CULTURA.SUL 173 6ABR2023

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ABRIL 2023 Ÿ n.º 173

Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o 10.626 EXEMPLARES

Qual o valor do corpo da mulher nas obras de arte?

SAÚL NEVES DE JESUS

Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/artes

No último artigo procurámos salientar a importância do corpo da mulher como fonte de inspiração de muitos artistas ao longo dos tempos, embora com abordagens distintas, quer como símbolo de pureza, quer como objeto de desejo sexual. No século XX ocorreu um incremento na expressão artística dedicada ao corpo da mulher nu pelos principais artistas, como sejam Amedeo Modigliani (“Nu deitado”, 1917-18), Pablo Picasso (“Mulher nua deitada“, 1932), Henri Matisse (“Nu azul”, 1952) ou Yves Klein (“S 41”, 1962-82).

Com a fotografia aumentaram as possibilidades de representação da figura humana e da sua expressividade, sendo Cindy Sherman uma

das artistas que se destaca pela sua especialização em autorretratos e uma nova forma de diálogo com o espetador. Procurando contribuir para a consciencialização do sexismo existente na sociedade, do qual as mulheres são vítimas, as suas fotos têm atingido valores muito elevados. Nomeadamente, em 2011, foi vendida uma fotografia sua, “Sem título #96” (1981), por 3,89 milhões de dólares, num leilão na Christie’s. Mas ainda mais elevado foi o valor pelo qual foi vendida a fotografia

“Le Violon d’Ingres” (“O violino d'Ingres“) (1924), da autoria do artista surrealista Man Ray. A imagem a preto e branco que transforma o corpo nu de uma mulher num violino, foi vendida por 12,4 milhões de dólares, num leilão realizado em 2022, tornando-se na fotografia mais cara de sempre a ser vendida em leilão.

Em todo o caso, bem mais caras do que estas fotografias, têm sido algumas pinturas de artistas famosos.

Em particular, o quadro "Shot Sage Blue Marilyn" (“Disparo salva Marilyn azul”), de Andy Warhol,

produzido em 1964, dois anos depois da morte de Marilyn Monroe, foi vendido por 195 milhões de dólares (cerca de 185 milhões de euros) pela leiloeira Christie’s, em 2022, tornando-se a segunda obra mais cara da história vendida em leilão, atrás de "Salvator Mundi" de Leonardo da Vinci. O título do quadro de Warhol resultou de um incidente em que uma mulher disparou sobre alguns retratos de Marilyn no estúdio de Warhol, embora este quadro não tenha sido atingido. Esta foi mais uma manifestação de protesto pela forma como o corpo feminino tem sido explorado como objeto de consumo nas artes visuais.

Em todo o caso, o preço de venda do retrato da atriz norte-americana bateu o recorde para uma obra do século XX, que era detido pela obra de Pablo Picasso "As Mulheres de Argel" (1954-55), que alcançou 179,4 milhões de dólares, em 2015. Nesta obra, Picasso inspirou-se na pintura de Eugène Delacroix, intitulada “As Mulheres de Argel no seu apartamento” (1834), fazendo parte

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ARTES VISUAIS

de uma série de pinturas feitas por Picasso em homenagem aos artistas que admirava.

Também em 2015 foi vendida a pintura de Amedeo Modigliani, intitulada "Nu Couché" (“Deitada nua”) (1917-18), por 170,4 milhões de dólares, pela Christie’s, em Nova York. Curiosamente, este mesmo quadro foi leiloado depois, em 2018, pela Sotheby’s, de Nova York, por “apenas” 157,2 milhões de dólares, isto é, menos 13,2 milhões de dólares do que o valor alcançado em 2015. Veja-se que, em todas estas obras que atingiram valores astronómicos em leilões realizados nos últimos anos, quer as fotografias de Cindy Sherman e de Man Ray, quer as pinturas de Andy Warhol, de Pablo Picasso e de Amedeo Modigliani, o corpo da mulher aparece como tema da inspiração destes artistas. Assim, o corpo da mulher, para além de ser um dos temas mais inspiradores da expressão artística, é também um dos mais valorizado nos leilões de arte, atendendo aos valores pagos por estas obras

Ficha técnica

Direção GORDA, Associação Sócio-Cultural Editor Henrique Dias Freire Responsáveis pelas secções:

• Artes Visuais Saúl Neves de Jesus

• Café Filosófico Maria João Neves

• Bibliotecofilia Maria Luísa Francisco

• Espaço ALFA Raúl Coelho

• Império Júdice Fialho Luís de Menezes

• Letras e Literatura Paulo Serra

• Mas afinal o que é isso da cultura?

Paulo Larcher

• Os Dias Claros Jorge Queiroz Colaborador desta edição

Mauro Rodrigues e-mail redação: geralcultura.sul@gmail.com

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Fotografia “O violino d'Ingres”, de Man Ray (1924) FOTOS D.R. Pintura “Nu deitado”, de Amedeo Modigliani (1917-18) Pintura “As mulheres de Argel”, de Pablo Picasso (1954-55) Pintura “Disparo salva Marilyn azul”, de Andy Warhol (1964) Pintura “Nu azul”, de Henri Matisse (1952) Pintura “S 41”, de Yves Klein (1962-82)

O Algarve de Costa-a-Costa: de Alcantarilha a São Bartolomeu de Messines

PAULO LARCHER

Jurista e escritor

FOTOS: António Homem Cardoso

Alinha de caminho de ferro do Algarve, que é o nosso guia desde o início desta viagem costa-a-costa, depois de atingir as alturas de Loulé deixa-se ficar por essas latitudes e só regressa aos litorais algarvios em Estômbar, Portimão e Lagos. Após ultrapassar Ferreiras-Albufeira, aliás, sobe ainda mais e cruza a Via do Infante, para se encontrar com a linha do Sul, em Tunes, onde também se inicia o troço para Lagos. Nesta, digamos, segunda etapa do trajeto total, passa perto de povoações fracamente povoadas - entre dois e quatro mil habitantes - e as estações encontram-se demasiado afastadas das povoações que “servem” e, portanto, pouco úteis para os habitantes locais. De facto as estações, ou melhor, os apeadeiros - com exceção de Algoz - ficam sempre desencorajadoramente longe dos núcleos urbanos.

Como os meus leitores mais assíduos se lembrarão, uma das razões que nos empurrou para esta lenta romaria costa-a-costa, foi a notícia do arranque da eletrificação da linha do Algarve, nos troços Tunes-Lagos e Faro-Vila Real de Santo António. Parecia uma ideia tão estupenda que quisemos celebrá-la com estes trabalhos que aqui vamos publicando. Contudo, termos sido viajantes deste comboio ronceiro fez mudar a nossa perspectiva, não pelo desconforto do comboio em si, mas por alguns dos percursos que toma, erráticos e de discutível utilidade. Parece-me a mim, que não sou técnico, que, sem alterações ao traçado da linha, eletrificá-la não irá resolver os problemas da desejada mobilidade sustentável, como se refere optimisticamente no projeto governamental.

Neste mês de março de 2023 - em que o Conselho de Ministros se deslocou em bloco ao Algarve - foi lançada com a pompa e circunstância devi-

das a notícia do projeto de um metro de superfície que iria unir Olhão a Loulé passando por 24 estações, para servir 180 mil pessoas. Exultei com a ideia. “Excelente! Até que enfim”, exclamei com os meus botões. Só que, poucos dias passados vieram corrigir a notícia: afinal já não era um metro de superfície mas um metrobus, ou seja, uns autocarros eléctricos que irão utilizar um corredor próprio presumo eu aproveitando (e estreitando?) as estradas pré-existentes. Acresce que de momento só há 70 milhões comunitários disponíveis, dos 120 necessários, mas tudo deve estar pronto lá para os finais de 2029. Deixem-me rir!…

Mas deixemo-nos de críticas. Para além dessas distâncias e notícias falsas, o que mais experienciou o cronista? Paisagens? Obras de arte? Belos palácios? Imponentes igrejas? Petiscou? O quê, então?

