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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o

FEVEREIRO 2022 n.º 159 6.449 EXEMPLARES

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ARTES VISUAIS

A arte pode ser produzida de forma mais ecológica? Obra produzida por Cortiço

FOTOS D.R.

SAÚL NEVES DE JESUS Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/artes

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m artigos anteriores procurámos salientar que a arte pode ajudar a que as pessoas tomem consciência da importânciadoseucomportamento para a preservação do ambiente, em particular para a necessidade de não desperdiçarmos e para a separação do lixo, permitindo a reciclagem e a reutilização dos materiais. Sendo a produção artística expressão da época em que ocorre, na atualidade o “lixo” é cada vez mais utilizado numa perspetiva de chamar a atenção para as questões ambientais. A utilização do lixo nas artes visuais está muito ligada à arte urbana, dizendo respeito a manifestações artísticas realizadas no espaço público, coletivo ou urbano, e traduzindo uma aproximação da arte às pessoas. Inclusivamente, há cidades ou zonas em cidades que têm melhorado a qualidade de vida dos seus habitantes devido às intervenções realizadas em arte urbana. É o caso de Loures, por alguns considerada uma “galeria a céu aberto”, desde que realiza os eventos “Loures Arte Pública”. Ao criarem imagens com aquilo que destrói a natureza, que a vai degradando, os artistas pretendem chamar a atenção para a sustentabilidade do planeta e a gestão dos recursos naturais. Nomeadamente, tem sido usado plástico por muito artistas, procurando chamar a atenção para a quantidade

de plástico existente nos oceanos, constitui cerca de 85 % do lixo encontrado zonas costeiras de todo o mundo, formando já “ilhas” no oceano e destruindo o ecossistema. Em Portugal, a bióloga marinha Ana Pêgo criou o projeto “Plasticus Maritimus”, sendo muito do lixo encontrado nas praias convertido em obras de arte. A importância da descarbonização e a poluição existente é também um tema que preocupa muitos artistas. Por exemplo, o artista chinês Nut Brother, em 2015, passou 100 dias a aspirar o ar das ruas de Pequim, durante cerca de 4 horas diárias, tendo no final fabricado um tijolo a partir da poluição aspirada, procurando consciencializar para o problema da poluição do ar em Pequim. Este mesmo artista realizou posteriormente uma outra iniciativa em que procurava consciencializar para a poluição considerada potável da água na China. Por seu turno, no sentido de alertar para a importância da floresta e para consciencializar a população sobre o desmatamento e as mudanças climáticas, o artista suíço Klaus Littmann concretizou o projeto “For Forest” (“Pela Floresta”), tendo sido plantadas 300 árvores, de 16 espécies, vindas de vários países, num estádio de futebol na Áustria. No seu site, Klaus refere que “este projeto é um aviso de que a natureza, que agora não é valorizada, algum dia só poderá ser encontrada em espaços especialmente designados, como já é o caso dos animais no zoológico”. Como tem referido a jovem Greta Thumberg, “ouçam os cientistas”; e, já agora, apreciem as produções artísticas e adotem comportamentos que contribuam para a preservação do ambiente!

As novas gerações vão viver no mundo que ajudarmos a criar e, por muitas diferenças que haja entre as pessoas, as culturas e os países, o planeta terra é a Casa de todos nós, sendo fundamental ajudar a preservá-lo! De entre os artistas portugueses que produzem obras a partir do aproveitamento daquilo que os outros desperdiçam destaca-se Bordalo II. Este é um dos principais nomes portugueses em arte urbana, utilizando “lixo” para construir obras/instalações/composições de grande dimensão com uma consciência ambiental. No processo de produção das suas obras, o autor recolhe materiais, corta, adapta o material recolhido, monta a peça, fixa-a no sítio onde vai ficar e, se for o caso, pinta-a. Estas peças são desenvolvidas maioritariamente com a utilização de plásticos de alta densidade, que já não servem para aquilo a que se destinavam. Recentemente foram criadas em Faro duas peças escultóricas com cerca de 10 metros de altura pelo artista Bordalo II, ambas representando um Cavalo Marinho, encontrando-se uma no Campus de Gambelas da Universidade do Algarve e outra no Parque de Campismo da Praia de Faro, pretendendo contribuir para a necessidade de consciencializar para a importância de preservar esta espécie. Há também artistas algarvios que têm procurado realizar trabalhos a partir do lixo, numa perspetiva de reutilização de materiais. É o caso de João Jesus, autodidata que aproveita engrenagens, cambotas de motor, molas de suspensão, correntes de transmissão, entre outras componentes da sucata de motos, bicicletas e automóveis para criar as suas obras. Uma deles foi precisamente um cavalo-marinho feito com componentes de mota, como discos e pastilhas de travão, rebites e parafusos. Um outro algarvio é algarvio David Mota, conhecido por Cortiço, o qual produz peças de arte feitas em cortiça. Tendo-se licenciado em Artes Visuais pela Universidade do Algarve, escolheu a cortiça como matéria prima preferencial das suas obras pois permitia-lhe trabalhar com a natureza na sua textura de uma forma direta e contrastá-la

Ficha técnica Direção GORDA, Associação Sócio-Cultural Editor Henrique Dias Freire Responsáveis pelas secções: • Artes Visuais Saúl Neves de Jesus • Diálogos (In)esperados Maria Luísa Francisco • Espaço AGECAL Jorge Queiroz • Filosofia Dia-a-dia Maria João Neves • Fios De História Ramiro Santos • Letras e Literatura Paulo Serra • Mas afinal o que é isso da cultura? Paulo Larcher e-mail redação: geralcultura.sul@gmail.com publicidade: anabelag.postal@gmail.com

Obras produzidas por João Jesus

com o cimento da cidade. Além disso, considera que as obras produzidas transportam consigo uma identidade regional, bem como uma mensagem ecológica. Desta forma, a arte pode ser produzida de forma mais ecológica, reaproveitando ou reutilizando materiais, numa perspetiva de economia circular.

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MAS AFINAL O QUE É ISSO DA CULTURA?

O Algarve de costa-a-costa: Olhão FOTOS ANTÓNIO HOMEM CARDOSO / D.R.

