos dizer que não éramos nós: era a FIFA. Era também o governo, em todas as suas esferas, que escolheram o lado de lá e defenderam interesses comerciais a todo custo. Passaram por cima de leis, de moradias e, principalmente, do povo. Afinal, a Copa era um bom negócio, nada faria sentido. e o que importa são A Copa passou, a FIFA voltou pra casa, levando os bons negócios. E tudo e deixando nada. Nós ficamos aqui, entre como isso nos aliviava remoções, obras inacabadas e arenas-teatro. Pela a consciência: era culpa lógica, agora poderíamos nos tranquilizar: sem o deles mesmo! Perfeito, estado de exceção, haveria respeito às leis, à livre não fosse trágico. Eles manifestação, nenhuma família seria indevidamente removeram, reprimiram, removida, os interesses comerciais de construtoras prenderam, bateram, não seriam tratados como prioridade e nem seriam mataram. Entretanto, é as empreiteiras as responsáveis pelo planejamento claro, lucraram – como urbano da cidade. nunca antes, sem lucro Quem dera. Muito pelo contrário, famílias continuarão sendo expulsas de seus lares e árvores seguirão sendo derrubadas em nome do transporte dos veículos individuais. A prefeitura seguirá pintando calçadas de vermelho e chamando de ciclovia – sendo que o que ela constrói, na verdade, são zonas de conflito entre pedestres e ciclistas, deixando os carros seguirem impunes por suas pistas recém duplicadas. O futebol, nosso esporte por essência, seguirá seu processo de elitização, com arenas caras no ingresso e pobres no espírito, excludentes, com camarotes lotados e cadeiras vazias – arquibancadas sequer existem mais. A Copa não nos livrou do mal, não foi boa

Não é a FIFA, somos nós

para ninguém além dos privilegiados que fizeram parte do espetáculo. A FIFA não levou nada além de dinheiro; nossos problemas seguem nos encarando, ainda maiores e mais ameaçadores. A justiça, a política e a mídia tradicional seguirão servindo aos poderosos. Os alternativos seguirão sua trajetória marginal, independentes até a morte. A polícia seguirá reprimindo os movimentos sociais. Nossa dita jovem democracia seguirá funcionando apenas para os que não a contestam. Está tudo aqui ainda, nos agredindo diariamente, e a FIFA já está bem longe. Ainda que seja ela e tudo o que ela representa – a subserviência do público frente ao privado, a concentração de renda, a elitização – que nos atacam, a culpa não é exclusiva deles. O legado do nosso silêncio será sempre nefasto. Nossos demônios estão em nós, mesmo que a mordaça seja deles. E cabe só a nós combatê-los. 3


Veja Bem

HELENA IGNEZ Redação André Lacasi Arthur Viana Carlos Machado Cíntia Warmling Douglas Freitas Gabriel Rizzo Hoewell Luiza Müller Nádia Alibio Sergio Trentini

Lite Ra Tura

Especial

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foto

Projeto gráfico Egberto Esmério Sauê Ferlauto André Lacasi Nádia Alibio

Produção gráfica Gilberto Sena

Revisão Lisiane Andriolli Danieli

Capa Lorran Siqueira

ENTRE O ChÃO BATIDO E O ASFALTO

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DIaGRAMAÇÃO

Li vrar te

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MiniR repor ta gens

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Reportagem

ESCOLA DO FUNK

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Arte André Lacasi Nádia Alibio Ramiro Simch

Relacionamento Luiza Müller Samantha Dienfenthaeler

Fotografia André Lacasi Sergio Trentini

Colaboradores Camila Maccari Carmela Caldart Felipe Perretto Júlia Burg Juliano Zarembski Leopoldo Silva Luana Casagranda PH Lange Rafaela da Rocha

Comercial 51 9166.1799 // 51 3311.1025 Praça Júlio de Castilhos, 74/152 Porto Alegre – RS – Brasil

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//CARMELA CALDART



// VEJA BEM Helena ignez

Helena Ignez: musa, protagonista, roteirista e diretora das páginas mais revolucionárias da cinematografia nacional.

A mulher de todos C

om as luzes acesas, no palco do cinema vazio, iniciamos a charla com Helena. “Hoje é para falar de ti, não do Cinema Marginal ou do Cinema Novo, de Glauber, Julio ou Rogério”, afirmei. Puro amadorismo e pretensão em uma mesma frase – egocentrismo de jornalista. Caminhando de volta pra casa após os 30 minutos de entrevista, que viraram uma hora, a conclusão foi que Helena é, justamente, tudo isso: a essência de seus companheiros e de sua obra, unificadora e catalizadora da criatividade de grandes gênios. Ex-mulher de Glauber Rocha, Júlio Bressane e viúva de Rogério Sganzerla, três dos maiores cineastas do Brasil, ela: musa, protagonista, roteirista e diretora das páginas mais revolucionárias da cinematografia nacional. Nascida em Salvador, Bahia, em maio de 1942, Helena enfrentou o machismo, a ditadura militar, as crises financeiras e resistiu para, hoje, ser referência e ídolo para todos aqueles envolvidos com a dramaturgia. Com Glauber Rocha, casou-se e teve uma filha, participando de momentos importantes do Cinema Novo. Foi companheira de Júlio Bressane e, anos mais tarde, casou-se com Rogério Sgazerla, tendo dois filhos e sendo peça importantíssima para o Cinema Marginal. Na pele de Ângela Carne e Osso, em A mulher de todos, ou Sônia Silk, de Copacabana mon amour, Helena Ignez inaugurou um novo estilo de interpretação feminina, talvez sem paralelos nos dias de hoje.

