CULTURA.SUL 175 16JUN2023

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Qual o valor da arte na filantropia?

muitas situações de filantropia, quer por parte de pessoas, quer por parte de empresas ou outras organizações, procurando contribuir em campanhas de angariação de fundos para ajudar causas concretas, sejam sociais, sejam de defesa de animais ou da natureza. Inclusive, por vezes são colocadas à venda obras de coleções particulares cujas receitas revertem a favor de atividades filantrópicas.

Ainda no final do ano passado, a Christie’s realizou o leilão da coleção de arte de Paul Allen, cofundador da Microsoft. Paul Allen figurou durante 20 anos na lista dos 200 maiores colecionadores divulgada anualmente pelo site ARTnews, desde 1997 até 2018, ano da sua morte. Esta coleção era constituída por mais de 150 obras de artistas que abarcavam 500 anos de história da arte, dos mestres antigos aos impressionistas e à arte moderna e contemporânea, integrando nomes como Boticelli, Renoir, Roy Lichtenstein ou David Hockney. Este leilão fixou um novo record na casa de leilões Christie's, tendo as obras sido vendidas por mais de 1,5 mil milhões de dólares (1,49 milhões em euros), tendo todas as receitas sido doadas a instituições de caridade.

o mundo à nossa volta, nomeadamente sobre temas políticos e sociais, produziu a pintura “Game Changer” (“Jogador desafiante”), com um metro quadrado, quase totalmente monocromática, que mostra um rapaz a brincar com uma enfermeira do NHS (sigla inglesa para o Serviço Nacional de Saúde), cujo braço surge estendido e apontando para a frente, como uma verdadeira super-heroína em missão na luta contra a Covid-19. Esta obra foi oferecida ao Hospital Geral de Southampton, em maio de 2020, tendo sido pendurada perto da unidade de emergência.

A tela do hospital foi depois substituída por uma réplica para que a obra original pudesse ser leiloada, procurando arrecadar recursos para o NHS. Em março de 2021, esta obra foi leiloada pela Christie’s, tendo sido vendida por 16,7 milhões de libras (quase 19,5 milhões de euros).

Afilantropia provém da palavra grega “philanthropía”, procurando expressar um sentimento de humanidade, caridade ou generosidade para com os outros. No mundo das artes visuais há

Desta forma, esta coleção bateu o recorde de 835 milhões de dólares que fora estabelecido em 2018 pela Christie’s com a venda da coleção de arte de Peggy e David Rockefeller, cujas receitas também foram integralmente destinadas a beneficência, e ultrapassou o valor atingido pela coleção Macklowe, cujas 65 obras, vendidas pela Sotheby’s em duas sessões (a primeira em novembro de 2021 e a segunda em maio passado), renderam 922,2 milhões de dólares (919 milhões de euros).

Para além de coleções completas, são também doadas obras individuais com fins filantrópicos. Por exemplo, Banksy, um dos artistas mais conceituados na atualidade, criando imagens visuais que pretendem ajudar a refletir sobre

Em Portugal também têm ocorrido ações de filantropia através das artes visuais. Recentemente, 12 artistas transformaram 24 bolas de basquetebol em obras de arte para reabilitar campos de basquetebol. Todos os anos, inúmeras bolas utilizadas em jogos dos campeonatos da liga portuguesa de basquetebol são descartadas por motivos regulamentares, já que as bolas de jogo têm de ser renovadas a cada ano.

ARTES VISUAIS Ficha técnica

Foi nesse seguimento que surgiu o Art Dunk, projeto de arte, desporto e economia circular, que tem como objetivo final a reabilitação de campos de basquetebol públicos, numa colaboração entre a Betclic e a plataforma cultural Underdogs, esta última fundada por Alexandre Farto (também conhecido por Vhils).

Cada artista trabalhou a partir de duas bolas, aplicando as técnicas de acordo com a sua identidade artística própria. Cada uma das obras está à venda, desde 10 de maio, pelo valor unitário de 750€. À data em que escrevo este artigo ainda há bolas à venda, podendo ser adquiridas através do link https://www.artdunk.pt Esta associação entre a prática

desportiva, a cultura urbana e a consciência social tem estado presente noutras iniciativas. Por exemplo, também numa iniciativa da Underdogs, desta vez com o apoio da Junta de Freguesia de Arroios e da Câmara Municipal de Lisboa, AkaCorleone, nome artístico de Pedro Campiche, assinou uma intervenção artística no recinto polidesportivo do Campo Mártires da Pátria. A obra, intitulada “Balance”, mede 14 por 25 metros, demorou nove dias a ser executada e foram necessários 91 litros de tinta para a completar. Trata-se de um campo de basquetebol que passou a ser também uma obra de arte urbana, expressando a utilidade prática da arte, em prol da vida das pessoas. Felicitamos a Underdogs pelas atividades que tem vindo a desenvolver e ficamos a aguardar as próximas iniciativas...

Direção GORDA, Associação Sócio-Cultural Editor Henrique Dias Freire Responsáveis pelas secções:

• Artes Visuais Saúl Neves de Jesus

• Café Filosófico Maria João Neves

• Crónicas de um Beduíno Cobramor

• Bibliotecofilia Maria Luísa Francisco

• Espaço ALFA Raúl Coelho

• Império Júdice Fialho Luís de Menezes

• Letras e Literatura Paulo Serra

• Mas afinal o que é isso da cultura?

Paulo Larcher,

• Os Dias Claros Jorge Queiroz Colaborador desta edição João Pinto

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9.092 EXEMPLARES
JUNHO 2023 Ÿ n.º 175 Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o
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SAÚL NEVES DE JESUS Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/artes Obras do projeto “Art Dunk,” (2023) FOTOS DR Obra “Balance”, de AkaCorleone (2022)
23 CADERNO ALGARVE com o EXPRESSO POSTAL, 16 de junho de 2023

Ria Formosa: o pulmão azul

Comemorou-se no passado dia 5 Junho o Dia Mundial do Ambiente. Que terá a nossa Ria Formosa que oferecer a esta celebração? Quem a atravessa de barco provavelmente não sabe que está a navegar sobre um importante pulmão do planeta. De facto, mais do que nas florestas, é junto ao mar que são absorvidas grandes quantidades de dióxido de carbono da atmosfera. Embora seja de cor negra, por ser armazenado nos ecossistemas costeiros e marinhos, chama-se-lhe carbono azul.

Recordemos o ciclo de carbono: os animais consomem alimentos ricos em carbono, e respirando oxigénio libertam o carbono sob a forma de dióxido. As plantas, que igualmente respiram, sob a luz solar, através da função clorofilina, decompõem-no libertando oxigénio e fixando o carbono. Esta transformação é um dos elementos chave para o equilíbrio da vida.

Há muito tempo atrás começámos a construir máquinas que também têm como base do seu combustível o carbono, em forma de carvão ou petróleo. Também estas máquinas libertam o excesso de carbono na atmosfera. A diferença é que o combustível que consomem provém das profundezas da terra, onde esse carbono estava retirado do ciclo de carbono, até que nós encontrámos uma forma de o extrair. Em consequência, o carbono na atmosfera aumentou exponencialmente causando o aquecimento global que está na base das alterações climáticas que estamos a presenciar.

Com todo este carbono que está a sair do estado armazenado, o papel da natureza em absorvê-lo tornou-se criticamente importante. Na escola ficamos com a ideia de que as florestas, as plantas, fazem todo o trabalho. Porém, como vimos acima, grande parte do carbono é absorvido pelos oceanos. Pradarias marinhas, mangais e sapais são capazes de retirar da atmosfera entre 8 a 30 vezes mais carbono do que as florestas. Vejamos:

- mais de 95% do carbono em prados de ervas marinhas é armazenado nos solos;

- o oceano armazena 93% do carbono do planeta;

- os habitats costeiros cobrem menos de 2% da área oceânica total e representam aproximadamente metade do carbono total sequestrado nos sedimentos oceânicos.

