Caderno de Artes .S

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Património p. 14 e 15 O Arraial da Abóbora

Artes Plásticas p. 13

Música p. 7

Daniel Barroca

GIJOE

Opinião

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O Falcão e a Garça por Nuno Faria

Caderno de artes >> Postal

Letras p. 16 Colóquio Carnaval Literário

29| ABR | 2010 • Nº 21 • Mensal • Este caderno faz parte integrante da edição nº 985 do POSTAL do ALGARVE e não pode ser vendido separadamente

OSVALDO FERREIRA

O maestro de uma orquestra em afirmação >> p. 4 e 5

ANTÓNIO PINA

A cultura é cara mas é uma prioridade » p. 11

Gabriel Colaço » p. 12


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notas

notas l

Cultura

Diálogos 2

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ublicam-se nesta edição do .S novos textos de participantes no primeiro curso de jornalismo de cultura no Algarve. Assim prossegue o diálogo iniciado em meados de Fevereiro e que em Maio terá uma nova jornada, com novo curso a decorrer na Biblioteca Municipal Álvaro de Campos, em Tavira. A organização continua a ser da Associação de Gestores Culturais do Algarve e do Centro de Formação Profissional para Jornalistas. Os especialistas serão os que animaram o curso anterior: António Rosa Mendes, Dália Paulo, Jorge Queiroz, Rui Parreira e o autor destas linhas. Procurar-se-á que o curso seja um diálogo entre os campos da cultura e do jornalismo.

O Falcã e a Garça

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Goya, gravura da série Tauromaquia Um diálogo que permita aos participantes reflectirem criticamente sobre o jornalismo, em geral, e sobre as suas especificidades no tratamento de temas culturais. Decorria o anterior curso quando estrondeou pelos noticiários que «a cultura já representa 2,8% do PIB e dá trabalho a 127 mil pessoas». Desde então, a ministra da Cultura tem repetido declarações sobre o

tema. Nota-se que a senhora ministra gosta de falar através da comunicação social, embora por vezes diga pouco mais do que nada como no caso da criação de uma secção de tauromaquia no Conselho Nacional de Cultura. Mas a sua insistência na importância do “sector cultural e criativo” para a economia nacional parece ser mais do que gosto de falar. Parece corresponder a uma estraté-

gia de governação, embora ainda nada tenha passado das palavras aos actos. Ou será, antes, um desígnio, conforme as palavras do Presidente da República? No seu discurso comemorativo do 25 de Abril, o senhor Presidente, preocupado com o estado da Nação, disse que «Portugal e os Portugueses precisam de desígnios que lhes dêem mais coesão, mais auto-estima e mais propósito de existir». Como primeiro desígnio apontou «o mar». Para segundo indicou as «novas indústrias criativas», justificandoo com o estudo apresentado em Março pela ministra da Cultura. Mas o primeiro responsável da República foi mais longe. Crente na possibilidade portuguesa de «desenvolver centros de excelência» que sejam «grandes pólos internacionais de criatividade e conhecimento» atribuiulhe já uma geografia e uma temporalidade: «Transformar o Porto e o Norte numa grande região europeia vocacionada para a economia criativa e fazer desse objectivo uma prioridade da agenda política». Será que estão mesmo convencidos – estudiosos, ministra da Cultura, Presidente da República – que a cultura vai salvar a economia? Resolver o País? Garantir o futuro dos portugueses? José Luiz Fernandes

Uma forma nómada de pensar e de agir

para o francisco palma dias, nómada exemplar

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enho vindo a amadurecer a ideia de que existem hoje dois países - um gregário, estático, paralisado conceptual e simbolicamente, o outro móvel, nómada, que pensa em movimento e que procura o movimento para pensar e viver. Curiosamente, o Algarve é o expoente máximo dessa antinomia radical. Não é necessário ser-se especialista da história deste território para percebermos que se constituiu de vaivéns, de trocas, de projecções ou visões. Para quem, como eu, veio de fora para cá, esse desenho, essa arqueologia, essa geometria relacional é palpável. Foi por isso que vim, seguindo esse desígnio de liberdade que, é sabido, nos an-

tecedeu e é a grande marca identitária deste lugar. E aquilo que tem acontecido é que um considerável número de pessoas jovens, em início de percurso profissional, ligadas a áreas de intervenção como a cultura, a intervenção cívica ou ao desenvolvimento regional, têm vindo a instalar-se, nesta misteriosa região, que teima em manter a sua personalidade intacta apesar dos equívocos a que tem sido exposta. Acompanhando necessidades básicas de troca e de socialização, esse vaivém definiu a interacção entre o litoral e os pontos altos, mas também, talvez de forma ainda mais importante, definiu-se a partir de uma relação de encantamento, de deslumbramento com o mar, essa presença ausente e hipnótica: subir a um ponto mais alto para contemplar, acompanhados das intensas fragâncias da paisagem. O nomadismo voltou a ser hoje o sinal futurante do cosmopolitismo. Cada vez mais pessoas sabem que contam, antes de mais, com o seu próprio corpo enquanto instrumento de aferição, de medição, de comércio

Ficha Técnica Director: Henrique Dias Freire Editor: Salvador Santos Design e paginação: Mário Coelho, André Navega/Profissional Gráfica

com o mundo - somos uma sonda. Moverse significa procurar, pensar, questionar a identidade própria. Estar pronto a mudar de posição e, consequentemente, de ponto de vista, configura hoje um imperativo ético. É isso que os poetas, os artistas, os bailarinos, os surfistas, e outros grandes nómadas fazem, procurando uma espécie de pulsar original do Universo. Como luminosamente enuncia António Telmo em “Gramática Secreta da Língua Portuguesa”, as longas caminhadas de João de Deus entre São Bartolomeu de Messines e Coimbra, entremeadas de paragens nas mais diversas tascas e de momentos de composição poética a caneta e viola, foram sem dúvida mais importantes para a elaboração da sua Cartilha Maternal que os arrastados anos da sua estada coimbrã. De forma diferente, mas não menos intensa, João Lúcio construiu em Marim, nas cercanias de Olhão, o seu Chalé, uma espécie de OVNI que mediava essa intemporal, instável e reverberante relação entre terra, céu e mar, a que também poderíamos chamar poesia. Dois exemplos, entre muitos, não esqueça-

Colaboram no .S: Adelto Gonçalves, Graça Cunha, Jorge Queiroz, José António Barreiros, José Bívar, Manuel Madeira, Paula Ferro, Pedro Afonso, Pedro Santos, Pedro Bartilotti, Sandra Boto, Susana Martins, Vasco Vidigal, Vítor Cantinho e-mail de contacto: .S@postaldoalgarve.com

mos Teixeira Gomes, o caso mais radical de abandono à dolência e potência da viagem e da desterritorialização de que há memória na cultura portuguesa. E a caravana, a casa móvel, o mobilehome, como a não associar, mais do que à paisagem algarvia (enquanto elemento descosido e intrusivo), ao espírito do lugar? Lembrar o escritor francês Raymond Roussel, “poeta, maníaco e designer de caravanas”, como o retrata Mark Ford no livro “Raymond Roussel and the Republic of Dreams”, uma das mais poderosas sondas do século XX e importante referência para a arte contemporânea, é sinalizar a umbilical ligação entre linguagem e paisagem, a escrita e o lugar. Roussell viajou por toda a Europa numa caravana especialmente construída para ele, onde instalou o seu estúdio, e que constituía uma mágica metáfora (não esqueçamos que a etimologia de metáfora é transporte) para a escrita e a linguagem. Escrever em movimento, reinventar o mundo pela escrita criar tudo de novo: nomes, lugares, cheiros, cores. Reinventar-se a si próprio. Nuno Faria

Os artigos de opinião e as opiniões expressas ou por terceiras pessoas em citação ou entrevista, são da exclusiva responsabilidade das pessoas que as proferiram, não reflectindo necessariamente a posição do .S. Tiragem: 11.444 exemplares


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registámos

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notas coluna do editor

Cinema

Sin-Cera, requiem para o dia de amanhã

54 anos do Cineclube de Faro D.R.

|ANIVERSÁRIO| O Cineclube

Salvador Santos

a não perder

decalque

TEATRO

Nós temos os teatros cheios, o Rei Édipo esgotou até ao fim. E mesmo um espectáculo de quatro horas, como foi a A Cidade, no São Luís, esteve sempre cheio. Mas per-

gunto-me: o objectivo final é o lucro ou cultivar as pessoas? Se é cultivar as pessoas então se calhar dá prejuízo. Gonçalo Waddington in JL n.º 1031

em revista

de Faro celebrou o seu 54º aniversário apresentando, na galeria do Instituto Português da Juventude, uma mostra de 54 fotografias - uma por cada ano de vida - de filmes escolhidos por alguns dos seus sócios e que integram o espólio da associação. No decurso do ciclo «a cada um o seu cinema» foram ainda exibidos, durante o mês de Abril, os filmes «Cada um o seu Cinema», de 33 realizadores; «O Laço Branco», de Michael Haneke; «Moon O outro lado da Lua», de Duncan Jones; e «Andando» de Hirokazu Koreeda.

 LITERATURA

Barbershop

 MÚSICA

Ana Moura Leva-me aos Fados | LEITURA | Já está nas bancas

| CONCERTO | Ana Moura apresentará

dia 30 de Abril, no Teatro das Figuras, em Faro, o seu quarto disco de originais «Leva-me aos Fados». A fadista, reconhecida pela crítica como uma das me-

lhores intérpretes de fado da actualidade, será acompanhada por Filipe Larsen no baixo e José Elmino Nunes na viola. Está por confirmar a presença de Custodio Castelo na guitarra portuguesa.

Barbershop, o mais recente romance de Júlio Conrado, escritor nascido em Olhão no ano de 1936. O livro, apresentado em Olhão no passado dia 9 de Abril, elege como espaço geográfico Lisboa, Cascais e a Ilha da Armona. «Num estilo sugestivo, um tudo-nada sarcástico, o autor faz-nos participar, com gosto, nos quotidianos entrecruzados de F.F., o poeta taciturno eterno candidato ao Nobel da Literatura; Diamantino Neto, o típico barbeiro de bairro que sonha com os louros da glória, ou Rogélio Bordalo, um arrivista caçador de viúvas ricas, entre outras figuras».