// Entrevista André Araujo & Luiza Müller // Fotos nádia alibio

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REVISTA BASTIÃO // AGOSTO OUTUBRO2014 2013

HELENA Como Sônia Silk em Copacabana on Amour (1970)

Sem querer, nasce o Cinema Novo

O Cinema Novo e o Cinema Marginal foram movimentos disruptivos. O primeiro, surgido no início dos anos 1960 e liderado por Glauber, trazia a estética da fome, “a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial”, nas palavras do cineasta no famoso manifesto que traduzia o movimento. Os filmes traziam à tona um inventário de questões sociais, promovendo uma verdadeira “redescoberta do Brasil”. Já o Cinema Marginal, nascido no seio da Ditadura Militar e sua censura, impossibilitado de qualquer discurso explícito de esquerda, adotou a estética do avacalho. Pois: “Quando a gente não pode fazer nada, a gente acavalha, avacalha e se esculhamba”, nas palavras do Bandido da Luz Vermelha, personagem mais famoso de Rogério Sganzerla que, junto de Júlio Bressane, conduziu criativamente o movimento marginal.

Eu vinha de um tipo de família, pode-se dizer, de classe média alta. Se as diferenças sociais são imensas hoje na Bahia, naquela época eram ainda maiores. Eu estudei Direito e Teatro ao mesmo tempo, não larguei um pelo outro. E você tem que ver que em Salvador, em 1957, não existia teatro. Na faculdade de Direito, logo na primeira semana, eu encontrei Glauber, que também era aluno. Ele já tinha um ano na escola, mas que havia perdido por falta. Foi um encontro muito forte... logo à primeira vista. Uma relação muito poderosa de compreensão, de solidariedade. E essa relação permaneceu sempre muito intensa. Um ano depois, eu estava produzindo o primeiro filme de Glauber e meu. Começando o Cinema Novo. Quer dizer: sem querer, dentro de uma coisa importantíssima, um movimento de cinema transformador. Você me pergunta se eu levei Glauber para o teatro. Também não é assim. Porque Glauber tinha dirigido uma peça (Jogralescas) com a irmã dele. E Glauber era um ator. Mas tudo isso muito menino, com 17 ou 18 anos. Ele nunca foi aluno de teatro, era ouvinte da escola. Então, se alguém disser que essa influência dentro da escola de teatro foi minha, talvez... mas

acredito que não.

Glauber não era uma pessoa qualquer

Glauber era muito impressionante né... não era uma pessoa qualquer. A efervescência vinha dele. Ele tinha um grupo de pessoas, mas aquele grupo não existiria sem ele; era completamente líder e era escritor também. Glauber queria fazer o primeiro filme, que foi o Pátio (1959). A mãe dele deu força; deu, inclusive, uma câmera, coisa que não era barata. Deu a ele uma 35mm e eu arrumei um dinheiro, graças a um prêmio que eu tinha tido como Glamour Girl, num concurso desses sociais de beleza. O prêmio era um conjunto, uma joia muito bonita. Fui agradecer a quem deu, falei de Glauber, desse desejo que a gente tinha de fazer um filme. Ele achou legal, e, milionário, dono de banco, me deu um cheque. Com esse cheque a gente fez o filme.

Ser atriz é querer apanhar na vida

Nesse período da Bahia (anos 1950 e 1960), ser atriz era querer apanhar na vida. Era absurdo... As pessoas não entendiam porque eu fui ser atriz. Só que eu fui e ponto e acabou, e deu certo. Eu fiz de cara uma peça belíssima em Salvador. Era uma coisa, ao mesmo tempo, progressista e boni-

HELENA Como Sônia Silk em Copacabana Mon Amour (1970)


// MINI REPORTAGEM – LOREM // VEJA BEM HELENA IPSUM IGNEZ

ta. Mas, por outro lado, era uma profissão cheia de preconceitos. Tão grave, tão grave que... eu não pude ficar com a minha filha quando eu me separei porque o juíz não achou que era possível uma mãe, atriz, jovem de 23 anos, educar uma filha, pois a criança precisaria de algo mais estável e, por isso, ficou com os avós. Como diretora era a mesma coisa. O que eu aprendi em cinema, eu aprendi como atriz, em set, lá dentro. O ator, quando é criador, participa. No teatro, na dramaturgia, no cinema, ele participa da concepção geral, está ligado a esse processo. Claro que, dentro do cinema comercial, que é extremamente materialista e ligado ao produto como mercadoria, você convida o ator, paga ele e acabou. Mas no cinema criativo, nesse cinema que fiz e que participei com Rogério e Glauber, era um cinema em que você tinha uma oportunidade enorme, sabe? O ator é imensamente criador.

“Se fizéssemos essa volta em direção à cultura indígena, faríamos uma volta em direção à nossa autoestima”

Força feminina e política

As personagens Sônia Silk (de Copacabana mon amour) e a Ângela Carne e Osso (de A mulher de todos) foram algo muito vital... Eu nem via como força feminina sabe? Eu via como uma força mesmo. Uma força política. Claro que é uma força feminina, por-

que ali existe um erotismo, mas não via assim, nesse sentido, via uma constituição, um corpo político muito grande, anárquico e, ao mesmo tempo, lisérgico também – porque ele é louco.