Bom, paisagens viu, mas sobretudo deparou-se com pacíficas correntezas de casas simples e airosas, não viradas para o turismo (ainda…) , com as suas formas e cores tradicionais, sobretudo o branco e vivos, aqui e ali, a ressaltar um pormenor ou uma função. Talvez todas essas povoações, Boliqueime, Ferreiras, Tunes, Algoz, Alcantarilha, Poço Barreto, guardem um pequeno e maravilhoso segredo da curiosidade superficial dos viajantes que, como nós, apressadamente e sem dar tempo ao tempo, pretendem chegar ao âmago das coisas sem a devida parcela de suor. No que nos diz respeito, confessamos que, tendo parado em cada um dos apeadeiros para dar uma vista de olhos, só nos detivemos com mais vagar em dois. O primeiro foi em Alcantarilha, porque tínhamos curiosidade em visitar a Igreja de Nossa Senhora da Conceição que alberga uma Capela dos Ossos. Este gosto macabro pelas “Capelas de Ossos” é frequente no Algarve - Faro e Lagos possuem uma - mas também é muito alentejano, vide a conhecida e imponente “Capela dos Ossos” de Évora ou a mais modesta de Campo Maior.

Em Alcantarilha, a Igreja paroquial situa-se frente à estrada mas a dita capela esconde-se num pequeno largo adossada ao lado Sul. Nesse largo deparamo-nos com uma impressiva homenagem a um prolífico poeta da terra, Manuel Neto dos Santos, que viemos a descobrir, produziu nos últimos trinta anos uma vasta obra poética. Olhando a ribeira de Alcantarilha que se contorce preguiçosa na larga e pacífica planície, recordei um belo verso do poeta: “Escrevo, para ouvir como se agitam as águas perante o rumor da minha voz […] / Escrevo, para que os sons da noite se revelem como relâmpago azul, dilacerando o silêncio […].”(1)

Finda a homenagem ao poeta da terra, admiro agora a macabra capelinha e os ossinhos dos seus hóspedes silenciosos. Reflito por instantes sobre esta vida tão breve e visualizo o meu próprio crânio, ou uma tíbia, a adornarem aquela parede peculiar até me dar um tremendo arrepio que me fez bater em retirada.

Após esta digressão metafísica, damos um salto para São Bartolomeu de Messines, visita facultativa segundo o nosso plano de viagem, pois é servida pela Linha do Sul e não pela Linha do Algarve, mas que representa uma deferência nossa à grande figura das letras portuguesas nascida nessa bela terra e de seu nome João de Deus de Nogueira Ramos. Quem queira prestar uma homenagem aos seus restos mortais, pode fazê-lo no Panteão Nacional, em Lisboa, pois esta personagem foi uma das grandes luminárias do romantismo literário e mereceu essa subida honra. Não teve porém vida fácil, pelo menos do ponto de vista financeiro, o nosso poeta. A largueza de meios nunca lhe bateu à porta, apesar do enorme prestígio nacional de que gozou, mas é assim o nosso Portugal, onde é tão difícil ser artista a tempo inteiro. Num poema satírico que cito de cor queixava-se ele: “O dinheiro é tão bonito / Tão bonito o maganão / Tem tanta graça, o maldito / Tem tanto chiste, o ladrão […]”

Pois na terra onde nasceu João de Deus, e na mesma casa onde viveu a partir dos 11 anos de idade até entrar no Seminário em Coimbra, os seus conterrâneos decidiram instalar uma Casa Museu onde, para além de uma variada atividade sociocultural, se perpetua a grande personalidade do artista e pedagogo.

Sim, pedagogo, pois - imagino que toda a gente o sabe - a maravilhosa Cartilha Maternal que ensinou a ler os nossos avós é obra de sua autoria. A fachada principal da Casa Museu é muito curiosa e foi muito bem recuperada nos anos noventa. Um dos elementos mais interessantes é a moldura das portas e janelas talhada numa pedra grés extraída das pedreiras de Monte de Boi, ali vizinhas. Com a erosão, a pedra ganha relevos e um tom arruivado muito característico, que ressalta do fundo de pedra mármore mosqueado, também fruto da região.

Aliás, o mesmo tipo de pedra anima a fachada da Igreja Matriz, vizinha da Casa Museu, e que por si só justifica uma visita a São Bartolomeu de Messines. Foi edificada nos finais do Séc. XV primeiros anos do Séc. XVI num estilo de inspiração manuelina, embora a fachada exiba uma decoração barroca de belo efeito. O mais interessante, porém, está no interior onde as naves são separadas por raríssimas colunas salomónicas de grés vermelho. O estilo manuelino perpetua-se numa série de arcos e abóbadas com as nervuras típicas deste estilo, uma delas ostentando no fecho a cruz de Cristo. É claro que o somatório destes detalhes encantadores não fazem por si só um monumento que deva ser visitado e admirado. A verdade é que para além desses pormenores há um não sei quê de arrebatador neste conjunto urbano cravado na encosta da colina do Penedo Grande: a igreja, o museu e o posto da GNR, também ele ornado com as mesmas rochas vermelhas de Monte Boi.

Isto de ser cronista é por vezes muito embaraçador, porque temos tendência a utilizar os

nossos valores e gostos nas escolhas que vamos fazendo: falar disto e não falar daquilo e, assim fazendo, vamos deixando marcas por omissão. É o caso agora: quase que me ia embora sem falar de José Maria de Sousa Reis (1796-1838), um filho adoptado desta linda terra, mais conhecido pelo cognome de O Remexido. A minha relutância tem a ver com o modo tremendamente violento como O Remexido defendeu os seus ideais mi-

guelistas, socorrendo-se da guerrilha armada, à frente da qual semeou o pânico e o terror no Algarve e Baixo Alentejo, até ser fuzilado pelo exército liberal.

Resta desta sangrenta história a memória dos seus feitos cruéis e a casa onde viveu, incendiada pela fação liberal num ato de vingança pública. É assim a história…

(1) Manuel Neto dos Santos, Círculo de fogo, 2016, p. 151.

16 CULTURA.SUL POSTAL, 6 de abril de 2023
MAS AFINAL O QUE É ISSO DA CULTURA?
FOTOS ANT ÓNIO HOMEM CARDOSO | D.R.

Como funciona a nossa cabeça?

MARIA JOÃO NEVES

Doutorada em Filosofia Contemporânea Investigadora da Universidade Nova de Lisboa

Esta pergunta deu cabo da cabeça aos filósofos durante séculos e continua a dar dores de cabeça aos investigadores, num amplo espectro, nos dias de hoje. Vejamos alguns destes casos:

O filósofo francês Renée Descartes (1596-1650) dando-se conta de que os órgãos dos sentidos por vezes nos enganam, resolveu pôr tudo em causa, começou a duvidar sistematicamente, chamando a este procedimento dúvida metódica Acabou por chegar à conclusão de que podia duvidar de tudo menos do facto de que duvidava, e se duvidava pensava, e se pensava existia… O famoso cogito ergo sum - penso logo existo. Ficou assim estabelecida a primeira verdade apodíctica - aquela que não é susceptível de nenhum grau de dúvida por ser tão clara e distinta. A partir daqui Descartes estabelecerá estas duas características-- clareza e distinção - como critérios de verdade. O filósofo francês entendia que a realidade se subdividia em res cogitans (coisa pensante), e res extensa (coisa extensa ou matéria).

Defendia o primado da primeira sobre a segunda postulando a existência de ideias inatas, quer dizer, ideias que “nascem” connosco, que não provêm da nossa vivência no mundo. Estas ideias inatas são claras e distintas, não são inventadas por nós mas produzidas pelo entendimento sem recurso à experiência. Descartes em Meditações sobre a Filosofia Primeira, obra publicada em 1641, descreve-as deste modo: “descubro em mim inúmeras ideias de certas coisas que possivelmente não existem nenhures fora de mim, mas que não podem, todavia, dizer-se que são nada. E embora, de certo modo, eu as possa pensar ou não pensar, segundo a minha vontade, não são, no entanto, inventadas por mim, mas possuem as suas naturezas verdadeiras e imutáveis.” (quinta meditação).

Em oposição, John Locke (16321704) filósofo e médico inglês, em Ensaio sobre o Entendimento Humano, publicado em 1690, defendia que a mente humana era como uma tábua rasa: as impressões captadas através dos órgãos dos sentidos iam imprimindo em nós algo de conhecimento. Como se fossemos feitos de argila, os

objectos do mundo exterior iam deixando em nós a sua marca.

O filósofo irlandês George Berkeley (1685-1753) no Tratado do Conhecimento Humano, publicado em 1710, fará uma crítica feroz a Locke. Berkeley considera que tudo existe dentro da nossa cabeça.

Os objectos materiais, como as mesas e as cadeiras, são ideias que só existem na mente daquele que as capta. Os objectos não teriam uma existência material separada de uma mente que os percebesse.