Dizia-se na proposta de Instalação da Universidade do Algarve que a região «apenas num momento fugaz da sua história – o período henriquino – terá beneficiado da presença de um núcleo de estudiosos por vezes de ascendência humilde como Gil Eanes, que deram um impulso decisivo para a formação do grupo de homens que, rasgando os estreitos horizontes medievais que então limitavam a perspectiva europeia, contribuíram poderosamente para o enquadramento histórico, político e cultural do mundo em que vivemos». Lê-se ainda na dita proposta que a Universidade, a instalar, deve «ser considerada numa perspectiva dinâmica, uma Instituição flexível, aberta e receptiva, não só a concepções científicopedagógicas modernas mas, também, aos novos condicionalismos ecológicos e sociais da região em cujo desenvolvimento se deseja que participe». Entendia-se que, se assim não fosse, a Universidade não seria mais do que «um peso morto, um encargo não reprodutivo», cuja contrapartida seria apenas a outorga de diplomas a quem tivesse o tempo, o dinheiro e a disponibilidade para a frequentar. Dentro das reflexões que precederam a Universidade acentuava-se a necessidade de suprir a dependência de recursos humanos exteriores e dava-se como exemplo, a nível cultural, o facto de ser necessário para estudar o Algarve e os algarvios, ler e citar bibliografia alheia, como «recorrer a telas de pintores estrangeiros para decorar a habitação». É curioso notar como, a propósito da construção dos edifícios, se tencionava que eles se inserissem de forma a ajustarse à topografia e ambiente locais, pois a função educativa e pedagógica da universidade devia «iniciar-se logo nos seus elementos mais periféricos». Tenho-me lembrado de tudo isto desde que recentemente assisti à discussão de um grupo de pessoas sobre o futuro do Sin-cera. Sem instalações adequadas ou dinheiro para contratar um encenador estava na altura de fazer o enterro ao grupo de teatro, era o parecer de uns. Outros, os mais novos, estavam na disposição de continuar caso houvesse alguém que os dirigisse. Ando com tudo isto na ideia e não consigo deixar de ter pena não da tristeza que a Universidade do Algarve é mas ao desastroso abandono da universalidade a que a instituição deveria responder. Em tempos, havia no edifício da Biblioteca Central das Gambelas uma livraria onde por vezes se realizavam exposições. Quem lá for, ali num dos locais mais propícios a realizações culturais, encontra agora o Gabinete de Relações Internacionais. Afinal o que é que a Universidade tem a ver com as artes e as letras?


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OSVALDO FERREIRA

O maestro de uma o iz ter tido uma infância como tantas outras, numa pequena aldeia dos arredores do Porto. A sua relação com a música aconteceu devido a uma dinâmica inerente à própria região e a alguma tradição que vinha de um passado de bandas filarmónicas e de tunas de música. A determinada altura, após o 25 de Abril, um grupo de pessoas decidiu transformar essas estruturas em algo mais profissionalizado. Foram contratados professores do Conservatório do Porto e foi criada uma das primeiras academias de música fora dos grandes centros. Nessa academia formaram-se muitos músicos que hoje estão espalhados até por algumas das principais orquestras portuguesas. Osvaldo Ferreira pertenceu a essa geração. Os pais gostavam de música mas não tinham nenhuma relação profissional com ela. O seu avô materno foi violoncelista amador e o bisavô materno poeta. «Publicou um livro curiosamente com o patrocínio dos amigos. E isto é tudo aquilo que de alguma forma está ligado à arte na minha família». O Percurso Pelo facto de ter tido, na academia, professores do Conservatório do Porto, e por sua recomendação, tornou-se evidente que o seu percurso deveria continuar num meio mais competitivo e ingressou no Conservatório do Porto onde se formou. A reestruturação das orquestras em Portugal coincidiu com o final dos seus estudos superiores. Foram extintas as orquestras de rádio e foi criada a Regie Sinfonia Orquestra do Porto, na qual, após audições a nível internacional, só foram aceites três músicos portugueses. Osvaldo Ferreira foi um deles. «Contudo, eu tinha um sonho. Eu entendia que os meus estudos não estavam concluídos e entrar a trabalhar directamente como músico profissional não era exactamente aquilo que pretendia. Foi conveniente, deu-me emprego mas eu queria fazer uma pós-graduação fora do país e nessa altura fui para Londres. Quando me preparava para fazer a pós-graduação acabei por fazer uma Master Classe com um professor português radicado nos Estados Unidos, em Chicago. Entendi que era exactamente aquilo que eu queria e saí da Europa, atravessei o Atlântico e fui viver para Chicago. Durante esse período, na universidade, para ganhar algum dinheiro tocava violino na orquestra que estava ao serviço da classe de Direcção de Orquestra e comecei a ganhar o gosto por esta actividade». A direcção de orquestra Quando terminou a pós-graduação regressou à Orquestra do Porto por mais dois anos mas já estava plenamente convencido de que iria interromper essa actividade por ser a direcção de orquestra a sua maior paixão. A partir daí fez todo o processo normal de candidaturas. Foi aceite em várias escolas internacionais mas optou pela mesma universidade, em Chicago, para poder aprender com Victor Yampolsky. Depois desses anos nos Estados Unidos foi para a Rússia estudar com aquele que era considerado o maior pedagogo da Direcção de Orquestra a nível internacional, Ilya Mussin. A possibilidade de fazer um estágio como

aluno assistente de Claudio Abbado, levou-o a Berlim e aquilo que no início se desenhava como um percurso de dois anos de mestrado acabou por se estender por sete anos com cursos de pósgraduação e de maestro assistente. «No dia em que se realizava a boda do meu casamento recebi um telefonema porque o maestro Álvaro Cassuto, que esteve na fundação da Orquestra do Algarve, estava de saída para a Orquestra Metropolitana de Lisboa, e estavam à procura de alguém para o substituir. A minha vinda para o Algarve foi uma escolha certa porque sendo eu um jovem maestro e sendo a orquestra também recente e com ambições de se estabelecer e de se sedimentar na região achei que, apesar de ser uma responsabilidade grande, era a hora de agarrar a oportunidade e deixar que o meu trabalho ditasse o resultado das coisas». Orquestra do Algarve Entende não ser a pessoa indicada para fazer uma análise das diferenças entre a Orquestra do Algarve dirigida pelo maestro Álvaro Cassuto e por si. Sublinha o grande respeito que tem pelo trabalho realizado por Álvaro Cassuto e o mérito que o maestro teve por pôr de pé uma orquestra servida por excelentes artistas. Situação que ainda se verifica. Essa foi uma responsabilidade muito pesada que Osvaldo Ferreira herdou. «Deixar que o nível não baixasse foi motivo para me tirar o sono». Nota alguma injustiça nas avaliações que consideram que o maestro Cassuto tinha, em relação a si, uma forma convencional de olhar a orquestra, mais ligada ao passado. «Eu beneficiei de um conjunto de variáveis que ele não teve. No entretanto, o Algarve inaugurou uma série de teatros e auditórios muito importantes. É completamente diferente programar-se para igrejas e pequenos espaços como sucedia no início da Orquestra do Algarve ou programar agora para teatros e auditórios que já têm outra capacidade logística e condições acústicas. A própria programação da orquestra tem, inclusive, vindo a beneficiar de algum «up gread» financeiro para a contratação de alguns artistas e solistas de qualidade que ajudam sempre à programação». A maior diferença, conclui, é de estilo e nunca de qualidade. No entender de Osvaldo Ferreira, a grande alteração que se operou na orquestra prende-se com o facto de ter olhado para o público e ter sentido que era maioritariamente estrangeiro. «A escolha dos reportórios era desenhada em função desse público, portanto mais convencional, e pouco era pensado em termos de formação de novos públicos. Eu considero que a formação de novos públicos deve ser a nossa prioridade e que a devemos manter durante muito tempo. A orquestra não pode esperar que no contexto de uma região que não teve acesso até aqui a este tipo de fenómeno se vá interessar por ele de um dia para o outro. O mesmo que temos que fazer aqui é o que se faz continuadamente em Lisboa, no Porto, em Berlim ou Londres. Qualquer orquestra tem que ter um serviço educativo a funcionar paralelamente. Com concertos pedagógicos, com concertos «promenade», com programas e reportórios mais leves. Quando digo mais leves não significa isto que não se faça

Osvaldo Ferreira considera que a não reividica o exercício de trazer para os programas peças e compositores ditos mais difíceis. Isso tem dado algum resultado porque temos vindo a assistir a um crescimento visível de visitantes da orquestra e dos concertos do público nacional. Há concertos com público maioritariamente português, coisa impensável há três ou quatro anos atrás». O futuro da Orquestra Relativamente ao futuro da orquestra, e depois de um período em que atravessou algumas dificuldades financeiras, diz estarem a ser criadas condições para se atingir um equilíbrio, quer ao nível do financiamento do Estado,quer da sustentabilidade do apoio local que permita à orquestra começar a desenhar pela temporada principal, os concertos de maior dimensão que trazem solistas internacionais e maestros que trazem algum valor acrescentado à orquestra, e ter uma quantidade mais significativa de concertos do projecto educativo que possibilite uma maior aproximação entre a orquestra e as crianças, os jovens, as escolas de música e as pessoas que trabalham com música e com arte na região. «Por um lado, ter uma programação mais ambiciosa para os entendidos e, por outro, uma aposta reforçada na formação de públicos. É de certeza absoluta muito mais lógico e bem aplicado o dinheiro que uma autarquia gasta para que se faça um concerto para quinhentas crianças de uma escola em que é possível mostrar-lhes os instrumentos, conversar com eles, do que por


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orquestra em afirmação SALVADOR SANTOS

ação de uma escola profissional de música para o Algarve foi uma oportunidade perdida oposição tocar nesse mesmo município numa noite de Inverno com 30 pessoas dentro de uma igreja. É preciso dar um passo de cada vez. A seu tempo, o Algarve observado como uma grande cidade pode realmente ter um tecido de auditórios, de teatros e de público que pode beneficiar realmente de uma instituição que não é fácil de manter e exactamente por custar muito dinheiro é que ele tem que ser gasto justificadamente. Não só sob a forma de concertos mas também no projecto educativo». Financiamento Sobre o futuro da orquestra diz esperar um apoio maior do governo e um apoio continuado e sem intermitências do poder local. Sente uma grande proximidade dos autarcas e dos vários responsáveis das cidades associadas da orquestra, assim como da Região de Turismo e da Universidade do Algarve, e interpreta essa proximidade como um real e genuíno interesse da parte dessas instituições em contribuir para a sustentabilidade e evolução da orquestra. «O que não pode acontecer é pedir a seis cidades de pequena dimensão para se substituírem em tudo ao Estado». Critica o facto de as orquestras nacionais no Porto e em Lisboa serem financiadas na totalidade pelo Estado, sem que se verifique qualquer comparticipação das Câmaras do Porto e de Lisboa, e no Algarve se pedir um esforço adicional às autarquias para completar o financiamento de 50%

que o Estado atribui à orquestra. «Não somos portugueses a 50%, somos todos portugueses a 100%, portanto se no Porto e em Lisboa o financiamento às artes é a 100% nessas orquestras continuo sem entender porque não é aqui também e noutras regiões do país. Estou crente que o próprio Ministério da Cultura, sobretudo porque tem uma ministra a quem a música diz muito, e sabendo da dificuldade das orquestras, não vai deixar de apoiar mais a Orquestra do Algarve. Os sinais são esses. Vamos acreditar que é isso que vai acontecer. O que custa trazer aqui a Orquestra Sinfónica de Lisboa uma vez para fazer dois concertos é o dinheiro que precisamos para esta orquestra se manter sem problemas o resto da temporada». Ensino da Música Durante todos esses anos, desde que saiu de Portugal para ir fazer a pós-graduação em violino até hoje, teve sempre uma preocupação muito grande com o lado educativo. Deu muita formação, introduziu o Método Suzuki de ensino de violino em Portugal. Foi professor na Escola Superior de Música de Castelo Branco, onde trabalhou como professor coordenador. Tinha à sua responsabilidade a orquestra da universidade e disciplinas de direcção de orquestra e coro e música de câmara. «Sou músico profissional mas paralelamente sempre desenvolvi uma actividade pedagógica forte».