Eu sou gay

Essa eu estava com vontade de dizer: Luz nas trevas é um filme gay, e dizer isso é muito louco porque acho que o Ney Matogrosso não gostaria nenhum pouco de dizer. Porque tudo, menos associar o machismo ao bandido. Um herói macho, não era isso. Tinha um medo horrível que isso acontecesse. Um cara cruel, com essa coisa masculina. E aí entrei com essa do gay. Agora, o meu último filme, O poder dos afetos, é um filme gay. Tem um beijo belíssimo do Ney. Que é um escândalo, é belíssimo. O Ney consegue estar melhor que estava no Luz nas trevas. É lindo, lindo, lindo, lindo. Esse poderia ser também. Mas acho que gay está em todo lugar. Eu sou gay. Eu queria romper com o feminino. Essas coisas que acontecem nas entrevistas e etc., que a maioria dos atores, as celebridades detestam. Porque é uma espécie de psicanálise, autoconhecimento. Você ouvindo o que o outro pergunta sobre você. Eu observei agora, a partir da minha brincadeira de dizer que eu era gay, que

o que eu queria realmente com esse personagem era superar o feminino tradicional, sabe? Não percam isso. Eles eram muito masculinos, os personagens que interpertei, tinham uma independência totalmente masculina. E usavam o masculino como mulher, contra o masculino, subjugando os homens, aquela coisa d’A mulher de todos, um personagem estranhíssimo mesmo. E ele rende até hoje. Acho que elas quebraram sua própria vida. São personagens de ruptura, mas não são psicológicas. Acho que a lição delas é de arte mesmo. São personagens trágicos também. Todos os dois terminam mal, com grande euforia, alegria, mas sofrem horrivelmente por serem como são. São personagens simbólicos, significam muita coisa.

Tem filmes que são vaiados simplesmente por serem bons

A arte é engajada. O que a gente viu de bom e que gosta que não tenha certo tipo de engajamento? Mas não esse engajamento tradicional, partidário – isso mata, destrói, pode ser [o teatrólogo Bertold] Brecht , mas se ele tiver uma obrigação de fazer uma peça para o partido, vai ser bem pior que qualquer outra. Acho que não.

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REVISTA BASTIÃO // AGOSTO OUTUBRO2014 2013 Como ENA HEL a Carne l A Ânge sso em de eO her Mul (1969) os tod

Televisão é muito mecânico, muito rápido

Mas a vida é política, o homem é político, não há como a gente estar afastado do social. E se há, eu não gosto tanto. Se a coisa é puramente estética já não me interessa muito. A estética agride pra caramba, provoca vaia. Tem filmes que são vaiados simplesmente por serem bons. A estética tem um fator social fortíssimo, mas ela é política. Acaba sendo política. Acredito que em alguns lugares o filme pode até provocar uma reação. Mas não é esse cinema que eu procuro. Pelo contrário, gosto de pegar o espectador pela mão, como foi no Luz nas trevas. Não gosto de abandonar na incompreensão, de jeito algum. Eu não quero me afastar do público e não quero que a estética e nenhuma bandeira política ou social possa afastá-lo do que eu quero participar.

A televisão só ilustra, não tem nada mais a ver com arte. Não tenho nada contra, desde que não prejudique. Por exemplo, no caso da minha filha, que agora tá fazendo uma minissérie, praticamente uma estreia como protagonista na televisão. Vai ser a primeira dela, ela já tem 37 anos. Ela tem uma formação básica, extraordinária com teatro. Então, acho que ela não vai ser prejudicada. Agora, o ator que entra lá para fazer novela e fazer uma carreira está sendo muito prejudicado, ele tem que saber que aquilo é uma indústria. Que ele vai ali pra ganhar, pra pagar os eletrodomésticos dele. E tá cada vez pagando pior, né? No caso da Globo tá uma coisa séria, só ganham as grandes figuras. Então, essas minisséries, programas especiais, estão bem melhores, pagam melhor, respeitam o ator. Acho que se pode fazer televisão, não tem problema. Eu não tinha interesse. Fiz algumas minisséries e tal. Comecei na televisão e depois eu tava fazendo uma novela

com uma figura maravilhosa, um grande diretor, Walter Avancini. Ao mesmo tempo estava namorando com Rogério e ele me chamou para um festival. Acho que era aqui por Porto Alegre. Me desliguei completamente da história da televisão, saí, e quando voltei fui suspensa. Eu vou ficar nessa pra tirar minha liberdade? Não é isso que eu quero. Não me interessa ser celebridade, aí fui me afastando cada vez mais. Televisão é muito mecânico, muito rápido. Todos levam seus sais para chorar, né? Um ator não é isso, gente. Ser um ator de verdade é preciso uma dedicação enorme, e a televisão não permite isso. Você precisa fazer no tapa, no jeito. Vai ficando cada vez menos apto a encarar o ser humano numa globalidade e passar essa variedade toda que a gente tem dentro da gente, contradições e tudo mais. Fica tudo muito limitado. Por isso acho que prejudica.

Não haveria uma SÔnia Silk na Globo, então?

Tá difícil, hein. Exatamente naquela época que eu não quis entrar pra Globo. Apesar de ter ato-


// VEJA BEM HELENA IGNEZ NA ComoO HELE em t Jane luz Jane a d ido band ha (1968) l verme

“Melhor interrupção possível”, respondemos.

Crises de ateísmo ou moda materialista

res maravilhosos, mas a televisão como escola eu acho péssima. Pouco antes de findar a entrevista, o Professor Décio Andriotti invade o teatro cantando: “Passei o resto da noite a chamar, Helena, Helena, vem me consolar!” Helena, sorrindo, agradece: “Obrigada, Décio. A voz está ótima, viu?” “Me desculpem a interrupção.”, despede-se o professor.