PAULO LARCHER Jurista e escritor

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a crónica anterior1 o leitor assistiu aos meus insucessos nas visitas a Monte Gordo, Castro Marim e Cacela, pois as estações ferroviárias ficavam sempre demasiado longe do objectivo “turístico” pretendido e - conforme combinado com o António Homem Cardoso - devemos fazer o percurso “Algarve-Costa-a-Costa” apenas de comboio. Se obedecesse um itinerário linear teria seguido para Conceição, Porta Nova, Tavira e Luz por esta ordem, mas dei um salto - não por desinteresse, bem pelo contrário - e desembarquei directamente em Olhão. A linha férrea atravessa a cidade, como todas aliás deviam fazer para actuar como factor de progresso. Olhão soube aproveitar a proximidade da via férrea para se transformar na próspera cidade que é hoje. A estação está bem localizada e conservada. Não sou especialista de coisa nenhuma senão deste escrevinhar, mas penso que nesta era em que ainda não perdemos a esperança de salvar o Planeta, deveríamos apoiar estes transportes com saudável pegada ecológica2. É fácil, a partir da estação e virando a esquina do tribunal, encontrar a Avenida da República. Corre-lhe a todo o comprimento um larguíssimo passeio central e está animada do mais diversificado comércio. É na verdade a rua de uma povoação desenvolvida graças à bravura dos seus habitantes e a uma história de heroísmo, gravada na pedra para que conste. No comboio vinha a pensar de mim para mim: A pergunta fundamental a cada cidade que visito pela primeira vez devia ser algo como isto: “Que Alma te anima, cidade?, que Alma te dá sustento e te abre os caminhos do futuro?” E depois devia ficar à escuta.

João Lúcio (1880-1918) foi um poeta ceifado na juventude por uma Covid qualquer. Era natural de Olhão, precisamente, onde também morreu, mas não foi só olhanense, nem só algarvio. Foi um cidadão do mundo que como poucos intuía a invisível alma das coisas. Num lindo poema intitulado “Descendo” o poeta diz:

“Pela escada que desce ao fundo mist’rioso De tudo aquilo que a vista não alcança […] Por essa escada irei, no silêncio das loisas,[…] Até poder sentir o coração das coisas […] Até que a treva seja uma luz para mim” (3)

Talvez essa visão apurada lhe tenha permitido trazer-nos um Algarve oculto no mais profundo do espírito dos seus povos, auxiliada por uma apurada sensibilidade estética (talvez não seja um mero acaso ter nascido sobrinho do pintor Henrique Pousão).

“A Cor, filha da Luz, é uma língua em tons Que fala, sem rumor, à curva da retina… Como há para o ouvido a palavra e os sons, Nasceu para o olhar esta harmonia fina.” (4) Bom, vinha eu então pensando na questão da “alma olhanense” quan-

do - nem de propósito - os meus olhos pousaram num compridíssimo cartaz que afirmava isto: “Olhão Tem Alma”. Parecia responder à minha demanda: o cartaz simulava um cenário romântico: casalinhos a passear cães à trela; jovens correndo; jovens andando de bicicleta; jovens falando ao telemóvel, alguns fotografando. Turismo afinal. Apenas a descontracção estival, o bem-estar do dolce farniente. Não. A alma de Olhão não pode ser só isto. Onde se esconderá a sua outra alma? No extremo do mesmo cartaz vejo uma barca com dois mastros, incongruente naquele pano de fundo. Ah! Deve ser a “Bom Sucesso”, a que foi ao Brasil levar ao Rei D. João VI a notícia da sublevação contra os franceses ocupantes. Façanha heróica seguramente apoiada numa “alma” forte, mas será que com isto se que resume a alma de Olhão? Continuei a minha deambulação pela Avenida da República. Um edifício vizinho da Capela de Nossa Senhora dos Aflitos chamou-me a atenção. Tratava-se da antiga Sociedade Recreativa Olhanense renascida com o nome de Associação Cultural Re Criativa República 14. Entrei, para concluir que está de parabéns! Instalações acolhedoras, jardins agradáveis, esplanadas envoltas num silencioso calor a destilar um prazeroso perfume a trópicos. Tive

sorte, porque a avaliar pelo programa exposto, alguns dias deverão ser bastante mais movimentados que hoje. Mas quem melhor do que o poeta João Lúcio nos poderia ajudar a dar o tom apropriado a estas emoções, a encontrar para elas o mot juste? Escreveu ele:

“Oh meu ardente Algarve impressionista e mole, Meu lindo preguiçoso adormecido ao sol […]” (5) Este interregno todavia não me fez esquecer a busca pelas outras partes da alma de Olhão. Foi preciso gastar meias-solas para começar a ter dela um vislumbre quando passei pela zona industrial. Pensava (erradamente) que a indústria conserveira tinha morrido no Algarve, mas não. Essa indústria secular sobrevive aqui, ou renasceu, e o olhanense tem dela a perspectiva certa, focada na importância do trabalho para o bem-estar e o progresso. Uma estátua representando uma operária conserveira, inaugurada há pouco mais de um ano, é uma recente e merecida homenagem a quem trabalha. Posso então arriscar-me a dizer que um dos pilares da alma olhanense é o “Trabalho”. Mas não se fica por aqui. O título de Vila da Restauração foi conseguido graças a um

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ESPAÇO AGECAL

Estácio da Veiga, o investigador e a sua circunstância JORGE QUEIROZ Sociólogo, sócio da AGECAL

“Cheguei até onde me permitiram os prazos e os meios, …o futuro, se é que a este País cabe ainda fundada esperança de se poder engrandecer pela cultura da ciência, fará o resto”. Estácio da Veiga, in “Antiguidades Monumentais do Algarve”

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ebastião Philippes Martins Estácio da Veiga (18281891) foi das figuras mais destacadas da cultura e da ciência no Algarve, um dos pioneiros da arqueologia portuguesa. Nasceu em Tavira numa família da aristocracia rural, seu pai era cavaleiro da Casa Real e a mãe francesa, ele próprio usou o título de “moço fidalgo”. Na infância viveu o ambiente das guerras liberais (1832-1834), frequentou o Liceu de Faro, o único existente no Algarve e

forte que não se verga às > carácter ordens de ninguém, nem a estrangeiros, nem a nobres nem a padres e assim se desvenda o segundo pilar dessa alma forte: a “Independência”. E isto sem esquecer o carácter naturalmente solidário aprendido nas rudes fainas do mar. Eis pois o meu humilde contributo, espero que verdadeiro, para a caracterização da Alma Olhanense. FOTO PAULO LARCHER / D.R.