Embora julgando que o exercício da composição não lhe está destinado, por vezes interrogase se da mesma forma que o gosto pela direcção de orquestra surgiu, se não virá a escrever alguma coisa. «Durante os meus estudos também fiz curso de composição mas nunca escrevi mais do que pequenas peças, esboços, pequenas tentativas que nunca pus cá fora. Nunca tive a coragem de passar para concerto porque entendo que isso merece uma reflexão mais profunda». Questionado sobre o ensino da música no Algarve diz não estar em condições de fazer uma avaliação correcta, pois não conhece a realidade em profundidade. Refere que foi prejudicial para a região, na altura em que se abriram as escolas profissionais de música, o Algarve não reclamar para si uma escola de música. O modelo de conservatório existente em Portugal, embora em evolução, estava perfeitamente desadequado e não permitia que um músico formado aqui atingisse, com a metodologia utilizada, um nível que lhe desse ingresso para uma orquestra ou fazer uma carreira de solista. Entende que a formação de um músico é equivalente à de um atleta de alta competição. As crianças têm que começar muito cedo e estudar muitas horas. Enquanto membro do júri do Prémio Jovens Músicos da RDP tem notado, que invariavelmente, os vencedores são quase todos do norte e alunos das escolas profissionais de música. «No Algarve cada vez que precisamos de músicos extra para a orquestra não há praticamen-

te ninguém em toda a região. Temos que permanentemente importar músicos do Porto, de Lisboa, ou às vezes aqui de Espanha para se juntarem à orquestra ou virem substituir os músicos que adoecem. Os poucos que existem estão quase todos em Lisboa, ou porque foram fazer formação ou porque não havia condições para fazerem vida aqui. É lógico que se pode viver da música dando aulas, com horário numa escola, mas isso não significa que se tenha nível para se estar numa orquestra do nível da Orquestra do Algarve. Apesar das dificuldades financeiras os músicos da orquestra são de nível internacional. Podemos apresentar-nos aqui em Faro como já nos apresentámos em Viena, Bruxelas, ou Londres, sem que a nossa qualidade seja questionada». Allgarve Depois de assegurar ao longo de três anos a direcção artística do Festival de Música do Algarve foi convidado a integrar a equipa de programação do Allgarve. Para Osvaldo Ferreira programar jazz ou pop não constitui dificuldade, porque desde adolescente que se interessou por outros géneros de música para além do erudito e do clássico e sempre manteve contacto com o fenómeno rock e pop. Na juventude chegou a ter uma banda de música rock e celta, tem coleccionado muito jazz, viveu em Chicago, a cidade dos blues e onde os maiores festivais de música dos Estados Unidos acontecem, o que lhe facilita a programação dessas áreas. Outra das circunstâncias que lhe auxilia a tarefa foi o facto de a programação do evento passar para o Algarve. «A região tem, por exemplo, um conjunto de festivais de jazz que já existiam com curadores que sabem o que estão a fazer e com quem foi fácil trabalhar e chegar a consenso sobre os nomes maiores que aqui vamos trazer. No pop e no rock temos tantas centenas de bandas e cantores por esse mundo fora que a questão que se coloca é se optamos por A ou por B. Muitas vezes, a questão prende-se com o facto de determinado grupo ou cantor fazer ou não uma tournée na Europa. Assim como noutros festivais aproveitamos os circuitos que as bandas fazem». Quanto ao conceito do Allgarve enquanto programa de entretenimento e a forma com está desenhado, entende que não deve estar a ditar a sua opinião. Enquanto profissional contratado para programar vai tentar cumprir a sua obrigação o melhor que sabe e pode em comunhão com os agentes locais. A região Enquanto cidadão está mais preocupado com a forma como se articula tudo. «O Algarve não é tão grande nem tem tanta população que permita fazer eventos em excesso ou coincidentes a pouca distância uns dos outros». Julga que o excesso de bairrismo pode prejudicar a região no seu todo e para que isso não aconteça vê como necessário uma articulação forte entre os vários municípios para evitar que estejam todos a fazer o mesmo. «O Algarve não pode ficar eternamente dependente da produção de terceiros. É preciso pegar nas raízes algarvias como ponto de partida para novas criações». Salvador Santos


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UMA RETROSPECTIVA DO FESTIVAL MED DESDE O EURO 2004

O Mediterrâneo em Loulé com músicas do Mundo Está a chegar o sétimo acto do Festival Med com concertos em diversos palcos e no ambiente festivo e colorido das ruas do Centro Histórico de Loulé, entre 23 e 26 de Junho.

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Med já faz parte do roteiro internacional dos maiores festivais de world music. Este termo, músicas do mundo, ganhou maior projecção, nos anos 80, com músicos como Peter Gabriel, David Byrne ou Brian Eno a divulgarem essa fusão sonora de culturas e etnias diversas pelo público, até então dominado pela cultura anglo-saxónica. Vasculhamos nas memórias e recuperamos alguns dos momentos que revelam a mística do Festival Med, lançado pela Câmara Municipal para fazer uma animação integrada no Campeonato Europeu de Futebol de 2004, sendo Lou-

lé uma das cidades anfitriãs. Segundo Joaquim Guerreiro, director do Med e actual vereador, o município tinha como objectivo potenciar a promoção do concelho, qualificando e diversificando a oferta turística, o que levou à concepção de um festival diferente e que não existia no Algarve. Apesar de ter um estilo musical demasiado eclético para se misturar com o futebol, a programação musical que se chamaria Festival Med rumou nesse sentido, integrando música popular portuguesa, da Galiza e doutras regiões, principalmente do Mediterrâneo. Foi uma edição experimental, essa realizada junto ao monumento a Duarte Pacheco, por entre ecrãs gigantes para ver os jogos. Seria no ano seguinte que o Festival Med ganharia o seu formato actual, ocupando as estreitas vielas da antiga Vila de Loulé, um recinto urbano talhado pelo casario entre largos e terraços que rejuvenescem nesses dias em que são percorridos por cerca de dez mil almas. O Med tornou-se, também, um ponto de partida para a requalificação da zona até então quase muito abandonada. D.R.

O festival vem a incluir, desde então, outras vertentes como as artes plásticas, o artesanato, o teatro de rua e as especialidades gastronómicas. Em 2005, distribui-se por cinco dias, no final de Junho, com concertos em dois palcos, entre o Castelo e a Cerca do Convento. Paralelamente, a Galeria de Arte do Convento Espírito Santo integra exposições colectivas e temáticas com peças de artistas de renome e nos espaços envolventes os concertos são vistos em ecrãs gigantes através dum circuito interno de televisão. O cartaz musical foi sempre a principal atracção, com uma programação arrojada, eclética e marcada pela diversidade, que surpreende pela inovação numa cidade tradicionalmente conservadora. A aposta foi ganha logo na primeira noite, com o privilégio de receber o espectáculo de Tom Zé, personalidade irreverente da música popular brasileira, em notável interacção com o público. Com o sarcasmo e crítica social que são a sua imagem, a sonoridade eléctrica e industrial, incluindo sons de rebarbadoras misturadas com os ritmos do samba, do jazz e do rock, foi seguramente um importante marco na história do festival, como também foi o guitarrista de flamenco Tomatito. Ambiente fantástico e inesquecível foi o da noite em que actuaram os Terrakota, antecipando a primeira apresentação ao vivo em Portugal de Macaco. No final do concerto, músicos de ambos os grupos saíram do palco para o meio do público, que desfrutou de uma jam session espontânea. Outra noite memorável foi a excelente prestação dos franceses Lo’Jo, originários de Marselha, sonoridade marcada pelo violino, acordeão, metais, teclas, em canções francesas mediterrânicas. O terceiro ano consolidaria o evento na rotas dos Festivais de Verão, diferente pela programação e pelos ambientes criados que encaixam na perfeição nas ruas brancas e empedradas. Entre uma bebida fresca e um petisco, ouviram-se mais de 30 concertos em cinco palcos, entre os quais a música celta do grupo Capercaillie , ou o Soul Samba dos Think of One, a alma profunda da jovem cantora argelina Suad Massi ou ainda a inesquecível banda ska francesa Babylon Circus. Além da população local, que participa maciçamente, cada mais se deslocam a Loulé fãs da world music vindos de todo o país e do sul de Espanha. Em 2007 registaram-se cerca de 17 mil entradas, o espaço desdobrou-se por mais ruas, foi instalado um novo palco com maiores dimensões no largo da Matriz, o jardim dos Amuados transformou-se em zona lounge, cresceu a divulgação mediática. Em Loulé tocaram nomes como Bajofondo Tango Club, fusão de tango argentino com beats de dance