Nos mais de 4,5 mil hectares de sapais e pradarias da nossa Ria Formosa, os investigadores estimam que estejam armazenadas 320 mil toneladas de carbono. A cada ano somam-se mais mil e quinhentas toneladas. O equivalente às emissões anuais de sete mil carros. Ao longo de vários metros de profundidade dos sapais e pradarias esconde-se esta maravilhosa câmara de sequestro. Existem nove sistemas como o da Ria Formosa em Portugal continental que são verdadeiros sumidouros de carbono. Como se disse atrás, e não é demais recordar, estes ecossistemas são 8 a 30 vezes mais eficientes a sequestrar carbono do que as florestas!

Infelizmente, a pressão costeira tem destruído muitos destes habitats.

Perdeu-se metade destes ecossistemas nos últimos 100 anos, com impactos que só agora se começam a perceber. Quando destruímos estes ecossistemas, não estamos apenas a impedir o sequestro de dióxido de carbono que actualmente existe na

atmosfera, mas estamos também a lançar na atmosfera o carbono que estava retido há centenas ou milhares de anos. Reparem: destruir 10% dos sapais da Ria Formosa impede que se captem as emissões de CO2 de 700 carros, e lançam-se na atmosfera outros 120.000 toneladas de CO2 armazenados. É extraordinariamente perigoso! Repito: quando estes ecossistemas se degradam, todos aqueles reservatórios de carbono que estavam no sedimento, voltam outra vez para a atmosfera. É imprescindível garantir que esta lama negra não sai daqui! No entanto, estamos a perder estes ecossistemas aquáticos ainda mais depressa do que qualquer outro ecossistema no planeta. Por cada mangal, sapal ou pradaria marinha que destruímos, estamos não apenas enviar o carbono armazenado para a atmosfera, mas estamos também a destruir maternidades marinhas, a erodir a protecção natural contra as tempestades, a impedir a filtragem natural da água, a reduzir a oxigenação...

Estes ecossistemas costeiros existem em todos os continentes excepto na Antártida. Porém, no mundo inteiro já perdemos cerca de 29% das pradarias marinhas, 35% de sapais e 50% de mangais. E persistimos na nossa conduta devastadora!

Tomando consciência da gravidade deste problema, a Fundação Calouste Gulbenkian lançou um projecto pioneiro em Portugal com as se-

mento, das medidas de conservação ou restauro mais adequadas, sua valoração e criação de uma carteira nacional de intervenções nos ecossistemas de carbono azul. Esta informação será disponibilizada às entidades que pretendam investir nestas áreas ou compensar a sua pegada carbónica, em alternativa à compensação feita, por exemplo, através de projectos de reflorestação;

3. Desenvolvimento de um policy brief sobre o potencial de carbono azul em Portugal, com vista a criar um mercado voluntário de carbono azul no nosso país. (https://gulbenkian.pt/projects/gulbenkian-carbono-azul/)

A um nível mais global, a Blue Carbon Initiative é um programa que trabalha para mitigar as mudanças

guintes prioridades:

1. Identificação, mapeamento e caracterização (dimensão, condição em que se encontra, taxa anual de sequestro de carbono, entre outras características) dos ecossistemas marinhos e costeiros ricos em carbono azul, em Portugal continental;

2. Definição, com base no mapea-

climáticas por meio da restauração e uso sustentável de ecossistemas costeiros e marinhos. Concentra-se, precisamente, em mangais, sapais e pradarias marinhas. Reúne governos, centros de investigação, organizações não governamentais e comunidades de todo o mundo. A iniciativa é coordenada pela Con-

servação Internacional (CI), a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) e a Comissão Oceanográfica Inter-governamental da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (IOC-UNESCO). E cada um de nós, à nossa pequena escala, o que pode fazer? Podemos, por exemplo, escolher peixe e marisco que foi pescado sem danar a sustentabilidade ambiental e os ecossistemas naturais; podemos optar consumir preferencialmente produtos provenientes de agricultura biológica; podemos andar a pé o mais possível e utilizar veículos menos poluentes como a bicicleta; podemos poupar água; podemos reciclar... Sobretudo, podemos ganhar consciência da nossa ligação com o planeta que nos acolhe. Sim, o planeta acolhe-nos, de certo modo, nós pertencemos-lhe, não somos seus donos como as nossas terríveis acções parecem demonstrar. Enquanto não nos dermos todos conta de que este ponto de vista está tergiversado o nosso modo de agir facilmente se torna prejudicial. Como professora de Estética e Ética Ambiental que fui, sempre me chamaram à atenção os ditos novos animistas. Estes pensadores inspiraram-se na maneira séria com que alguns povos indígenas interagem com animais, plantas e coisas inanimadas através de rituais, cerimónias e outras práticas. Defendem que a substituição do animismo tradicional a visão de que almas personalizadas são encontradas em animais, plantas e outros objectos materiais por uma forma de positivismo desencantador leva diretamente a uma perspectiva antropocêntrica, responsável, em grande parte, pelo desrespeito humano pela natureza. Num artigo intitulado “Adorno and the disenchantment of nature”, o investigador do Reino Unido Alison

24 CULTURA.SUL POSTAL, 16 de junho de 2023
MARIA JOÃO NEVES Doutorada em Filosofia Contemporânea Investigadora da Universidade Nova de Lisboa
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Ria Formosa FOTOS DR

Stone afirma que num mundo desencantado não há ordem significativa de coisas ou eventos fora do domínio humano, e não há fonte de sacralidade ou pavor do tipo sentido por aqueles que consideram o mundo natural povoado por divindades ou demónios. Quando uma floresta já não é considerada sagrada, quando já não há espíritos que precisam de ser aplacados e nenhum risco misterioso está associado ao desmatamento ou à poluição dos mares e oceanos o homem torna-se um predador-destruidor temível. Uma natureza desencantada não está viva! Por este motivo não impõe respeito, reverência ou amor. Não passa de uma máquina gigante, a ser dominada para servir os propósitos humanos. Assim, os novos animistas defendem uma modificação da fronteira entre pessoas e não-pessoas. Para eles, a natureza viva compreende não apenas humanos, animais e plantas, mas também montanhas, florestas, rios, desertos e até mesmo planetas.