Bastante influenciado por Locke o escocês David Hume (1711-1776) publicou em 1748 a obra Investigação sobre o entendimento humano Neste livro põe em causa a Lei da causalidade, considerando que pelo facto de dois acontecimentos se seguirem um ao outro isso não implicaria que um fosse necessariamente a causa do outro. Imputou-lhes apenas uma sequência temporal a que nos habituámos.

Os filósofos que consideraram que todo o nosso conhecimento é empírico - provém da experiência - foram denominados empiristas

Aos que atribuíram o primado do conhecimento à razão chamou-se racionalistas. O conflito entre empiristas e racionalistas perdurou até que, por fim, o homem por quem se podia acertar o relógio conseguiu reconciliar ambas as teorias. Tratou-se de Immanuel Kant (1724-1804) o filósofo alemão que nunca viajou, e de quem se conta que saía pontualmente de casa às três e meia da tarde para o seu passeio diário.

Tal como o astrónomo Copérnico (1473-1543) propôs que se abandonasse a teoria geocêntrica de acordo com a qual os corpos celestes e o próprio Sol giravam em redor da Terra, Kant na sua obra Crítica da Razão Pura publicada em 1781 vai propor que se realize uma revolução copernicana em termos do estudo do conhecimento humano: “Se a intuição tiver que se guiar pela natureza dos objectos, não vejo como deles se poderia conhecer algo a priori; se, pelo contrário, o objecto (como objecto dos sentidos) se guiar pela natureza da nossa faculdade de intuição, posso perfeitamente representar essa possibilidade.”

Em seguida estabeleceu os limites do conhecimento humano: apenas podemos conhecer aquilo que captamos através das nossas próprias condicionantes, portanto, nunca podemos saber o que as coisas são em si mesmas independentemente do nosso modo de as captar. Kant chamou transcenden-

tal a este estudo das condições de possibilidade do conhecimento por parte do sujeito. Ao que quer que sejam as coisas em si mesmas, independentemente da nossa forma de as captar, Kant chamou númeno. O númeno é, obviamente, incognoscível. A todo o conhecimento que se pode obter sem recurso à experiência, Kant chamou conhecimento a priori; a todo o conhecimento que se obtém a partir da experiência Kant chamou a posteriori

Enunciou que o nosso conhecimento é um misto entre aquilo que temos dentro da cabeça, e que condiciona o modo como captamos as coisas, - a forma que é a priori, portanto, independente da experiência - sendo a forma algo inato e inerente ao sujeito que conhece, Kant coincide aqui com os racionalistas; e aquilo que captamos, os dados que introduzimos, a que Kant chamou matéria - algo que vem de fora, que provém da experiência sendo, portanto, a posteriori - aqui Kant coincide com os empiristas Kant distinguiu três tipos de juízos de conhecimento possíveis:

1. Juízos analíticos: o predicado está contido no sujeito. Por exemplo: todos os corpos são extensos. Estes juízos não acrescentam conhecimento. Os juízos analíticos são a priori, i.e., são universais e necessários e não dependem da experiência para a sua formulação.

2. Juízos sintéticos: o predicado não está contido no sujeito. Ex: os nativos do país x medem mais de 1.90m. Os juízos sintéticos acrescentam conhecimento mas são, normalmente, dependentes da experiência, i.e., só podem ser formulados a posteriori. São juízos contingentes.

3. Juízos sintéticos a priori - serão eles possíveis? Juízos em que o predicado não está contido no sujeito, portanto, ampliam o nosso conhecimento. Porém são a priori, i.e., independentes da experiência, universais e necessários. Kant dirá que sim. Ex: a linha recta é a distância mais curta entre dois pontos.

A existência de juízos sintéticos a priori foi o grande desafio kantiano. Para se perceber melhor como se processa a formulação de juízos há que atender ao processo de conhecimento exposto na Crítica da Razão Pura que aqui tentarei sintetizar:

1. Sensibilidade: este é o primeiro estágio de conhecimento e tem como formas a priori as intuições puras: Espaço e Tempo. Como matéria possui as intuições sensíveis

que “entram” através dos órgãos dos sentidos. É a este misto - dados que entram pelos sentidos e que são organizados no Espaço e no Tempo - que se vai chamar fenómeno.

2. Entendimento: neste segundo estádio o fenómeno produzido pela sensibilidade vai constituir a sua matéria. Por sua vez, o entendimento tem como formas a priori as categorias ou conceitos puros que podem ser de quatro tipos: quantidade, qualidade, relação e modalidade. Cada uma destas categorias subdivide-se em três tipos. Gostaria de chamar aqui à atenção para a lei de causa e efeito que, em Kant, aparece subsumida no conceito puro da relação Assim, a lei da causalidade é entendida por Kant como sendo inata e não como proveniente do hábito como pretendia David Hume.

3. Razão: o fenómeno proveniente da sensibilidade e organizado pelas categorias do entendimento vai produzir os juízos ou conceitos empíricos que, por sua vez, serão a matéria deste terceiro e último estágio de conhecimento. A razão tem como formas a priori as ideias transcendentais que ao organizarem os conceitos provenientes do entendimento vão produzir os raciocínios É da natureza da razão procurar leis cada vez mais gerais na tentativa de explicar um número cada vez maior de fenómenos. Muito atento, Kant estabelece então e pela primeira vez os seus limites: enquanto esta procura se mantém dentro do recinto da experiência tal tendência é eficaz e amplia

conhecimento. Ultrapassada esta fronteira a razão entra em paralogismos e antinomias. Porém, a razão tende para o incondicionado, pensa ideias das quais não podemos alcançar conhecimento por se encontrarem para além dos limites atrás estabelecidos. Deus, alma e mundo são, para Kant, as principais ideias da razão. Vejamos:

- Temos a expectativa de que o mundo existe como um todo, embora dele só experimentemos partes;

- A alma não pode ser conhecidanão existe o fenómeno alma - mas as nossas aflições e angústias, bem como o nosso livre arbítrio parecem apontar para a sua existência; - Deus tão pouco se constitui em objecto científico, mas a sua ideia norteia acções e condutas humanas; Apesar de não nos proporcionarem conhecimento estas ideias têm, segundo Kant, um papel importante: elas possuem um uso regulador, apontam a meta rumo à qual caminhar. Talvez a nossa mente precise desse horizonte de sentido que nos dá alento para prosseguir.

Café Filosófico | 20 Abril |18:30| AP Maria Nova Lounge Hotel, Tavira Contribuição: 5€

Inclui: água aromatizada / cálice de vinho

Inscrições: filosofiamjn@gmail.com

*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

17 CULTURA.SUL POSTAL, 6 de abril de 2023
CAFÉ FILOSÓFICO
O Apriorista. PETER HEER * DALL.E

Fábrica Júdice Fialho de S. Francisco em Portimão

LUÍS DE MENEZES

Investigador e Documentalista

Afábrica de conservas de atum e sardinhas de S. Francisco, situava-se no sítio do Estrumal, Estrada da Rocha, freguesia e concelho de Portimão, distrito de Faro e teve concessão de alvará n.º

4172 de 15-10-1923.1

Inicia a sua actividade em 15-5-1904, estando destinada principalmente à preparação de conservas de atum, mas que «também prepara sardinha em conserva e sardinha estivada em barris nos meses em que já não há pesca d’atum». Também nesta empresa fabril, temos a exposição do padre José Vieira: «A fábrica do Estrumal mede 20.000 m² d’área e contêm casas para soldadores, enlatar, ebulição, máquinas, geradores de vapor, telheiros de resíduos para guano, adega de azeite, armazém de materiais, uma bateria de 20 cal-

IMPÉRIO JÚDICE FIALHO

deiras para cozer o atum, quatro hangares para enxugar o peixe, pátio central, três prédios para morada dos empregados. Pessoal: mestre e contra mestre, mestra e contra mestra, 50 homens (soldadores e trabalhadores). Salários iguais aos da fabrica de S. José» 2

A fábrica de S. Francisco ou do Estrumal, era assim denominada pois situava-se ao sul da vila, na Quinta Foz do Arade, sendo propriedade de Francisco de Almeida Bivar Weinholtz (1868- ), que a arrendara (a 29-12-1903) e depois a vendera a João António Júdice Fialho (a 3-61911).3

A fábrica de S. Francisco, detinha num inventário datado de 1932, os seguintes equipamentos fabris: «18 mesas de descabeçar, de 12 lugares cada; 4 carros de cozer; 3 carros de estufar; 1 cofre estufa para três carros; 2 cofres de 40 grelhas; 6 mesas de enlatar para 150 lugares; 1 cravadeira Sudry n.º 1; 5 cravadeiras Matador; 1 cravadeira “Carnaud”; 1 cravadeira de lata redonda G.H.N.