music, banda liderada pelo argentino Gustavo Santaolalla (autor das bandas sonoras «Brokeback Mountain» e «Babel»), que encerrou o Med 2007 no palco da Cerca, em festa com o público chamado a dançar no palco, o que se repetiria em 2009. Recorde-se também os momentos hipnóticos dos Tinariwen, o grupo tuaregue e os seus blues do Mali, outro dos pontos altos do festival, bem como o concerto do italiano Vinicio Capossela, marcante pela teatralidade da sua actuação, acompanhado por grandes músicos, fazendo lembrar mestres como Frank Zappa, Robert Frip ou Tom Waits. Em 2008, seis palcos, cerca de meia centena de projectos musicais, um cartaz a revelar uma aposta mais forte em nomes sonantes, o que não significaria maior qualidade, mas o suficiente para o aumento dos números, captando outros públicos, registando-se cerca de 22 mil entradas. Excepção feita para a boa onda do veterano do reggae Jimmy Cliff, os famosos acrescentariam pouco à qualidade musical do Med afirmada até então. Recorda-se o poderoso encerramento do Festival Med 2008 com um concerto apocalíptico dos franceses Tambours du Bronx, com uma coreografia que integrava 17 músicos em palco, sonoridade heavy industrial, base electrónica e uma força aterradora das precursões feitas com bidões não deixaram ninguém indiferente. Nesse ano destacou-se a alegria dos Balcan Beat Box, os espanhóis Muchachito Bombo Infierno com a curiosidade do pintor Santos De Veracruz que, ao som da rumba catalã, criou um novo quadro em palco, ao vivo e em directo, o rock alternativo dos belgas Zita Swoon, liderados pelo ex-Deus Stef Kamil Carlens, e o groove entusiasmante dos holandeses Zuco 103. O grande público apreciaria a voz do fado de Ana Moura e lotaria a Cerca do Convento para ver e ouvir as canções do casal Amadou & Mariam ambos cegos, originários do Mali. No ano passado atingiu-se novo recorde com 24 mil entradas. Na noite de sexta-feira, em que actuou a orquestra cubana Buena Vista Social Club, a organização teve de limitar as entradas no recinto. O cartaz incluía outras figuras de topo, como o baterista Stewart Copeland (exThe Police) com La Notte Della Taranta, Camané e Ojos de Brujo. Encerraria com outro espectáculo arrojado e brilhante, o do finlandês Kimmo Pohjonen, virtuoso do acordeão, acompanhado por um quarteto de cordas. Contagiante e acima da média foram também a prestação da cantora Rokia Traoré, a estreia animada de Siba e a Fuloresta, verdadeira banda sonora amazónica, ou a nova folk e blues revival dos franceses Moriarty, ou do veterano Horace Andy com Dub Asante que, desde Kingston, Jamaica, trouxe o balanço do reggae roots. Estes são espectáculos do Med que recordamos como dos melhores de sempre no Algarve, entre centenas de espectáculos a que assistimos. Paulo Sérgio

no âmbito do curso de jornalismo de cultura


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música

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“Palavra de músico”

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uatro anos após o lançamento de “Música de Palavra”, em que tirou do armário artistas algarvios e mostrou o que de melhor se fazia a Sul, Gijoe volta a presentear os amantes de hip-hop com um CD totalmente produzido por si, onde conta com grandes valores do panorama nacional. “Palavra de músico” é o título deste novo álbum, que engloba mc’s, cantores e dj’s, num misto de rimas, poesia e muita mensagem. Artistas como Nerve, Dino, Perigo Público, Bod da Rage Sense, NelAssassin, Royalistick, Bomberjack, Reflect, Kristo, entre tantos outros, dão voz a esta mixtape, de formato, que já se encontra à venda para delícia dos fãs. “São 53 faixas mais 53 instrumentais e 17 faixas bónus, com convidados de todo o país que são referência dentro do estilo de cada um”, começa por dizer Gijoe, que abraçou a música como um escape que foi ganhando crescente importância. “O primeiro CD teve a ver com as pessoas com quem trabalhava e tive oportunidade de conhecer. Tal como eles, eu também evolui musicalmente e contactei com outros artistas que integram este novo álbum”, declara o músico. Prossegue, justificando a troca no nome: “A principal diferença entre os dois CD é que no primeiro o meu trabalho era fundamentalmente de dj, enquanto neste, todos os beats são produzidos por mim”. Se em “Música de Palavra” o seu objectivo era dar ênfase às palavras, demonstrando o que de melhor se fazia no Algarve, em “Palavra de Músico”apresenta-se como o maestro, que produziu todas as faixas com muito scratch à mistura. “Meti-me numa coisa que à partida parecia impensável, lançar um álbum com 53 faixas, mais 53 instrumentais e 17 faixas bónus, o que só foi possível graças ao formato em mp3. Produzir, convidar, gravar, fazer o scratch, misturar e depois, juntamente com o Reflect, masterizar e editar, parecia impossível. Nem sempre foi fácil, mas as dificuldades existem para ser ultrapassadas e isso só dá mais valor ao produto final”. Justifica a escolha do formato mp3 por ser “a única forma de poder ter tantas músicas sem aumentar o custo de venda. Estamos numa era onde quase todas as aparelhagens, rádios e computadores conseguem ler mp3 e decidi apostar em algo diferente e que suportasse tanta carga”. Além desta novidade, nota-se uma especial atenção com a imagem do álbum e tudo o que o envolve, reservando-se uma pequena surpresa na capa, que exposta ao calor desvenda imagens e mensagens. “Sempre gostei de trabalhos com um bom conceito a todos os níveis, desde o design, ao packaging, ao site e à fotografia. A capa dá resposta a todo o conceito Palavra de Músico, é como que o desvendar das palavras que dão

D.R.

Edição: Kimahera 004 e ArtWork de Samuel Simões. luz a toda a música feita por mim”, esclarece. Enquanto dj, reconhece que estes anos lhe deram principalmente muita experiência de palco, que se traduziu num aperfeiçoamento a nível técnico, como na mistura e no scratch, e que se reflecte na qualidade dos instrumentais. “Sintome musicalmente mais maduro. Este é um álbum essencialmente de hip-hop, onde dei muito de mim nos últimos anos enquanto músico e produtor (Sickonce). Os instrumentais são com base em samples, utilizando partes de músicas que considero boas e a que quase em jeito de homenagem, volto a dar-lhes vida, adaptando-as aos tempos de hoje”, fundamenta, como se de uma reciclagem musical se tratasse. “O que eu samplo tem muito a ver com o que eu gosto. Embora oiça músicas actuais, normalmente tento samplar coisas mais antigas e vou até ao fundo do baú buscar sons que, para mim, continuam a ter grande valor”, justifica o artista, que paralelamente à sua carreira como arquitecto, sempre nutriu um gosto especial pela música. “A paixão pela música fez-me entrar neste mun-

do. Estudei piano, integrei uma banda e estive envolvido numa série de projectos que nada têm a ver com hip-hop. Oiço muito drum and bass, dubstep, rock, soul, jazz e principalmente procuro boa música, tentando cultivar-me ao máximo”, declara, atribuindo a estas influências a sua identidade como músico. Gostava de ter uma banda por trás “É claro que gostava de ter uma banda por trás, mas como o Premier (dj e produtor musical) costuma dizer e eu subscrevo: produzir utilizando samples permite-nos ter a banda que todos sonharam. Posso ir buscar o melhor de cada instrumento e criar o som perfeito”, elucida. Rafael Correia é dj e produtor de hip-hop/streetmusic há mais de uma década e aos 28 anos é

já referência no panorama hip-hop nacional. A sós, ou acompanhado da sua equipa «Kimahera», editora da qual faz parte desde 2005, tem pisado palcos por todo o país, sendo presença assídua em festivais, Semanas Académicas, Rock in Rio, Casa da Música, além de “riscar vinis” em clubes, bares e discotecas. Participou em dezenas de mixtapes, álbuns e compilações, destacando-se «Visão Periférica», de Royalistick, «Banda Sonora», de Twism, compilação «Beats & Rimas» e «Duelo Mental» ao lado de Spell. Já integrado na editora «Kimahera», foi o dj e produtor de serviço em “Último Acto”, de Reflect, “K.R.S.”. Com RealPunch, lançou “Fetiche” juntamente com Kristo e Expectro e, mais recentemente, participou no álbum “Bairrismundo”. Como se não bastasse, integra ainda dois grupos musicais, “Tribruto”, onde partilha o palco com os irreverentes Kristo e RealPunch, e ainda “Deep:her”, complementando a doce voz de Emmy Curl, num registo Trip-Hop. “Muito trabalho, sacrifícios e amor à arte” são os ingredientes que sustentam o background musical deste artista algarvio, que garantem que no Algarve faz-se música de qualidade. “Musicalmente e a nível de hip hop, o Algarve está muito bem representado. Existem muitos bons artistas, como sempre existiram, e estão em constante evolução. O problema é que não são quem tem maior visibilidade pública. Penso que tem a ver com a divulgação e meios de informação, que é um problema do Algarve. O que se passa nas grandes capitais chega rapidamente, contrariamente ao que se passa cá, que demora a ser conhecido. Talvez seja porque os grandes meios de comunicação estão centrados nas capitais, o que é natural. Se há artistas a chamar a atenção cá no Algarve saem notícias, faz-se alguma cobertura em publicações regionais ou do género, mas depois não há desenvolvimento e acabam por cair em esquecimento”. Segundo o artista, na altura em que os grandes mc’s de Portugal começaram a ficar conhecidos, já se fazia muito boa música na região, simplesmente, não tiveram o mesmo destaque nas manchetes. “A nível de qualidade temos músicos ao melhor nível nacional”, salienta. Incansável e já a trabalhar em projectos futuros, adianta estar completamente focado no álbum de “Tribruto”, que está prestes a sair e promete dar muito que falar. “Estamos empenhados nos concertos e num EP que vai anteceder o álbum. Temos tido a sorte de tocar em grandes palcos porque este projecto funciona muito bem ao vivo. Dá-me um gozo especial, porque gosto imenso de trabalhar com o Kristo e o RealPunch, que são uns verdadeiros bichos de palco”, confessa o jovem, que promete dar ao hip-hop algarvio “um lugar no mapa”. Sónia Santos no âmbito do curso de jornalismo de cultura


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caderno de artes >> Postal - 29.04.10

espaço agecal A conservação do património cultural no Algarve A crescente preocupação social pela preservação do património cultural, originada pela percepção de uma ameaç a da perc a de identidade regional, Manuela Teixeira converteu-se numa Conservadorarestauradora / preocupação e Museóloga orientação política Sócia da AGECAL para os autarcas. Na tentativa de rentabilizar recursos começaram a proliferar por todo o Algarve museus e sítios e monumentos recuperados, que, segundo a Base de Dados da Direcção Regional de Cultura, ultrapassam largamente a centena, geridos na sua maioria pelas autarquias locais.