em Lisboa concluiu em 1850 o curso de Engenharia de Minas na Escola Politécnica, trabalhando a seguir na Subinspeção Geral dos Correios e Postas do Reino. A segunda metade do século XIX em Portugal foi uma época de afirmação do romantismo, dos nacionalismos e regionalismos, a reacção da aristocracia às ideias modernizadoras das classes industriais burguesas, receosa da mobilização das classes trabalhadoras e mulheres pelos seus direitos de cidadania. A aristocracia ao perder influência política, económica e social, busca os valores do povo, as tradições e exalta o patriotismo, Estácio da Veiga neste contexto publica em 1863 “Gibraltar e Olivença, Apontamentos para a História da Usurpação Destas Duas Praças”. Como engenheiro de minas interessou-se pela geologia e a botânica, publicando em 1866 “Plantas da Serra de Monchique Observadas Nesse Ano”. Em 1870 edita o “Romanceiro”, recolha de tradições

orais e lendas do Algarve, ao contrário do rigor científico das obras de arqueologia, revela apetência ficcional e desconhecimento dos métodos da etnografia. Em “Povos Balsenses” de 1866 seguiu o itinerário de Antonino, localizando a urbe romana de Balsa na quinta da Torre d`Ares, propriedade de uma tia, que lhe ofereceu diverso espólio. No Natal de 1876 chuvas torrenciais no sul do País expõem estruturas antigas, Estácio da Veiga deu conta a Lisboa do aparecimento de um cemitério romano na Quinta de Marim junto a Olhão. Na carta propõe ao Governo o levantamento arqueológico das estruturas e em 1877 elabora um reconhecimento em Mértola, no qual estranha a ausência de estruturas do período muçulmano, atribuindo o facto ao grande terramoto de 1080, referido por Al Razi, que atingiu Sevilha, Por decisão do Governo é entregue a Estácio da Veiga o levantamento dos

vestígios arqueológicos no Alentejo e Algarve. A “Carta Arqueológica do Algarve” foi concluída em 1878. Em 1880, Estácio da Veiga é secretário do Congresso Internacional de Antropologia e de Arqueologia Pré-Histórica, concretizando nesse ano o “Museu Archeologico do Algarve” na Academia Real de Belas-Artes em Lisboa, logo a seguir abandonado e o espólio armazenado. Em 1881 cria o Instituto Arqueológico do Algarve cujo objectivo era fazer regressar os espólios à região algarvia, desenvolve também o “Programa para a Instituição dos Estudos Arqueológicos em Portugal”, percebe claramente a necessária articulação entre investigação e museologia. “Antiguidades Monumentaes do Algarve” elaborada entre 1886 e 1891, é uma obra em cinco volumes, postumamente publicada por Leite Vasconcellos n´“O Arqueólogo Português”. Estácio da Veiga foi membro da

Academia das Ciências de Lisboa, reconhecido investigador em Itália, França, Bélgica, Espanha, Brasil, …. Faleceu a 7 de Dezembro de 1891 em Lisboa. Com escassos apoios públicos, suprindo financiamentos do seu próprio bolso, deixou uma obra incontornável sobre o património material algarvio. Nas actividades de Faro 2005-Capital Nacional da Cultura reeditou-se a obra de Estácio da Veiga, uma chamada de atenção para o espólio de natureza diversa que se encontra em Lisboa desde finais do século XIX depositado em reservas museológicas. No programa do núcleo museológico do Museu Municipal de Tavira, a instalar no sítio arqueológico de “Corte Reais”, em pleno centro histórico, foi proposto homenagear o seu nome, mostrando a obra e espólios na terra onde nasceu.

O Manuel da Fonseca6 teimou em ver as açoteias de Olhão do alto da Igreja da Nossa Senhora do Rosário pois - segundo ele - de nenhum outro local poderia ter a visão da torrente de brancos e arestas que sobem da terra com a força de um quadro de Picasso. Foi há cinquenta anos que ele realizou esta visita pelo que eu quis ver de perto essas casas e as suas formas originais,

não a partir do ar - como ele - mas com os pés firmados na terra. Passeei então pelos bairros da Barreta e do Levante que se erguem junto à Ria e que foram em tempos toscas barracas de pescadores cobertas a colmo e depois evoluíram para alvenarias de taipa e, finalmente, para estruturas mais condizentes com o século e os ditames de um turismo que se apaixonou por estes bairros “típicos”. Chama-se típico, normalmente, a algo que faz recordar comunidades com vidas modestas e que nasceram por razões familiares e solidárias. O turismo porém modificou tudo. Para melhor ou para pior? Depende… Como diz o povo, “não se pode ter Sol na eira e chuva no nabal”. O turismo traz riqueza por um lado e adulteração por outro e o equilíbrio entre ambos tarda em ser encontrado. Estava eu então a arrastar os pés pelo labiríntico Bairro da Barreta: ruas estreitas, obras em curso, aqui e ali. Algumas pareciam respeitar a alma do sítio, outras nem por isso. Claramente se via que os novos ocupantes tinham modificado a vida do bairro. Ainda se vêem alguns antigos habitantes mas os alojamentos locais surgem em cada esquina. O turista apaixonou-se pela Barreta, mas não estou certo que a Barreta se tenha apaixonado pelo turista, mas isso é uma outra cartilha. Num larguinho sou surpreendido por uma pequena estátua em metal: um miúdo de braços amua-

damente cruzados sobre o peito. Ao lado uma placa explicativa. É “O Largo do Carola” diz uma placa camarária. Constato que a figura se apoia numa lenda ingénua e faz parte de uma forma interessante de fazer turismo adoptada na cidade de Olhão, com a divulgação de lendas locais e a criação de percursos turísticos baseados nessa e noutras pequenas histórias. Entretanto uma frágil senhora apoiada na sua bengala foi-se chegando. “A senhora mora aqui?”, pergunto. Pois que morava. E vá de contar a história do larguinho. Ná, não era Largo do Carola coisa nenhuma. Era Largo da Palmeira, pois sempre tinha havido ali uma palmeira. Um dia porém tinham vindo uns homens da câmara para a arrancar e levar embora. Diziam que estava muito doente mas era mentira. O caso é que da primeira vez que o homem tentou arrancá-la o equipamento não funcionou. Veio

no dia seguinte e no outro ainda e de todas as vezes a máquina se recusou a trabalhar. “Ela não queria ser cortada”, conclui a senhora. Mas os maldosos homens foram teimosos e numa triste manhã o Largo acordou para um tronco selvaticamente decepado, e fora esse o triste fim do Largo da Palmeira, “o maior largo da Barreta”. E assim falou o Povo.