Hoje, eu digo, sou ateia. Mas aí comecei a perguntar, me questionar porque isso do ateia. O que significava eu dizer isso, sabe? E achei que seria mesmo uma burrice da minha parte porque uma parte da minha sensibilidade estava sendo embotada para negar essa existência, não de Deus, mas de uma sensibilidade. Eu vi uma definição maravilhosa. Tô lendo muito, com influências benéficas do Eduardo Viveiro de Castro, da antropologia dele, que traz muito forte esse pensamento indígena. E com isso eu fui me adequando mais. Então, foi uma crise existencial forte do apagar dessa forma brutal após a morte. Não sei se brutal ou não, mas não deixa de ser. Então, acho que existe um outro

tipo de universo de relações em que tudo é sensível e tudo é parte de um todo. Todo facetado, todo quebrado. Existe uma sensibilidade muito grande e nós não somos realmente os protagonistas. Nós somos um deles. Todos somos protagonistas. É que virou moda, né? Assim como houve o psicodelismo, o desbunde. Agora, também, a moda é o oposto. Uma moda materialista. De negação. Se eu for andar com as minhas amigas e for religiosa perco um pouco elas, né? Tenho que estar junto. Caetano faz um pouco a cabeça das pessoas. Ontem eu vi um desastre nesse sentido. Uma crítica do Daniel Galera, do Globo, em que ele diz: “Einstein não acredita em Deus, como eu”. Gente, as pessoas são muito absurdas. Einstein foi uma figura estranhíssima. Vocês não podem dizer nada se ele acreditava ou não. Aquilo era louco e místico, doido de pedra. E, pra variar, ainda tinha o Bhagavad Gita como livro de cabeceira. Quer dizer: altamente contraditório.

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//LITERATURA

costuro mantas com o fio do pensamento visto ideias tortas que deram certo cubro a pele numa colcha de lembranças teço sentimentos e me cubro inteira de transparências

eu quero nunca ser parte alguma de coisa alguma quero ser nada antes de causar quero sentir estranhamento que minha prepotência seja sempre de ausência e nunca de excesso

//CAMILA MACCARI 13


REVISTA BASTIテグ // ABRIL AGOSTO 2014 2014

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// FOTO LEOPOLDO SILVA

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REVISTA BASTIテグ // ABRIL 2014

// Texto e reportagem Jテコlia Burg & Juliano Zarembski // Fotos Juliano Zarembski

Entre o chテ」o batido e o asfalto


// ESPECIAL

Quase 6,5 km separam a Vila Dique do Conjunto Habitacional Porto Novo. A primeira se estende por uma longa área de chão batido que, quando chove, acumula barro e poças d’água. O segundo, um loteamento de 21 hectares, possui ruas pavimentadas, praça e calçadas. Mato, lixo e entulho invadem os terrenos abandonados na Dique, enquanto o concreto toma conta do Porto Novo. Carros, motos e caminhões, que circulam lentamente pelas ruas sem semáforos nem faixas de pedestre do loteamento, cedem espaço às carroças na Dique. Em comum aos dois lugares, localizados na Zona Norte de Porto Alegre, o barulho esporádico dos aviões que decolam do aeroporto Salgado Filho. Quem vê, não diz, mas Vila Dique e Porto Novo abrigam uma só comunidade.

Composta por 1.476 famílias, a comunidade, que existe há cerca de 30 anos, se vê, agora, dividida. Desde outubro de 2009, o Departamento Municipal de Habitação transfere as famílias da Vila Dique, situada ao lado do aeroporto, para o novo loteamento, construído na Avenida Bernardino Silveira Amorim, 1.915, no bairro Rubem Berta. O reassentamento tinha como objetivo dar espaço às obras de ampliação do Salgado Filho, previstas para a Copa do Mundo de 2014 (que não ficaram prontas). A realocação deveria ter sido concluída em agosto de 2010, mas, passados quatro anos do prazo limite, a transferência dos moradores está longe de acabar. À primeira vista, tudo parece em ordem no Conjunto Habitacional Porto Novo. Apesar de simples, as ruas são amplas e asfaltadas, a água é tratada e a energia elétrica, regularizada. As casas, padronizadas, aparentam bom estado. Há uma creche, um posto de saúde, uma escola em construção e uma praça com quadra de futebol. No entanto, mesmo sendo novo, o loteamento já apresenta problemas. Os esgotos, por exemplo, ainda que cus-

tem R$ 12,00 por mês aos moradores, entopem com frequência. Em uma tarde ensolarada de sábado, mateando em frente sua casa, a auxiliar de serviços gerais Juliana da Silva, de 33 anos, logo aponta sua principal queixa em relação ao Conjunto Porto Novo, onde mora desde março de 2010: “A outra casa [na Vila Dique] era maior. Tinha seis cômodos”. A nova residência possui dois andares e cinco cômodos: no andar de cima, dois quartos; no de baixo, banheiro, cozinha e sala, sendo os dois últimos unidos. Em pouco tempo de conversa, a mãe e o marido de Juliana, percebendo a movimentação, juntam-se à moça para também relatar suas insatisfações com a mudança e com o novo local. “Eu não quis ver eles demolindo. Me deu um desespero” Maria Zeneida da Silva, aposentada de 63 anos e mãe de Juliana, morava havia mais de 30 anos na Vila Dique. Apegada ao lugar onde viveu por tanto tempo, ela diz que não conseguiu acompanhar a derrubada de sua antiga casa. “Eu não quis ver eles demolindo. Me deu um desespero.” Ela

