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JANEIRO 2022 n.º 158 6.492 EXEMPLARES

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ESPAÇO ALFA

A origem da fotografia em movimento MAURO RODRIGUES Membro da ALFA

P Estudo fotográfico de Eadweard Muybridge de um homem saltando sobre um cavalo, de Locomoção Animal: Uma Investigação Eletrofotográfica de Fases Consecutivas de Movimentos Animais. Iniciado em 1872 - Concluído em 1885. Volume IX, Cavalos, década de 1880; no Metropolitan Museum of Art, Nova York FOTOS D.R.

Técnica fotográfica revolucionária desenvolvida por John C. Gaeta para o filme “The Matrix” onde numa sequência sincronizada rotativa num extremo curto espaço de tempo foi possível dar a ilusão do movimento em que a ação circulava em redor do ator

rovavelmente já observaram estas imagens em algum lado na vossa vida e em movimento, imagens clássicas do movimento do trote de um cavalo, mas é tudo uma ilusão, uma vez que o movimento em vídeo como nós o conhecemos é apenas uma série de fotografias estáticas tiradas sucessivamente num período de tempo muito curto. As imagens em causa são da autoria do fotógrafo, Eadweard Muybridge (1830-1904), que na altura usava um processo antigo e lento de captação e revelação das placas fotográficas, normalmente chamado de Processo de Colódio Húmido, uma espécie de verniz em estado líquido que era aplicado juntamente com nitrato de prata às placas de vidro. Portanto para tirar estas fotografias, Muybridge usou uma série de 12 a 24 câmaras dispostas lado a lado em frente a uma tela refletora. O mecanismo de disparo foi acionado através de um fio que se partia à medida que o cavalo ia passando a correr pelas câmaras. Através desta técnica, conseguiu conjuntos de fotografias sequenciais das fases sucessivas da caminhada, do trote e do galope do animal. Quando as fotografias foram publicadas internacionalmente na imprensa popular e científica, foi demonstrado que havia diferenças na posição das pernas do animal nas representações tradicionais desenhadas à mão. Isto foi memorável e uma revelação, porque para provar que as suas fotografias eram precisas, Muybridge criou um projetor de slides dedicado especialmente para que as possa projetar sequencialmente numa tela, uma a uma, o resultado foi a primeira apresentação de cinema no Mundo, demonstrando a ilusão

de movimento através de fotografias sequenciais. Estávamos em 1880 e este evento foi promovido pela San Francisco Art Association (SFAA). Após a invenção do processo de papel de gelatina e prata, que consiste numa camada adesiva de gelatina transparente que fixa os sais de prata no papel facilitou imensamente o processo de obtenção de fotografias. Produzido industrialmente a partir de 1880, foi um dos fatores que ajudaram na popularização da fotografia em larga escala. Muybridge rapidamente adoptou esta técnica que melhorou significativamente o processo de captura e revelação das suas fotografias em movimento. A convite da Universidade da Pensilvânia em 1884-85 produziu um conjunto de 781 fotografias sequenciais de muitos tipos de animais e pessoas a praticar variadas atividades. A análise fotográfica do movimento utilizado pela técnica de Muybridge coincidiu com os estudos do fisiologista francês Étienne-Jules Marey que desenvolveu outra técnica de captura, a cronofotografia. Enquanto Muybridge usava diversas câmaras em sequência para capturar estas imagens detalhadas e separadas dos estágios sucessivos do movimento, Marey usou apenas uma câmara, gravando uma sequência inteira de movimento em apenas uma placa. Com este método, as imagens das várias fases do movimento por vezes sobrepunham-se umas às outras, simplificando o processo de ver e perceber como o fluxo do movimento realmente funcionava. Marey igualmente aperfeiçoou a velocidade de captura e o tempo de duração, conseguindo intervalos mais pequenos do que Muybridge. O trabalho destes dois homens contribuiu imenso para o desenvolvimento dos estágios iniciais do estudo do movimento e para

o desenvolvimento do filme como nós o conhecemos hoje em dia. Conhecendo isto é fácil perceber que houve um filme em 1999 que utilizou esta mesma técnica para criar uma sequência rápida de fotografias num curto espaço de tempo tão curto, aproveitando-se da modernização dos equipamentos fotográficos atuais, para criar sequências rotativas tão icónicas que foram revolucionárias na altura, transformando e modernizando o cinema para uma nova era, tendo sido copiada por muitos outros artistas e cimentada para sempre na história do cinema moderno. Esse filme foi “The Matrix”, realizado por Lilly e Lana Wachowski, a técnica fotográfica rotativa inovadora intitulada de “bullet time” ficou a cargo do designer e inventor John C. Gaeta.

Ficha técnica

Direção GORDA, Associação Sócio-Cultural Editor Henrique Dias Freire Responsáveis pelas secções: • Diálogos (In)esperados Maria Luísa Francisco • Espaço AGECAL Jorge Queiroz • Espaço ALFA Raúl Grade Coelho • Filosofia Dia-a-dia Maria João Neves • Fios De História Ramiro Santos • Letras e Literatura Paulo Serra • Mas afinal o que é isso da cultura? Paulo Larcher • Colaboradores desta edição José Carlos Vilhena Mesquita Mauro Rodrigues e-mail redação: geralcultura.sul@gmail.com publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve FB https://www.facebook.com/ Cultura.Sulpostaldoalgarve


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DIÁLOGOS (IN)ESPERADOS

Olhares sobre o Património Cultural do Algarve FOTO D.R.

MARIA LUÍSA FRANCISCO Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa luisa.algarve@gmail.com

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primeiro convite para colaborar neste jornal surgiu há 10 anos, primeiro na rubrica “Patrimónios” onde partilhei o resultado de algumas das minhas investigações na área do Património Cultural Imaterial (PCI). Depois a colaboração passou para o género “crónica” e a rubrica passou a intitular-se “Marca d’Água”. Neste novo ano a rubrica passará a intitular-se “Diálogos (in)esperados” e será o resultado de conversas que, espontâneas ou agendadas, terão o Algarve como pano de fundo. Região onde este jornal é editado e à qual as duas partes do diálogo têm ligação. A primeira edição destes “Diálogos (in)esperados” resulta de uma conversa que decorreu através do Zoom com o ensaísta e professor universitário Guilherme d’Oliveira Martins, que é actualmente

administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian e que sempre tem dado especial atenção ao Algarve. Foi presidente do Centro Nacional de Cultura (2002–2016), coordenou em Portugal o Ano Europeu do Património Cultural (2018) e presidiu no Conselho da Europa à redacção da Convenção de Faro sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea (2005). Foi deputado independente à Assembleia da República durante sete legislaturas, Secretário de Estado da Administração Educativa (1995–1999), Ministro da Educação (1999–2000), Ministro da Presidência e das Finanças (2000–2001) e Presidente do Tribunal de Contas (2006–2015). A grande riqueza do Algarve em termos de Património Cultural Material e Imaterial foi o mote da conversa, que nos levou até à Convenção de Faro, uma vez que se trata de um relevante documento que relaciona o Património Cultural Material e Imaterial, a Paisagem, o Património Digital e a Criação Contemporânea. O texto da Convenção apresenta o património cultural como um

recurso importante para o desenvolvimento humano, para a valorização da diversidade cultural e a promoção do diálogo intercultural mediante um modelo de desenvolvimento económico fundado no princípio de utilização sustentável dos recursos. Falámos de um outro Algarve rico em tradições, usos e costumes e dos saberes das pessoas idosas da serra. Agostinho da Silva foi recordado por defender a troca de saberes, intimamente ligada ao processo de aprendizagem, independentemente dos graus de escolaridade. “O que distingue um país rico de um país pobre é a aprendizagem e o mesmo também se aplica no caso de uma região pobre e uma região rica”. A importância do aprender e o papel das mulheres na aprendizagem é um tema local e universal, aliás, está expresso na Declaração Mundial sobre Educação para Todos: satisfação das necessidades básicas de aprendizagem, que foi assinada em Jomtien, na Tailândia, em 1990. “O filho de uma mulher alfabetizada raramente é analfabeto. Alfabetizar as mulheres é garantir a alfabetização das gerações futuras”. Aqui o meu interlocutor referiu os algarvios Maria Aliete Galhoz e

José Ruivinho Brazão que, nas suas pesquisas, valorizam os saberes das mulheres analfabetas e os seus processos de aprendizagem e, por sua vez, a transmissão desses saberes. Referiu ainda a escritora Lídia Jorge que plasmou esses saberes e tradições na literatura, salientando O Dia dos Prodígios. Falámos dos projectos da Gulbenkian, um dos quais coordenei na serra algarvia e de como essa experiência me permitiu conhecer ainda melhor a realidade da serra, fazendo recolha de saberes, tradições e cuidando, com gestos e palavras de apoio e conforto, dos mais isolados e desfavorecidos. Referiu o administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian que esta foi e é uma função biunívoca em que ao ajudar se aprende e ao aprender se ajuda. Interagir, incentivar à partilha, valorizar os saberes contribui para a

melhoria da auto-estima de uma população, por vezes chamada de analfabeta, e que tem tanto para contar. Cada vez que um destes idosos morre ficamos mais pobres, principalmente se não se fizer recolha desses saberes, usos e tradições. Graças ao telemóvel foi possível captar som e imagens que fazem parte de um imaginário telúrico, mas que ainda é tão real. São lendas, mezinhas, orações e cantigas de uma ancestralidade que já não pensava encontrar, aliás é um património intangível em vias de extinção. Felizmente ficará em arquivo digital. Que a Fundação Calouste Gulbenkian continue com a missão de contribuir para a preservação da memória e manutenção do Património Cultural Imaterial. * A autora não escreve segundo o acordo ortográfico

ESPAÇO AGECAL

A transição cultural JORGE QUEIROZ Sociólogo, sócio da AGECAL

“Toda a nossa vida vai sair transformada depois desta covid, e ainda estamos a meio da pandemia. As transformações vão ser consideráveis em cada um de nós pela forma como reagimos à situação… mesmo para as pessoas que conseguiram sobreviver, através das vacinas ou do extraordinário cuidado sanitário, as transformações vão ser notáveis no que diz respeito ao dia a dia, à forma como nos relacionamos, como trabalhamos e dos cuidados que temos de ter quando estamos com os outros.” António Damásio, neurocientista, director do Instituto do Cérebro e da Criatividade, EUA.

O

mundo está mais desigual em 2022? A pandemia Covid-19 mostrou-nos o fosso entre os países desenvolvidos e outras regiões do planeta, desta realidade resultou um ricochete de variantes virais. “Criar sociedades justas e sustentáveis” ouvimos nos discursos sobre transição climática e digital, contudo a gestão dos recursos mundiais e nacionais, os modelos de produção e consumo continuam inalterados. A “crise” tem sido um biombo conceptual para esconder a falência de sistemas baseados em taxas de crescimento da produção e dos consumos, com escassas preocupações ambientais e sociais. A “transição climática e energética” exige ordenamento racional do território, medidas que protejam a biodiversidade e os recursos naturais, em especial os hídricos,

segurança alimentar, legislação não permissiva, em suma políticas correctas de ambiente. A transição climática aponta para a “economia verde e sustentável”, mas ao viajarmos por todo o lado vemos práticas produtivas que degradam o ambiente. A “transição digital” permite maior velocidade no acesso à informação, deslocalização e interdependências, mas é evidente que está a ser usada para atingir direitos colectivos e individuais como a privacidade. O cidadão algoritmizado ou aceita regras ditadas por grupos da dita “nova economia” ou será excluído, é um “tecno-feudalismo ou capitalismo de vigilância” que “reduz a liberdade, compromete a saúde mental e ataca a democracia”(Soshana Zuboff), está fora de controlo internacional, político, fiscal e social. Há uma transição necessária e incontornável, a transição cultural.

As comunidades humanas foram durante séculos orientadas por normas sócio-religiosas, por costumes que conflituaram com os direitos e liberdades, mas eram sociedades rurais, com menor dimensão demográfica, longe dos 7 mil milhões actuais. Nos séculos XIX e XX, a revolução tecnocientífica trouxe a produção intensiva, o positivismo e o determinismo histórico, o “progresso irreversível”. O antropocentrismo foi e é a educação dominante, tudo está ao serviço do homem, recursos da natureza, animais, plantas, territórios, oceano, até o futuro é nosso... O futuro não existe senão como categoria filosófica, usada por messianismos antigos e contemporâneos, a situação actual apresenta-nos muitos aspectos de involução. Aspirações da humanidade encontram-se inseridas na Declaração Universal dos Direitos Humanos

aprovada pela ONU a 10 de Dezembro de 1948. A Declaração foi e é um avanço extraordinário, integra as Constituições de muitos países, os direitos políticos, de infância e família, de género, étnicos, sexualidade, religião, educação, trabalho, emigração, habitação e outros como a protecção do património natural e da diversidade cultural. A transição cultural é a defesa e aprofundamento dos valores de liberdade individual e de vida colectiva digna, são políticas publicas para a cultura alternativas à ideologia do mercantilismo massificador, do consumo fidelizado, padronizado e acrítico. A transição cultural é a consciência transformadora das relações ambientais e sociais.

* O autor não escreve segundo o acordo ortográfico


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MAS AFINAL O QUE É ISSO DA CULTURA?