Na secção de guano existiam 1 cozedor (dorna) e 2 prensas “Mabile”. Como máquinas diversas estavam instaladas 3 burrinhos para alimentação de caldeiras; 2 bombas para tirar água do poço; 2 depósitos rectangulares para lavagem de grelhas; 3 caldeiras a vapor; 1 motor de vapor e 1 dínamo»

A fábrica de S. Francisco, possuía 1 dínamo gerador de 20 kw, que fornecia energia eléctrica para iluminação em 1938 de 1426 kw.4

Por despachos ministeriais do Subsecretário de Estado ou do Ministro do Comércio e Indústria era esta fábrica autorizada: a 15-3-1935, a instalar 1 máquina de azeitar, juntamente com as fábricas de Ferragudo, Olhão e Lagos; a 8-5-1939, a instalar 1 cozedor simples igual ao aí existente e 1 cravadeira Sudry B.C. 15, juntamente com as fábricas de S. José, Ferragudo, Olhão, Peniche e Sines, sendo publicado no Boletim da Direcção-Geral da Indústria (DGI) n.º 120 de 25-5-1939; a 1-4-1940, a instalar 2 filtros para azeite, com as

respectivas bombas, sendo publicado no Diário do Governo, IIª Série n.º 86 de 13-4-1940 e no Boletim da DGI n.º 163 de 17-4-1940; a 4-6-1941, a instalar 2 autoclaves de esterilização com as dimensões de 1m,40 x 1m,27 x 3m,50 e outro de 1m,40 x 1m,27 x 1m,20; a 12-12-1942, a instalar uma máquina Rose Brothers para embalar as latas de conservas, que estava isenta de autorização do condicionamento industrial, segundo a DGI, na conformidade do disposto n.º 3, do artigo 1º do decreto n.º 31403 de 18-7-1941; a 12-11-1946, a instalar 2 autoclaves para esterilizar; a 27-6-1950, a instalar 2 cofres para cozer peixe, com a capacidade total de 4,830m3, sendo publicado no Diário do Governo, IIIª Série n.º 167 de 20-7-1950; a 20-6-1955, a instalar 1 cravadeira automática de 2 cabeças, construída nas oficinas do requerente; a 20-6-1956, a instalar 1 cozedor-secador a ar quente com 3m,40 x 1m,85 x 1m,86 nas suas instalações, sendo publicado no Boletim da DGSI n.º 893 de 11-7-1956; a

11-12-1965, a instalar uma cravadeira automática Vulcano tipo V3 CAU 50, sendo publicado no Boletim da DGSI n.º 887 de 29-12-1965.5

Segundo Ana Rita Silva de Serra Faria, esta unidade fabril produzia para conservas de peixe 444.163 kl em 1929, 694.217 kl em 1930, 951.891 kl em 1931, 618.211 kl em 1932, 296.985 kl em 1933, 620.586 kl em 1934, 699.414 kl em 1935, 580.382 kl em 1936, 489.616 kl em 1937, 582.732 kl em 1938, 476.258 kl em 1939, 703.935 kl em 1940, 100.825 kl em 1941, 241.795 kl em 1942, 340.821 kl em 1943.6

A fábrica de S. Francisco, produzia 50.000 caixas em 1931, 11.778 caixas em 1933, e 25.955 caixas em 1934. Esta entidade fabril, podia produzir 35 caixas por hora com as cravadeiras que possuía.7

Pela disposição da planta da fábrica de S. Francisco, esta era constituída em 1912: 1 - servidão da estrada municipal para a fábrica, 2 - hangares: cozedor de sardinhas, 3 - bateria de cozer atum com 20 caldeiras, 4

18 CULTURA.SUL POSTAL, 6 de abril de 2023
Fábrica de conservas Júdice Fialho de S. Francisco em Portimão (colecção do Museu de Portimão) Corte e alçado da fábrica de conservas Júdice Fialho de S. Francisco em Portimão (colecção do Museu de Portimão)
>
Interior da fábrica e lavagem da sardinha descabeçada em dornas da Júdice Fialho de S. Francisco (colecção do Museu de Portimão)

O primeiro cristianismo ibérico, questões em aberto

JORGE QUEIROZ Sociólogo

Ahistória de um território não é a de um povo e da sua religião, a narrativa nacionalista e o sectarismo religioso levaram a destruições e à apropriação abusiva de patrimónios e espaços. O surgimento de três religiões monoteístas no Médio Oriente, em épocas diferentes, provocou alterações no relacionamento comercial, cultural, competição teológica e bélica. Estas religiões têm enormes semelhanças, são estudadas pelo método analítico-comparativo.

O cristianismo, religião iniciática, penetrou na Ibéria a partir do séc. II a.C através de mercadores e marinheiros vindos do Mediterrâneo, soldados que percorriam as vias romanas, colonos das “villae” que se relacionavam com os locais. A diáspora judaica é anterior, sobre o Islão peninsular são raramente referidas as mobilidades de populações vindas do Magrebe antes de 711 quando o fenómeno do Islão não existia. Questiona-se como Tarik e Musa poderiam, com exércitos tão pequenos, conquistar a

Península em cinco anos sem apoio das populações hispano-godas.

A nova religião, o cristianismo, incorporou tradições pagãs, promoveu a substituição das divindades locais por Santos, mártires canonizados, caso de Mâncio que residiu em Évora, desenvolveu o monaquismo, fomentou a catequese popular, decretou restrições ao uso do sagrado, leis condenatórias dos heréticos e de apropriação dos seus bens, dos desvios morais, como a magia e adivinhações, feitiçaria, maus olhados. Elucidativas são as posturas da CM de Lisboa de 1385, as decisões de D. João I proibindo prantos a mortos, as Janeiras e os Maios…

Paulo Orósio (395 d.C - 420 d.C), teólogo nascido em Braga, autor “Historiarum adversus paganus”, foi uma personalidade destacada do cristianismo peninsular. Elaborou uma História Universal cristã, divulgou a teoria dos quatro Impérios, Babilónia, Macedónia, Roma pagã e Cartago, segundo ele o quinto seria a Roma cristã. Próximo de Santo Agostinho viajou pelo Norte de África, teve influência na geografia histórica medieval.

A ocupação territorial e formação de reinos cristãos, como Portugal

no século XII, ocorreu com o apoio das ordens religiosas militares, cruzados e milícias senhoriais. A luta pela reconquista de Jerusalém e dos lugares santos, pelo controlo da rota comercial de entrada dos produtos da China, da Índia e da Pérsia, mobilizou nove cruzadas entre 1096 e 1272, sempre derrotadas.

Incorporando crenças do mundo Antigo, pagão, helénico, hebraico e outras, o cristianismo foi uma revolução social, doutrina ecuménica contra a injustiça, a pobreza e a exclusão das mulheres, abalou as estruturas da ordem esclavagista. Multidões seguiram Jesus de Nazaré pela verdade e coragem das suas mensagens, seria o Messias que os hebreus esperavam.

Em 325 d.C., no primeiro Concílio Ecuménico em Niceia, actual Turquia, dirigido por Constantino reuniu 318 bispos, foi instituído o “credo niceno”, dogmas sobre a natureza divina de Jesus, a Encarnação, a Santíssima Trindade, a Igreja Santificada, a manutenção da Páscoa judaica.

Teodósio em 390 d.C decretou o cristianismo religião oficial do Império Romano, os bárbaros estavam já nas fronteiras, era necessário o apoio dos cristãos.

Roma caiu em 476 d.C, o brilho de Constantinopla sobreviveu e permaneceu durante mil anos, o Império Romano do Oriente.

A Igreja investida de poderes temporais, aliada dos Imperadores, perseguiu as heresias cristãs, como os gnósticos, corrente filosófica dos séculos I e II ligada aos cultos e mistérios greco-romanos, os arianistas anti-nicénicos seguidores de Ário diácono de Alexandria, para quem Cristo era filho de Deus, mas não o próprio Deus, os priscilianos que influenciaram as ordens monásticas medievais, permitiam a presença de mulheres e eram contra a opulência da igreja.

Em 1940 foram descobertos os “Manuscritos do Mar Morto” (séc. II a.C a I d.C), uma Bíblia hebraica e outros textos dos Essénios, seita judaica messiânica, mas logo ocorreu outra extraordinária descoberta, despertam hoje a investigação e também a ficção.