Paralelamente à abertura de museus e à recuperação de sítios e monumentos, as autarquias reestruturaram-se e contrataram profissionais da área cultural, mas com a falta de recursos financeiros, estes profissionais têm que desenvolver todo o tipo de acções, numa política de versatilidade. Na última década do século XX foram integrados, técnicos profissionais e superiores de conservação e restauro, nas equipas multidisciplinares das autarquias. Apesar do esforço, constatamos que no Algarve estão a trabalhar, entre técnicos profissionais e técnicos superiores, 23 profissionais, em 7 das 16 autarquias - Albufeira, Alcoutim, Faro, Loulé, Portimão, Tavira e Silves. Este diminuto corpo técnico, apesar dos obstáculo impostos, na maioria das vezes, pelas dificuldades financeiras, de organização

e articulação, das autarquias, e pela falta de (in)formação do poder político, tem vindo a desenvolver um trabalho sistemático e de excelente qualidade, que pode ser comprovado numa simples visita aos museus e sítios e monumentos regionais. Mas… será que a abertura de museus e a recuperação de bens patrimoniais são suficientes para conservar o património cultural da região? Poderemos constatar que, se os projectos contemplassem à priori aspectos como os recursos humanos e financeiros necessários para o seu pleno funcionamento, não teríamos museus fechados ao público, nem sítios e monumentos com problemas visíveis de manutenção. No que diz respeito aos recursos humanos, por vezes as autarquias colaboram entre si para suprimir necessidades na

área da conservação do património. Todavia, é preciso mais, muito mais, é preciso que o poder político e as instituições do Estado percebam que trabalhando isolados não conseguirão atingir níveis satisfatórios, muito menos de excelência. Torna-se necessário definir estratégias para a região; investindo mais na conservação do património e no trabalho em equipa, através da optimização dos recursos humanos e financeiros da região; determinando objectivos comuns e realistas, na tentativa de atingir níveis culturalmente mais consistentes e socialmente mais intervenientes na conservação do património regional. Não será possível salvaguardar o património cultural da região sem a intervenção de todos. Alcoutim, Abril de 2010 publicidade

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políticas culturais

António Pina

A cultura é cara mas é uma prioridade

Se aceitamos que o conhecimento, e portanto a cultura, não constitui uma dádiva genética que o Homem herde dos pais e transmita aos

descendentes como os caracteres incluídos na definição do genótipo, assim escrevia Gomes Guerreiro para se reportar à Universidade, o

papel das instituições tutelares na formação do indivíduo, e onde se deve incluir o «poder local», é de importância vital. henrique dias freire

salvador santos

A promoção da produção local é um dos eixos programáticos da estratégia cultural da autarquia

P

ara António Pina, vereador da Cultura da Câmara de Olhão, a área que tutela não é apenas mais uma competência do município, considera o sector cultural um vector fundamental do desenvolvimento do município mas afirma que a estratégia cultural está subordinada à saúde financeira da autarquia. «A cultura é sempre um investimento, caro e por essa razão haverá maior ou menor disponibilidade de investimento de acordo com a situação financeira de cada autarquia. No fundo, tem a ver com aquilo que traduz a pirâmide de Maslow na definição das prioridades que começam por ser aquelas básicas como as infra-estruturas e os equipamentos colectivos, e aqui, na fase final, destes equipamentos os ligados à cultura. Olhão nos últimos quatro anos chegou a esta fase e a prova disso é que temos espaços como a biblioteca e o auditório que nos permitem ter uma dinâmica de projectos que não era praticável até então». No que diz respeito a investimentos em infraestruturas adianta que este ano está em andamento o projecto de recuperação do chalé do Saias, onde se pretende criar uma casa de artes e ofícios. «Um espaço cultural novo e onde se pretende promover a iniciação às artes. Temos um centro de pintores mas nesse espaço queremos ir para além disso. Gostaríamos de ter era um espaço onde pudéssemos apostar na formação em pintura e artes plásticas». Ciente da impossibilidade de investir de igual forma em todas as áreas artísticas, até porque

entende que cada município tem de personalizar a sua oferta sob pena de acabarem todos por investir nas mesmas áreas, afirma que para já a prioridade, em Olhão, passa pela formação. «Temos que captar público para os nossos espaços. Iniciamos o serviço educativo no Museu, na Biblioteca e no Compromisso Marítimo. Começamos junto de algumas empresas e instituições a convidá-las a conhecer o que existe e está disponível. Sentimos, no caso particular da Biblioteca, que depois de fazermos o edifício havia muita gente que nunca lá tinha ido. Excepção feita às escolas que participavam na hora do conto e algumas pessoas com hábitos de leitura. A maioria das pessoas só conhecia aquele edifício como hospital. A programação do auditório visa a formação de públicos, o consumo e a fruição de objectos culturais. «Todos os meses a agenda do auditório, que pretendemos que seja o mais eclética possível, contempla um espectáculo para crianças. Temos espectáculos de música clássica, de fado, ou de cantores como Paulo de Carvalho, Tim ou Nuno Guerreiro. Temos peças de teatro mais eruditas como o caso das apresentadas pela ACTA mas queremos abrir espaço também para a «revista», porque o público, em Olhão, por vezes desloca-se a Lisboa para ir ver um espectáculo de «revista» mas não se desloca para assistir a outros géneros de teatro. Numa primeira fase, é preciso formar este público dando-lhes aquilo que eles estão dispostos a ver e depois de criar os hábitos é mais fácil que consumam outro tipo de espectáculos. Não devemos ter vergonha que as pessoas queiram espectáculos ligeiros e de comédia ou que tenham uma relação com a sua história e as suas gentes como é o caso dos espectáculos da companhia A Gorda». No que concerne ainda à programação do auditório, Olhão integra uma candidatura de programação conjunta intitulada «Acto 5», que inclui o Teatro de Almada, de Braga, de Matosinhos e de Aveiro e está a ser financiada pelo CREN este mandato. Além das vantagens financeiras na contratação de espectáculos, a

autarquia beneficia ainda da experiência consolidada por algumas dessas estruturas como é o caso do Teatro de Braga. Outro dos objectivos que a autarquia gostaria de levar a bom termo é a promoção da produção local. «Temos um conservatório de música que já tem muita qualidade e muitos alunos, inclusive alunos de outros conservatórios que têm vindo estudar para o Conservatório de Música de Olhão. Temos a companhia de teatro A Gorda, que tem tido alguns sucessos em peças que tem levado à cena e, de acordo com essas realidades, gostaríamos de iniciar o aproveitamento dessa produção para, pelo menos, darmos oportunidade a essas pessoas de virem a ter reconhecimento dentro do concelho». António Pina entende que a programação não se pode fazer só com a aquisição de espectáculos produzidos por agentes exteriores e de elevado orçamento. «Nem tudo o que vem de fora enche as salas», diz. A nível editorial, a Câmara tem actuado de duas formas. Propondo trabalhos sobre algumas matérias referentes à história local e a algumas personagens da terra, dos quais assume a edição, o último livro que saiu sob a chancela da autarquia foi uma biografia de Maria de Olhão, ou apoiando a edição de livros de autores locais, de acordo com a avaliação que é feita do trabalho em causa. Por altura das comemorações do segundo centenário começámos a tentar fazer luz sobre olhanenses ilustres. Fizeram-se edições sobre o Francisco Fernandes Lopes, sobre o João Lúcio, Paula Nogueira e outros notáveis que durante estes duzentos anos se têm evidenciado. Agora falta dar a conhecer estas pessoas aos jovens. São matérias que não entram nos programas de ensino, mas que julgo seria importante dar a conhecer. Tivemos personalidades que são grandes exemplos para todos, como o João da Mónica, um resistente antifascista, ou episódios de relevo histórico como a ida do caíque Bom Sucesso ao Brasil». No que respeita às questões da preservação do

património edificado, em particular da traça cubista da cidade, António Pina sublinha que «Olhão tem uma área habitacional única no mundo. A esse respeito temos duas linhas de orientação. Numa primeira fase delimitamos os nossos núcleos históricos em termos de PDM e temos tido uma grande preocupação nas novas aprovações, de forma a que as reabilitações mantenham a traça original. Já foi constituída uma sociedade de reabilitação urbana que vai incidir sobre este espaço, até porque há um enquadramento legal que dá benefícios fiscais aos privados que aí queiram intervir, mas é necessário uma entidade que depois faça essa gestão. A Câmara em determinadas circunstâncias também pode adquirir os prédios ou substituir-se aos proprietários, fazendo as obras e colocando depois o imóvel à venda ou no mercado de arrendamento. É uma forma de podermos dar nova vida a esta zona. As pessoas procuram casas com outras dimensões e conforto e este emaranhado habitacional é constituído por casas de pequenas dimensões e com condições que não correspondem aos padrões de exigência dos nossos dias. Para contornarmos essa situação, muitas vezes é necessário fazer o emparcelamento de duas ou três habitações». No âmbito da Rede Urbana Algarve Central, Olhão apresentou uma candidatura que pretende fazer a recuperação dos largos das zonas históricas. «Temos algumas lendas e mitos no concelho, como a Floripes ou o Menino dos Olhos Grandes e o que pretendemos é com essa candidatura fazer a reabilitação destes largos mas associados a estas lendas. Pretende-se que no futuro esta zona habitacional possa também ser um motivo de visita. A terminar referiu que na sua vertente cultural este ano, e pela primeira vez, o Allgarve é programado em Olhão. «Vamos ter no dia 16 de Julho, numa parceria entre o Allgarve, a Câmara Municipal e os Hotéis Real, um concerto com a Natalie Cole, o que nos deixa muito satisfeitos». S. S.


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artes plásticas l

Gabriel colaço

Criar para o presente Gabriel Colaço nasceu em 1975 na Nazaré. Licenciou-se em Artes Plásticas (Pintura) na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e fez uma pós-graduação em Desenho na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Tem participado em imensas exposições colectivas e individuais em Portugal e em diversos

O

países estrangeiros, com alguma frequência, em Boston, Miami e Nova Iorque (EUA). É detentor de imensos prémios, entre os quais se citam: 1º Prémio - III Edição do Concurso de Artes Plásticas, Nazaré, em 2002; 1º Prémio de Pintura - Aveiro Jovem Criador 2003; 1º Prémio XVII Salão de Primavera - Galeria do

Casino do Estoril, em 2004; 1º Prémio - IX Prémio de Pintura e Escultura D. Fernando II, Sintra; 1º Prémio - Concurso de Pintura, Herdade do Esporão e Diário de Notícias, em 2005; e 1º Prémio, “Arte e Espiritualidade”, Ministério da Cultura, Cordoaria Nacional, Lisboa, em 2006. rânea, é subjectiva porque o artista, quando pensa uma obra ou um projecto, tem imensas possibilidades para os realizar. Pode usar a pintura, o desenho, a instalação, a fotografia, o vídeo, a escultura… pode recorrer a muitas áreas de criação artística como ferramenta para o seu trabalho. A importância reside na materialização da ideia ou conceito”. E explica ainda: “muitas pessoas consideram a arte como uma coisa supérflua ou até bizarra, pelo menos no que toca a obras de arte contemporânea mais irreverentes, não compreendendo que, para além de conter uma mensagem, a subjectividade estética do objecto artístico estimula uma espécie de prazer contemplativo” e que o olhar também está sujeito a uma aprendizagem, tal como o gosto e a compreensão estética.

olhar do artista capta o lado consumista das grandes cidades Gabriel Colaço tem um irmão gémeo, Gilberto Colaço, que também é artista plástico. “O início do meu percurso na pintura nasceu em conjunto com o meu irmão. Começou no 5º ano da faculdade, no Porto. Apresentávamos projectos que realizávamos os dois, tanto na pintura como no desenho. Era uma forma de trabalhar que funcionava bem. Já tínhamos uma técnica e processo de trabalho muito semelhante na pintura. Por sermos gémeos verdadeiros conseguíamos uma harmonia e uma dialéctica que se tornava interessante. Já como artistas, assumimos esse papel em conjunto. Trabalhámos assim durante algum tempo com várias galerias em Portugal e no estrangeiro.” O que os fez começarem a desenvolver o seu trabalho individualmente foi o simples facto de Gabriel ter constituído família no Algarve, em São Brás de Alportel. Actualmente, a sua vida divide-se entre Alcobaça e São Brás, onde se encontra, na Galeria Zem Arte, uma exposição de Gabriel Colaço, intitulada “Lightbox”, até dia 12 de Maio. Este conjunto de obras remete-nos para o mundo da publicidade. O olhar do artista capta o lado consumista das grandes cidades e regista na tela uma sinaléctica frequente nas grandes urbes. “Desenvolvo o tema dos painéis publicitários e anúncios, com os quais, dentro do meu processo de trabalho, procuro realizar uma desconstrução e deslocação de elementos das imagens, atribuindo-lhes um novo ponto de observação, concedendo novas leituras ao observador”, esclarece, “estas imagens dos signos e neons que pela minha desmontagem artística ficam, em certa

“A arte possui uma faceta transcendente”

Signs 50 2010 Acrylic on paper 50x50 cm medida, despidas do seu poder e mensagem visual de apelo ao consumo, carregam o desgaste do tempo e são, por isso, marcadores testemunhais do auge das sociedades consumistas da humanidade”.