O Algarve de costa-a-costa: Castro Marim e Vila Nova de Cacela FOTOS D.R.

PAULO LARCHER Jurista e escritor

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a crónica anterior - e nas seguintes, se Deus me der saúde – eu e o António Homem Cardoso (um escreve, o outro fotografa), iremos viajar pelo Algarve seguindo pela via férrea que arranca de Vila Real de Santo António e morre lá para Barlavento, em Lagos, depois de uma centena e meia de quilómetros. Foi uma opção, como outras haveria, por exemplo a travessia algarviana que o escritor Manuel da Fonseca realizou por estrada nos idos anos sessenta,(1) precedendo o nosso Prémio Nobel que também plasmou em frases o que pode igualmente ser contemplado com olhares: este Algarve, Reino tradicionalmente desprezado pelos poderes centrais, mas sempre amado, recordado e cantado pelos seus filhos. “[…] Sou desta terra ou desse mar vizinho de que me chegam súbitas lufadas (Se a felicidade existisse seria assim)? Ou sou do casamento Da terra com o mar? Não sei Só sei Ah sim! que sou daqui […].” (2) Na conversa do mês passado afirmei que a resiliência é uma qualidade que não deve faltar a um viajante, mas há limites para tudo. Foi este

o caso. Contrariando a minha expectativa de contemplar um cenário de castelos, fortalezas e igrejas mal pousasse o pé na estação de Castro Marim, ao invés disso, encontro-me no meio do nada. Nem mar, nem sapal, nem serra e muito menos monumentos. Apenas uma velha plataforma que se defronta com um despido vazio e, ao longe, uns cavalitos que abanam as caudas. De repente faz-se luz no meu espírito: nem todas as paragens devem ser estações propriamente ditas, com guichés e guardas e bares, e toda a parafernália associada. Algumas devem ser apenas apeadeiros, estruturas solitárias mantidas de pé pela inércia da história, esperando que o projecto de electrificação e modernização da linha lhe venha a atribuir papéis mais relevantes ou que a mate de vez. Peguei no telemóvel e liguei ao António a avisá-lo que ia desistir de Castro Marim porque a estação não dava acesso à vila, mas com isso só ganhei uma reprimenda: que não! que tínhamos de ir de qualquer maneira: a pé, de bicicleta ou de carroça, mas ir. Bom, fico avisado. Há que descobrir maneira de lá chegar sem utilizar o automóvel mas, para já, o que quero é ir até Cacela. Estou entusiasmado com a expectativa de gozar as vistas do castelo, da igreja, o panorama da ria e tantas outras visões nostálgicas e belas. Ah, lá vem o comboio, finalmente. Meia dúzia de minutos depois de arrancar, o comboio abranda. Estou em Cacela. Dou um salto optimista para a plataforma. A estação está bem

conservada e a linha ali civiliza-se, torna-se dupla, para permitir o cruzamento de comboios, penso eu. Meto-me por uma rua a descer e ando uns bons minutos, mas… mas… tudo me parece demasiado moderno e urbano. Como tenho sede, utilizo o método do Manuel da Fonseca e sento-me numa esplanada mas ao contrário dele não peço um brande, mas uma imperial espumosa. Pergunto à simpática atendedora qual o melhor caminho para o forte de Cacela, para a Igreja, para a Ria Formosa, em suma. Tem carro?, pergunta ela. Respondo-lhe que vim de comboio e a minha in-

terlocutora hesita. Pois, sem carro é difícil. Cacela Velha ainda é um bocado longe daqui. Pra’í uma hora a andar. Cacela Velha! Então há uma Cacela Nova? espanto-me eu. Que sim. Que eu estou em Vila Nova de Cacela. Que são coisas muito diferentes, etc e tal. Já é preciso ter azar! Beberrico a minha loira enquanto me agarro ao dr. Google. Tudo fica logo clarinho. A Vila Nova de Cacela é uma criação do século XX. Cacela-a-Velha apesar do seu passado ilustre quer do ponto de vista civil, quer religioso, ficou relegada para segundo plano, desde que o Marquês de Pombal no final

do século XVIII, de chofre, transferiu várias das suas centenárias competências para a novíssima Vila Real de Santo António. Acabo a minha bebida e, voltando desanimado sobre os meus passos a caminho da estação, vou pensando que nem vale a pena telefonar ao António e que o melhor é começar a alugar uma carroça e um cavalo valente que me possa transportar de forma tradicional até Cacela. Também prometo a mim mesmo que, se a próxima estação me deixar mais uma vez longe do meu objectivo, se acabarão para mim as viagens ferroviárias no Algarve. Quando me aproximo da estação vai a sair um comboio em direcção ao Sotavento pelo que não me apresso. E, de súbito, talvez pelo ruído intenso da composição, percebo melhor um poema de Teresa Rita Lopes, escritora nascida em Vila Nova de Cacela e que recorda a sua infância ao som de um comboio tonitruante que lhe desperta memórias antigas: “[…] O passar do comboio que quase atropela a casa desencadeia em meu corpo um terramoto de prazer Olha! O maquinista ainda é o mesmo e sorri para mim! Acena-me Com ele embarco e viajo para um sítio qualquer que não é meu passado nem sequer meu futuro mas sou eu viajando ao meu encontro (3) Esta Vila Nova é indubitavelmente um produto da via férrea e da estrada nacional 125. Entre estes dois fenómenos da modernidade lançou as suas raízes, cresceu daqui e de acolá até merecer o título de “Vila” e, ipso facto, retirar à velha Cacela, desde sempre cantada pelos poetas, a sua importância administrativa. Mas pertencer a um sítio é que é o importante, seja ele moderno ou muito antigo. Interessa é saber aonde, num desejo de posse e protecção, se firmou a primeira e frágil raiz, num instinto que nos oferece para todo o sempre um sítio do qual nos orgulhamos de ser filhos e ao qual sempre poderemos regressar. “[…] Aqui o meu centro do mundo Como Anteu aqui enterro as raízes de quem sou […].” (4) (1) As referências bibliográficas podem ser encontradas no texto publicado no Postal em 5 de Novembro passado. (2) Teresa Rita Lopes, O Sul dos meus sonhos, in Viajantes, Escritores e Poetas, Retratos do Algarve, ed. Colibri, CELL/UALG, 2009, pp. 32-33 (3) LOPES, op. cit., pp. 32-33 (4) LOPES, op. cit., pp. 32-33

* O autor não escreve segundo o acordo ortográfico


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FILOSOFIA DIA-A-DIA FOTO D.R.