Em 1945 nas montanhas de Luxor, camponeses egípcios encontraram numa gruta treze livros em copta, papiros encadernados a couro, a biblioteca de Nag Hammadi. Depositados no Museu Copta do Cairo, foram datados com carbono 14, analisados por filólogos e outros especialistas.

Eram cópias dos evangelhos apócrifos gnósticos do século IV, de Tomé e Filipe, da Verdade, o Evangelho aos egípcios, extractos da “República” de Platão. O Evangelho de Maria Madalena relata a presença da mulher na vida de Jesus de Nazaré, a interdição dos textos da evangelista poderá explicar, como a transmissão de bens, causas do “cristianismo masculino” e do celibato. Com o poder temporal e a partir do século IV, a Igreja transformou-se no mais poderoso pilar da ordem feudal na Europa, as normas pós-Niceia baniram a heterodoxia do cristianismo original.

A história dos séculos I a IV d.C ou “primeiro cristianismo”, a vida de Jesus histórico, a herança da tradição oral, os evangelhos apócrifos, analise filológica de documentos, continua em aberto, o estudo desse período na Península e em Portugal é ainda pouco esclarecedor.

O cristianismo teve e tem grande influência na cultura portuguesa, mas no estudo não podemos excluir os contributos do paganismo, do judaísmo, do Islão e outros, patrimónios do País.

*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

> os barcos da sua frota. Em 1936, temos conhecimento do projecto de doca seca no estaleiro da Júdice Fialho em S. Francisco. Em 23-5-1983, o Instituto Português de Conservas de Peixe, informava que a fábrica fora desmontada e demolida, sendo cancelada a sua inscrição a 23-6-1983.8

- pátio central, 5 - adega do azeite, 6 - casa de enlatar o azeitar, 7 - casa para depósito de lata vazia, 8 - casa de ebulição, 9 - casa de secadores do vapor e depósito de carvão, 10 - armazém de lata cheia, 11 - armazéns depósito de madeiras e oficina de tanoeiras, 12 - casa do descabeçar, 13 - casa do sal, 14 - casa do salgar, 15 - hangar para alcatroar redes, 16 - poço para alimentação da fábrica, 17 - torre de ferro com depósito de ferro para distribuição de águas para a fábrica, 18 - casa do gasómetro de acetileno, 19 - casa de habitação do pessoal e residência do mestre da fábrica, 20 - depósito de vários utensílios, 21 - cocheira, 22 - eira de secagem de desperdício de peixe, 23 - prensas para prensar desperdícios de peixe, 24 - caldeiras para coser cabeças e desperdícios de atum, 25 - eira para o desperdício [mar?], 26armazém depósito do desperdício [?] do peixe, 27 - servidão para o rio com duas linhas férreas, 28 - comporta com adufa para esgoto de águas para o rio e tanque, 29 - comporta auto-

mática para esgoto de águas para o rio e tanque, 30 - chaminé de tijolo de 23 m de altura, 31 - chaminé de

tijolo de 10 m de altura, 32 - chaminé de tijolo de 10 m de altura, 33 - logradouro.

Nos terrenos desta fábrica, estava implantado um grande estaleiro, onde a empresa construía ou reparava

cf. Para esta fábrica de conservas de atum e sardinhas de S. Francisco, consulte-se a monografia de Luís Miguel Pulido Garcia Cardoso de Menezes - João António Júdice Fialho (1859-1934) e o Império Fialho (1892-1981), Lisboa: Academia dos Ignotos, 2022, pp. 36-39.

2cf. José Gonçalves Vieira - Memoria Monographica de Vila Nova de Portimão, Porto: Typographia Universal, 1911, p. 90.

3cf. Museu Municipal de Portimão (MMP), Arquivo Júdice Fialho, «Documentos Oficiais»: “Escritura de arrendamento da Quinta da Foz do Arade”, caixa 431, A 37, documento n.º 5859 de 29-12-1903 e MMP, Arquivo Histórico, 5ª Circunscrição Industrial, Processo n.º 183: S. Francisco (Júdice Fialho), Alvará n.º 4172 de 15-10-1923; Luiz Mascarenhas - Indústrias do Algarve, Lisboa: Centro Typographico Colonial, 1915, p. 15; e Jorge Miguel Robalo Duarte Serra - O Nascimento de um império conserveiro: “A Casa Fialho” (1892-1939) [Texto Policopiado], tese de Mestrado em História Contemporânea pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade do Porto, 2007, pp. 57-58. 4cf. Jorge Miguel Robalo Duarte Serra, op. cit., pp. 93-94 e 96 e MMP, Arquivo Histórico, 5ª Circunscrição Industrial, Processo n.º 183: S. Francisco (Júdice Fialho), Alvará n.º 4172. 5cf. Ministério do Mar, Direção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos (DGRM), Arquivo do Instituto de Conservas de Peixe (1936-1986), Júdice Fialho, Conservas de Peixe, SARL. Portimão (S. Francisco). Fab. 4.701.108, 1934. 6cf. Ana Rita Silva de Serra Faria - A organização contabilística numa empresa da indústria de conservas de peixe entre o final do século XIX e a primeira metade do séc. XX: o caso Júdice Fialho”, Tese de Mestrado, Universidade do Algarve / Universidade Técnica de Lisboa, Faro, 2001, Anexos, quadro II. 6, p. 14. 7cf. Cada caixa levava 100 latas de conservas de peixe. 8cf. Ministério do Mar, DGRM, Arquivo do Instituto de Conservas de Peixe (1936-1986), Júdice Fialho, Conservas de Peixe, SARL. Portimão (S. Francisco). Fab. 4.701.108, 1934.

19 CULTURA.SUL POSTAL, 6 de abril de 2023
OS DIAS CLAROS
Planta da fábrica Júdice Fialho de S. Francisco ou Estrumal em Portimão (colecção do Museu de Portimão)

A Biblioteca Municipal de Faro e os patronos das bibliotecas

seu dedicado ao novo espaço. Conversei recentemente com a viúva de António Ramos Rosa, Agripina Costa Marques, também poeta, de 93 anos e de uma lucidez e simpatia imensas.

Referiu a alegria com que o marido recebeu a homenagem, que considera merecida e acabámos a falar sobre o tempo da Censura.

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Programadora Cultural luisa.algarve@gmail.com

“Os poetas nunca partem. Às vezes, encerram para balanço.”

ODia Mundial do Livro será celebrado dentro de poucos dias para relembrar a importância dos livros na vida dos leitores. Por decisão da UNESCO, esse dia comemora-se a 23 de Abril desde o ano de 1996. É uma data especial para as bibliotecas e muitas delas foram inauguradas precisamente a 23 de Abril.

A escolha da data é justificada por William Shakespeare e Miguel de Cervantes terem, supostamente, morrido a 23 de Abril de 1616. Pesquisando informação mais detalhada não se encontra nenhum documento que comprove que um ou outro tenha morrido nessa mesma data, mas o mais importante é que aquilo que os une e que une os leitores nunca seja esquecido: o livro. Mais do que comprovado é que 1923 foi o ano de nascimento de grandes referências culturais em Portugal. Assim, este ano celebra-se o centenário de nascimento das personalidades aqui referidas e para as quais os livros e as bibliotecas foram verdadeiramente importantes:

Eduardo Lourenço (1923 - 2020)

Eugénio de Andrade (1923 - 2005)

Mário Cesariny (1923 - 2006)

Mário Henrique Leiria (1923 - 1980)

Natália Correia (1923 - 1993)

Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013)

Alguns destes escritores e poetas deram nome a bibliotecas.

Uma das missões das bibliotecas

é perpetuar a memória, nomeadamente de quem teve com o seu percurso individual uma dimensão colectiva e que contribuiu de forma relevante para a educação, a cultura, a ciência, ou qualquer outra área do conhecimento.

Particularmente quando deu grandes exemplos de participação e envolvimento com a sociedade, valorizando as identidades locais, levando-as mais longe.

A adopção de um patrono serve não apenas para dar visibilidade ao espaço, mas para o patrono continuar a viver de forma dinâmica, sendo divulgada a sua obra, homenageado o seu legado e enaltecida a sua memória.

Por vezes a biblioteca é conhecida apenas pelo nome do patrono. Quando estava a caminhar para a biblioteca para fotografar as suas duas entradas, um grupo de jovens dizia entre eles: “Vamos para a Ramos Rosa”!