Quer a noção de que uma montanha ou uma árvore deva ser considerada como uma pessoa seja tomada literalmente ou não, a tentativa de se envolver com o mundo circundante como se de pessoas se tratassem pode, possivelmente, fornecer a base para uma atitude respeitosa em relação à natureza. No seu livro Animism. Respecting the Living World o britânico Graham Harvey, especialista em paganismo moderno, descreve de forma muito acessível este modo de estar ido ao

mundo. Se o desencanto é uma fonte de problemas ambientais e destruição, então o novo animismo pode ser considerado como uma tentativa de re-encantar e ajudar a salvar a natureza. Mais poeticamente, em The Spell of the Sensuous o filósofo americano David Abram argumentou que uma abordagem fenomenológica na esteira de Merleau-Ponty pode-nos revelar que somos parte da “carne comum” do mundo, que somos, em certo sentido, o mundo pensando-se a si mesmo. Na sua investigação, a filósofa australiana Freya Mathews tentou articular uma versão do animismo ou pampsiquismo que capta as formas pelas quais o mundo não apenas a natureza contém muitos tipos de consciência e sensibilidade. Para ela, existe uma unidade subjacente de mente e matéria em que o mundo é um sistema de auto-realização contendo uma multiplicidade de outros sistemas semelhantes. No seu livro For Love of Matter, Mathews considera que estamos emaranhados em comunicação e comunicação potencial com o “Um” o eu cósmico maior e os seus muitos eus menores. E em Reinhabiting Reality: Towards a Recovery of Culture afirma que o materialismo é auto-destrutivo ao encorajar uma forma de “solipsismo coletivo” que trata o mundo como incognoscível ou como uma construção social. Mathews também se inspira na sua interpretação da ideia taoísta central de wuwei como “deixar ser” e provocar mudanças

por meio de “ação sem esforço”. O foco na gestão ambiental, desenvolvimento e comércio deve estar em sinergia com o que já existe, e não na demolição, substituição e interrupção. Em vez de tentar eliminar plantas e animais selvagens ou exóticos e devolver os ambientes a algum estado primitivo imaginado, devem ser encontradas formas de promover sinergias entre os recém-chegados e as populações nativas mais antigas, de maneira a manter os fluxos ecológicos e promover o maior desdobramento e desenvolvimento dos processos ecológicos. O pampsiquismo, argumenta Mathews, liberta-nos da “grade ideológica do capitalismo”, pode reduzir o nosso desejo por novidades de consumo e pode permitir que nós e o mundo envelheçamos juntos com graça e dignidade. Como se pode observar, aqui ecoam também entendimentos indígenas de uma subjetividade ampliada. Este projecto geral de re-encantar o mundo tem ressonâncias surpreendentes com as visões de outros que se baseiam mais explicitamente em entendimentos científicos da vida na Terra. A ciência dos sistemas terrestres, por exemplo, baseia-se na hipótese de Gaia proposta pelo químico inglês James Lovelock que sugere que os seres vivos agindo juntos regulam aspectos significativos do ambiente global. Escritores posteriores descrevem a hipótese de Gaia como uma conjectura de que algo negligenciado pelo pen-

Pintar como se fotografa.

Será possível?

Aobservação da natureza é muitas vezes motivo de espanto. Não será por acaso mas antes o resultado dos seres humanos, sendo parte dessa natureza, estarem numa posição de ser também "descobridores" da complexidade da vida e dos fenómenos naturais que nos rodeiam.

Este fascínio pela natureza reflete-se na necessidade de estar rodeado por ela, na praia, na floresta ou na montanha e de poder prolongar esse prazer pela observação de lugares únicos ou momentos significativos. A pintura e a fotografia têm servido esse propósito ao longo dos últimos séculos. Alguns

autores elevaram esses registos a obras de arte, como as paisagens de John Singer Sargent, William Turner ou de Claude Monet ou a fotografia dos atuais Franz Lanting, Art Wolf ou Jim Brandenburg. Estes e outros conjugaram a sua arte com a aventura de pintar ou fotografar em lugares magníficos ou até a desafiarem-se a pintar a mesma temática e explorar a luz ao longo do dia e das estações, como Monet fez na sua série de pinturas de campos com medas de feno ou a jornada primaveril de Jim Brandenburg, em que realizou uma magnífica série de 90 fotografias de natureza só registando uma imagem por dia. Estes parágrafos servem para explicar a minha admiração pelos autores citados e pelo interesse que sempre tive na fotografia e na pintura, na maior parte das vezes aplicadas em separado. Desta vez aventuro-me a conjugar as duas; pintar uma mesma paisagem, em algumas sessões ao

samento científico anterior era de vital importância para entender a única coisa que sustenta toda a vida na Terra, ou seja, um grande sistema de retro-alimentação estabilizador que se regula de maneira a manter

Grata a Rui Santos, investigador sénior do CCMar/UAlg, pela informação sobre o estado da arte e verificação científica deste artigo. Contaremos com a sua presença no Café Filosófico de Junho.

a habitabilidade do planeta. Este sistema de feedback está sob a ameaça de um clima em mudança, super-população humana e reduções na biodiversidade. Em síntese, se o desencantamento é uma fonte de atitudes ambientalmente destrutivas ou indiferentes, então tanto o re-encantamento estético e ético, animista/pampsiquista do mundo pretende oferecer um antídoto para tais atitudes, e talvez também inspirações para novas formas de gestão para a sustentabilidade.

Café Filosófico Ria Formosa: o pulmão azul 22 Junho 2023 | 18:30 |

AP Maria Nova Lounge Hotel, Tavira Contribuição: 5€

Inclui: água aromatizada / cálice de vinho Esta sessão terá como convidado especial Rui Santos, Investigador Sénior do CCMAR/UAlg Inscrições: filosofiamjn@gmail.com

*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

ESPAÇO ALFA

longo de duas semanas, e que possam resultar num "time-lapse" de pintura que represente a evolução da luz e da paisagem ao longo de um típico dia na Ria Formosa durante a época estival. A aventura terá lugar durante a exposição

"Paisagem Algarve" que estará na Galeria Municipal ARCO e sede da ALFA, em Faro. Do dia 22 de junho até ao dia 15 de julho. Divulgação do "time-lapse" de pintura no dia 6 de julho.

25 CULTURA.SUL POSTAL, 16 de junho de 2023 CAFÉ FILOSÓFICO
JOÃO PINTO Biólogo, pintor e fotógrafo
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Bernardo (colecção do Museu de Portimão)

Litografia, no sítio da Cruz da Pedra, norte de Portimão

MENEZES

Alitografia, situava-se no sítio da Cruz da Pedra, rua do Moinho, a norte de Portimão, distrito de Faro, destinando-se à estampagem e gravação das latas em folha-de-flandres, à criação dos logotipos das marcas e das figuras e às embalagens necessárias ao transporte e expedição das conservas. Inicia-se em 1904, tendo «7 motores de potência de 110 cavalos, com 124 operários, que estão anexas a algumas das fábricas mais importantes de conserva» e «ocupa uma área de 25m de fachada e 60 m de comprimento o que perfaz uma superfície de 1.500 m²».1

A litografia era constituída em 1911, por sete dependências: vestíbulo, escritório, oficina de transportadores, oficina de moer tintas, casa dos geradores a vapor, 3 prensas litográficas de mão, 1 máquina de redução, 1 de granear pedras, movida por um eletromotor de 2 1/2 cavalos, 2 geradores de vapor de 30 e 50 cavalos, a oficina das máquinas, que tinha 3 estufas e existiam ainda 5 máquinas de impressão litográfica « sendo 2 de Jesus e 3 Colombier, um torno mecânico e uma bomba aspirante completam a montagem d’esta fabrica cujo maquinismo é todo movido por eletromotores (…)». A fábrica, fazia a impressão de 10.000 folhas

IMPÉRIO JÚDICE FIALHO

de Flandres por ano e era «iluminada por 4 arcos voltaicos de 400 velas e 220 lâmpadas de 10 velas». Tinha ainda um horário laboral de 10 horas, com hora e meia de intervalo para almoço, com um total de 39 pessoas: 2 empregados de escritório, 1 desenhador litográfico, 3 operários, 1 graneador e 1 aprendiz na oficina dos transportadores, 1 mestre e 30 operários nas outras oficinas, com uma média de salários de 460 réis diários.2

Refira-se ainda que a maior parte desta unidade fabril, era alimentada por eletricidade, uma modernidade para a época. Em 1913, Júdice Fialho, amplia a central elétrica que fornecia a fábrica, que era bastante elogiada pelo seu equipamento e tecnologia e pela qualidade final dos seus produtos.3

Em 1924 e 1932, temos conhecimento de projetos de ampliação da instalação elétrica na litografia.