A obra como canal, contexto e mensagem Nesta exposição somos confrontados com uma visão crítica sobre o absorvente mundo do marketing, é-nos proporcionado um conjunto de imagens criadas e recriadas a partir de cartazes e néons, logótipos e slogans,

numa série de construções e desconstruções sobre todo ‘um mundo’ montado pela gigantesca máquina public i t á r i a . “ Na m o d e r n i d ad e, a publicidade acompanha-nos praticamente desde o início das nossas vidas, sendo, consequentemente, algo que aceitamos com naturalidade. Contudo, a publicidade e a avidez ao consumismo é-nos injectada renovadamente por todas as vias possíveis e imaginárias. Os Estados Unidos da América são um exemplo do extremo nas sociedades consumistas”, elucida o artista, “eles são a supersociedade onde surgiram os primeiros painéis publicitários que eram concebidos de uma forma apelativa

e de rápida leitura visual”. Gabriel alerta-nos para a alienação dos mecanismos publicitários, “que hoje se desenvolveram em verdadeiras máquinas sofisticadas e existem para nos levar a consumir produtos de que nem necessitamos verdadeiramente”. Para Gabriel Colaço, “o artista é um emissor. A sua obra é o canal, o contexto e simultaneamente a mensagem”. A técnica não deve ser descurada, pois “da técnica e do processo de trabalho dependem a boa entrega da mensagem e a interpretação, pelo receptor” mas, não obstante isso, “a importância da técnica, no actual panorama da arte contempo-

“Eu diria que os artistas têm um papel importante”, afirma,“para além de fazerem parte da massa criadora de uma sociedade, têm uma visão crítica através do seu trabalho. Todo o progresso humano consistente necessita de criatividade e crítica q.b. E a arte possui uma faceta transcendente, isto é, manchas de tinta sobre uma tela, ou palavras escritas sobre um papel, que simbolizam estados de consciência humana e abrangem tanto a percepção como a emoção e a razão. A arte é, primeiramente, um contributo para o alargamento da consciência e para a expansão do homem e da sociedade. Entenda-se por consciência, a capacidade de aprendizagem do ser humano relativamente aos sistemas de relações que actuam sobre ele, que o influenciam e o determinam: as relações entre um dado objecto ou processo e o homem, o meio ambiente e o “eu” que o compõem”. Há uma diferença entre o modo como a arte era vista antigamente e como deve ser vista hoje, é que “contemporaneamente, a função do artista não é a de criar para a posteridade e sim para o presente, isto é, criar para a sociedade na qual vive e actua”. Paula Ferro


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artes plásticas 

DANIEL BARROCA

Mais encontrar do que criar Daniel Barroca nasceu em Lisboa em 1976. Estudou na Escola Superior de Arte e Design das Caldas da Rainha e no Ar.Co em Lisboa. Foi artista residente na Academia de Espanha, em Roma, e no Künstlerhaus Bethanien com a bolsa João Hogan.Actualmente,é-o na Rijksakademie van Beeldende Kunsten em Amesterdão.

“À

procura da impureza” “Intervalo/Nothingness” é a primeira exposição individual que realiza no Algarve. Tem a curadoria de Nuno Faria e encontra-se patente ao público na Galeria de Arte Convento Espírito Santo, em Loulé, até dia 8 de Maio. A exposição contém projecção de slides, desenhos e objectos. À entrada, uma peça arqueológica proveniente da Ermida de Nossa Senhora da Conceição, Loulé. A presença desta peça prende-se com a intenção do artista, que é mais descobrir do que criar. “Quando comecei a fazer estas peças estava a fazê-las porque queria aprender qualquer coisa sobre aglutinar a matéria, por causa dos desenhos que estava a fazer”, explica, diante das peças em barro, plástico e arame a que chama artefactos, “estava a criar formas que não fossem exactamente projectadas mas que acontecessem pela minha acção e que, ao mesmo tempo, não soubesse desde o início o que seria”. Estas obras são resultado de um processo que durou anos. “Quando as comecei a fazer não as estava a ver como trabalho que depois iria apresentar, só passados alguns anos olhei para elas de outra maneira e voltei a trabalhá-las, não apenas como uma coisa que acontece paralelamente, mas como um processo que podia comentar e registar. Por outro lado, comecei a lidar com elas mais como artefactos por causa da ideia que estava a fazer qualquer coisa que eu depois descobria. Que descobria com as minhas próprias mãos. Era mais encontrar do que criar”. Qual a diferença entre encontrar e criar? “Tudo depende da maneira como a minha cabeça está a funcionar quando estou a fazer. Nos desenhos nem se-

Desde 2001 tem mostrado o seu trabalho em exposições individuais e colectivas e em sessões de vídeo e cinema experimental. Destacam-se: “Espiritismo”, na LisboaPhoto; “Prémio EDP Novos Artistas 2003”, no Museu de Arte Contemporânea de Serralves; “Estilhaço”, na Fundação Carmona e Costa;

quer penso muito nisso, mas é mais criar porque à partida há a ideia que vou chegar a uma coisa que depois existe e apresento, mostro aos outros. Neste caso é mais qualquer coisa que me ultrapassava. Coisas que encontrava e não sabia o que eram, para as quais não tinha nome e com as quais tinha que lidar, um bocado como o artefacto que se encontra, se vê, foi feito por alguém e se integra na nossa vida. Qualquer coisa que se tenta compreender, analisar e ver o que é”. A mistura dos materiais é importante porque “é ir à procura da impureza e não do puro, uma coisa muito associada à ideia de criar, ao chegar a uma coisa que é simples, pura, a uma coisa que é coisa. Aqui pretendia misturar tudo para fazer outra coisa”. O barro não é cozido, “está a desfazer” porque “isto só pode ser efémero”.

de grafite foi feita agora mas o desenho esteve arrumado durante muito tempo até voltar a olhar para ele e continuá-lo. Na altura não estava a pensar em acabá-lo, mas depois voltou”. Já está acabado? “Agora está, mas o facto de estar acabado não quer dizer que esteja acabado”, sorri, “quer dizer, funda, dá origem a outra coisa. Uma coisa muito sobre a vida e a memória da vida”. A memória da vida faz parte da vida? “Faz!” E está viva? “Pode parecer que está morta e depois está viva”. E mexe?

“Lama”, no Museu da Electricidade / Fundação EDP; “Reality Crossings” na Manheim Künsthalle; “Documento.Projecto.Ficção”, na Fundação Eugénio de Almeida; “Soldier Playing With Dead Lizard”, no Künstlerhaus Bethanien; e “Movie Painting”, no NCCA em Moscovo.

“Sim, e mexe outra vez, e volta outra vez, parece que está enterrada mas depois sai de lá outra vez. Fica com a mão de fora”. Como se o tempo não existisse. “O tempo existe, o tempo para trabalhar sobre as coisas. Há uma altura em que parece que é linear e que as coisas se resolvem assim. Parece que acabou, mas não, voltamos lá outra vez, voltamos lá nós e aquilo também volta a nós”.

“A função do artista é sair da cristalização de dizer qual é a função”

“Uma forma que é informe” Uma projecção de slides sobre um desenho. “Mesmo quando muda é a mesma imagem ou é uma imagem muito semelhante. Este desenho acontece quando estava com muitas dúvidas sobre o que é o suporte, o que são os limites do desenho, o que é riscar uma coisa, o que é agir sobre aquela superfície. Uso a projecção para criar uma imagem que é a justaposição de duas coisas”, esclarece, “a ideia de duas coisas juntas que fazem uma coisa. Se uma desaparece, a outra já não existe. Há uma que se projecta sobre a outra”. Um desenho sem título que terminou este ano. “Aqui também há o tentar encontrar uma forma que para mim conta mas que é uma forma que é informe. Produzir uma coisa que é informe e que me afecta a mim”, explica, “não é uma coisa sobre a qual estou perfeitamente esclarecido e sei o que é. Tenho que agir para fazer aquilo, mas aquilo também está a agir sobre mim e coloca-me questões sobre mim como pessoa e como alguém que tem a capacidade de agir sobre as coisas e o que é que é isso”, pausa, “é um desenho que demorou muito tempo a fazer. A primeira camada, em guache, foi feita em 2005. A camada

Desenho a guache e grafite sobre papel, sem título

O Mapa é o trabalho mais recente, “está muito fresco, tem muita coisa que para mim é nova e que estou ainda a perceber”. Tudo está em processo. Expõe um trabalho quando sente “que é o momento. Quando a coisa está preparada para ser mostrada. Não sei dizer porque é que mostro ou porque é que está preparada. Percebo que faz sentido relacionar estas coisas e quando mostro o trabalho sinto uma distância que me faz pensar nele de outra maneira”. Não tem muitas emoções quando trabalha, “é algo mais de pele”. Tudo é experiência e não há simbolismos. Os rasgos no papel acontecem, é “o aceitar os imprevistos. Os percalços da vida que incluo no trabalho. O processo de trabalho faz parte da vida, faz parte da experiência do mundo. Estamos no mundo, temos uma experiência dele e depois vamos para o trabalho e projectamos essa experiência e ao mesmo tempo essa experiência de trabalho integra-nos nessa experiência do mundo”. A função do artista… “Não sei. Acho que é sair sempre da cristalização de dizer qual é a função. Quando há um modelo que se fixa, então, a minha função é sair daí. É sempre escapar. É confrontar o mundo com problemas, não ser consensual. Não tem a ver com pacificar, é outra coisa”. Harmonia tem a ver com isto? “Pode ter. O meu processo de trabalho, e quando digo o meu, é o processo de trabalho dos artistas, da arte, tem muito a ver com unificar o que está disperso. Quando se olha para o mundo e se diz: ‘isto está tudo mal, tudo partido, tudo disperso, eu tenho que fazer qualquer coisa!’ Isto, de algum modo, é tentar encontrar uma harmonia para as coisas, tentar encontrar uma ligação”. A harmonia tem a ver com equilíbrio? “Sim”. Mas não é estático. “Não, muda. Está permanentemente em transformação. O meu processo de trabalho é um processo de transformação minha e do mundo, da minha relação com o mundo e com os outros. Essa é a proposta que faço ao meu processo de trabalho”. Paula Ferro