Esta proximidade e interiorização do nome de uma figura que podia ser distante faz com que o poeta esteja mais presente e, espero, que a sua poesia continue bem viva no seio da comunidade!

Biblioteca Municipal

António Ramos Rosa

No próximo Dia Mundial do Livro, a Biblioteca Municipal celebrará 22 anos. Foi inaugurada no dia 23 de Abril de 2001 com a presença do Presidente da DGLAB, na altura

IPLB, do Presidente da CMF, demais entidades locais e do seu patrono.

António Ramos Rosa nasceu em Faro, a 17/10/1924, e morreu em Lisboa, a 23/09/2013. Poeta, ensaísta e tradutor, “figura central da poesia portuguesa de todos os tempos”, recebeu o Prémio Pessoa em 1988. Recebeu também o Prémio PEN Clube, o Grande Prémio

de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores e o Prémio Jean Malrieu para o melhor livro de poesia traduzido em França. Deixou uma vasta obra com quase uma centena de livros entre os quais: O Grito Claro, Rosa Intacta, Estou Vivo e Escrevo Sol, Incêndio dos Aspectos, Nos Seus Olhos de Silêncio, Respirar a Sombra Viva, Acordes e o último que publicou, intitulado Numa folha, leve e livre, foi apresentado na Biblioteca com o seu nome, a 21/10/2014, conjuntamente por Adriana Nogueira e por mim.

António Ramos Rosa tinha grande proximidade com outros poetas

Estou a escrever sobre a Censura Literária no Estado Novo e fiquei a saber nesta conversa que o livro Poesia, Liberdade Livre foi inicialmente apreendido devido ao título, considerado suspeito. No entanto, a Comissão de Censura acabou por cancelar a apreensão por não ter encontrado nada de subversivo. Vale a pena ler a poesia de Ramos Rosa e visitar esta Biblioteca que está instalada num edifício de arquitectura revivalista neo-árabe de 1899, que foi construído para servir de matadouro municipal. A criação oficial da Biblioteca Municipal de Faro remonta a 1902, ano em que foram entregues à Câmara Municipal os primeiros 2000 volumes recolhidos, que ficaram instalados numa sala dos Paços do Concelho. Em 1943 todas as obras existentes foram registadas e adquiridos novos livros. Foi criada uma Biblioteca ao

algarvios. Há um livro com a correspondência trocada com o poeta Manuel Madeira (1924 - 2016), também com vasta obra publicada e considerado um exemplo de coragem na forma como enfrentou a PIDE, intitulado: Cartas poéticas entre António Ramos Rosa e Manuel Madeira. Existiu grande proximidade também com Gastão Cruz (1941 - 2022) que foi muito atento à poesia de Ramos Rosa e à história da poesia portuguesa, que conhecia como poucos. No discurso proferido durante a cerimónia de inauguração da Biblioteca Municipal de Faro, em 2001, António Ramos Rosa terminou com estas palavras: “A minha vida culmina com o meu nome a esta casa” e brindou o auditório com um poema

Ar Livre, na Alameda João de Deus (o mesmo lugar onde agora existe a Biblioteca Municipal de Faro).

É um lugar privilegiado da cidade com diferentes espécies vegetais e algumas árvores centenárias, um lago, cisnes, pavões e tem entrada directa do jardim para a Biblioteca.

A Biblioteca Municipal de Faro tem uma programação bastante activa com grande destaque para a poesia. De referir uma original iniciativa de 2019 designada “ler é o melhor remédio”, em parceria com a Administração Regional de Saúde do Algarve (ARS), para distribuição de “receitas poéticas”, inclusive com a aparência de uma prescrição médica, recomendando ao utente a toma de poemas da autoria de diversos autores.

Cito essa informação «A posologia das receitas indica que se deve “ler um poema de 12 em 12 horas” e, consoante o caso, a receita poderá contribuir “para melhorar o humor”, “para começar bem o dia”, “para combater a dor emocional” ou até “para ler a um amigo”. É também autorizada e aconselhada a visita à Biblioteca Municipal de Faro, que terá um livro para oferecer a todos os cidadãos que apresentem a “receita poética”.» “A Biblioteca fora de Portas” é outra iniciativa que leva as histórias até à Unidade de Pediatria do Centro Hospitalar Universitário do Algarve. “Histórias contadas, sorrisos partilhados” um projecto de envelhecimento activo e saudável Para além do “Encontro com Autores”, a Biblioteca tem a “Hora do Conto” tradicional, mas também a “Hora do Conto com Pais e Avós a contar histórias”, tem Cinema mensalmente e Visitas Guiadas. O mundo das bibliotecas e dos livros é fascinante, através deles viajamos, aprendemos, crescemos intelectualmente, ganhamos paz de espírito ou inquietação e tornamo-nos outras pessoas. As bibliotecas e a era digital Sabemos, no entanto, que novos desafios se colocam nestes tempos em que temos o écran na palma da mão. A era digital faz-nos pensar no futuro das bibliotecas e na forma de acolher os leitores. As bibliotecas são pilares a preservar, mas ao mesmo tempo há que integrar a era digital. Adaptando esta rubrica, escrita no Jornal, às novas tecnologias, posso adiantar que em breve incluirá imagem em movimento, ou seja, o leitor poderá acompanhar acontecimentos relevantes tais como a inauguração de uma biblioteca. Ser patrono de uma biblioteca é uma homenagem que muitas vezes é atribuída a título póstumo, mas quando essa honra é atribuída em vida vale a pena acompanhar o momento único desse patrono que ficará para sempre com o nome no exterior da biblioteca e para sempre na memória dos que o lêem. Para comemorar o Dia da Liberdade poderá acompanhar no dia 25 de Abril a atribuição do nome de um autor de relevância nacional a uma biblioteca portuguesa. Basta seguir o nome desta rubrica “Bibliotecofilia” nas Redes Sociais (Instagram ou Tiktok).

*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

20 CULTURA.SUL POSTAL, 6 de abril de 2023 BIBLIOTECOFILIA
Entrada da Biblioteca Municipal de Faro pelo Jardim da Alameda João de Deus FOTOS MARIA LUÍSA FRANCISCO | D.R. Entrada principal com manuscrito de António Ramos Rosa

Não deixem as platibandas e as chaminés morrer

MAURO RODRIGUES

Membro da ALFA

- Associação Livre Fotógrafos do Algarve

Abrir os olhos e os cordões à bolsa a todos, especialmente a governantes é o objectivo deste artigo, que infelizmente mostra a triste realidade que assombra um dos mais importantes traços da cultura tradicional portuguesa, o contínuo risco de extinção da arte envolvida nas platibandas, das chaminés, das portas e janelas... essencialmente todos os pormenores arquitectónicos da casa tradicional típica portuguesa algarvia. Um símbolo que visa mostrar a individualidade distinta de cada proprietário. Quanto mais elaborada, minuciosa e única a arte em disposição, mais demonstrava a riqueza inerente do dono da casa. Esta arte e perícia popular de grande originalidade são o resultado da relação das populações com o território e do aparecimento de técnicas e materiais de construção mais modernizados na altura, aparecem nos finais do século XIX e inícios do século XX num período de prosperidade económica na região. A platibanba e as chaminés elevavam literalmente a casa dando-lhe mais imponência e significado visual, criando a ideia de um status social mais proeminente. Existem exemplares únicos espalhados um pouco por todo o litoral e interior algarvio, autênticas pérolas que merecem ser fotografadas e conhecidas do público em geral e são cada vez mais difíceis de encontrar. Além de que, de vez em quando, vêm-se muitos outros exemplares completamente ao abandono. As características mais presentes na casa algarvia, são em primeiro lugar as cores: faixas coloridas em volta da casa e em redor das janelas, principalmente o azul ultramarino, o óxido amarelo, ocre e o óxido de ferro; o laranja, o verde e o vermelho eram usados mas com menos proliferação. O restante da casa é o branco, originalmente pintado com cal, o que dá uma luminosidade e cor fantásticas à mancha geral da vila. Algumas das casas são preenchidas com azulejos, telhas moura também elas características e o mármore. No litoral são típicos os terraços e as açoteias, mais cúbicos com escadaria no lado exterior para aceder às próprias, que eram usadas como mirantes aos barcos que vinham da pesca, estender a roupa ou fazer a secagem do figo, amêndoas,