A 8-3-1937, a litografia foi autorizada a montar uma prensa excêntrica destinada ao fabrico de lata embutida; a 9-1-1945, a instalar 2 prensas rotativas multicolores Chambron, tipo I.C. e 1 máquina de colar Ritchie na sua secção de litografia e fabricação de lata vazia, sendo publicado no Diário do Governo, IIª Série, n.º 29 de 5-2-1945; e em 1958, temos conhecimento do projeto da instalação de um motor Sulzer tipo C D D P 22 de óleos pesados de 280 C.V. na litografia.4

Num inventário realizado a

3-3-1938, descrevem-se os eletromotores (motores elétricos) existentes nas diversas secções:

«Litografia 15, com 38,40 C.V.; Lata Vazia 9, com 69,00 C.V.; Fabricação de Caoutchouc 4, com 48,95 C.V.; Frutos ou Sirop 2, com 6,5 C.V.; Serração de madeira 3, com 128,5 C.V.; Moenda do Pimentão 6, com 216 C.V.; Depósito do Pimentão 1, com 4,5 C.V.; Serralharia 4, com 31,25 C.V.; Fundição 2, com 8 C.V.; Garagem 3, com 14,25 C.V.; Fabricação de Caoutchouc 4, com 48,95 C.V.; Frutos ou Sirop 2, com 6,5 C.V.; Serração de madeira 3, com 128,5 C.V.; Moenda do Pimentão 6, com 216 C.V.; Depósito do Pimentão 1, com 4,5 C.V.; Serralharia 4, com 31,25 C.V.; Fundição 2, com 8 C.V.; Garagem 3, com 14,25 C.V».5 A litografia afamada em todo o País, estava dividida por uma série de sectores (o mais importante era o da lata vazia, cujas máquinas eram todas acionadas a eletricidade, e estavam em instalações anexas à fábrica de S. José), a maior parte deles com tarefas complementares em relação à indústria conserveira ou com atividades necessárias ao desempenho do grupo empresarial, com o fabrico de algumas máquinas e equipamentos, como é o caso das máquinas de azeitar, que vão ser instaladas em todas as empresas do grupo em 1935. Além disso, funcionava como a oficina da empresa, e a par da sua principal função de litografar a

Máquinas - Guilhotinas e soldadeiras e máquina litográfica da litografia da Júdice Fialho (colecção do Museu de Portimão)

folha-de-flandres e as latas, desenhava as marcas e as figuras das latas, e fornecia toda a lata vazia para as diferentes fábricas.

-flandres branca, 20 - depósito de moldes de ferragem, 21 - depósito de carvão de forja e coke (?), 22 - gasómetro de acetileno, 23 - depósito de trapo para limpeza, 24 - ruas de serviço, 25 - casa de 2 geradores de vapor de 2 cavalos, 26 - chaminé de tijolo, 27 - retretes.

Planta da litografia da Júdice Fialho em 1912 (colecção do Museu de Portimão)

Segundo a planta da litografia da Júdice Fialho esta era constituída em 1912: 1 - vestíbulo, 2 - escritório, 3 - oficina de transportadores, 4oficina de moer tintas, 5 - oficina de impressão litográfica, 6 - fabricação mecânica de lata vazia oficina, 7Central, 8 - serralharia mecânica, 9 - vestíbulo, 10 - serralharia, 11vestíbulo, 12 - depósito de carvão, 13 - tanque para alvenaria para água, 14 - poço, 15 - casa com uma bomba a vapor, 16 - depósito de folha-de-flandres ilustrada, 17 - escritório do desenhador, 18 - residência do guarda, 19 - depósito de folha-de-

Operários na Litografia (colecção do Museu de Portimão)

1cf. Para a Litografia, consulte-se a monografia de Luís Miguel Pulido Garcia Cardoso de Menezes - João António Júdice Fialho (1859-1934) e o Império Fialho (1892-1981), Lisboa: Academia dos Ignotos, 2022, pp. 39-42; e Thomaz Cabreira - O Algarve Económico, Lisboa: Imprensa Libânio da Silva, 1918, p. 164 e Alvará n.º 3123 de 19 [??].

2cf. José Gonçalves Vieira - Memoria Monographica de Vila Nova de Portimão, Porto: Typographia Universal, 1911, p. 91.

3cf. Jorge Miguel Robalo Duarte Serra - O Nascimento de um império conserveiro: “A Casa Fialho” (1892-1939) [Texto Policopiado], tese de Mestrado em História Contemporânea pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade do Porto, 2007, pp. 60-61.

4cf. Ministério do Mar, Direção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos (DGRM), Arquivo do Instituto de Conservas de Peixe (1936-1986), Júdice Fialho, Conservas de Peixe, SARL. Portimão (S. Francisco). Fab. 4.701.108, 1934 e Olhão, Portimão, Sines, 1936. 5cf. Museu Municipal de Portimão (MMP), Arquivo Júdice Fialho, caixa 484, documento 7438 e caixa 432, documento 5549 e Jorge Miguel Robalo Duarte Serra, op. cit., pp. 102-103.

26 CULTURA.SUL POSTAL, 16 de junho de 2023
Construção da litografia de Portimão e operários a trabalhar na litografia da Júdice Fialho - 17x24 cmAutor Júlio

OAlgarve de Costa-a-Costa: D. Sancho I, Rei de Silves

Pé-ante-pé, percorro o extenso caminho de ronda da alcáçova do castelo de Silves, ou deveria dizer Xelb, como era designada pelos seus antigos senhores árabes?

Perante mim e ao redor cercam-me as muralhas poderosas e, de quando em vez, o aparecimento de uma maciça torre quadrangular vem lembrar-me que aquela construção imponente era uma terrível máquina de guerra. A guerra, a arquitetura e as artes bélicas que a sustêm são cultura que é, como podem ver, o título geral deste conjunto de crónicas. Era nossa intenção ir respondendo a essa questão, de crónica para crónica, mês após mês. Tal não aconteceu, todavia, como o desejámos. De facto, definir o que é a “Cultura” não é uma tarefa fácil, dado que esta implica abordagens distintas para interesses multidisciplinares. Podemos, porém, afirmar que a “Cultura” engloba os traços distintivos que caracterizam uma sociedade, as suas artes, os seus modos de vida, os seus sistemas de valores, tradições e crenças. Resumindo e simplificando, podemos dizer, como Kuhn (2010), que a Cultura “é o esforço paciente - de séculos, de gerações antes de nós e depois de nós - para dar ao mundo esta espécie de carne que é a nossa alma.” 1 Que alma é esta? Que eu tento vislumbrar neste passeio lento pelo adarve do Castelo.

A forma poligonal da mais bela fortaleza portuguesa ergue-se no alto de uma colina escarpada. “Este castelo é obra árabe. Está uma ruína mas formosa”, não sou eu que o digo, é José Saramago, que continua: “E a pedra vermelha, já encontrada em S. Bartolomeu de Messines, dá-

-lhe, contraditoriamente, um ar de construção recente, como se fosse feito de argila ainda húmida, de barro acabado de amassar. Belas, ainda mais, devem ser estas pedras quando as molha a chuva.” 2

De facto o Castelo é maravilhosamente belo, e mágico e trágico. Nele se amou, se rezou, se festejou, mas também se sofreu e se matou.

Mas já lá iremos, a uma história que, de verdadeira, humedece a alguns os olhos de compaixão e saudade por um tempo perdido para sempre.