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património

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Quando o mar galgou

Barco carregado de atuns durante o copejo

“E

stas ocorrências não têm história.” As palavras entraram recentemente casas adentro, em referência aos estragos provocados pelo mar nas ilhas de Faro e da Fuzeta. Então e a Abóbora? Sim, lembrei-me da Abóbora. Era Setembro, 1963. Recém-chegados a terras de Tavira, aos domingos íamos a banhos de mar a essa ilha fantástica, de casinhas alvas e gente hospitaleira. Mas o Verão esvaiu-se e deu lugar ao Outono e este à invernia. E o Inverno trouxe as tempestades, os vendavais, as ondas alterosas e embravecidas cuja força tudo arrasta. Até… uma aldeia inteira! Até… a nossa Abóbora! Escreve Aureliano Cruz, cabanense, que, com o decorrer dos anos e dos vendavais do quadrante sul, a barra começou a deslocar-se para nascente, dando origem à destruição do arraial. Fausto Costa, referindo-se à destruição de arraiais do concelho de Tavira, corrobora e complementa estas informações: com o decorrer dos anos, mercê de fortes temporais e das correntes marítimas que alteravam a localização das barras e, também, em consequência da fragilidade própria do cordão dunar, particularmente devido à sua reduzida largura nalguns locais, deu-se a destruição em certas zonas, afectando de início alguns arraiais e vindo a conduzir à ruína e des-

Luta corpo a corpo

truição de três: Medo das Cascas, progressivamente demolido entre 1933 e 1943, Livramento, em 1953, e Abóbora, em 1963. Ormerindo Bagarrão, pescador e poeta cabanense, descreve o colapso do arraial da Abóbora em poucas palavras, como só os poetas sabem: “E a Abóbora! Aquele Arraial / Hoje, no mar um montão de escolhos / Também foi tragado p’lo vendaval / Num simples abrir e fechar d’olhos” Mas, o que é uma armação? O Que é um arraial? O termo armação refere-se a uma das variadas técnicas de pesca do atum, a mais “clássica” e aquela que foi praticada no Algarve. Consiste num sistema de redes de grandes dimensões colocadas no mar, próximo da costa, no enlace da passagem dos atuns, espécie migratória, pelas águas do Mediterrâneo. A estrutura da armação ocupava no mar uma área quadrada, com cerca de dez quilómetros de lado. Tem uma área central, o corpo, na qual tem lugar a captura do atum. O corpo divide-se em três partes: a câmara, o bucho e o copo. A câmara funciona como a porta de entrada dos atuns; encaminhados para o bucho, a parte mais robusta da armação, os atuns estão definitivamente enclausurados e dirigem-se ao copo, onde tem lugar o acontecimento mais importante de toda a faina: o copejo. A cada almadrava no mar correspondia um arraial em terra. O arraial era uma autêntica aldeia construída sobre a praia: o conjunto de habitações onde os pescadores residiam com as suas famílias durante a temporada da pesca, residências dos governos, escritório, armazéns para arrecadação de materiais e oficinas, bem como instituições de apoio aos residentes. Nestas aldeias vivia-se, anualmente, desde Março até ao início de Setembro, período de

Fisgando um atum tempo correspondente à preparação da armação, à temporada da pesca, ao levantamento da armação e arrumação dos respectivos materiais. Abóbora O arraial da Abóbora, localizava-se na ilha a sudoeste de Cabanas. Lavínia da Silva, 75 anos, mulher de pescador da armação, viveu várias temporadas no arraial. Começou essa vida aos 22 anos, recémcasada e já com o filho a desenvolver-se dentro de si. E conta-nos, de olhar lançado ao largo, como que a reviver esses tempos: “As casas eram muito pequenas, uma só divisão que, por vezes, tínhamos que dividir com outra família, separados apenas por uma cortina ou uma esteira de palma. Para além das camas e da mesa, tinha um banquinho de madeira ao canto e um poialinho onde se punha a enfusa da água. Na frente da casa tínhamos um poialinho onde púnhamos uma lata e era ali que vazávamos os dejectos. Quando a maré enchia, nós íamos despejar”. Zulmira Botelho, 73 anos, relata: “Na minha casa, ainda puseram o meu sogro connosco. Tínhamos um cortinado a separar. A cama dele ficava aos pés da nossa cama”. Como elucida Fausto Costa, esta vivência em habitações de reduzidas dimensões constituídas por um só espaço sem divisórias fixas, onde se sobrepunham as zonas de dormir, de cozinhar, de comer e de estar, alojando, por vezes, duas famílias, originava complexos problemas de natureza social, só compreensíveis pela época em que se vivia: “Vivia-se uma época em que a principal preocupação de quem administrava era o rendimento da pesca, não contando muito as condições sociais facultadas às pessoas durante os meses da faina”. As construções constituíam uma cercania que envolvia um amplo espaço onde se colocavam

as artes de pesca e onde estas eram preparadas para a faina. A companha Companha era o nome atribuído à classe activa da armação, o conjunto de pessoas envolvidas na actividade pesqueira. Era constituída por cerca de cem pescadores, além dos governos, designação atribuída aos dirigentes do grupo – o mestre e os preguiceiros, e o escrivão. Escreve Miguel Galvão que a companha era dividida em dois turnos, chamados giros, o do mar e o da terra, trabalhando cada um deles, sob a direcção de um preguiceiro e ambos obedecendo ao mestre ou mandador. Para além destes, havia ainda um motorista e o seu ajudante e calafates. Dos governos, Lavínia e Zulmira fixam-se sobretudo no mestre da armação, aludindo frequentes vezes à arrogância que o caracterizava e ao medo que impunha: “O mestre era arrogante, não falava directamente com os trabalhadores. Andava sempre de casaco, mesmo que o calor apertasse”. A armação da Abóbora integrava, fundamentalmente, pescadores de Cabanas, de Santa Luzia e de Tavira. Sete meses de solidão “Íamos para lá por volta do mês de Março e só regressávamos no início de Setembro. Cabanas ficava deserta: a maior parte do povo ia para lá. Os nossos homens passavam o dia inteiro no mar. Começavam a faina antes do nascer do sol, por volta das seis da manhã, e era até enxergarem”, conta-nos Zulmira Botelho. “Havia três homens encarregados da vigia, do toque de alvorada e do recolher. A alvorada era com corneta, um som forte que acordava todo o arraial; à tarde, o sinal para parar era um som fraco, com recurso a um apito: como estavam a


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património

a terra as fotografias do arraial abóbora, engolido pelo mar há 47 anos, foram gentilmente cedidas por damião andrade - fotografia andrade - tavira

Apertando o cerco aos atuns trabalhar, se não o ouvissem, não fazia mal!” – ironiza Lavínia da Silva. E continua Zulmira Botelho: “As mulheres, à noite, juntavam-se às portas a conversar, mas antes das dez horas já tinha que estar tudo amalhado. Juntinho à minha casa ficava uma camarata, onde dormiam os homens que não levavam a família. Então, se fazíamos qualquer ruído, apanhávamos logo uma reprimenda do vigia”. Na ilha existia mercado onde se compravam as frutas e os legumes, um forno onde se cozia o pão, uma venda, onde os homens iam beber os copos de aguardente, e um barbeiro. Também ia lá o leiteiro, o Francisquinho do leite, vender o leite de porta em porta, logo pela manhã. E ia a tia Rita Chemeca, distribuir o pão. Em complemento destas fontes de abastecimento, diariamente apareciam na praia camponeses da vizinhança que vendiam os seus produtos hortícolas, ou mais frequentemente, os trocavam por peixe miúdo. “Comíamos à base de peixe, mas também sopa e verduras. Carne não se usava nem na ilha, nem em Cabanas. Não se comia carne”, explica Lavínia da Silva. Havia também um posto de enfermagem, onde eram prestados pequenos socorros e o posto da guarda-fiscal. Era aí que algumas mulheres iam ouvir rádio, o único que existia na ilha: “Era no tempo da novela A Gata”, lembra Lavínia da Silva. “E também de A Maria”, completa Zulmira Botelho. Apesar de A Gata e de A Maria, Lavínia completa esta parte da nossa conversa, com uma exclamação amargurada: “Eram quase sete meses por ano, vividos naquela solidão!” Uma lida difícil O objectivo de todo o trabalho era conduzir o peixe para o copo, que progressivamente se

reduzia. O peixe começa a sentir-se apertado, falta-lhe a água, espaço para se mover, agita-se, bate com a cauda e as águas espumam, molhando todos. É nessa altura que os copejadores, armando-se de arpões presos ao pulso por uma alça, tentam fisgar os atuns. Frequentemente, saltavam mesmo para dentro do copo, para uma luta corpo a corpo; muitas vezes caem no interior dos barcos, vencidos pelo cansaço, roupas rasgadas a escorrer suor e água, vergados ao peso dos enormes peixes, mãos e rostos tintos de sangue vertido pelos atuns. O peixe era de imediato içado, arrumado em barcos para transporte e inventariado, seguindo para a lota onde era vendido aos industriais de conserva. Alguns escritores portugueses, construíram metáforas a respeito do copejo, como Fialho de Almeida, que o denominou de “tourada marinha”. Raul Brandão, por sua vez, legou-nos narrativas tão extraordinárias como os espectáculos a que assistiu, de que extraímos apenas um pequeno excerto: “Só vejo manchas sobre manchas, sobrepostas, a cor e o movimento, a cor dos homens, a cor dos grandes peixes que se debatem e morrem, e a agitação que se precipita e acelera os gestos confundidos. E sobre tudo isto um grito, um grito de triunfo, o grito da matança que explode numa alegria feroz, a alegria primitiva – Eh! Eh!... num quadro imutável, todo vermelho e negro.” Também Teixeira Gomes, se rendeu ao espectáculo do copejo: “Então, o rapaz, de pé na borda da lancha, erguendo os braços e juntando as mãos, tomou um leve balanço e jogou-se à água, sumindo-se entre os peixes. Mas em poucos segundos ele surgia, montando um enorme atum, que, para se desembaraçar da estranha carga, entrou vertiginosamente, saltando sobre o outro peixe que lhe impedia a passagem, ou