reclama que já teve de conviver por uma semana com poças d’água malcheirosas em frente de sua residência, provenientes de esgoto entupido, até o problema ser resolvido pela prefeitura. Outra reclamação da aposentada são as parcelas cobradas pelas novas moradias, as quais ela, assim como outros moradores, já nem paga mais. São prestações de aproximadamente R$ 25,00 mensais, previstas para se estenderem por 35 anos. “Se eu quiser botar um neto aqui pra dentro, fica o neto pagando a mesma coisa; e eles não te dão um papel, boleto, nada”, reclama. O pedreiro e marido de Juliana, Francis Rodrigo Notário da Silva, de 34 anos, tenta driblar a insatisfação usando o bom humor. Ele critica a maneira como os detalhes do loteamento foram pensados. Exatamente em frente ao portão da casa da família, por exemplo, há um poste de energia elétrica. Ele, que utiliza o carro diariamente, precisa manobrar mais do que seria necessário habitualmente para poder sair com o veículo. Francis diz ter sido informado de que a remoção do poste custaria R$ 3 mil e que deveria ser custeada pelos moradores da casa. 17


REVISTA BASTIÃO // AGOSTO ABRIL 2014 2014

Assim como sua esposa, ele se mostra insatisfeito com o tamanho da nova residência. Com propriedade no assunto, adquirida pelos anos trabalhando em construção civil, ele diz também que as unidades construídas pelo Departamento Municipal de Habitação (Demhab) são malfeitas, pois já apresentam goteiras e paredes rachadas. “A única coisa boa aqui é a luz e a água. A luz, antes [na Vila Dique], era gato”, pondera. Entre os moradores da nova Dique – como informalmente é chamado o Conjunto Porto Novo –, no entanto, há quem não tenha reclamações a fazer. O casal Anaurelino dos Santos e Maria Nascimento Ortiz, de 68 e 66 anos, respectivamente, mostram-se satisfeitos com a nova vida. Eles apontam as vantagens de viver no loteamento: consideram a nova

casa melhor que a antiga e dizem que o local, diferente da Vila Dique, é limpo e tranquilo, permitindo ao neto de 7 anos, que vive com eles, brincar na rua. “É outra vida”, conclui Maria. Em três décadas, o crescimento acelerado da Vila Dique Enedina Durão Espíndola de Oliveira, de 40 anos, compartilha da opinião de Anaurelino e de Maria. Presidente da extinta Associação Amigos e Moradores da Vila Dique, a dona de casa diz que lutou pelo reassentamento, intermediando os interesses da comunidade com as propostas do Demhab. Para ela, que sempre sonhou em dar uma vida melhor para a família, a mudança trouxe maior qualidade de vida. Na Dique, Enedina perdeu o pai, vítima de atropelamen-

Enedina com os filhos na sala de casa


// MINI REPORTAGEM – LOREM // ESPECIAL IPSUM

Poste foi colocado exatamente em frente à garagem da casa do pedreiro Francis

to, e uma filha, com 8 meses de idade, por conta de problemas respiratórios desencadeados pelas más condições de moradia. “Eu também quase perdi essa daqui com 2 anos de idade por causa da leptospirose”, acrescenta, referindo-se à filha de 12 anos, sentada ao seu lado no sofá da casa. Amamentando o filho caçula, ainda bebê de colo, Enedina relembra a infância na Vila Dique. Quando se mudou para o local, na década de 1980, havia somente duas famílias vizinhas. Seu pai, acompanhado pela esposa e pelos filhos, migrou de Porto Xavier, cidade a 562 km de Porto Alegre. Ao saber que terras ao redor do aeroporto, no bairro São João, começavam a ser invadidas, construiu uma casa e se tornou um dos primeiros moradores da Dique. Enedina conta que a comunidade cresceu rapidamente: “Em torno de um ano, já tinham umas 600, 700 famílias.” A região atraía pessoas do interior do estado e de bairros

vizinhos, como Vila Floresta, Sarandi e Nazaré. “Foi acumulando gente, que buscava mais gente. Chegou a um limite de aproximadamente 2 mil famílias”, ela recorda. Com o crescimento acelerado, a Dique passou a ser um local de moradia irregular. Parte da região ocupada era da prefeitura, parte era propriedade de um fazendeiro. No início do povoamento, não havia luz nem água, conta Enedina. Buscava-se água em um poço artesiano de uma propriedade rural próxima, e o problema da falta de luz elétrica era resolvido com candeeiros e velas. “Alguns anos depois, foi colocada a rede de água pública com torneiras na rua. Depois, as famílias foram fazendo ligações com as suas próprias casas”, relata. Outras melhorias e investimentos no local foram frutos da mobilização e da luta dos moradores ao longo dos anos. “A comunidade se mobilizou pra conseguir o clube de mães, posto de saúde,