A cidade de Silves é campo de uma antiga história: fenícios, gregos, cartaginenses, romanos, visigodos, foram-na ocupando ao ritmo dos seus interesses comerciais, ou político-militares. Todos, à sua maneira, deverão ter marcado a sua alma, embora os muçulmanos com os seus quinhentos anos de permanência a partir do séc. VIII tenham sido os mais influentes.

No período do séc. IX ao séc. XII, torna-se o mais importante centro do Al-Andaluz, com o desenvolvimento de indústrias, agricultura de regadio, pesca, exploração mineira e também artes e ciência.

Nela viveram filósofos e poetas, como Ibn Qasi, Ibn Ammar ou o rei Al-Mutamid.

Reis lutaram pela sua posse. Houve vitórias, seguidas de alegria bruta, de saques e carnificinas, e foram-se alternando os atores desta trágica narrativa: mouros contra mouros, cristãos contra mouros e até cristãos contra cristãos.

Em 1189/90, o nosso Rei Dom Sancho I apoderou-se dessa magnífica presa mas foi dela desapossado logo no ano seguinte por Almançor - o grande guerreiro mouro. Isso não impediu que Dom Sancho ostentasse de forma efémera o título de Rei de Portugal e de Silves, nem que o nosso Leopoldo de Almeida lhe tenha dedicado uma estátua em que o Rei, de espada

desembainhada, monta guarda à porta do Castelo conquistado e logo perdido. Nesse conjunto admirável existe algo de mais notável ainda: as cisternas, onde se guardavam as reservas de água que podiam alimentar a população da praça durante um ano. A cisterna principal foi muito apreciada pelo nosso Nobel que na sua “Viagem” a comenta do seguinte modo: “O viajante admira a enorme cisterna que está no meio da esplanada, com a sua abóbada sustentada por quatro ordens de colunas como uma mesquita. E vai ver, surpreendido pelo engenho da invenção, as pequenas construções subterrâneas do que os árabes faziam silos.” Os árabes foram guerreiros, poetas, cientistas; o conceito do zero, por exemplo, essencial para o desenvolvimento da matemática foi inventado por eles. As tecnologias do dia-a-dia que utilizavam no cultivo e irrigação dos campos foram na sua generalidade herdadas pelos povos cristãos que os precederam. A receção dos grandes filósofos gregos pela Europa medieval foi mediada pelas traduções a partir do latim e do grego produzidas por este extraordinário povo.

Pretender esgotar os sucessos dos árabes no Al-Andaluz e do brilho imenso da sua civilização dificilmente caberia numa biblioteca e muito menos numa crónica, pelo que falarei apenas dos seus poetas. Exagero meu: limitar-me-ei a falar de um único poeta, aliás, de dois. O primeiro, Ibn‘Ammâr, nasce em Silves (ou teria sido em Estômbar?), em 1031, de família camponesa muito humilde mas, segundo a tradição, a sua inteligência, beleza física e dotes de poeta catapultaram-no para altos cargos políticos os quais, hélas, lhe determinaram igualmente uma trágica morte, em 1084.

O segundo, Al-Mu’ Tamid

Ibn‘Abbâd, filho de rei, nasce em Beja em 1040, dotado para as artes bélicas e também ele extraordinário poeta. Em 1095 morre em Marrocos, numa prisão em Agmat, que se tornou desde então roteiro de peregrinação.3 No entretanto, em plena adolescência, é feito vizir de Silves pelo rei seu pai, após o ter auxiliado numa dura e prolongada guerra de cerco e de conquista. Na rica e poderosa cidade de Silves, Al-Mu’ Tamid, rodeia-se de uma corte digna das Mil e Uma Noites. Corte formada por homens de ciência, por filósofos e poetas, mas também por aqueles mais dados aos prazeres sensuais da vida, encorajados pelos perfumes que pairam no ar tépido do Al-Garb.

Ninguém assume com certeza a violenta paixão que uniu o jovem principezinho ao interesseiro e pérfido Ibn’Ammâr. O que sabemos, através dos poemas de um e de outro, é que Silves na memória de cada um se assemelha a um Jardim Celestial, diríamos nós, cristãos, um Paraíso Perdido.

“Saúda, por mim, Abú Bakr,/ os queridos lugares de Silves/ e diz-me se deles a saudade/ é tão grande quanto a minha./ Saúda o Palácio dos Balcões,/ da parte de quem nunca o esqueceu, morada de leões e de gazelas/ salas e sombras onde eu/ doce refúgio encontrava […]”

Suplica AlMu’ Tamid do seu longínquo desterro em Agmat.

E, na mesma toada, responde Ibn’Ammâr: “Como falar de ti, Silves,/ sem que uma lágrima me caia /como a do enamorado enternecido […] sem um suspiro de ansiedade?”

Recordam uma vida que passou mas deixou essa saudade imensa, porque não há nada que se firme mais numa memória que um amor retribuído:“Minh”alma quer-te com paixão/ ainda que haja nisso uma tortura/ e alegre vai na ânsia da procura/ que estranho ser difícil

nossa ligação/ se os desejos d”ambos concordaram!/ que quereria mais meu coração,/ ao desejoso te buscar em vão,/ se meus olhos te viram e amaram?” Diz um e o outro parece responder: “Allâh bem sabe que não há razão/ de vir aqui senão para te ver/ que o vigia não nos possa achar/ se o nosso reencontro acontecer/ pra os teus lábios doces eu provar.”

Lá do triste futuro, a ferida que supura em versos a dor de uma ausência: “Assaltou-me a memória dos amores ardentes/ como se me consumisse um lume violento/ no mais profundo deste meu coração.”

E depois, num rompante o amante revolta-se: “Qoh noites minhas de antigamente!/ Que me importavam censuras dos críticos!/ Nada me desviava do amor mais louco.”

Que alma é esta, então, que tento perceber nesta cidade? Como posso definir as suas atuais linhas de força?: Urbanismo? Turismo?

História? Lendas? Saudades cristalizadas em Poesia? Que resultou afinal do “esforço paciente - de séculos, de gerações antes de nós e depois de nós - para dar ao mundo esta espécie de carne?” No lento passeio pelo caminho de ronda, procuro uma resposta e agora, mirando do alto as supostas ruínas do Palácio das Varandas - onde reza a lenda se encontravam e amavam os dois poetas - descubro que não tenho qualquer resposta. Irei buscando até finalmente a encontrar e, até lá, limito-me a afirmar a Silves, a partir do seu belo e enigmático castelo, com uma convicção semelhante à do poeta: “Nada me move, meu príncipe/ Senão a tua vontade.”

27 CULTURA.SUL POSTAL, 16 de junho de 2023
Jurista e escritor FOTOS: António Homem Cardoso (1) Rolf Kuhn, Ipseidade e Praxis Subjectiva, Ed. Colibri, Lisboa, 2010, p. 116. (2) José Saramago, Viagem a Portugal, Editorial Caminho, 2ª ed., Lisboa, 1985, p. 228. (3) Também Jorge Sampaio, enquanto Presidente da República Portuguesa, visitou a campa do grande poeta.
MAS AFINAL O QUE É ISSO DA CULTURA?

Bibliotecas Camões, Feiras do Livro, Redes de Bibliotecas e Bookstagrammers:

elementos desta nova comunidade, principalmente de Bookstagrammers. As editoras não ficam indiferentes a esta comunidade que nos últimos três anos ganhou reputação e respeito pelos seus seguidores e pelo meio editorial.