O Ano Novo e a lista de resoluções MARIA JOÃO NEVES PH.D Consultora Filosófica

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o estrear de um novo ano é momento de colocar na balança o ano que passou, avaliando os ganhos e as perdas, as conquistas e as derrotas. É também o momento de estabelecer estratégias e definir objectivos, e assim surgem as famosas listas de resoluções. No artigo de Dezembro passado falei do perigo de se desacreditar da introspecção e de como isso pode levar à perda da consciência, entendida como falta de sentido de responsabilidade por aquilo que fazemos, pelas opções que tomamos ou pelas consequências dos nossos actos. A discussão sobre se temos ou não livre arbítrio e suas consequências é vasta e ocupar-nos-á durante vários artigos. Para já vamos considerar que o temos, pois fazer uma lista de resoluções para o novo ano pressupõe que a liberdade existe. Na tradição cristã a existência de livre arbítrio é precisamente aquilo que nos distingue dos animais. Estes estão pré-determinados, nós, pelo contrário, temos o poder de exercer a nossa vontade, temos liberdade de escolha. Assim sendo, a nossa lista de ano novo pode conter boas ou más resoluções. Qual é o critério que nos permite avaliá-las? Para considerar que uma resolução é boa, ela terá que ser vantajosa para mim. Contudo, a decisão continuará a ser boa se, apesar de me beneficiar a mim, prejudicar outros? É aqui que a questão da ética se articula com

a da liberdade. Ainda dentro do enquadramento cristão, a capacidade de poder tomar boas ou más decisões acarreta consequências: recompensa no primeiro caso, punição no segundo, ambos a executar no dia do Juízo Final. Na filosofia budista não existe o dia do juízo final, aquilo que mais se lhe aproxima é o chamado Karma — A Lei de Causa e Efeito. Um provérbio tibetano diz o seguinte: “Se quiser conhecer as suas acções passadas, olhe para as suas circunstâncias presentes. Se quiser conhecer o seu futuro, olhe para suas acções presentes”. Assim entendido Karma consiste numa forma holística de olhar para o funcionamento imparcial da Lei de Causa e Efeito. Karma não tem que ver com julgamentos, recompensas ou punições a executar por uma divindade suprema. Pelo contrário, a Lei do Karma atribui-nos a responsabilidade directamente. Quaisquer acções sejam elas pensamentos, palavras ou actos, acabarão por ter um impacto positivo ou negativo. Cientes de que nada se perde no universo os budistas acreditam que o efeito de uma causa ou acção intencional pode ser imediato ou aparecer numa vida futura. No entanto, a experiência quotidiana parece oferecer-nos muitos exemplos de como o vício é melhor recompensado do que a virtude. Sem a ideia de um Juízo Final e da existência de vida após a morte, ou sem a crença na teoria da reencarnação talvez tenhamos poucos motivos para buscar a virtude e a justiça quando elas se afastam do interesse pessoal. Mas será, de facto, assim? Proponho que deixemos entre parêntesis as crenças budistas ou

cristãs e nos concentremos apenas nesta vida que todos experimentamos. A questão que se coloca é a seguinte: é possível que a felicidade genuína resulte de uma motivação egocêntrica ou, pelo contrário, um comportamento ético parece ser condição sine qua non da felicidade? Sobre este trinómio liberdade-moralidade-felicidade pensaram muitos filósofos do oriente ao ocidente, desde a antiguidade aos dias de hoje. Não havendo espaço para os referir a todos trarei aqui algumas das perspectivas que me parecem mais relevantes. No Livro IV da República, Platão apresenta os principais aspectos da alma humana que divide em racionais, espirituosos e apetitivos. Todos nós desejamos viver uma boa vida e por isso mesmo uma pessoa sábia luta pela chamada justiça interior, uma condição em que cada parte da alma desempenha o seu papel apropriado: a razão deve ser a guia, a natureza espirituosa deve ser a aliada da razão — exortando-se a fazer o que a razão considera adequado — e as paixões devem submeter-se às determinações da razão. Na ausência daquilo que Platão denomina por justiça interior, o indivíduo é escravizado pelas paixões. Portanto, a liberdade para Platão é uma espécie de autodomínio, alcançada pelo desenvolvimento das virtudes da sabedoria, coragem e temperança, resultando na libertação da tirania dos desejos básicos e na aquisição de uma compreensão mais precisa e na busca resoluta do Bem. Aristóteles, embora partilhe com Platão a preocupação de cultivar vir-

tudes, foca-se no papel da escolha em iniciar acções individuais que, com o tempo, resultam em hábitos, para o bem ou para o mal. No Livro III da Ética a Nicómaco, Aristóteles diz que tomamos decisões após deliberar sobre os diferentes meios disponíveis para os nossos fins. A escolha que um indivíduo faz depende, por um lado, do seu estado interno — a percepção das suas circunstâncias e crenças relevantes, desejos e disposições gerais de carácter — e das circunstâncias externas, por outro. Porém, o carácter de uma pessoa molda o modo como ela age. Se escolhermos consistentemente bem (mal), um carácter virtuoso (vicioso) formar-se-á com o tempo. Ser virtuoso ou vicioso está nas nossas mãos! Na filosofia budista Karma é também entendido como uma energia de hábito criada por padrões de comportamento repetidos. É difícil livrarmo-nos destas energias de hábito porque tal como numa garrafa de perfume vazia o odor permanece, também os nossos hábitos deixam uma espécie de impressões ou sombras que nos influenciam constantemente. Pode-se dizer que toda a nossa vida é um grande pacote de hábitos que perpetuamos distraidamente. É preciso muita motivação, força de vontade e esforço para desaprender hábitos negativos e treinar em positivos. Bons hábitos conduzem a uma boa vida e vice-versa. Sócrates no séc. IV a.C já defendia que a virtude é o meio para alcançar a felicidade — eudaimonia — e, por isso mesmo, exortava os seus contemporâneos a não gastarem mais tempo com a aquisição de bens materiais