* O autor não escreve segundo o acordo ortográfico

(1) Caro leitor, terá mesmo que dar uma vista

de olhos às crónicas anteriores onde explico a origem e objectivos deste nosso projecto. (2) Espera-se que a electrificação e modernização da linha do Algarve avance com rapidez. (3) Viajantes, Escritores e Poetas, Retratos do Algarve, ed. Colibri, CELL/UALG, 2009, p 104. (4) Viajantes, Escritores e Poetas, Retratos do Algarve, ed. Colibri, CELL/UALG, 2009, p 106. (5) João Lúcio, O Meu Algarve, in Poesias completas, INCM, pp. 112-113. (6) Manuel da Fonseca, Crónicas Algarvias, Editorial Caminho, 2ª ed., Lisboa,1986. *O autor não escreve segundo o acordo ortográfico


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FILOSOFIA DIA-A-DIA

Mascarada? FOTOS D.R.

MARIA JOÃO NEVES PH.D Consultora Filosófica

A vida são dois dias e o carnaval são três”- é um ditado popular que frequentemente utilizamos quando precisamos de nos animar. Deixemos de lado as contrariedades da vida, e concentremo-nos na sua parte festiva, de desmesura e estardalhaço. Demos rédea solta aos apetites, amordacemos o grilo falante da consciência e estejamos descansados porque “é carnaval e ninguém leva a mal”. Mas será que alguém pode levar a mal, mesmo quando não se trata de carnaval? Será que temos capacidade de decidir por nós próprios? Às vezes parece que somos dominados por forças “irresistíveis” e que a nossa livre vontade- se é que ela existe! - é mesmo muito fraca. O próprio Sto. Agostinho se dirigiu a Deus nestes temos: “Dai-me a castidade e a continência; mas não ma deis já”. [Confissões 8:7] Terá sido aqui que Robbie Williams veio buscar inspiração para o seu êxito pop: “Oh lord, make me pure, but not yet”? Mais adiante, no mesmo capítulo, o então ainda não santo clarifica: “Temia que me ouvísseis logo e me curásseis imediatamente da doença da concupiscência que antes preferia suportar que extinguir. (...) A alma tinha medo como da morte, de ser desviada da corrente do vício em que ia apodrecendo mortalmente.” Trata-se, pois, de uma prece contraditória, um dizendo que se quer não querendo, uma vontade fraca. Porém, mesmo se se tratasse de uma vontade forte, poderíamos estar seguros de que ela existe? Desde a antiguidade aos nossos dias, há pensadores que negam a existência do livre arbítrio. Consideremos, pois, alguns dos argumentos empíricos contra

a liberdade humana. Existe uma linhagem de pensamento que sustenta que o mundo é governado pela Lei da Causalidade, portanto, como os seres humanos fazem parte do mundo, também a ela se submetem. O sucesso da física de Isaac Newton que permitiu explicar o universo como sendo governado por leis determinadas constitui-se na sua base empírica. No entanto, a revolução quântica do início do século XX tornou essa concepção de um universo mecânico duvidosa. Porém, a mecânica quântica trouxe novos problemas. O seu indeterminismo, por exemplo, parece experimentar-se apenas a nível microscópico. Quando se trata de fenómenos observáveis a olho nu - edifícios, pessoas, animais, etc. - o universo parece comportar-se como uma estrutura causal newtoniana. Tanto no que respeita à concepção do mundo como no que se refere à mente humana - que é o que mais nos importa aqui - existem correntes científicas que não apoiam a ideia de que tudo o que fazemos está pré-determinado pelo passado e, por conseguinte, totalmente fora do nosso controle. Colocam a hipótese de estarmos sujeitos a inúmeras influências causais, sendo que a soma total dessas influências não determina o que fazemos, apenas torna mais ou menos provável que façamos isto ou aquilo. Ainda assim, existem alguns argumentos a priori contra a existência do livre-arbítrio que se centram em teorias não determinísticas segundo as quais existem probabilidades antecedentes e objetivas associadas a cada resultado de escolha possível. O filósofo holandês Derk Pereboom (1957 -) enquadra-se nesta linha de pensamento defendendo que as nossas ações, embora indeterminadas, são governadas por probabilidades objectivas. Por este motivo Pereboom questiona a existên-

cia da liberdade. O pensador aponta também para o facto de podermos ser influenciados inconscientemente nas escolhas que fazemos por uma série de factores, incluindo aqueles que não são motivacionalmente relevantes. Quer isto dizer que podemos acreditar que escolhemos iniciar um comportamento que, de facto, foi induzido artificialmente. Professor nas universidades de Vermont e Cornell, nos EUA, este académico leva a bandeira da não existência da liberdade às ultimas consequências: defende que nos falta o livre arbítrio necessário para a responsabilidade. Ou seja, quer as nossas ações sejam causadas de forma determinística ou indeterminística, não teremos o controle necessário para merecermos ser culpados ou punidos por decisões imorais, e ser elogiados ou recompensados por aquelas que são moralmente exemplares. Pergunto-me que mundo teríamos se esta fosse a tese vigente... Voltaríamos à selva? Seria o regresso à lei do mais forte? Se Pereboom pode ser considerado perigoso trata-se, apesar de tudo, de um filósofo. Ora os filósofos não têm grande projecção nem influencia nos dias de hoje. As grandes estrelas - para além das do cinema e da música - aquelas estrelas que, realmente, movem a opinião pública são os cientistas. E no topo da fama estão os neurocientistas. Que têm os ilustres homens de ciência do séc. XXI a dizer sobre a liberdade? O neurocientista americano Benjamin Libet (1916-2007) foi premiado precisamente pela sua investigação pioneira sobre o início da acção e o livre arbítrio. Em laboratório desenvolveu a seguinte experiência: cada participante sentava-se a uma mesa em frente ao cronómetro de um osciloscópio. Eram-lhes fixados eléctrodos