Redes de Bibliotecas

Segundo dados oficiais da organização, esta edição da Feira do Livro de Lisboa contou com 981 marcas editoriais representadas por 139 participantes – incluindo seis novos – distribuídos por 340 pavilhões. Esteve também presente a Rede de Bibliotecas de Lisboa, com um pavilhão onde decorreram actividades todos os dias. Uma Rede de Bibliotecas na prática é um sistema de partilha de actividades, recursos e que procura criar, articular, agilizar, disponibilizar serviços e mais-valias.

A Rede de Bibliotecas Públicas arrancou em 1987, com cinco concelhos pioneiros e hoje existe na grande maioria dos concelhos. Seria bom que nas outras Feiras do Livro, que decorrem nos diversos municípios do país, também estivessem representadas as Redes de Bibliotecas desses mesmos municípios.

rou neste edifício, sendo casado com uma Menezes.

Este Palácio passou a chamar-se Biblioteca Municipal Camões em 1981, mas ainda hoje é conhecido como Palácio Valada e Azambuja e está classificado como Imóvel de Interesse Público desde 1982.

Eça de Queiroz refere, na sua obra O Mandarim, as afamadas festas deste local, quando o referido Palácio se chamava “Palacete Amarello ao Loreto”.

Luís Vaz de Camões é patrono de várias bibliotecas. Para além desta existe a Rede de Bibliotecas Camões que agrupa as Bibliotecas do Instituto Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, I.P. e que inclui a Biblioteca Digital Camões.

Há também uma Biblioteca Municipal Camões em Alvito. Na Amadora também se pode encontrar a Biblioteca Luís de Camões, precisamente na Rua Luís Vaz de Camões. Na toponímia portuguesa existem muitas ruas dedicadas a este lusitano poeta. Aqui fica a indicação das bibliotecas que, não tendo Camões como seu patrono, se situam na Rua Luís Vaz de Camões: Biblioteca Municipal de Beja Biblioteca Municipal de Castro

Daire

Biblioteca Municipal de Celorico da Beira

Biblioteca Municipal do Sabugal Biblioteca Municipal do Sardoal Biblioteca Municipal de Peniche

A Biblioteca Municipal de Bragança, tal como a de São Pedro do Sul, situa-se na Praça Camões. Assim, o Livro, a Leitura e os Leitores são um triângulo que nos cabe a todos defender e promover, daí ser tão importante o papel das Bibliotecas, das suas Redes e das Feiras do Livro.

Termino com uma estrofe d’Os Lusíadas, obra impressa pela primeira vez há 451 anos. Escolho a estrofe 66 do Canto I, pela referência que faz aos livros:

“Deste Deus-Homem, alto e infinito/ Os livros, que tu pedes não trazia/ Que bem posso escusar trazer escrito/ Em papel o que na alma andar devia. (…)”.

Poderá seguir o Instagram @bibliotecofilia para ler os anteriores artigos desta rubrica e ver imagens de várias bibliotecas

*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

MARIA LUÍSA FRANCISCO

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Programadora Cultural luisa.algarve@gmail.com

Este mês de Junho tem sido um mês completamente dedicado aos livros, não só pelas habituais idas às bibliotecas, mas também pela ida à Feira do Livro de Lisboa. Entre o dia 25 de Maio e o dia 13 de Junho realizou-se a 93ª edição da Feira do Livro de Lisboa, que este ano teve a duração de 20 dias. Um certame que se realiza anualmente desde Maio de 1930 na cidade de Lisboa e que é um dos mais importantes acontecimentos do Livro e da Leitura realizados em Portugal.

O Livro é um importante motor de desenvolvimento de todas as sociedades e de desenvolvimento pessoal. Apesar dos suportes digitais assumirem hoje um papel inquestionável na difusão da leitura e do conhecimento, a relação do autor com o leitor constitui uma

relação intemporal e sempre renovada.

A Feira do Livro é um grande momento de encontro com escritores e a ocasião perfeita para nos deixarmos surpreender por novos livros e novas ideias literárias.

Este ano a Feira do Livro teve uma maior afluência de pessoas que promovem o livro e a leitura através das Redes Sociais, principalmente através do Instagram, TikTok e YouTube, daí a designação: Bookstagrammers, Booktokers e Booktubers.

E isso pode confirmar-se pelas fotografias e vídeos produzidos a partir da Feira do Livro. Existem vídeos de divulgação de livros que passaram a ser chamados Booktrailers, porque transportam uma narração escrita para pequenos filmes e animações. É todo um mundo que arrasta milhares de seguidores.

A Feira do Livro foi uma forma dos produtores de conteúdos nas Redes Sociais se conhecerem pessoalmente e encontrarem os seus seguidores. Inclusive, durante a Feira, realizaram-se encontros com

O acesso cada vez mais livre e democrático de todos ao Livro passa pela existência de uma boa rede de bibliotecas. Em Portugal existem 303 bibliotecas municipais e a maioria integra a Rede Nacional de Bibliotecas Públicas. Apenas cinco municípios portugueses não dispõem de biblioteca.

Biblioteca Camões

Por Junho ser o mês em que se celebra Camões, resolvi visitar a Biblioteca Camões, situada no Largo do Calhariz, em Lisboa, mesmo ao lado do Elevador da Bica.

A Biblioteca está instalada num edifício palaciano da segunda metade do séc. XVIII construído sobre as ruínas de um palácio quinhentista, destruído pelo terramoto de 1755.

Com o terramoto, o palácio ruiu e aí morreu o Embaixador de Espanha que nele habitava. Mais tarde, o palácio foi reconstruído e aí morou D. José de Menezes, que organizava faustosas recepções que tornaram o palácio célebre. Em 1791 o Marquês de Pombal mo-

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BIBLIOTECOFILIA
Biblioteca Camões, onde em 1973 esteve uma biblioteca para cegos FOTO DR 93ª Feira do Livro de Lisboa realizada no Parque Eduardo VII FOTO CARDÁPIO | DR Tecto de estuque trabalhado na sala de exposições da Biblioteca Camões Busto de Camões, na sala de leitura, rodeado de fotografias de 27 poetas portugueses consagrados FOTOS MARIA LUÍSA FRANCISCO | DR
Um percurso real e virtual

COBRAMOR

Aleitura não serve para nada. Felizmente. Não cumpre um propósito concreto, como treinar para as olimpíadas, estudar ou trabalhar. É difícil ostentar os livros que se leu, como se faz com um carro desportivo ou com uma peça de roupa. Mesmo que os tenhamos, não os conseguimos verdadeiramente ter. Num mundo em que a única razão para fazer algo é esse algo ser um meio para um fim, o livro é a maior das inutilidades. E há que louvar o inútil pois são poucos os que conseguem sobreviver assim, sem ceder à religiosidade do objectivo. Ler não é apenas inútil, é também para imbecis. Numa sociedade telegráfica onde todo o conhecimento chega com um clique e em que cada vez estamos mais próximos de estar mais distantes uns dos outros, para quê dedicar horas da vida a olhar para uma folha cheia de caracteres. Quanto mais conhecimento disponível, menos o sabemos valorizar e aproveitar.

Quando tudo tem um valor, nada tem valor. Por isso (mas não só por isso) sou estúpido. Com tamanha facilidade e rapidez, apenas alguém estúpido abdicaria de tal em prol duma actividade tortuosa e sinistra como ler um livro.

Porque, ao contrário do que querem fazer acreditar, ler dá trabalho. Dói, mói e corrói. É um exercício duro e solitário. Não se consegue ler enquanto se faz o jantar, como se ouve música ou se vê televisão. A leitura é totalmente consumidora da nossa presença. Exige-nos integralmente. Para usar o termo em voga que mais não é do que uma apropriação descontextualizada de uma técnica budista, ler é mindfulness

Ler é um compromisso que assumimos. Particularmente agora em que são infinitas as distracções e quase todas compostas de sons irritantes e luzes intermitentes.