mergulhando subitamente, para reaparecer alguns metros mais longe, sempre com o trintão às costas, agarrado com a mão esquerda a uma das alhetas, agitando a outra mão no ar, e dando gritos de triunfo.” Mas, a lida da almadrava, tinha tanto de espectacular como de austera. É precisamente sobre a dureza da faina que Zulmira e Lavínia se detêm mais apaixonadamente: “Era uma lida muito difícil. O que eu achava mais arrepiante era o alcatroar das redes. Era um tanque cheio de alcatrão, um calor horrível, era necessária muita força e era um trabalho que os homens faziam todos dobrados”, conta-nos Lavínia da Silva. “Então e aqueles ferros enormes, que eles tinham que carregar nos barcos? Para levar os primeiros, que eram os maiores, eram necessários vinte e quatro homens organizados em grupos de seis, uns mais à frente, outros mais atrás. Eu não podia ver o meu marido debaixo daqueles ferros!”, acrescenta Zulmira Botelho. Era uma escravidão Ostílio Rosa, de 79 anos, motorista da armação, recorda ainda com angústia, o tempo de trabalho na armação e de vida no arraial: ”Era uma escravidão. Não havia sábados, nem domingos, nem feriados. Não podíamos sair do arraial. Para excepcionalmente virmos a Cabanas, necessitávamos de autorização do mestre. E, quando regressávamos à ilha, tínhamos que avisar o vigia de que já tínhamos regressado. Havia uma espécie de visto, para sair e para entrar. O Eugénio veio cá a este lado namorar a mulher e não avisou o mestre. Ele soube e atribuiu-lhe o castigo: teve de ficar oito dias de vigia no mar, em vez de quatro.” “Tanto trabalho e tanta repressão para ganharem vinte escudos por semana. Depois, havia um dinheirinho, uma percentagem, mas só o entregavam no dia 4 de Outubro, dia da feira de S. Francisco. Chamavam-lhe o dinheiro de cima.

Lembro-me de um ano em que receberam 250 escudos.”, explana Lavínia da Silva. “Não dava para nada. Eu só tinha uma filha e tinha ajudas. Então e aqueles casais que tinham quatro ou cinco filhos? Quando vinha o dinheiro de cima, não chegava para pagar as dívidas”, arremata Zulmira Botelho. Fez pena ver tudo a ruir Perguntámos aos nossos interlocutores, com que sentimentos assistiram ao derrube da ilha. “Por essa altura já não havia lá ninguém, a actividade da armação já tinha acabado. O mar também ameaçou Cabanas, batia nas casas da baixa-mar como se fossem rochas. Por isso, estávamos mais preocupados com as nossas casas aqui. Mas foi um sentimento de pena. Fez pena ver tudo a ruir. Ainda organizámos lá um almoço de família. Mas não me senti bem”, desabafa Lavínia da Silva. “Só lá ficou a amoreira, que estava ao pé do posto da guarda-fiscal. Já estava tudo destruído e a amoreira continuava de pé. E manteve-se assim ainda durante alguns anos”, replicou Ostílio Rosa. Lavínia completa: “O mar levou tudo, levou a areia toda. Ficámos sem praia. Mas, com o tempo, voltámos a ter a nossa praia. O mar levou a areia e o mar a trouxe de volta”. Lavínia confidencia-nos ainda que, durante muito tempo, a Abóbora foi tese para os seus pesadelos. Porque, para Lavínia, Ostílio, Zulmira e todos os demais, essa vivência está entranhada em si próprios. Como diz António Rosa Mendes, o passado nunca passa, porque somos feitos de tempo: “A nossa matéria é o tempo e, nessa medida, se quisermos sinais de orientação em relação ao futuro, temos que nos apoderar do passado”. Maria José Mestre no âmbito do curso de jornalismo de cultura


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letras l Síntese Biográfica

Manuel Teixeira Gomes Escritor, diplomata, Presidente da República, nasceu, em Portimão, em 1860. Filho de um proprietário e comerciante frequentou o 1º ano da Faculdade de Medicina. O pai, exportador de frutos secos, encarregou-o de colocar os produtos nas cidades do norte da Europa. Cumpridas as obrigações comerciais tomava a rota do Mediterrâneo transladando-se de vapor em vapor nos portos do Levante e do Magrebe. A carreira de ministro de Portugal em Londres valeu-lhe, em 1923, a eleição para Presidente da República. Após dois anos de mandato renunciou ao cargo e partiu, no cargueiro holandês «Zeus», para um exílio voluntário, no Norte de África. Faleceu, em 1941, em Bougie.

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Colóquio Carnaval Literário

Um momento singular

H

élder Macedo, Eugénio Lisboa, José Augusto França, Nuno Júdice, Casimiro de Brito, Margarida Tengarinha, Vitor Wladimiro Ferreira, Khalid Zekri, Miguel Real foram alguns dos intervenientes no colóquio «Carnaval Literário - A mundividência de Teixeira Gomes na literatura e na arte», que decorreu nos passados dias 16 e 17, no auditório do TEMPO – Teatro Municipal de Portimão, em Portimão. Como notou Hélder Macedo, professor catedrático emérito do King’s College, em Londres, Manuel Teixeira Gomes é um autor do nosso texto e com a realização deste colóquio os estudos sobre o escritor deixam a infância em que se encontravam para entrar na adolescência. As comemorações do 150º aniversário do nascimento do escritor, em cujas celebrações o colóquio se integrou, têm o mérito de fazer luz sobre o homem e a obra de um escritor injustamente esquecido ou subalternizado e de desencadear acções várias que devem produzir a alteração dessa conjuntura e levar à revisão e reformulação dos olhares sobre Manuel Teixeira Gomes. O colóquio foi uma parcela de um esforço de reposição da ordem que passa necessariamente por dar a conhecer esse homem nas várias facetas da sua personalidade e que neste caso particular privilegiou a sua obra literária. Obra literária múltipla e diversificada nos géneros que cultivou mas nem por isso menos coerente e coesa. Ao longo de dois dias aconteceram 13 intervenções sobre temas distintos entre si mas que acabaram por permitir o reconhecimento de uma série de linhas de convergência e de contaminação que correspondem a outras tantas leituras, também elas diferentes entre si, não apenas no modo de abordagem do autor e nos pressupostos inerentes a esses modos de abordagem, mas também nos graus de proximidade que existem entre os vários leitores e o escritor objecto de reflexão e estudo. O colóquio veio pôr em evidência o muito que ainda está por fazer relativamente a Teixeira Gomes escritor. Se excluirmos alguns focos de interesse pela sua obra mais ou menos dispersos no tempo, entre os quais se incluem David Mourão Ferreira ou Urbano Tavares Rodrigues, o autor de «Inventário de Junho» não tem na história da literatura portu-

d.r.

Nuno Júdice, Helder Macedo, Eugénio Lisboa e José Augusto França iniciaram os trabalhos guesa o lugar que merece. Miguel Real destacou Manuel Teixeira Gomes como um dos cinco escritores do principio do século XX, cujo fundamento do acto de escrita está dentro do homem individual, nas forças vitais do corpo. São eles António Patrício, Raul Brandão, Almada Negreiros com «Nome de Guerra», e Fernando Pessoa com «O Livro do Desassossego». São autores que apresentam uma nova face da nossa literatura que não vingou, ao contrário do «presencismo» e mais tarde do neo-realismo. A expressão absoluta do corpo na literatura portuguesa morre com Teixeira Gomes e os outros autores citados. Com a realização do colóquio pretendeu-se conquistar leitores e estudiosos da obra. Do leque de intervenções resultou a valorização de uma imagem compósita de que participam o viajante, o político, o escritor, o esteta, sendo que a cada um deles correspondem razões específicas de interesse e de fascínio que as múltiplas facetas de Teixeira Gomes podem suscitar. Um dos aspectos mais significativos que resultaram do encontro foi a chamada de atenção para a importância de situar o homem no seu tempo. Uma contextualização que tem de ser feita, tanto no domínio social e político, quanto no domínio filosófico e literário, para que se possa partir daí para determinar o sentido, o significado e a margem de novidade que a sua obra comporta. Nas intervenções que se centraram

preferentemente na epistolografia ou em apontamentos de tipo memorialista foi possível detectar uma sistemática valorização da natureza, da arte e da vida, que aparecem sempre num contexto marcados pela capacidade de prazer e pela capacidade de abertura ao outro nas suas mais diversas facetas. As ideias quase de uma forma programática atravessam esses textos e vão ser encontradas nos seus trabalhos ficcionais. O que de alguma forma indica o interesse de ampliar os estudos sobre os géneros cultivados dentro da ficção narrativa por Teixeira Gomes. Importa também perceber os processos de transfiguração e de desfiguração da experiência vivida que são transpostos para o universo ficcional e que devem advertir para os riscos da leitura estritamente biografista a partir desses textos ficcionais. Textos que são para todos os efeitos objecto de um trabalho de transfiguração que pode chegar a extremos com os das representações alucinatórias. Deve assinalar-se nesse universo ficcional a incorporação de dados que integram a vasta cultura do escritor com particular incidência nas matrizes greco-latinas e na forma como os velhos mitos da antiguidade clássica são reescritos em textos aparentemente reportados a uma experiência vivida e contemporânea. Hélder Macedo, numa comunicação que teve como propósito relacionar «as incidências míticas na obra do escritor com os desdobramentos do eu manifes-

tados na sua atitude de simultaneamente actor e espectador de experiências recuperadas na imaginação da memória», lembrou como em «O sítio da Mulher Morta» se pode recensear Percéfone, assim como Galateia na transfiguração da personagem Maria Adelaide, na novela anónima. Nuno Júdice referiu-se ao primado do esteta e a dimensão panteísta e pagã que vem de Guerra Junqueiro e vai até Fernando Pessoa e Florbela Espanca. Nas conclusões do colóquio ficou sublinhada a riqueza imagética da prosa e do universo de Teixeira Gomes que, como observou Cristina Almeida Ribeiro, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, «considerada no seu todo… revela-se organizada a partir da construção de um narrador masculino que conta, na primeira pessoa, episódios de vida identificáveis com encontros e desencontros invariavelmente presididos por uma forte pulsão erótica». Margarida Tengarrinha lembrou como nos 20 anos que esteve longe da sua terra natal, por motivos políticos, a impossibilidade de voltar a Portimão a obrigou a «regressos» através da leitura de Teixeira Gomes. «Com ele tinha apreendido a ver melhor a sua terra. Foi ele o guia dos meus passeios quando eu fruía todo o colorido da sua memória saudosa, na inconsciência soberbia da juventude de estar e viver a plenos olhos». S.S.


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