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REVISTA BASTIÃO // AGOSTO ABRIL 2014 2014 creche, igrejas. Através do clube de mães foi construída uma escola dentro da comunidade, que se chamava Escola Migrante.” Os problemas de infraestrutura, no entanto, persistiram. Aliás, persistem até hoje. A Vila Dique tem dois lados e nenhum deles é ideal O acesso à Vila Dique é feito através de uma precária ponte amarela de madeira, e basta cruzá-la para perceber que houve poucas mudanças. A partir dali, quem mora na região ou visita o local toma dois caminhos. À direita da ponte, está o trecho que leva à Avenida Sertório. Mesmo não causando problemas em dias de chuva, os 1.600 metros de

pista não tornam a vida dos pedestres fácil. Não há calçadas durante a extensão da via, e o pouco espaço que há para a circulação das pessoas já está tomado pelo lixo e pelo resto das demolições das casas. Não bastasse isso, os motoristas que fazem aquele trajeto parecem não se importar com a alta velocidade que passam com seus carros. O outro lado da Vila Dique fica à esquerda da ponte e, além de ser a região mais precária da comunidade, de chão batido, é a mais extensa, indo até a Estrada Marechal Osório ou BR-290, também conhecidas como Free-Way. É ali que vivem cerca de 550 famílias remanescentes que não quiseram ou ainda não puderam, devido à ausência de casas

prontas para recebê-las, se mudar para o loteamento no Rubem Berta. Adolfo Sebastião Rodrigues, de 62 anos, foi cadastrado para a mudança, e conseguiu duas casas no Conjunto Habitacional Porto Novo (a segunda destinada à mãe e ao filho mais velho, que vivem na casa dos fundos), mas preferiu permanecer na Vila Dique. Em vez de se mudar, trocou o cadastro com outra moradora, tendo ela se mudado no lugar dele. Desde 2011, ele vive junto com a esposa e o filho de 18 anos em uma casa verde de madeira a cerca de 300 metros da entrada da Vila. Tomar um simples chimarrão na varanda de casa tornou-se uma atividade pouco relaxante por conta da quantidade de moscas que rodeiam o local, mas

O uso de carroças é comum entre os moradores da vila


// ESPECIAL

O casal Adolfo e Hilda mora na Vila Dique há 28 anos A casa onde mora hoje veio de uma troca com uma antiga moradora, que aceitou se mudar para o Conjunto Habitacional Porto Novo no lugar de Gisele e da família. “Eu tô acostumada aqui. Se eles arrumassem a estrada aqui, as casinhas, como fizeram lá, eu preferia ficar aqui”, afirma a moradora. Ela sabe, no entanto, que um dia terá que sair dali. O que a preocupa é o sustento da família, que, hoje, é garantido com a renda de R$ 400,00 do marido, fruto do trabalho com a reciclagem, mais os R$ 102,00 que eles recebem do programa Bolsa Família. “Vamos ter que vender a carroça e arrumar um serviço”, diz Gisele, acrescentando que o marido

trabalhou somente uma vez com carteira assinada. Gisele conta que a reciclagem é o sustento de muitas famílias que ainda vivem na Vila. Basta um pouco de observação para notar essa realidade. Daquele lado da Dique, poucos carros passam; são as carroças que dividem espaço com os pedestres. O lixo se acumula nos pátios das casas e nos terrenos baldios. Aquela é, sem dúvida, uma comunidade que tira essencialmente do lixo o seu ganha-pão. O futuro dela, agora, é incerto. Da Sertório à Estrada Marechal Osório, reinam o abandono e a incerteza, trazidos por uma mudança que parece não ter data para acabar.

© Esta ilustração tem todos os direitos reservados.

Adolfo não demonstra se incomodar. Ele já passou por uma situação muito mais grave quando a casa em que morava, no outro lado da Vila Dique, incendiou. Por trabalhar há 25 anos na CEASA (Central de Abastecimento S/A), localizada no bairro Anchieta, o carregador autônomo preferiu continuar vivendo perto. “Eu não queria ir pra lá [Porto Novo] por causa do meu serviço, que é pertinho daqui”, afirma Adolfo, tranquilo e com o chimarrão ainda na mão. Apesar de preferir a Vila Dique como moradia, a permanência no local traz dificuldades para a família. A dona de casa Hilda Rodrigues, de 46 anos, esposa de Adolfo, precisa constantemente de atendimento médico, o qual recebia no Posto de Saúde da Vila Dique. No entanto, a unidade de saúde da região foi transferida para o Conjunto Habitacional Porto Novo, local para o qual o deslocamento não pode ser feito com apenas uma condução. Dos R$ 600,00 mensais que a família obtém com o trabalho de Adolfo, R$ 80,00, em média, vão para a compra de remédios de Hilda, que sofre de pressão alta e depressão. A distância do posto de saúde do Porto Novo também é problema para Gisele de Oliveira, dona de casa de 29 anos. Após terminar de estender a roupa nos fundos da casa em que vive, ela explica o porquê: o filho, que tem 12 anos e estuda a 5ª série, sofre crises de asma. Assim como para a filha de Enedina, que morreu por causa de problemas respiratórios em decorrência das más condições do local, o lixo e a sujeira bem em frente à casa de Gisele não parecem ser o ideal para a criança. A pequena casa de madeira em que vivem, com dois cômodos divididos por uma cortina, passou a ser a residência da família há poucos anos. A dona de casa também foi cadastrada no reassentamento, mas permaneceu na Dique por causa do marido, que trabalha ali com reciclagem.

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REVISTA BASTIÃO // AGOSTO 2014

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1/3 dos brasileiros comprariam tempo, se pudessem – e pagariam, em média, R$ 50,00 por uma hora a mais no dia.

85% dos clubes brasileiros de futebol jogam por menos de seis meses.