no couro cabeludo para realização de um electroencefalograma. Seguidamente, recebiam instruções para realizar alguma atividade motora pequena e simples como, por exemplo, pressionar um botão. Era-lhes pedido que anotassem a posição do ponto, no temporizador do osciloscópio, de quando “tomassem consciência do desejo de agir”. Esta experiência permitiu calcular que, em média, existe um intervalo (cerca de quinhentos milisegundos) entre a volição do sujeito - o aparecimento da vontade consciente de apertar o botão - e o acto de o pressionar. Dito de uma forma simples, verificou-se que a decisão de agir, aparentemente consciente, era precedida por um acumular inconsciente de actividade elétrica no cérebro. À mudança nos sinais de EEG que reflecte esse acumular de actividade eléctrica no cérebro chamou-se potencial de Bereitschaft ou potencial de prontidão. Com o desenvolvimento da tecnologia, a partir de 2008, foi encontrado potencial de prontidãoaté 7 segundos antes de que o sujeito tomasse consciência de que tinha tomado uma decisão. Destas experiências científicas houve pensadores que extraíram a seguinte conclusão: uma vez que os processos inconscientes do cérebro são o verdadeiro iniciador dos actos volitivos o livre-arbítrio não desempenha nenhum papel nesse desencadeamento. Dito de outro modo: se os processos cerebrais inconscientes já deram passos para iniciar uma ação antes de que a consciência esteja ciente de qualquer desejo de realizá-la, o papel causal da consciência na volição está praticamente eliminado. Podem todas estas experiências científi-

cas provar que não temos livre arbítrio? Vejamos, exercer a vontade significa podermos fazer algo intencionalmente. A intenção é uma actividade da mente. Claro que se supomos que a mente é apenas uma propriedade do corpo entramos em grandes dificuldades. Ora é justamente assim que a mente parece ser entendida pelos mais renomeados cientistas! O corpo opera de acordo com as leis amorais e inconscientes da física, da química e da biologia. As leis da física não tomam decisões. Os planetas não deliberam sobre qual é a estrela em torno da qual querem orbitar, e quão rápido lhes apetece ir, e se de trajectória elíptica ou circular... Se acreditamos que, por termos um corpo físico, estamos totalmente sujeitos às leis da física ficamos totalmente indefesos. Se destas experiências neurocientíficas extrairmos a conclusão de que toda e qualquer decisão é, na sua raiz, inconsciente e acharmos que daí decorre que não decidimos nada, então, estamos totalmente à mercê das forças irracionais que nos movem, quaisquer que elas sejam! Seremos, portanto, vítimas absolutas das circunstâncias em todas as ocasiões e - tal como crê Pereboom - nunca teremos de nos responsabilizar ou orgulhar por nada! Vem-me imediatamente à cabeça um outro êxito da música pop: Olha o robot! dos Salada de Frutas - Será que somos apenas isso, robots mascarados de humanidade? Inscrições para o Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com * A autora não escreve segundo o acordo ortográfico


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FIOS DE HISTÓRIA

A Avó Algarvia de Camões FOTO D.R.

RAMIRO SANTOS Jornalista ramirojsantos@gmail.com

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a avó algarvia de Camões. Chamava-se Guiomar Vaz da Gama, casada com Antão Vaz de Camões, e era parente dos Gamas do Al-

garve. A ligação familiar está documentada, mas continuam a pairar no ar perguntas sem respostas. Por exemplo: quem foram os pais de Guiomar ou que tipo e grau de parentesco tinha ela com a família do almirante da Índia? O que se sabe é apenas o que dizem os primeiros biógrafos do poeta, Pedro Mariz e Manuel Severim de Faria. E tudo se resume a isto: que “Antão Vaz de Camões casou com Guiomar Vaz da Gama, parente dos Gamas do Algarve, vindos do Alentejo, da família do grande navegador”. Uma versão que foi sendo replicada sucessivamente por outros historiadores e genealogistas ao longo dos séculos. Sem um ponto a mais, a narrativa ficou assim parada no tempo. Como dizia Faria de Sousa, “quien lo entendiere mejor me lo diga”. Que os Gamas passaram do Alentejo para o Algarve e por cá deixaram descendência, é um dado adquirido. O mais notável deles, Vasco da Gama, de família com origens em Sines e na Vidigueira, casou com Catarina

de Ataíde, uma algarvia filha de Álvaro de Ataíde, alcaide mor de Alvôr. O primeiro a colocar o nome de Guiomar como avó de Camões, e a ligação desta a Vasco da Gama, foi Pedro Mariz, numa edição de Os Lusíadas de 1613, comentada por Manuel Correia. Um e outro foram contemporâneos de Luís de Camões e o último seu amigo pessoal, “persona de credito e de la idade do poeta e su amigo”, como diz Mariz. Ninguém como eles e M. Severim de Faria, estaria em melhor posição para o afirmar com tal propriedade. À excepção do que eles disseram mesmo com algumas imprecisões -, muitos aspetos da vida do épico português persistem envoltos em nuvens de fumo que têm levado ao engano e, não raras vezes, a muitas fantasiosas efabulações. Mas graças a eles, há coisas que são hoje pacificamente aceites: Luís Vaz de Camões era descendente direto de Vasco Pires de Camões, seu trisavô, fidalgo galego que passou a Portugal ao serviço do rei D. Fernando, onde ganhou fama e fortuna. Mais tarde, por ter alinhado ao lado de Castela contra D. João I, em Aljubarrota, caiu em desgraça, foi feito prisioneiro e tudo perdeu. Do seu casamento com Maria Tenreiro, vieram os descendentes da família mais próxima do poeta. Primeiro os seus bisavós, João Vaz de Camões e Inês Gomes da Silva, pais de Antão Vaz de Camões, seu avô, dono de um morgadio em Évo-

ra, que veio a casar com Guiomar Vaz da Gama. Por este facto o poeta é neto, por varonia, de Guiomar Vaz da Gama. Os seus pais foram Simão Vaz de Camões e Ana de Macedo. Corria-lhe, pois, nas veias, sangue de um fidalgo vindo da Galiza, mestre no manejo das armas e virtuoso na poesia trovadoresca, e de uma ilustre avó algarvia. E terá sido da fusão dessa tradição da poesia trovadoresca, herdada do trisavô, com o cancioneiro popular do Algarve, transmitida pela avó, que lhe terão chegado as influências refletidas de forma clara na sua obra poética. Mas vale a pena contar que há quem reclame ter supostamente encontrado a chave para o enigma, ligando Guiomar a uma família e aos seus pais. Trata-se do controverso historiador e genealogista, A. Mascarenhas Barreto. Diz ele que Guiomar Vaz da Gama era filha de Aires da Gama e de Mécia Alves Garcia (Bocanegra), o qual, descendendo de Álvaro Eanes da Gama e da algarvia Maria Esteves Barreto, seria irmão de Estevão da Gama, trisavô de Vasco da Gama. Aceitando-se esta tese - com pouco consenso entre os genealogistas - , Luís Vaz de Camões e o navegador da Índia, seriam primos em terceiro grau. Além disso, confirmava Guiomar como parente dos Gama do Algarve e avó do poeta. Nesta longa discussão poderia ainda caber outro ramo dos Gamas, cujo nome derivou mais tarde no apelido Rua, com ligações ao Algarve e a Loulé. Mas também este caminho não parece conduzir a lado algum e muito menos à família de Guiomar. Se a ligação de Vasco da Gama ao Algarve resultou, para além de algumas ações de fiscalização da costa, do seu casamento com Catarina de Ataíde, importará realçar também que uma outra mulher homónima, filha de Francisco da Gama e neta de V. da Gama, é dada como prima ou parente do poeta e sobrinha de Manuel de Portugal. Este foi um dos grandes amigos e confidentes de Camões nos amores do Paço. Não escondia a sua paixão pela algarvia Francisca de Aragão a quem Camões dedicava exaltantes rimas poéticas, escrevendo algumas a pedido do amigo. E aqui entra outra ligação de Camões ao Algarve. Francisca de Aragão, que veio a casar com Juan Borja, embaixador de Espanha em Lisboa, era filha de Nuno Rodrigues Barreto, alcaide mor de Faro e senhor do morgadio de Quarteira. O seu tio, Francisco