do que com o aperfeiçoamento das suas almas. Por seu lado Shantideva, o filósofo indiano do séc. VIII, condensa a trágica existência humana deste modo: aqueles que desejam escapar do sofrimento correm na sua direcção; buscando a felicidade, mas sendo ignorantes, destroem as suas causas como se ela fosse um inimigo. Isto deve-se ao facto de a maioria de nós orientar a sua vida por aquilo a que a filosofia budista chama as 8 preocupações mundanas, que se organizam em 4 pares de esperança e medo: querer ganhar e ansiedade de perder; buscar o prazer e fugir da dor; procurar uma boa reputação e receio de uma má reputação; demanda de elogios e apreensão pela falta de reconhecimento. As 8 preocupações mundanas colocam as causas da felicidade na dependência dos outros ou das circunstâncias, portanto, totalmente fora de nós. Esta estratégia é eficaz mas para atingir a infelicidade. Afinal em que consistem as boas escolhas? Quais são aquelas que, garantidamente, nos fazem felizes? Ouçamos o que tem a dizer Matthieu Ricard considerado o homem mais feliz do mundo. Este francês de 74 anos, doutorado em biologia molecular e monge budista do mosteiro de Chechen Teennyi Dargyeling no Nepal, numa entrevista dada à BBC em Janeiro de 2021 em que lhe perguntaram qual o segredo da felicidade respondeu simplesmente: “altruísmo e compaixão”. Perante o silêncio e olhar perplexo dos jornalistas Ricard elaborou: “a busca da felicidade egoísta não funciona, é uma situação em que todos perdem. Tornamos a nossa própria vida e a dos outros miserável. Em contrapartida, o altruísmo é uma situação em que todos ganham”. Os jornalistas perguntaram então se qualquer um poderia atingir esse estado de liberdade interior que conduz à felicidade. A resposta não se fez esperar: “Claro que sim! Afinal trata-se da nossa própria mente. O nosso controle das condições externas é limitado, efémero e, muitas vezes, ilusório, mas podemos trabalhar com a nossa própria mente enquanto lidamos com ela de manhã até a noite. A nossa mente pode ser nossa melhor amiga ou pior inimiga; é a mente que traduz as circunstâncias externas em felicidade ou infelicidade. Portanto, se pudermos treinar um pouco essa criança mimada que é a mente e dominá-la um pouco, será de grande ajuda para nos libertarmos de nossas tendências habituais e pensamentos automáticos e assim sermos mais felizes”. Talvez valha a pena ter isto em conta ao elaborar a lista de resoluções.... Inscrições para o Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com * A autora não escreve segundo o acordo ortográfico


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FIOS DE HISTÓRIA

Romance de amor e traição no reino do Al-Andaluz FOTO D.R.

“Minha’alma quer-te com paixão/ Ainda que haja nisso uma tortura/ E alegre vai na ânsia da procura. (...) Se o nosso reencontro acontecer/ P’ra teus lábios doces eu provar/ Folgarei no jardim da tua face/ Beberei desses olhos o langor/ E mesmo que um terno ramo imitasse/ O teu talhe grácil, sedutor/ Valerias mais que o imitador./ Não te ocultes, oh jardim secreto:/ Quero colher meu fruto predilecto!”

RAMIRO SANTOS Jornalista ramirojsantos@gmail.com

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s manhãs ali acordam perfumadas com flores de laranjeira. Daquela janela derrama-se o olhar sobre a cidade vermelha das pedras de grés do castelo e das muralhas. Ao Palácio das Varandas, em Silves, chega o som da nostalgia. A rima dos poemas e dos amores de Ibnamar e Almutamid. Um caso de vida com todos os ingredientes de um drama shakespeariano. Feito de glória e tragédia. Amor e traição! Inebriados pelo frenesim dos dias, os dois amigos beberam a festa da vida até ao último cálice. De prazer e de vibrantes arrebatamentos. Momentos celebrados em versos de saudade de Almutamid que o então rei de Sevilha e de todo o Al-Andaluz, dirigiu ao seu amigo Ibnamar:

“Saúda, por mim, Abu Bakr/ os meus amigos de Silves/ e pergunta-lhes se ainda se lembram de mim/ saúda o Palácio das Varandas/ morada de leões e de gazelas!/ à sua sombra, quantas noites passei/ com mulheres de quadris opulentos e estreitas cinturas!/ Ai quantas noites fiquei deliciado/ numa volta do rio preso em jogos de amor/ com uma donzela cuja pulseira imitava a curva da corrente!/ e ela servia-me o vinho do seu olhar/ o vinho da sua boca./ E assim passava os dias!” Almutamid, nascido em Beja em 1040 onde passou a sua infância, era filho do rei da taifa de Sevilha, Abbad Al-Mutamid, que acabou por criar o mais vasto e poderoso domínio no Al-Andaluz, “o chamado reino da dinastia Abábida, que se estendia do sul de Portugal até ao estreito de Gibraltar”, incluindo a lendária cidade de Córdoba. Seria ainda um jovem de 11 anos quando o pai o chama para perto

de si e o nomeia depois governador de Silves. Foi por essa época que se aproximou e conheceu Abu Bakr Ibnamar, tornando-se seu amigo para a vida e para a morte. Mas pouco tinham em comum, a não ser a genialidade poética e a atração pelos prazeres libidinosos de uma juventude à solta. Ibnamar, de origem humilde e plebeia “era ambicioso e calculista, atributos que mais tarde seriam determinantes para o trágico desfecho de ambos”. Natural de Estômbar – outros dizem de São Brás de Alportel – manterá com o seu amigo uma relação tão ambígua de cumplicidades íntimas como “apaixonada e possessiva, num ambiente de corte marcado pela luxúria e pelo prazer”. Mulheres, sexo e vinho. Uma vida de prazer e volúpia, plena de luxos e de escândalos, amplamente espelhada na sua poesia em linguagem de grande brilho imagístico e de uma elegância requintada, mas sobretudo marcada por uma ardente sensualidade. Como este poema de Ibnamar:

preso e isolado em cativeiro, nada lhe valendo, desta vez, o apelo ao perdão dirigido ao amigo em nome dos bons velhos tempos: ”Perdoa e ganhará o amor/ Um outro realce, outra beleza./ É que se punires será o rancor/ A tomar mais evidência e mais clareza (...) Perdoa! O que partilhámos me redime/ Nos espaços perfumados de Alá/ Apaga os vestígios do meu crime!/ Venha da clemência o teu olhar/ E tudo enfim desaparecerá”.