milho ou de peixe por exemplo. Mas as platibandas são mesmo o elemento principal de destaque, com desenhos abstractos, com motivos florais, geométricos ou que identifiquem algo importante ou distinto em relação à casa ou à profissão, como por exemplo a agricultura ou a produção de pão. As chaminés de igual importância eram normalmente rendilhadas, em forma de catavento, de pombal, de torres de igreja ou minaretes arábicos. Até as saídas para escorrer as águas da chuva tinham pormenores particulares de cerâmica ou barro. Pelo que pude perceber existe muito pouca informação destinada ao público em geral e aos turistas para poder descobrir estas precisiodades cada vez mais raras, ao que é urgente catalogar, fazer um levantamento e criar rotas turísticas para que possam ser descobertas, um apelo que as Câmaras Municipais, que deveriam estar mais atentas à cultura urbana e há identidade algarvia,

podiam já ter feito à bastante tempo, além de igualmente fazer um esforço ou criar mecanismos para as preservar, restaurar e suportar a sua própria existência. Obviamente, o ideal mesmo, seria a possibilidade de esta arte ser continuada a ser enriquecida com casas novas e nova arte por novas gerações, mas isso é tudo uma questão de agilização e vontade política, tudo se consegue com novas ideias e decisões apesar das adversidades da economia que vivemos atualmente. Finalmente, não me vou esquecer de mencionar e louvar o trabalho do fotógrafo Filipe da Palma, que recentemente lançou o livro “Platibandas do Algarve” com um excelente levantamento fotográfico da diversidade artística presente na casa algarvia. A ALFA (Associação Livre de Fotógrafos do Algarve) recomenda vivamente aos fotógrafos amadores e profissionais a pegar nas suas câmaras e partir à descoberta desta particular identidade algarvia

21 CULTURA.SUL POSTAL, 6 de abril de 2023
Um dos belíssimos exemplares da típica casa algarvia com uma platibanda ornamentada com elementos artísticos únicos FOTOS MAURO RODIRUGES | D.R.
ESPAÇO ALFA
A belíssima chaminé algarvia, rendilhada e pintada com pormenores cada vez mais raros de se encontrar

Duas grandes obras que ajudam a colocar em perspetiva os vários lados de uma guerra

No dia 24 de fevereiro assinalou-se já um ano de guerra, desde que a Rússia invadiu a Ucrânia. Neste triste contexto histórico, apresentam-se dois romances poderosos e fortíssimos, ambos de autores nascidos na Ucrânia, que lançam luz sobre aquele território que volta a ser palco de guerra.

Bábi Iar, de Anatóli Kuznetsov, é um relato na primeira pessoa da desumana ocupação de Kiev pelos alemães. Stalinegrado, de Vassili Grossman,

traça um ambicioso fresco da Rússia soviética, com incidência nos anos da Segunda Guerra Mundial, na ofensiva alemã e na defesa e, depois, na contraofensiva soviética, que culminou na libertação de Stalinegrado e dos territórios ocupados pelos nazis. Em Stalinegrado é inclusivamente possível ler uma passagem onde se refere Bábi Iar e se descreve o momento em que as tropas soviéticas abandonam a capital da Ucrânia, depois de testemunharem a

destruição causada pelos soldados nazis: “Era terrível o choro das mulheres, a tácita pergunta nos olhos dos velhos, o desespero nas caras de centenas de pessoas…” (p. 222)

Estas duas grandes obras aqui propostas são testemunhos históricos e leituras de tirar o fôlego que ajudam a colocar em perspetiva os vários lados de uma batalha onde, no confronto de poderes, quem perde é sempre o povo.

Bábi Iar, de Anatóli Kuznetsov

PAULO SERRA

Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do Centro de Investigação em Artes e Comunicação (CIAC)

atual com a inclusão de uma introdução por Irene Flunser Pimentel que contextualiza este romance no atual momento histórico. Há inclusivamente uma passagem no romance que o torna tão atual quanto premonitório: “Não escrevi este livro simplesmente para relembrar o passado: escrevo hoje sobre a ocupação de Kiev, que testemunhei e que está bem documentada; porque a mesma espécie de acontecimentos está a suceder agora; e não há qualquer garantia de que não voltem a acontecer amanhã episódios ainda mais sinistros.” (p. 396)

Documento em forma de romance

Como nos é anunciado, logo no Prefácio, assinado pelo autor, a cujas primeiras linhas, nos fará regressar mais do que uma vez: “Tudo o que este livro contém é verdadeiro”. Num dos vários capítulos em que o autor interpela directamente o leitor (designados justamente «Fala o Autor»), podemos ler: “Devo lembrar-te uma vez mais que nada disto é inventado; aconteceu, de facto. Nada se inventa, nada se exagera. Pelo contrário, omito, até, certos pormenores da carnificina, (…) nada há neste livro que de longe se assemelhe a invenção literária.” (p. 300)

exército soviético, a população dividiu-se. Anatóli tinha então doze anos e assistiu à discordância no seio da própria família; o avô era um simpatizante germânico, que via a Alemanha como sinónimo de progresso e ordem, enquanto a Rússia significava fome e repressão, contudo, ao longo do livro, arrepender-se-á profundamente e muda de opinião.

Bábi Iar, de Anatóli Kuznetsov, é agora publicado pela primeira vez em Portugal pela Livros do Brasil numa versão integral não censurada. A tradução é de Jorge Rosa e a revisão de Manuel Reis. A coleção Dois Mundos continua assim, há que dizê-lo, a ganhar destaque no campo editorial com uma excelente oferta de obras inéditas, mas também com a reedição de romances já conhecidos do público leitor.

A reedição deste livro, em outubro do ano passado, torna-se ainda mais

«Esta edição de Bábi Iar, de Anatóli Kuznetsov, publicada pela Livros do Brasil, é diferente e complementar da versão que a mesma editora deu à estampa em 1970. Enquanto esta se baseava na tradução da versão soviética de 1966, censurada pelas autoridades, a atual tem origem no livro completo com o mesmo título, Bábi Yar, publicado em 1970, nos EUA, depois de, no ano anterior, o autor se ter exilado para o Reino Unido», explica Irene Flunser Pimentel na Introdução.

Não obstante a dimensão – quase 500 páginas – e a temática do livro, é um romance apaixonante, que se lê de um fôlego, que retrata uma cidade e um país destruídos pela guerra, pela perspetiva de uma criança.

Criança essa que, há que dizê-lo, é, desde tenra idade, um voraz leitor que, mesmo em tempos de guerra, procura avidamente o que possa aproveitar entre as pilhas de livros que vê serem destruídos.

Mais do que um romance, Anatóli Kuznetsov classifica assim Bábi Iar como um «documento em forma de romance», consoante o subtítulo explicita. E é um facto que, ao longo da narrativa, são vários os recortes de documentos, notícias e anúncios de que o autor faz uso, para compor e dar veracidade ao texto. Recorre-se ainda a testemunhos de outros sobreviventes, que conferem uma veracidade pungente ao texto, e há passagens que nos atingem como um murro.

Entre os doze e os catorze anos, enquanto era «um faminto e assustado rapazinho», a sua luta pela sobrevivência, cujo relato vivo nos assombra ao longo destas páginas, não impediu o autor de compilar notas sobre o massacre que ocorreu no que tinha sido até então o seu local de brincadeiras. Nas primeiras páginas, podemos ler como dá por si a pisar um campo de cinzas e ossadas humanas…

Em setembro de 1941, as tropas nazis conquistaram Kiev. Fascinada pela elegância dos soldados alemães ou esperançosa na reconquista do

Obra é um importante testemunho sobre a ocupação nazi de território soviético

O horror banaliza-se

Os dias passam e a esperança dá lugar ao horror, conforme se torna claro que o território de Bábi Iar –nome dado pelos alemães e depois mantido pelos soviéticos – passa a ser palco de um crime terrível. Soube-se ainda, mais tarde, que se estava a montar ali uma fábrica experimental para transformar os mortos em sabão – o que nos recorda, uma vez

mais, como, mais do que o horror da guerra, capaz de dizimar milhões de vidas humana, é a forma cerebral e desumana como se tentou converter a guerra numa máquina de lucro. Entretanto, em Kiev, o horror generaliza-se e banaliza-se. Queimam-se livros (o que é sempre um sinal do princípio do fim dos tempos); incentiva-se que as pessoas não tenham educação em excesso; os disparos não cessam, ao ponto de se tornarem um ruído de fundo que acompanha o pulsar dos dias; abrem-se valas comuns; convocam-se os judeus, que não percebem bem que se encaminham para o seu fim, depois os ciganos, depois todos aqueles que se designam como “inimigos do povo”, até que não haja mais povo para chacinar…

Estes acontecimentos terríveis são filtrados pela perspetiva inocente de uma criança que, inevitavelmente, dá por si a despedir-se da infância e a perder a inocência. O seu dia-a-dia passa a girar em torno de algo tão primal como sobreviver – e o que é certo é que ele conseguirá, de facto, escapar às balas, às bombas, às patrulhas –, e algo tão instintivo como conseguir encontrar o que comer, ou conseguir ganhar algumas moedas, de modo a ter algum sustento para a família. A fome é uma constante sensorial e descritiva que perpassa as páginas deste romance de forma incrivelmente nítida. Uma fome capaz de levar as pessoas ao canibalismo.