Arte: Ramiro Simch

As eleições de 2014 terão 40% mais candidatos pastores que as de 2010. São 270 no total.

minutos: Esse é o tempo que o transporte coletivo tem de ser mais rápido que o carro para que o brasileiro deixe o seu automóvel na garagem.


// MINIRREPORTAGENS

Em 2012, morreram, vítimas de homicídio, 146,5% mais negros que brancos.

69% dos brasileiros não confiam na polícia.

A Polícia Militar mata pelo menos cinco pessoas por dia no Brasil.

69%

O Brasil é o segundo país que mais desmata no mundo. Em 2012, perdemos 460 mil hectares de massa florestal. O primeiro lugar ficou com a Indonésia, que desmatou cerca de 840 mil hectares no mesmo ano.

81% das pessoas acham inaceitável que os EUA espionem cidadãos de seus países. A pesquisa foi feita em 43 nações. Já 73% acham inaceitável que os EUA espionem seus líderes.

Para entender melhor esses números, acesse bit.ly/minirreportagens20

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REVISTA BASTIÃO //AGOSTO 2014

LIÇÕES DO FUNK

// Texto e reportagem LUANA CASAGRANDA & Nádia Alibio // FOTOGRAFIA Nádia Alibio

Escola na Zona Leste de Porto Alegre motiva e prepara meninos e meninas que sonham em cantar funk.

“O funk pra ele é vida. É o sonho dele” 24

Anoitecia quando chegamos no Campo da Tuca, na Zona Leste de Porto Alegre. Em frente ao local onde acontece o maior baile funk da Capital – o Baile da Tuka –, um grupo de meninos e meninas batia palmas no ritmo do funk e cantava seus fados, como chamam as canções próprias. Eles aguardavam pelo início da aula na Escola de MCs, projeto que existe há dois anos. Os alunos, vindos de diversos lugares, têm um sonho em comum: ser MC. A popularização do funk e o sucesso da vertente do funk os-

tentação fez meninos das grandes periferias trocarem o sonho de ser jogador de futebol pelo de ser um funkeiro famoso. Assim, a produtora de funk Sindicato MC resolveu criar a Escola. Da Tuca, diversos nomes conhecidos do funk porto-alegrense já foram revelados pela produtora, como MC DW, Mc Filipinho e MC Kinho da Tuca. Os funkeiros viraram referência para os meninos e as meninas da comunidade. A Escola foi criada, então, com o intuito de auxiliar e preparar os garotos


// REPORTAGEM

A turma ouve atenta as letras dos colegas MCs

para que, futuramente, novos talentos possam ser lançados e estejam preparados para subir aos palcos. Mais do que um lugar onde aprendem a rimar, a Escola também é uma oportunidade. Ela funciona todas as quintas-feiras e sábados, a partir das 18h30. Atualmente, conta com três professores voluntários. Wesley do Nascimento Ferreira, ou MC Nego, é um deles. Ele chegou no projeto como aluno há três meses. Apaixonado por dança, sentiu

que muitos dos alunos não conseguiam se expressar corporalmente e resolveu colaborar: “Tem muita gente que vem e ‘ah, mas eu quero só cantar’. Mas, pra cantar, tu tem que interagir com o pessoal, tu tem que se soltar. Tem muita gente que tá parada, trancada, assim, fica só no meio passo. Eu mostro ‘não é assim, tem que botar o sorriso no rosto e cantar’”. Os outros dois professores também dividem suas tarefas. Marcus Vinicius Bezerra Menezes, ou MC Sabha, analisa as composições e as

músicas dos alunos. No comando da Escola desde janeiro, quando as aulas ainda aconteciam no campo de futebol da Tuca e não no espaço em que acontece o Baile, ele diz que procura passar para os meninos sua experiência na carreira de MC, que já tem sete anos. “Desde o momento que eles já tão aqui, eles já são artistas, assim como eu sou. Então, eu divido a minha carreira com a carreira deles. Eu acabo sendo o primeiro empresário deles, porque eles não têm, mas eu corro por eles.”

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REVISTA BASTIÃO // AGOSTO 2014

Ter a consciência que o funk tem seu lugar

Já Pedro Henrique Oliveira, de 18 anos, é o responsável pelo comportamento dos alunos. Ele está terminando o Ensino Médio e quer estudar Direito. Quando os alunos chegam para a aula, precisam se cumprimentar, se olhar nos olhos e, acima de tudo, se respeitar. A frequência nos estudos também é exigida de todos. “Eles primeiro têm que estudar. Depois eles têm que pensar em cantar funk ou rap. Se não estudar, não vai ter moral aqui com a gente”, afirma Pedro. Paralelamente à preparação para a carreira de MC, a Escola incentiva os alunos a estudarem e cobra o atestado de escolaridade de cada um. Para os que já são formados, os professores e colaboradores aconselham que busquem outro tipo de aprendizado, seja com cursos profissionalizantes ou com uma faculdade. Hoje, cerca de 150 alunos frequentam a Escola. O mais novo tem 6 anos e o mais velho, 38. Presença e dedicação de cada um são cobradas