É um compromisso assim como fazer dieta. Neste caso, uma dieta mental em que abdicamos de fast food sensorial em prol de um alimento slow como o é um livro. O sonho que tantos alimentam de

CRÓNICAS

FOTO DR

casar as novas tecnologias com a literatura nasce da mesma ilusão em que tantos acreditaram, a de que o automatismo nas fábricas levaria a uma melhor qualidade de vida. O livro é o que sempre foi e é assim que deve ser. Como a calçada portuguesa precisa de um calceteiro, o livro precisa de um leitor. E de um autor. Por mais inteligência artificial que exista, o livro existirá sempre. Também o disco de vinil teve o seu óbito declarado muitas vezes e, no entanto, ele anda aí. Quando os professores se queixam de que os alunos não lêem, eu pergunto se os professores o fazem. E quando os escritores se queixam de que não são lidos, eu pergunto se eles próprios lêem outros escritores. Tenho visto frequentemente que isso não acontece. Muitas vezes me lembro da vez em que uma livreira amiga me contou que os escritores de renome que frequentam a sua loja entram sem demonstrar o mínimo de curiosidade pelos livros expostos. Demorei a acreditar no mesmo até eu próprio ter uma banca de livros. Não significa isto que, os leitores vorazes sejam de alguma forma

mais inteligentes e quem não pega num livro, seja uma anémona. Conheço muitos casos em que é precisamente ao contrário. Ler, só por si, não é sinónimo de uma melhor compreensão do mundo ou de capacidade de raciocínio. É por isso que existem livros e livros. Mas é mais fácil quem lê literatura de cordel passar a ler outro tipo de livros, do que quem

OS DIAS CLAROS

A formação da cultura portuguesa

JORGE QUEIROZ Sociólogo

A história da cultura portuguesa desenvolveu-se como área de estudo e investigação a partir do século XIX, foi no século XX que se construíram os alicerces de investigação e obras importantes foram editadas sobre as influências, movimentos e personalidades. Em que época se poderá afirmar a existência de uma cultura portuguesa com características diferenciadoras das demais? Por-

que no século XII, na “finis terrae” continental, surgiu um reino politicamente independente, com um idioma próprio ainda em evolução? Quais as razões porque os reinos ibéricos não constituíram nacionalidades politicamente independentes e se consolidaram na Península dois Estados soberanos?

Sobre a antiguidade e autonomia de Portugal vários autores apresentaram razões geográficas, demográficas e culturais. António José Saraiva escreveu que entre portugueses e castelhanos existe uma região intermédia semidesértica, “espécie de vácuo”, os portugueses do lado de cá do planalto central, castelhanos espalhados por cidades no centro da meseta ibérica. Em “Portugal, o Atlântico e o Mediterrâneo”.

Orlando Ribeiro no âmbito da geografia humana, desenvolveu a fundamentação das características do território, civilizações do

granito a norte e do barro a sul.

A história medieval escrita por clérigos foi acompanhada de narrativas da tradição oral que incorporaram temas da cultura clássica. Impôs-se uma história providencialista, causas sobrenaturais explicariam as origens de Portugal, tal como a presença de um grupo étnico pré-romano, os lusitanos, sobre os quais não existe consenso científico.

A ocupação dos territórios pelas ordens militares levou à estruturação e definição de fronteiras e a centralização régia à organização do Estado, necessidade de serviços para arquivo de documentos da governação, títulos de nobreza e de propriedade, de outros actos administrativos.

No século XIV foi instalada a “Torre do Tombo” no Castelo de São Jorge. Hoje, o Arquivo Nacional possui modernas instalações onde se guarda de D. Dinis, o primei-

ro rei alfabetizado e reconhecido poeta, 137 cantigas do período medieval.

Os cronistas realizaram relatos escritos dos primeiros reinados dos séculos XII e XIII, de acontecimentos políticos e sociais. As crónicas ajudaram ao desenvolvimento da cultura e língua portuguesas, a literatura atingiu a maturidade já nos séculos XV e XVI.

D. Duarte em 1419 decidiu criar o cargo de “escrivão dos livros”, nomeando Fernão Lopes para “pôr em crónica dos reis que em Portugal antigamente foram”. Lopes é considerado o primeiro cronista, demonstrou apurado sentido da História e escrita elaborada. A dinastia de Avis (1385-1580) promoveu as ciências e as artes, apostou na inteligência nacional, do estrangeiro vieram professores, arquitectos, cientistas, pintores, músicos. No século XVI Rui de Pina escreveu as crónicas de D.

Duarte, D. Afonso V e D. João II, Garcia de Resende a crónica do Príncipe Perfeito, Damião de Góis e o bispo do Algarve Jerónimo Osório publicaram crónicas de D. Manuel I “O Venturoso”. Cronistas das viagens para outros continentes foram João de Barros, Castanheda, Diogo do Couto, … Com a expansão marítima intercontinental, afirmou-se uma pujante cultura renascentista portuguesa, emergiram obras literárias, artísticas e cientificas, de Gil Vicente, Luís de Camões, Pedro Nunes, Damião de Gois, João de Barros, Francisco de Holanda, Grão Vasco, Arruda, …

A formação e desenvolvimento da cultura portuguesa foi e é um processo contínuo com influências anteriores à nacionalidade, que continua hoje a evoluir com a expansão da língua, das literaturas e de outras formas de expressão.

*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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não lê nada começar a ler. Ler é uma actividade estúpida. Não torna os dentes mais brancos, não faz ganhar dinheiro, não cria six pack e geralmente forma pessoas com capacidade crítica. E todos sabemos os problemas que daí podem advir. Não leia, pela sua saúde. *O autor escreve de acordo com a antiga ortografia DE UM BEDUÍNO
A leitura é inútil e o leitor é estúpido

Atlas Histórico da Escrita, de Marco Neves

nosso alfabeto, o latino; e, por fim, na sexta parte, uma análise global da atual revolução tecnológica, digital e do peso que a palavra continua a ter perante a imagem. O autor deixa-nos ainda as suas principais fontes de referência, como sugestões de leitura. Os primeiros capítulos evidenciam a destreza do autor em explicar temas complexos de forma simples, nomeadamente na forma como demonstra o Princípio de Rébus que é, afinal, a chave do nascimento da escrita, um sistema de registo da nossa oralidade que surgiu “através de truques e aproximações”, uma “tecnologia improvisada ao longo de muito tempo – e tão útil que quem com ela contactava rapidamente a copiava e adaptava à sua língua” (p. 21).

PAULO SERRA

Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do Centro de Investigação em Artes e Comunicação (CIAC)

Atlas Histórico da Escrita, de Marco Neves, é o primeiro volume na coleção de Atlas da editora Guerra e Paz assinado pela pena de um autor português. Um livro tão ambicioso quanto acessível que toca a escrita, de diversas formas, nas suas várias manifestações, ao longo dos últimos cinco milénios. Um guia tão lúdico quanto didático em que é palpável o prazer que o próprio autor terá sentido nesta expedição arqueológica.

Um atlas absolutamente inédito, baseado numa rigorosa investigação, de escrita fácil e ligeira, onde há até espaço para brincar e piscar o olho ao leitor: “Passamos o dia a ler e a escrever – e a queixarmo-nos da língua. A escrita também permitiu desenvolver uma relação neurótica com a linguagem, que já se notava na velha Suméria, em que os escribas se queixavam dos jovens, esses malandros a maltratar a língua.” (p. 7)

O texto deste Atlas é ainda profusamente ilustrado com imagens e fotografias, e acompanhado por mapas e infografias também com assinatura nacional, de Nuno Costa.