Versão censurada

Em 1961, Anatoli Kuznetsov submeteu o seu testemunho deste período às autoridades soviéticas.

22 CULTURA.SUL POSTAL, 6 de abril de 2023
Anatóli Kuznetsov começou a registar os acontecimentos que testemunhou sobre o massacre de Bábi Iar aos 14 anos FOTO D.R.
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Stalinegrado, de Vassili Grossman

Stalinegrado, de Vassili Grossman, é um portentoso romance, e não nos referimos apenas à sua dimensão enquanto cartapácio de quase 800 páginas numa letrinha miudinha. Imenso na dimensão humana, histórica, lírica, metafísica, ao constituir um ambicioso fresco das vidas dos russos em primeiro plano, com a Segunda Guerra Mundial como pano de fundo.

Publicado pela primeira vez em Portugal pela Dom Quixote, com tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, Stalinegrado é o primeiro de dois romances – igualmente volumosos – que focam a vida dos russos na linha da frente. Vida e Destino, sequela de Stalinegrado, considerado a sua obra-prima, foi um livro considerado tão perigoso na União Soviética que não só o manuscrito como também as fitas com que foi digitado foram confiscados pelo KGB, permanecendo desaparecido durante vinte anos. Designado como o Guerra e Paz do século XX, este díptico levou a equiparar Grossman com Tolstói, por adoptar uma estrutura global de modo a constituir um imenso fresco da Rússia soviética, e

A primeira edição de Bábi Iar saiu em 1966, numa versão censurada pelas autoridades russas. O texto integral seria depois publicado em 1970, sob o pseudónimo A. Anatoli, já após a fuga do autor para Londres, onde trabalhou como repórter para a Radio Liberty. Anatóli Kuznetsov faleceu na capital britânica em 1979. Nesta versão integral não censurada da Livros do Brasil, são destacadas

assim contar a História global através das histórias individuais de uma ampla galeria de personagens.

ças ilusórias, eram as forças de um grande povo que lançou os alicerces do futuro mundo.” (p. 24) Há momentos em que quase sentimos que o autor escreve ao serviço do regime, como quando prenuncia que na batalha de Estalinegrado a “defesa rija” não tem comparação com nenhuma outra da História, nem mesmo “nos tempos da batalha de Troia, nem na batalha das Termópilas” (p. 137). Ainda assim, o autor foi censurado e só viu o seu romance publicado depois da morte de Estaline. Em abril de 1942, Hitler e Mussolini planeiam a enorme ofensiva na Frente Oriental que culminará na maior e mais sangrenta batalha da história da humanidade. O romance abre justamente com um encontro em Salzburgo entre estas duas figuras, que são também personagens do romance, ao planear novo ataque à União Soviética. Durante meses, as forças soviéticas

“oprimida pela fome, pelo fogo e pelo gelo”, mas continuava a resistir “havia trezentos dias” (p. 187).

Romance épico

Patriotismo soviético

A perspetiva de Grossman é a de um patriota soviético, com passagens narrativas que denotam fortemente esse patriotismo: “O êxito inicial obnubilou Hitler, impediu-o de ver a natureza daquele granito, daquelas forças espirituais e materiais contra as quais se levantara. Não eram for-

a negrito as passagens que foram acrescentadas ou significativamente alteradas, o que permite facilmente aos leitores identificar as diferenças entre versões, na presente edição. Na verdade, mais do que passagens, temos, por vezes, várias páginas de texto originalmente censurado. É o caso do «Prefácio», onde o autor conta como, quando apresentou o manuscrito original a uma revista

são repelidas pelo avanço das tropas alemãs, e Stalinegrado é tudo o que resta entre os invasores e a vitória. A situação “grave e perigosa do país, do povo, do Estado tinha uma ligação direta precisamente com a Frente Sudoeste, hoje renomeada Frente de Stalinegrado” (p. 134). Entretanto, também chegam ecos da situação desesperante de Leninegrado,

de Moscovo, este devolvido imediatamente com a advertência de o não mostrar a ninguém até ter removido toda «a tralha antissoviética» que continha.

A leitura confrontada do texto integral sobreposto com a versão censurada dá-nos assim, como afirma Irene Pimentel, uma lição sobre o poder da censura e, sobretudo, sobre o que considera importante

Stalinegrado intercala a natureza de um romance épico com um registo quase documental do evoluir da guerra. A intriga centra-se na história de uma família de classe média, os Chapochnikov, cujos diversos membros serão dispersos pelas forças da guerra e acasos do destino entre a Alemanha e a Sibéria. No centro da família, e no coração do romance, situa-se Aleksandra Vladímirovna, a matriarca que se recusa a deixar a cidade, apesar do avanço dos nazis. Longe da frente, Liudmila, a sua filha mais velha, vive um casamento infeliz com Víktorov Strum, um físico judeu que embora preocupado com a mãe, perdida algures na Ucrância, por trás das linhas alemãs, mantém-se determinado numa investigação científica que pode ser determinante como estratégia militar. A extensa galeria de personagens continua quase infindamente (ainda que sem chegar às 500 personagens de Guerra e Paz), desafiando a atenção do leitor, sem que este se perca, pois a leitura desta obra imensa (que se poderia temer como densa) corre o risco de se tornar viciante. A narrativa torna-se menos romanceada quando a história da família Chapochnikov alterna com uma cuidadosa reconstituição da batalha de Stalinegrado, desde os seus primórdios, com a iminência da ameaça do invasor alemão, até a campanha acelerar, resultando na derrota do Exército Vermelho, obrigado a recuar para o centro industrial da cidade, nas margens do Volga. É aí, nos escombros da cidade bombardeada, que os soviéticos conjugam forças para um derradeiro acto de resistência. Um leitor atento pode constatar como a cidade de Stalinegrado é, mais do que um cenário, a grande

cortar num texto. “Aqui está, finalmente, o que realmente escrevi” (p. 20), conclui o autor no final do seu Prefácio Bábi Iar, um importante testemunho sobre a ocupação nazi de território soviético, confere uma nova luz aos acontecimentos mais recentes na Europa. Além disso, desvela acontecimentos terríveis na Ucrânia que se tentou apagar da face

protagonista do romance. Há várias passagens descritivas que acusam um tom nostálgico e de estima por esta “estranha” cidade onde as ruas têm nomes de todas as cidades da União Soviética (p. 95). Mas, ao longo das centenas de páginas deste livro fascinante, a violenta batalha por Stalinegrado irá reduzir a cidade a escombros e marcar a vida de todos os envolvidos.

Obra intercala a natureza de um romance épico com um registo quase documental do evoluir

Vassili Grossman nasceu em 1905, na Ucrânia (em Berditchev, terra judaica, onde a sua própria mãe foi uma das vítimas do extermínio de judeus pelos nazis, em 1941-1942). Foi viver para Moscovo ainda jovem. Nos anos 1930 formou-se em engenharia química mas começou a dedicar-se exclusivamente à escrita desde essa altura. Em 1941, tornou-se correspondente do Estrela Vermelha, jornal do Exército Vermelho, com reportagens sobre a defesa de Stalinegrado, a queda de Berlim e as consequências do Holocausto. Grossman morreu em 1964, em Moscovo.

da História, por mais do que uma vez – ironicamente com consequências desastrosas.

Anatóli Kuznetsov nasceu em Kiev, na Ucrânia, a 18 de agosto de 1929, filho de pai russo e mãe ucraniana. Aos catorze anos, começou a registar os acontecimentos que testemunhou sobre o massacre de Bábi Iar, perpetrado pelos nazis durante a Segunda Guerra Mundial.

23 CULTURA.SUL POSTAL, 6 de abril de 2023
LETRAS & LEITURAS
Vassili Grossman foi censurado e só viu o seu romance publicado depois da morte de Estaline FOTOS D.R. Escritor foi correspondente do Estrela Vermelha, jornal do Exército Vermelho da guerra
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