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Os MCs têm aula no espaço onde, nos fins de semana, acontece o baile funk mais tradicional de Porto Alegre: o Baile da Tuka

em todas as aulas. Porém, muitos não possuem condições para locomoção, trabalham à noite ou têm outros empecilhos, o que prejudica seu desempenho e sua assiduidade. Assim, alguns desistem ou participam raramente das aulas. A cada semana, eles têm um tema de casa. Segundo Sabha, as tarefas de casa variam. Geralmente, a partir de um assunto, eles têm de apresentar uma composição. “Eles falaram, em maio, do preconceito, de reciclagem, do Dia das Mães, que eles cantaram aqui no palco com a mãe deles.” Enquanto a turma dá o ritmo na batida das palmas, cada um apresenta sua tarefa. Em seguida, é a hora de ouvir as avaliações. Os professores acreditam que os alunos se dedicam de verdade ao funk, já que as aulas se relacionam diretamente com o sonho de cada um. “Eles se identificam tanto com o funk que, se deixar, eles ficam 24 horas rimando, cantando. Eles acordam cantando, acordam fazendo música. Eles me ligam pra mostrar as músicas novas que eles fazem

de madrugada! Eles tão sempre no WhatsApp me mandando os áudios. Pra mim, o funk é o meu trabalho. Pra eles, o que acontece? Eles tão estudando pra trabalhar”, relata Sabha. E os que se dedicam têm, de verdade, uma chance de conquistar um espaço no mercado. Sabha já integra a Produtora Sindicato MC e costuma levar os alunos que se destacam para tocar com ele nos shows. Com rimas como “Nascido na favela eu não tenho Ferrari, meu funk é consciente, funk sem maldade” e “Ela te chamou de gostoso, mas só viu o teu bolso”, Ayrton Senna Silva da Silva, ou MC Senna, foi o primeiro aluno da turma a cantar no Baile da Tuka, junto com o professor. “Pra mim é a maior satisfação cantar no baile, era um sonho. Só de pensar que em menos de um ano eu consegui conquistar isso. Eu botei um objetivo na cabeça e, com esse objetivo, eu consegui me levantar de uma derrota e ainda conquistar meu sonho, que vai ser cantar no baile.”

“Nascido na favela, eu não tenho Ferrari. Meu funk é consciente, funk sem maldade”


// REPORTAGEM

Na chamada, os alunos assinam sua idade, seu nome artístico e de onde vêm

My Pussy é o poder

A objetificação da mulher no funk é recorrente – um reflexo da sociedade machista em que vivemos; porém, é crescente a presença feminina no cenário, com funkeiras atuantes e poderosas. Luana Soares França, a MC Moreninha, tem 14 anos e é a aluna mais velha da Escola. Ela conta que há muito mais alunos meninos e que foi difícil enfrentar esse ambiente. Contudo, aos poucos, ela acredita que conquistou o respeito dos colegas e quer ser valorizada pela sua música: “É difícil, né. Antes, no começo, eu tinha até medo de me soltar porque é muito menino. Eles pedem pra gente dançar isso e aquilo. E eu ‘ai, eu não vou dançar, eu vou cantar. Eu tô aqui pra cantar’”. Moreninha acredita que logo vai alcançar a carreira profissional, mas gosta de ir às aulas pelo apoio e pelas relações que criou lá dentro. Quando deixar de ser aluna, não quer esquecer do que conquistou graças à Escola. “Vários subiram e esqueceram da Escola, esqueceram de onde vieram, começaram a ganhar o próprio dinheiro. Eu quero ser como o Sabha e ajudar aqui, até porque eu

sou menina e sei como é. Falta uma menina pra ensinar as gurias... e os guris”. O sonho de ostentar move muitos dos MCs. Moreninha optou por não falar de marcas nas suas composições. “Eu falo de fatos que acontecem comigo. Uma das minhas músicas fala de uma amiga minha que morava com o namorado e ele maltratava ela, ia pras festas e deixava ela em casa. Aí eu disse ‘não meu, não deixa assim’. Aí o que que eu fiz? Arrumei ela e disse ‘vamo pro Baile da Tuka’. Só que eu fiz como se fosse relacionada a mim.”

Não tem raça e não tem cor Mesmo cada vez mais

popular, o funk ainda sofre com o preconceito. Na Escola, alguns alunos encontram a ajuda para seguirem seu sonho, que muitas vezes encontra barreiras. Clélia da Conceição é avó do MC Kong. No começo, a família não apoiava o sonho do menino de 14 anos. Ela se surpreendeu com as lições de vida que a Escola de MCs trouxe ao seu neto. “Eles são cobrados! Eles têm que ter responsabilida-

de. No início, eu não queria que ele viesse, mas depois que eu vim, eu vi que não era bem o que eu tava pensando. Não por ser na Tuca, porque todo lugar tem pessoas boas e más, era só uma visão completamente diferente. O funk pra ele é vida. É o sonho dele, tanto é que ele sabe que se não for bem na escola, vai ficar suspenso daqui.” Patrícia Beninca é mãe do MC Sami e hoje também é voluntária no projeto. Como Clélia, ela tentou evitar a entrada do filho na Escola. No entanto, mudou de opinião ainda na primeira aula. “Mãe tem mania de querer conduzir a vida dos filhos... Da forma que eu tava querendo não tava dando certo. Aí eu trouxe e eu não me arrependo nem um só dia da minha vida, porque tem surtido muito efeito.” Depois de anos vendo o funk de uma forma preconceituosa, Patrícia admite que foi conquistada pelo ritmo que, quando toca, ninguém fica parado. “Cresci ouvindo MPB, cresci ouvindo música regionalista e não podia imaginar que um dia eu podia ouvir e apreciar o funk. Hoje eu já tenho até no meu celular.”

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REVISTA BASTIテグ // ABRIL 2014

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PH LANGE & RAFAELA DA ROCHA // LIVRARTE

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COMO O BASTIÃO SE SUSTENTA?

REVISTA BASTIÃO // AGOSTO 2014

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