Os dias decorriam neste ambiente de lassidão e promiscuidade dos costumes que corrompiam Mas desta vez era um crime sem os valores do próprio islão. Não perdão. Almutamid encerra o recebiam, por isso, a simpatia e o amigo numa masmorra e num agrado do pai de Almutamid - so- “excesso de raiva mata-o a golpes bretudo as cumplicidades íntimas de machado com as suas próprias entre os dois amigos - que chamou mãos”. Viria a chorar este ato de o filho para junto de si, em Sevi- desesperada violência e a morte lha, desterrando Ibnamar para do amigo por toda a vida. Saragoça. Entretanto, a ofensiva cristã conApesar de representar a época tra o seu reino leva-o a pedir ajuda mais fecunda da produção poéti- a Yussuf Ibn Tachfin, o novo sobeca do Garb Andaluz, este período rano de Marrocos. Enganou-se e “marcou o início da desintegração mais uma vez foi traído. Tachfin política e da dissolução do esta- tomou posse do reino do Al-Ando do reino da Abábida”. Após daluz e eliminou todos os reis das a morte de seu pai, Almutamid taifas peninsulares. A excepção torna-se soberano e senhor do foi Almutamid que é conduzido vasto território do Al-Andaluz, com a mulher Itimad para o desescolhendo para seu braço direito terro em Aghmat, nos arredores e primeiro-ministro, o amigo que de Marraquexe. Aqui terminará antes havia nomeado governador os seus dias, agrilhoado e “num de Silves. miserável cativeiro”. Maior do que o seu génio poético, Nos quatro anos que ali passou, só a ambição era mais forte em escreveu sem parar e nem mesmo Ibnamar, a ponto de corromper a escuridão da cela lhe retirou a a relação de profunda confiança inspiração. Itimad a sua musa existente entre os dois, acabando que morreu antes dele, ficaria por afastá-los irremediavelmen- eternizada no poema acróstico te de forma trágica. Num mundo de paixão e lágrimas que escreveu árabe cada vez mais fragmentado assim: e dividido, o confidente do soberano Invisível a meus olhos, deixa-se manipular trago-te sempre no coração por redes de conspiTe envio um adeus feito paixão ração contra o seu e lágrimas de pena com insónia. amigo, traindo-o Inventaste como possuir-me em diversas ocae eu, o indomável, submisso vou ficando! siões. E várias vezes Meu desejo é estar contigo sempre, pediu perdão e foi oxalá se realize tal vontade! perdoado. Tomado Assegura-me que o juramento que nos une, de ciúmes chegou nunca a distância o fará quebrar. mesmo a hostilizar Doce é o nome que é o teu Itimad, mulher e o e aqui fica escrito no poema: ITIMAD grande amor da vida do amigo. Cego de poder, não desistiu de se Fontes: ”O Meu Coração é Árabe”, Adalenvolver em sucessivas rebeliões berto Alves; Al-Mu ‘Tamid: o rei-poeta de conspirativas para derrubar Al- Sevilha”, Mª João Cantinho; Poesia do Gharb mutamid, autoproclamando-se Al-Andalus”, Frederico Mendes Paula; ouemir de Múrcia. Acabou por ser tras


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LETRAS & LEITURAS

Paulina Chiziane, a primeira escritora africana a ganhar o Prémio Camões um bairro pobre na orla da capital moçambicana, entretanto tornado urbano com o crescimento da cidade de Maputo. A Mafalala é também um dos bairros mais famosos de Moçambique, associado à emergência da identidade moçambicana, foco de resistência cultural e política à administração colonial portuguesa. Foi aí que nasceram ou viveram figuras moçambicanas de relevo como o poeta José Craveirinha, o jogador Eusébio, a poetisa Noémia de Sousa, ou Samora Machel.) Sarnau, narradora e protagonista da história, recua à sua adolescência, Paulina Chiziane foi a primeira mulher moçambicana a publicar um romance aos 13 anos de idade, primavera da FOTOS D.R. vida em que conheceu também o seu primeiro e grande amor, Mwando, PAULO SERRA temente distinguido com o Prémio um jovem que estuda num colégio Doutorado em Literatura Vasco Graça Moura de Cidadania católico e que deita tudo a perder na Universidade do Algarve; Cultural 2022, pela sua actividade de por amor: «Como o Adão no Paraíso, Investigador do CLEPUL mais de 50 anos em prol da literatura a voz da serpente sugeriu-lhe a mae da cultura portuguesas. çã, que lhe arrancou brutalmente a venda de todos mistérios.» (p. 19) obra de Paulina ChiziaAs cerca de 172 páginas do romance ne, publicada pela narram, com intervalos, as desventuEditorial Caminho, reras de Sarnau e Mwando, cujo amor lançada em 2016 com vive nas vicissitudes do vento, entre novas edições e capas, uniões e retrocessos. Sarnau será volta às livrarias agora com o selo lobolada (o lobolo é o dote entregue do Prémio Camões 2021. A primeipelo noivo e família como pagamenra mulher moçambicana a publicar to pela noiva) em trinta e seis vacas, um romance foi também a primeira coisa que nunca aconteceu desde os autora-mulher africana a ganhar o tempos dos antepassados, tornanPrémio Camões, nesta 33.ª edição. do-se a primeira esposa do filho do Depois de ter publicado contos em rei. Numa cultura onde os homens, várias publicações (jornais e revistas) quando não são cristãos, podem ter da militância, na FRELIMO, Balada várias mulheres, Sarnau terá de viver de Amor ao Vento, publicado em 1990 o seu amor por Mwando em segredo, em Moçambique, foi o primeiro rocorrendo perigo de vida. mance da autora. A propósito desta É também na história deste amor obra a autora afirmou: «Dizem que em conflito que se denuncia, subsou romancista e que fui a primeira “Balada de Amor ao Vento” foi tilmente, um mundo em conflito, mulher moçambicana a escrever um publicado em 1990 em Moçambique culturalmente dividido. Entre uma romance, mas eu afirmo: sou contacultura polígama e uma sociedade dora de estórias e não romancista. Balada de Amor ao Vento onde o cristianismo foi imposto. Escrevo livros com muitas estórias, Entre o comportamento próprio de estórias grandes e pequenas. Inspi- A escrita de Paulina Chiziane é um homem e os deveres inerentes ro-me nos contos à volta da fogueira, profundamente lírica, como se es- à condição de ser mulher: «a vida minha primeira escola de arte.» crevesse versos que formam um da mulher é sempre dura» (p. 158). Paulina Chiziane nasceu em Man- rosário de histórias, uma escrita Veja-se como, quando Mwando se jacaze, na província de Gaza, intimista e confessional, entrete- casa com Sumbi, tão bela quanto Moçambique, em 1955. Passou a cida de oralidade, nomeadamente preguiçosa, exímia em esquivar-se infância nos subúrbios de Maputo. A no vocabulário local, versos e no aos deveres de uma boa esposa, e aprendizagem da língua portuguesa recurso recorrente a provérbios não vendo ele mal em agradar à sua dá-se na escola de uma missão cató- e aforismos: «o lar é um pilão e a mulher, as gentes da aldeia temem lica. Frequentou estudos superiores mulher um cereal» (p. 50). Balada que «aquele génio do feitiço» possa de Linguística na Universidade de Amor ao Vento é narrado justa- «contaminar a aldeia com aquele Eduardo Mondlane, sem chegar a mente na primeira pessoa, pela voz modo de vida» (p. 68-69). concluir o curso. Venceu em 2003 de uma mulher, já em idade avan- Na prosa de Chiziane conflui a heo Prémio José Craveirinha, com çada, «envelhecida», a viver numa rança cultural de um povo, aliando Niketche – Uma história de poliga- «Mafalala de casas tristes, paraíso animismo, crenças, maus pressámia. As suas obras encontram-se de miséria» (p. 11), no fim da sua jor- gios, oralidade e identidade. traduzidas na Alemanha, Espanha, nada, a rememorar a sua infância, E.U.A., França e Itália. e o seu rio Save. Esta mulher podia Denúncia do colonialismo Ressalve-se ainda, em jeito de nota de bem ser a própria autora, que tem rodapé, que Zeferino Coelho, editor preferido viver sempre nos arre- O tempo da narrativa, além de inda Caminho (Grupo LeYa) foi recen- dores de Maputo. (A Mafalala era tervalado, é indefinido. No entanto,