Barreto, foi governador da Índia e a sua relação com o poeta terá sido algo conflituosa. Camões, mestre na sátira mordaz, desatou a denunciar em verso os disparates na Índia, nomeadamente a decadência dos valores portugueses e a corrupção reinante no seio da nobreza e da elite dirigente. Os Barretos não lhe perdoaram e Camões foi mandado, primeiro para um exílio dourado em Macau e, mais tarde, regressado à Índia, não demorou até que fosse preso. A vingança suprema veio de Pedro Barreto, governador de Sofala, que deixou o poeta em Moçambique sem meios para regressar ao país. Valeu-lhe a ajuda de uns amigos que seguiam a bordo e entre eles juntaram o dinheiro para lhe garantir a viagem. Como se sabe, o poeta não ardia no fogo de um amor só. As mulheres foram a sua fonte inesgotável de inspiração e ele com a sua arte de cantar o amor em verso, era um galante sedutor e o mais disputado pelas donzelas da corte. Mas, como dizia Gil Vicente, “a corte era um mar perigoso onde pesca muita gente”, e a inveja mais o descuido do poeta, que nem sempre tratou de proteger o nome das suas musas, determinaram a sua sorte. Camões acabou por ser banido do Paço e desterrado para o Ribatejo e depois para longe da pátria. Antes do seu exílio de 17 anos no oriente, o autor de Os Lusíadas trocou os desenganos dos seus dias atribulados na corte, pela vida de ação e feitos de armas em Ceuta. E como escreveu Teófilo Braga, “na partida para África, parece que a nau aferrou no Algarve, junto a Vila Nova de Portimão, no sítio da Ribeira de Boina”, que ele cantou desta forma: “Por meio de umas serras mui fragosas,/Cercadas de silvestres arvoredos,/Retumbando por ásperos penedos,/correm perenes águas deleitosas/Na Ribeira de Boina, assim chamada,”/celebrada/ porque em prados/esmaltados/com frescura/de verdura,/Assi se mostra amena, assi graciosa,/que excede a qualquer outra mais fermosa”... A canção não deixa dúvidas quanto à sua presença no morgadio com aquele nome - ou de Santo António dos Casais - pertença de Isabel Coutinho, filha de Fernando Coutinho, bispo de Silves, casada com o alcaide mor da cidade, Rui Pereira da Silva. Também aqui T. Braga coloca Pereira da Silva e Diogo da Silva, seu irmão, alcaide mor de Lagos, como seus primos ou parentes. Há mesmo quem afirme que Pero Vaz

de Camões, seu tio, também se encontraria por esses lados na mesma altura. Se não tinha relações de parentesco com os Silva, a verdade é que um filho do alcaide de Silves, Jorge da Silva, era amigo de Camões e seu companheiro de farras nas noites lisboetas e frequentador como ele dos salões da corte. Diz-se que Jorge não escondia uma secreta paixão pela Infanta Dª Maria e que isso o terá levado a refugiar-se longe do perigo, para evitar um final de vida no pelourinho real. Terá sido na Ribeira de Boina que Camões o foi encontrar. Versão diferente é apresentada pelo autor e genealogista algarvio, Nuno Campos Inácio, que no seu livro “História do Condado de Vila Nova de Portimão”, diz o seguinte: “O mais razoável é que a presença de Camões no Algarve, não esteja relacionada com o tio lacobrigense ou os eventuais primos de Silves, mas sim com alguém que lhe estaria muito mais próximo. Luís Vaz de Camões frequentava a corte onde D. Francisco de Castelo Branco, Senhor de V.N. de Portimão, era camareiro-mor e por onde também andaria o seu filho Martinho”. Nuno Inácio invoca o gosto dos Martinhos pela poesia, para admitir uma aproximação a Camões como se “fossem amigos”. E adianta ser “concebível que D. Martinho, deslocando-se a Portimão para tomar posse informal do seu Senhorio, se fizesse acompanhar pelo amigo”. O autor destaca a existência de prova documental a ligar os dois homens: “O único exemplar sobrevivente da primeira edição de Os Lusíadas encontrava-se no espólio de D. Martinho de Castelo Branco, entre os seus bens que regressaram a V.N. de Portimão, após o seu falecimento em Alcácer Quibir”. Em conclusão, não parece normal que um homem que partira para uma campanha arriscada de guerra em África levasse consigo como bíblia, uma obra de poesia épica na sua bagagem de combate. O que só se justifica pela amizade e admiração que tinha pelo autor de Os Lusíadas. Luís Vaz de Camões, sem um trapo para se cobrir, faleceu em Lisboa em 1580, e foi sepultado em campa rasa na igreja de Sant’Ana, em Lisboa. Fontes: ”Rimas Várias de Luís de Camões”, Pedro Mariz; Discursos Vários Políticos”, M. Severim de Faria; “Camões”, Teófilo Braga; “História do Condado de V.N de Portimão”, Nuno Campos Inácio; outras.