Atlas Histórico da Escrita está dividido em 6 partes principais, com algumas

subsecções. Começando pela proto-escrita, faz-se um percurso visual pelas várias origens da escrita; faz-se um rastreio das origens das quatro tradições escritas mais importantes, com as primeiras inscrições em argila na Suméria, assim como a escrita hieroglífica no Egipto, os sistemas de caracteres na China, que foi importado para o Japão, passando ainda pela Mesoamérica e a civilização maia; na terceira parte, procura-se perceber como foram inventados os sistemas consonantais e alfabéticos; compreender os principais sistemas de escrita hoje utilizados um pouco por todo o mundo e descobrir ainda aqueles que até hoje não foram decifrados; a evolução do

Este livro de leitura rápida e aprazível é uma viagem no tempo e no espaço, que nos leva a dimensões tão remotas como o primeiro livro da história da humanidade para depois nos trazer de regresso à atual era digital, em que mais depressa estabelecemos comunicação por escrito. Mesmo com a possibilidade de estabelecer chamadas ou enviar áudios, as pessoas continuam a preferir enviar mensagens escritas. Escrevemos hoje mais do que nunca antes e muitas vezes em situações inimagináveis. A escrita acompanha-nos diariamente. Um funcionário pode até levar o dia todo a escrever, sem nunca ter de recorrer à oralidade. A palavra escrita tem hoje indiscutivelmente mais peso do que um acordo oral; e por isso mesmo é muitas vezes importante assegurarmo-nos de que assuntos importantes ou delicados ficam registados por escrito. Encontramo-la nos livros, em documentos, na televisão, em anúncios na rua, em murais grafitados. Encontramo-la muito especialmente no meio digital – do computador ao telefone, passando pelos relógios.

Contudo, e é assim que inicia esta viagem, a Humanidade viveu a maior parte do seu percurso sem escrita. O nosso cérebro, afirma o autor, está “habituado a processar

e a transmitir informação através de histórias” (p. 146). O problema residiu na necessidade de uma administração mais eficaz, em vários pontos do planeta, de se criar uma contabilidade e um comércio mais práticos e eficazes. Sendo mais difícil o uso de números e quantidades, por parte do nosso cérebro, a Humanidade deu um salto evolutivo para a criação de sinais gravados, como estratégias gradualmente mais complexas que visavam registar informação sobre números, quantidades e calendários. Como se sabe é com a escrita – a «segunda maior invenção da Humanidade», depois da linguagem humana – que se dá o salto da Pré-História para a História. Hoje vivemos tempos inéditos, conclui o autor, com a terceira grande revolução, a da escrita, depois da invenção da escrita desde há cinco milénios passando pela expansão da imprensa (que não foi descoberta por Gutenberg). Depois de nos anos 60 do século XX a alfabetização ter chegado a mais de metade da população mundial, a tecnologia provoca

hoje uma explosão da palavra escrita entre as várias sociedades, levando a capacidade de ler e escrever até, quase, aos 100 % da população (p. 138). Ainda assim, entre a invenção nos dois últimos séculos de uma nova comunidade de grande dimensão, a dos leitores, e a dificuldade dos jovens com a escrita, enquanto modo quotidiano de linguagem humana, continua a haver muito a explorar, a perceber, a aprender: “Daqui a 10 000 anos, os historiadores do futuro considerarão o nosso tempo como uma fase dos primórdios, quando a Humanidade se aproximava – ainda sem a ter atingido – da universalidade do conhecimento da escrita.” (p. 6) Conhecido por ser um crítico do excessivo policiamento da língua, Marco Neves é autor de mais de uma dezena de livros sobre temas linguísticos. Nasceu em Peniche e vive em Lisboa. É professor na FCSH e investigador no CETAPS. Mantém uma coluna sobre o tema no Sapo 24 e escreve regularmente na sua página Certas Palavras

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Atlas Histórico da Escrita é o primeiro volume da coleção assinado pela pena de um autor português Marco Neves é autor de mais de uma dezena de livros sobre temas linguísticos FOTO D.R.

OPolaco, de J.M. Coetzee

OPolaco, com tradução de J. Teixeira de Aguilar, é a mais recente obra de J.M. Coetzee, autor sul-africano atualmente a residir na Austrália.

J.M. Coetzee, cuja obra integral tem vindo a ser publicada pela Dom Quixote, foi duas vezes Prémio Booker e foi laureado com o Nobel de Literatura em 2003. Depois de uma controversa e inquietante reescrita da vida de Jesus – no tríptico A Infância de Jesus, Jesus na Escola, A Morte de Jesus –, onde explora o sentido de um mundo pós-apocalíptico. É ainda digno de nota que O Polaco tenha sido originalmente publicado em espanhol

primeiramente, como aconteceu já com dois romances anteriores do autor: uma forma subtil de contestação do poder hegemónico do Norte e da literatura anglófona.

O Polaco é um romance de uma composição magistral, subtilmente complexa, numa escrita concisa, reflexiva e quase fria de tão distanciada. Constituído por 6 partes ou capítulos, cada secção é formada por entradas numeradas, o que confere ao texto uma aura ensaística e uma natureza próxima de uma sinfonia composta por breves andamentos.

Witold Walczykiewicz, virtuoso pianista polaco, especialmente célebre pelas suas interpretações de

Chopin, fica enfeitiçado por Beatriz (ou Beatrice, no original), uma patrona das artes espanhola, depois de esta ajudar na organização do seu concerto em Barcelona. Beatriz é casada, num casamento que vive sobretudo das convenções e aparências, e não cede terreno a Witold, até porque ele é muito mais velho. Desencantam-na, sobretudo, as suas interpretações frias de Chopin, nada íntimas; a sua música simplesmente não tem o condão de a transportar. Contudo, Witold envia-lhe cartas e faz-lhe vários convites para viajar, nomeadamente ao Brasil, até que ela acaba por consentir ser visitada na casa de verão do marido, em Maiorca,

onde a relação é (mais ou menos) consumada. A prosa deste romance breve e incisivo é adequadamente direta, descritiva, e a narrativa prende-nos ao mesmo tempo que se deixa cristalizar numa redoma, em que o leitor oscila entre a antipatia ou o simples desconcerto face às emoções, também elas desencontradas, das personagens. A questão do desencontro, entre a sensibilidade masculina e feminina, perpassa ainda a narrativa, assim como a natureza calorosa e apaixonada do sul (Espanha) face à contenção ríspida do norte (Polónia). No início do romance, nos seus primeiros encontros, percebe-se como em alguns

diálogos a natureza inquiridora de Beatrice esbarra com um silêncio quase hostil do polaco. Tece-se ainda um diálogo com a obra de Dante, no que se descreve como uma “variação moderna e irónica da lendária história de amor de Dante e Beatriz”. Cabe ao leitor perceber o sentimento de Beatriz por Witold – se é que se pode verdadeiramente entender o amor, nas suas várias manifestações e linguagens, da música à escrita. O que é indiscutível é que na última parte do livro, onde Beatriz escreve cartas a Witold, a sua voz se entrelaça com a dele, ao citar-nos os poemas que ele lhe dedicou e que ela só lerá depois da morte dele.

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Livro conta a história de um virtuoso pianista polaco, que fica enfeitiçado por Beatriz, uma patrona das artes espanhola J.M. Coetzee foi duas vezes Prémio Booker e foi laureado com o Nobel de Literatura em 2003 FOTO JERRY BAUER | DR
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