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quando Mwando é depois enviado para Angola, «terra de degredo, da cana, do cacau e do café» (p. 134), podemos perceber como a acção se situa ainda durante o colonialismo: «Às mulheres foram destinados os campos de tabaco, tarefa ligeira apenas na aparência. Os homens foram enviados para os canaviais e os mais fortes para a destronca e abertura de novos campos.» (p. 139) Na natureza fera percebe-se agora a mão do homem, com os cafezeiros «alinhados de uma forma artística», onde «a floresta medonha cedeu lugar a uma roça de um verde-bonito, verde-sangue, verde-dinheiro, regado com o suor dos condenados» (p. 143). Neste passo da narrativa, a denúncia é virulenta, mas contida, sublinhado os dotes narrativos da romancista: «As mãos negras construíam beleza, construíam riqueza. Lá no alto erguiam-se palacetes brancos com tetos vermelhos» (p. 143). Ou quando se lê: «Nos últimos anos nasceram novas roças cujas plantas são cruzes toscas pintadas de branco em terra fertilizada de carne humana. A fome, a doença e a tortura eram os viveiros dessas plantas.» (p. 145) Não escapa a essa crítica o papel do negro que assume ele próprio as mesmas atitudes de opressão e domínio do colonizador branco: «Os pretos gritavam para outros pretos como se pretos não fossem. O escravo liberto torna-se tirano.» (p. 137) No capítulo 18, e antepenúltimo, chegamos a um tempo de modernidade, e possivelmente de independência, a condizer com o regresso de Mwando a Moçambique e com a vida de Sarnau agora como mulher autónoma, sozinha, a vender produtos da terra no mercado da Mafalala para sobreviver. Sarnau pode inclusivamente ser entendida como alegoria de Moçambique, mãe-terra, ainda a acordar para as mudanças que os tempos trouxeram: «Estas manhãs das cidades com ruídos de carros, gritos de máquinas e de homens e todo este buliço de pessoas em formigueiro transtornam-me» (p. 153). Como se Sarnau fosse essa terra a desejar poder recuar no tempo, até à altura em que era ainda natureza intocada pela civilização, pela técnica e pela máquina: «Prefiro as manhãs suaves da minha terra com a melodia alegre dos pássaros, levantando voo em gestos de bênção à terra, aos deuses e aos homens.» (p. 153) Poderão os amantes, dezasseis anos depois, ainda ter uma nova oportunidade no amor? Ou limitar-se-ão a ficar «frente a frente, fazendo o trágico balanço e uma existência miserável» (p. 165)?

“Ventos do Apocalipse” é o segundo romance da autora

Ventos do Apocalipse A fazer jus às palavras da autora, quando afirma ser «contadora de estórias e não romancista», Ventos do Apocalipse enquadra-se mais nesse mosaico a compor a história de um povo, em que a vida de uma personagem reflecte toda uma comunidade, em que a vida de cada um é sempre em constelação com a dos familiares, vizinhos, congéneres. Ventos do Apocalipse, publicado originalmente em 1993, e pela Caminho em 1999, é o segundo romance da autora. O Prólogo é justamente formado por pequenos fragmentos de histórias. Esta narrativa impõe um desafio maior ao leitor (ao contrário da prosa escorreita e ligeira do primeiro romance), até por não ter a mesma linearidade narrativa. Uma aldeia repousa tranquila envolta no manto de escuridão da noite quando surgem pelos ares quatro cavaleiros. Estes cavaleiros do Apocalipse são afinal quatro helicópteros. Passaram-se os «ventos da independência» (p. 52). Sopram «ventos de novas mudanças» em que tudo voltará, afinal, «a ser como antes». Pressentem-se, portanto, os tempos da guerra civil, a deitar por terra a promessa conquistada com a independência: «A desgraça penetrou em Mananga. Já se ouvem rumores da guerra em Macácua» (p. 61). Este é o cenário dantesco que encontramos nas páginas de Ventos do Apocalipse, onde o lirismo da prosa e o horror das imagens andam a par e passo, dando conta de como a guerra mais aberrante é a deflagrada entre dois povos afinal irmãos. (continua na próxima edição)


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VILHENA MESQUITA

A doença na História - Freira morre de Herpes no séc. XVII Uma vítima notável

Claustro sebastianista do Convento de Nª Sª dos Mártires ou da Conceição de Sacavém, cujos azulejos ainda se conservam na sua original integralidade FOTOS D.R. JOSÉ CARLOS VILHENA MESQUITA Professor universitário e historiador

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ma das doenças mais comuns no actual panorama da saúde mundial é o Herpes, cujas origens se terão perdido por entre as brumas do tempo. No fundo, trata-se de uma doença viral benigna, causada pelo vírus denominado Herpes, na forma simplex 1 e 2, que afecta geralmente as mucosas. As zonas mais sensíveis ao ataque herpético são a boca e o torax, podendo irradiar para a zona genital. Em casos muito raros pode causar graves complicações neurológicas e até mesmo a morte. Sabemos hoje que não tem cura, e pensa-se que mais de metade da humanidade está infectada com o HSV1 e 2. O mais grave é que esta doença da família do sarampo e da varíola, pode atacar em sucessivas recidivas ao longo da nossa vida. O vírus transmite-se por contágio, geralmente na infância, sob a forma de sarampo, ficando inoculado no corpo até que o nosso sistema imunitário baixe a guarda, retornando então sob a forma de pequenos ataques epidérmicos benignos, a que chamamos “sarna” ou “zona”, cujas principais vítimas são as pessoas idosas, os intervencionados, em suma, os mais débeis. Em idades mais avançadas os ataques de herpes não são causados por contágio, mas tão só por abaixamento do nosso sistema de defesa imunitária.