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Postal, 4 de fevereiro de 2022

LETRAS & LEITURAS

Violeta, de Isabel Allende: 40 anos de vida literária PAULO SERRA Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

V

ioleta é o novo romance de Isabel Allende, a assinalar a comemoração dos 40 anos de vida literária desta autora que tem sido presença constante e essencial na vida de milhões de leitores. O lançamento mundial do novo livro, com edição simultânea em vários países, e uma apresentação online com a autora exclusiva para os leitores portugueses, deu-se no passado dia 25 de janeiro, data simbólica escolhida por Isabel Allende. A tradução é de Carla Ribeiro. A obra da autora chilena encontra-se integralmente publicada pela Porto Editora. Violeta é um romance de celebração. De 80 anos de vida, de 4 décadas de percurso literário, iniciado com o fulgurante sucesso de A Casa dos Espíritos. Talvez por isso mesmo as datas e os anos são tão importantes em Violeta. O romance inicia-se com o nascimento da personagem epónima, num dia de tempestade, em 1920, e termina justamente em 2020, com a morte da protagonista e narradora. Ou seja, nesta narrativa cabem 100 anos de vida de uma personagem imensa, que aterrou «de cabeça na vida» (p. 15) – durante o parto a criança escorrega das mãos da tia que assiste ao parto e bate com a cabeça no chão, ficando marcada por um galo. A vida de Violeta, como se verá, atravessa e cruza justamente diversos momentos-chave de mais de um século. Violeta nasce no ano da peste, quando ainda se sentem os efeitos devastadores da Grande Guerra, do outro lado do Atlântico, e a gripe espanhola, a influenza, chega ao seu país natal, na América do Sul, obrigando a uma série de cuidados, como a desinfeção constante, o uso de máscaras e recolhimento social. A sua vida terminará, curiosamente, um século depois, durante o deflagrar de uma nova pandemia. Logo desde as primeiras linhas, o leitor reconhece o estilo muito próprio da escritora chilena, entre os saltos cronológicos em que a história avança e recua no tempo, conforme acompanha um mosaico de personagens, cuja natureza é, quase sempre, tão forte quanto excêntrica, e o seu humor muito peculiar, como acontece nesta passagem: «Nessa noite, fui ao seu quarto. Não fiques admirado, Camilo, nem sempre fui uma velha desvalida, aos 51 anos ainda

era atraente e as minhas hormonas funcionavam.» (p. 219) Curiosamente, da mesma forma que o primeiro romance da autora, A Casa dos Espíritos, começou com a intenção de ser uma carta ao seu avô, que estava prestes a falecer, Violeta surge sob a forma de uma longa carta a um narratário, Camilo. Mas este novo romance tem ainda a particularidade de ter sido fruto da vontade da autora de contar a história de Doña Panchita, a sua mãe, falecida em 2018. Mas como tantas vezes acontece em Isabel Allende, em que até Afrodite, um livro de receitas, se transforma num romance, ou Paula, escrito como uma carta à filha que morreu, surge pejado de histórias íntimas e pessoais, também este suposto registo biográfico sucumbiu, felizmente, à influência da ficção. Note-se, aliás, que o apelido de Violeta, del Valle, ressoa de imediato a genealogia de Clara de A Casa dos Espíritos – se lermos outras obras da autora, como Retrato a Sépia, este é aliás um patronímico que volta a surgir, interligando subtilmente as várias obras da autora. A certa altura, na página 102, Violeta acaba por desvelar como Nívea, a mãe do seu pai, «tinha morrido decapitada num arrepiante acidente de automóvel, e que a sua cabeça se tinha perdido num cercado». Relembre-se os leitores mais familiarizados com a obra de Allende, que Nívea era justamente a mãe de Clara. A própria Clara aparece aliás indiretamente referida no romance, numa passagem logo a seguir: «havia uma tia capaz de falar com as almas». O pai de Violeta será, por conseguinte, irmão de Clara, e um dos 15 filhos de Nívea (conforme referido no romance de estreia de Allende). Violeta não resulta, portanto, na história de vida da mãe de Isabel Allende, mas sim na história da mulher que Panchita teria sido, se tivesse podido ter a força de vontade, a independência e a capacidade de se sustentar sozinha, como Violeta, pois na vida de uma mulher, nascida no século passado, ou mesmo neste, há sempre várias prisões de que se libertar. «A realidade é que cada um é responsável pela sua própria vida. Nascemos com certas cartas do baralho e é com elas que jogamos o nosso jogo; a alguns calham-lhes cartas más e perdem tudo, mas outros jogam magistralmente com essas mesmas cartas e triunfam. O naipe determina quem somos: idade, género, raça, família, nacionalidade, etc, e não o podemos

mudar, apenas utilizá-lo o melhor possível. Nesse jogo, existem obstáculos e oportunidades, estratégias e armadilhas.» (p. 194) Violeta atravessa um século de vida das mais diversas peripécias, inclusive diversas catástrofes naturais, entre terramotos e furacões, até se tornar já na terceira idade (Violeta viverá ainda uma “quarta” idade) numa patrona, cujo património lhe permitirá criar uma Fundação em prol de jovens mulheres – o que ressoa curiosamente o trabalho da Fundação da própria Isabel Allende. O país em que Violeta nasce nunca chega a ser nomeado, tornando-se assim não propriamente o Chile enquanto pátria perdida ou “país inventado” de Isabel Allende, exilada desde 1973 do seu país-natal. Esse país é, assim, um lugar acrónico, fora do espaço, que representa a América do Sul, com a sua clivagem social, mestiçagem e turbulência política – os campos de concentração, os homicídios e desaparecimentos, a tortura, a repressão, países subdesenvolvidos que sob regimes tirânicos se transformam em países prósperos, ainda que sob a sombra da corrupção e da desigualdade. Violeta fala-nos inclusivamente da «infame Operação Condor», criada pelos Estados Unidos da América para instaurar ditaduras de direita no continente sul-americano (p. 265). Nesta vivência cheia de sobressaltos, que cruza momentos tão díspares como a Grande Depressão, a luta pelos direitos da mulher, e a mais recente pandemia, e une lugares tão distantes, como a Noruega ou o Congo, Violeta é um romance ambicioso, mas coeso, que vai certamente corresponder às expetativas dos fãs de Allende. Isabel Allende nasceu em 1942 no Peru (por mera casualidade). Viveu no Chile entre 1945 e 1975, esteve exilada na Venezuela até 1988 e vive, desde então, na Califórnia. Em 1982, A Casa dos Espíritos converteu-se numa obra de referência da literatura latino-americana (a par de Cem Anos de Solidão de Gabriel García Márquez). Seguiram-se dezenas de livros, todos eles êxitos internacionais. Entre outras distinções, foi galardoada com o Prémio Nacional de Literatura do Chile e agraciada, em 2014, com a Medalha Presidencial da Liberdade, por Barack Obama. Em setembro de 2020 recebeu o Prémio Liber, outorgado pela Federación de Gremios de Editores de España, que a classifica como a autora latino-americana mais destacada da atualidade, traduzida em trinta e cinco línguas.

Isabel Allende é classificada como a autora latino-americana mais destacada da atualidade, traduzida em 35 línguas FOTO D.R.

“Violeta” é um romance de celebração de 80 anos de vida e de 4 décadas de percurso literário


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Postal, 4 de fevereiro de 2022

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DIÁLOGOS (IN)ESPERADOS

Uma voz, um rio, um resistente

Carlos Brito e Maria Luísa Francisco em diálogo junto ao Rio Guadiana

MARIA LUÍSA FRANCISCO Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa luisa.algarve@gmail.com

N

o artigo de Outubro de 2021 referi-me a Carlos Brito quando escrevi sobre pontes culturais e transfronteiriças. Este ano volto a Carlos Brito como segundo “convidado” desta nova rubrica chamada “Diálogos (in)previstos”, porque este mês completa 89 anos e porque sei que tem muito para partilhar. Este diálogo decorreu em Alcoutim, em sua casa, sobre o Rio Guadiana, onde foi feito o registo fotográfico. Nesta vila viveu com a família, a infância (regressou de Moçambique com 3 anos de idade) e parte da juventude. Actualmente reside com a esposa numa casa sobre o rio, onde mantém a sua actividade literária e participação cívica. A actividade literária teve início em Lisboa, quando frequentava o Instituto Comercial (actual ISCAL) onde, com outros jovens, organizou recitais e colaborou em vários jornais e revistas. Aos 20 anos foi preso pela PIDE, pela primeira vez. Voltou a ser preso

FOTO D.R.

mais duas vezes, tendo cumprido um total de oito anos de prisão. Em 1967 passou a participar na direcção do Partido Comunista Português. No dia 25 de Abril de 1974 estava em Lisboa, clandestino, e era responsável pela organização partidária na capital. Em 1975 foi eleito deputado à Assembleia Constituinte pelo Algarve. De 1976 a 1991 exerceu sem interrupção o mandato de deputado, tendo desempenhado durante quinze anos as funções de presidente do Grupo Parlamentar do PCP. Em 1980 foi candidato à Presidência da República. Entre 1992 e 1998 foi director do jornal Avante!. Em 1997, foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique e, em 2004, com a Ordem da Liberdade (Grande-Oficial). Após ter deixado de ser deputado publicou vários livros. Aqui fica parte do nosso diálogo: P No mês em que completa 89 anos e com tudo o que a vida lhe reservou, que frase usaria para descrever a sua vida? R Muita luta, algumas decepções, grandes alegrias e sempre esperança na mudança para melhor do nosso País e do Mundo.

Quais as melhores memórias que tem da sua infância? P

R A melhor memória é a do ambiente carinhoso do meu núcleo familiar, a seguir vêm as memórias do rio:

nadar, pescar, velejar. Lembro-me muito do meu «charuto», uma espécie de Kayak de construção artesanal. Com ele passava horas a vogar rio abaixo, rio acima. P Quando esteve preso imaginou que chegaria a esta idade? R Não pensava nisso. Na altura, a esperança de vida à nascença era, no nosso país, muito mais baixa do que é actualmente. Mas sentia-me com força para viver, apesar das ameaças que me cercavam. P Quais os livros que leu na prisão? R Imensos. Oito anos de prisão nas cadeias da ditadura, para não serem improdutivos, tinham que ser aproveitados para ler. E não li mais porque a PIDE e os carcereiros às suas ordens, em certos períodos, não me permitiam receber livros. Assim de repente, lembro-me de alguns. De autores portugueses: Os Maias de Eça de Queiroz, Quando os Lobos Uivam de Aquilino Ribeiro, Seara de Vento de Manuel da Fonseca, na ficção. De poesia: No Reino da Dinamarca de Alexandra O´Neill, Pedra Filosofal de Jorge de Sena, Poesias Completas de António Gedeão. De autores estrangeiros: Guerra e Paz de Lev Tolstoi, Os Thibault de Roger Martin du Gard. Nineteen Nineteen de John dos Passos, Gabriela Cravo e Canela de Jorge Amado.

Deste livro até escrevi uma crítica, numa carta para a minha Mãe, que o Jornal do Algarve publicou. Também li muita história universal e história de Portugal, especialmente do período que vai da Revolução de 1820 à República, sobre qual fiz um estudo sistemático. P

Está a escrever algum livro?

Além de artigos para jornais e revistas, estou a escrever um romance sobre a minha geração. E vou escrevendo poesia. Gosto de fazer palavras cruzadas e recomendo às pessoas idosas! A minha escrita são as minhas palavras cruzadas e por isso vou escrevendo sem nenhum compromisso de concluir. R

P Qual é o seu sentir sobre o Algarve actualmente?

O Algarve é um paraíso. Penso em todo o caso que precisa de grandes mudanças. O turismo deve ser desenvolvido, modernizado e em geral valorizado, mas é essencial acabar com a monocultura do turismo e encontrar outras áreas de desenvolvimento com novas ofertas turísticas. E a Luísa sabe bem disso, pois não lhe faltam ideias e que tem colocado em prática, valorizando a região. O Algarve já teve indústria e uma agricultura florescente e tem as maiores potencialidades no domínio das pescas. É preciso um grande empenhamenR

to do sector público, privado e sector cooperativo para encontrar estas áreas novas de desenvolvimento. Há, entretanto, no domínio público, importantes carências que têm de ser preenchidas. Na saúde, entre muitos outros aspectos, um novo hospital há muito prometido. No domínio das acessibilidades, é necessária a modernização de toda a via ferroviária e a sua ligação com Espanha. P Acredita que este Governo vai dar seguimento ao processo da Ponte Alcoutim Sanlúcar? R Com a governação de António Costa estou convencido que a ponte vai para a frente, o que é da maior importância não só para Alcoutim, mas para todo o Nordeste Algarvio e para os «Campos Brancos» do Baixo Alentejo. Aliás, agora a estabilidade governativa está assegurada com a maioria absoluta do PS, que é essencial para enfrentar a pandemia, desenvolver a economia, melhorar os serviços públicos, elevar salários, ordenados e pensões. Espero que haja diálogo com os partidos à sua esquerda, PCP e BE, que tão penalizados foram por terem chumbado o Orçamento para 2022 e que têm agora oportunidade para se redimir desse mau passo.

* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico


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