Não vão longe os tempos em que o Herpes, enquanto doença viral e contagiosa, era muito comum nos quartéis militares, nos presídios, nos prostíbulos, nos conventos e mosteiros, enfim nos locais de maior afluência ou concentração de pessoas, sobretudo onde imperasse a falta de higiene. A sua propagação viabilizava-se por contágio de fluídos corporais, principalmente saliva, suor e sémen, sendo que muitas vezes se associava às doenças sexualmente transmissíveis. A sífilis, a gonorreia e o herpes, foram, no passado, os infectos e purulentos castigos de uma vida depravada. A agressividade virulenta do herpes, embora seja intensa e permanente, porque o vírus depois de inoculado nunca se extingue, é raramente letal, a não ser quando degenera para uma encefalite. Neste caso, a multiplicação do vírus no cérebro provoca convulsões e anomalias neurológicas, de que resulta por vezes a morte.

Os arquivos e a história da patologia Ao longo dos últimos trinta anos dediquei-me à investigação arquivística, e nesse afã percorri os principais acervos do país. Mas o Arquivo Nacional da Torre do Tombo foi o meu quartel-general. Uma das secções que mais me apaixonou foi a dos «Manuscritos da Livraria». São um verdadeiro manancial de livros e códices que nunca viram a luz da estampa. Entre eles estão vários, a maioria incompletos, da autoria

de Frei Jerónimo de Belém (de que me ocupei no meu livro sobre «O Algarve na Academia da História»), que são de notável interesse para o estudo da vida conventual e eclesiástica no Algarve. Aquele erudito religioso escreveu em 1647 uma «Relação Memoravel da Santa Provincia dos Algarves - memorial segundo» na qual a fls. 41vº pode ler-se, acerca do Convento de Nª Sª dos Mártires ou da Conceição de Sacavém (o segundo em importância e notoriedade dentro da Ordem), que a Soror Maria da Coluna, fundadora daquela casa religiosa, tivera uma morte “muy penoza por ter herpes” (1). Quando li isto confesso que fiquei estupefacto, porque sempre tive a noção de que o Herpes é doença infectocontagiosa muito transmissível, geralmente pelo contacto intimo. Mas nunca pensei que pudesse ser letal. Assim como também nunca pensei que essa doença pudesse infiltrar-se na vida conventual. Numa casa religiosa onde pouco consentânea com a vida religiosa. Infelizmente o Frei Jerónimo não fornece mais explicações sobre a doença daquela insigne religiosa. No entanto, deve ter sofrido de forma dolorosa e intensa, pois noutra obra ao falar daquela ilustre religiosa, acrescentaria que por diversas vezes a doença deixou-a prestes a finalizar o decisivo encontro com Deus: «toda a sua vida foi sempre um contínuo ensaio para a morte, que, como a esperava todas as horas, não perdia tempo em prevenir-lhe os assaltos». (2)

Impressão Real, MDCXCVIII, pp. 345-364. A leitura deste sermão é muito surpreendente, pela beleza do texto, que não é enfadonho, como acontece com a maioria dos sermões que tenho lido, pois exigem profundos conhecimentos de Teologia e da Santa Escritura. Para terminar, acrescento que este antigo convento foi no declinar do século XIX anexado à fazenda nacional aproveitando-o para diversos fins até que no século seguinte foi transformado em quartel militar. O seu último ocupante foi o Batalhão de Adidos do Exército Português, que dali se retirou em 2006. Não sei se ultimamente teve melhor serventia, mas ainda há bem pouco tempo aquele magnífico edifício de seculares pergaminhos históricos, estava votado ao mais confrangedor abandono. Resta-me pedir desculpa aos leitores pela extensão deste despretensioso apontamento sobre um episódio da doença na história.

Para terminar, acresce dizer que Soror Maria da Coluna, era filha de D. Manoel de Mello, o célebre Prior do Crato, e em vida foi uma das mais famosas religiosas do Convento de Jesus de Setúbal. Faleceu a 1 de Junho de 1614. Agora, o que mais me surpreendeu foi saber que o herpes era já uma doença conhecida no séc. XVII, e sobretudo aperceber-me que se desenvolveu nos séculos seguintes de forma rápida e agressiva, causando gravíssimos estragos de saúde na população em geral. Entre as doenças prescritas nas “pautas” usadas pela inspecção de saúde aos navios estrangeiros já constava o herpes como doença contagiosa. Mas de todas a mais temida era o herpes genital, por ser muito comum entre as mulheres públicas (meretrizes) e, por isso, de fácil propagação entre as diversas classes sociais. Alguns médicos no séc. XIX associaram o herpes a várias doenças psiquiátricas ou a estados neuróticos. Como é que o Frei Jerónimo de Belém soube, trinta anos depois da morte de Soror Maria da Coluna, que a benemérita religiosa faleceu de Herpes é que eu, mui- Panorâmica exterior do convento quando serviu to sinceramente não de quartel da marinha, desactivado em 2006 sou capaz de desvendar. Presumo que a doença, e a sua (1) ANTT, Manuscritos da Livraria, nº 408. devastadora memória, permane- Aproveito para esclarecer que quem funcesse ainda viva dentro das paredes dou aquele convento foi D. Brites da Costa, claustrais, a ponto de ser lembrada e mas a sua instituição oficial, e dotação dos identificada tantos anos depois. Só meios de sobrevivência, foram assegurados assim se explica que Frei Jerónimo pelo seu marido, Miguel de Moura, ao tempo tivesse escrito de forma tão clara e escrivão da puridade do rei D. Sebastião. A explícita a causa da morte daquela esposa, D. Brites, legou ao Convento de Nª benemérita religiosa. Sª dos Mártires ou da Conceição de SacaCom base na associação do nome vém, por testamento de 15 de Novembro de Coluna, às colunas do templo de 1607, os seus mais valiosos bens, deixando Deus e à cruz que supliciou Cristo, as freiras garantidas para o resto dos seus como coluna da Cristandade – o céle- dias. Na sequência da extinção das ordens bre padre Rafael Bluteau, que todos religiosas e da nacionalização dos bens da conhecemos como grande lexicólo- Igreja, foi aquela casa religiosa anexada aos go da língua portuguesa, escreveu e bens nacionais por Decreto de 20 de Janeiro pregou pessoalmente no Convento de 1877. da Esperança, a 28 de Janeiro de 1685, “estando o Senhor exposto” (2) Jerónimo de BELÉM, Crónica Seráfica um notável panegírico religioso da Santa Província dos Algarves da Reguintitulado «Sermão na Profissão lar Observância do nosso Seráfico Padre S. de Soror Maria da Coluna, filha do Francisco. Em que se trata de sua Origem, gram Prior do Crato, Manoel de Progressos e Fundações de seus Conventos, Mello, &c.», que se integra na parte Lisboa, na Oficina de Inácio Rodrigues, 1750terceira das «Primicias Evangeli- 1758, tomo II, p. 670. cas ou Sermoens e Panegyricos do Padre D. Raphael Bluteau...», Pa* O autor não escreve segundo ris, por Joaõ Anisson, Director da o acordo ortográfico


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