CULTURA.SUL 157 3DEZ2021

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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o

DEZEMBRO 2021 n.º 157 6.782 EXEMPLARES

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ARTES VISUAIS

A arte ajuda-nos a parar no tempo?

Obra “Espírito de Natal”, de Saúl de Jesus (2021)

SAÚL NEVES DE JESUS Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/artes

A

o apreciarmos uma obra de arte muitas vezes inspiramos fundo, sentindo a beleza e apreciando o momento, quase parecendo que o tempo pára num período breve de fruição, serenidade e paz. Sendo este o nosso 80º artigo publicado no Cultura.Sul, numa colaboração que se iniciou em 2011, queremos aprovei-

tar para parar no tempo e fazer um balanço sobre os artigos que escrevemos nos últimos anos. Em 10 anos foram publicados 80 artigos sobre Artes Visuais, cada um deles procurando responder a uma questão, procurando suscitar a curiosidade do leitor e contribuindo para clarificar dúvidas que muitas vezes são colocadas em relação às artes visuais. Com os artigos publicados não procuramos a resposta correta ou adequada para cada questão, até porque não existe, mas apenas tentamos esclarecer cada uma

das questões colocadas com base na pesquisa e reflexão que temos vindo a realizar, suportadas pela nossa curiosidade e gosto pela arte. Começámos com o artigo “Mas, afinal, o que é a arte?”, uma questão de fundo que muitas pessoas colocam face à cada vez maior diversidade dos produtos artísticos que se podem encontrar em exposições. Concluímos este primeiro artigo afirmando que “sendo a arte uma forma de comunicação, afinal aquilo que não parece ter sentido até tem; temos é que o tentar descobrir, sendo esse também um dos desafios da arte”. Os primeiros onze artigos foram publicados no livro “Construção de um percurso multidisciplinar, integrativo e de síntese nas Artes Visuais” que publicámos em 2015. Pensámos em ficar por aí, mas com as palavras de incentivo de vários leitores e a nossa própria curiosidade e prazer pela pesquisa neste âmbito, fomos continuando a escrever, sempre colocando uma questão no título de cada artigo. Não é um processo fácil e nunca pensámos escrever tantos artigos, mas o que é certo é que, com o pressuposto de que “o caminho faz-se caminhando...”, chegamos ao 80º artigo publicado no Cultura.Sul, no período de 10 anos. No artigo nº 51º, intitulado “Porquê colocar questões sobre artes visuais?” apresentámos os títulos (as questões) dos primeiros 50 artigos publicados, com a possibilidade do leitor, na versão digital do Cultura.Sul, ter acesso a cada um dos artigos, ao clicar no respetivo título. Desta vez fazemos isso com os artigos que se seguiram, pelo que apresentamos as

questões às quais entretanto procurámos responder e que constituem os títulos dos artigos publicados mais recentemente: • Porquê colocar questões sobre artes visuais? • Quanto pode valer uma obra de arte? • “Banksy: Génio ou vândalo?” • Pode a fotografia contar histórias? • Pode a arte visual ser sazonal? • Pode a arte ajudar a proteger o ambiente? • Pode a arte sensibilizar para comportamentos mais saudáveis? • Pode a arte tornar o invisível visível? • Como é que a arte pode fazer uma banana custar mais de 100.000€? • Pode a arte ajudar-nos a aprender alguma coisa com o coronavírus? • Como visitar museus em tempos de Covid19? • Como podemos fruir das artes visuais em tempos de Covid19? • “Regresso ao futuro” nas artes visuais após o estado de emergência? • Quem é o artista numa obra de artes visuais: quem pensa ou quem executa? • Como tornar a arte mais imersiva? • Até onde pode ir a imersão numa exposição de artes visuais? • Como “aprender” e “mostrar” Artes Visuais em tempos de pandemia? • Pode a arte ajudar a contribuir para uma atitude mais favorável à paz? • Terá que haver imagens externas ao sujeito para podermos falar de arte visual?

Ficha técnica

Direção GORDA, Associação Sócio-Cultural Editor Henrique Dias Freire Responsáveis pelas secções: • Artes Visuais Saúl Neves de Jesus • Espaço AGECAL Jorge Queiroz • A pandemia tem aumentado a “ligação” • Filosofia Dia-a-dia Maria João Neves • Fios De História Ramiro Santos entre os artistas? • Letras e Literatura Paulo Serra • O que é a arte • Marca D'Água Maria Luísa Francisco espontânea? • Pode a arte espontânea • Mas afinal o que é isso da cultura? Paulo Larcher contribuir para a saúde e-mail redacção: mental? geralcultura.sul@gmail.com • O trabalho dos publicidade: profissionais de saúde anabelag.postal@gmail.com pode ser valorizado online em www.postal.pt através da arte? e-paper em: • Pode a arte contribuir www.issuu.com/postaldoalgarve para a preservação de FB https://www.facebook.com/ espécies ameaçadas? Cultura.Sulpostaldoalgarve • Pode a arte contribuir

para a coesão territorial? • Pode um museu tornar as pessoas mais felizes? • Pode a arte ajudar os migrantes e refugiados? • Como Weiwei é ativista político através da arte? • O “pequeno” também é belo nas artes visuais? A PAZ tem sido objeto de alguns dos artigos que publicámos nestes 10 anos, nomeadamente o artigo 50º, intitulado “Pode a arte contribuir para a paz?”, sendo também objeto de algumas obras que temos produzido, nomeadamente “Secrets for a happy life (Homage to Banksy and Einstein)” (2017), “PAZ é o caminho (Homenagem a Gandhi)” (2018), “Guerra e Paz: Tudo começa dentro de nós!” (2020), “STOP! Este não é o caminho...” (2020) e “Mindfulness (Homenagem a Jon Kabat-Zinn)” (2020). De uma forma geral, nestas obras procuramos alertar para a importância da paz com os outros e connosco próprios, para a construção dum mundo melhor e para a nossa própria felicidade. E porque estamos em dezembro, mês de Natal, quadra geralmente associada à paz entre as pessoas, gostaríamos de destacar a importância que a arte pode ter num processo

de educação para a paz, nesta sociedade em que é cada vez mais importante educar para princípios éticos universais e para valores humanistas, como sejam a honestidade e o respeito pelos outros. Além disso, é essencial o desenvolvimento da espiritualidade em cada um de nós, pois só em paz consigo mesmo, em equilíbrio e serenidade, é que o ser humano consegue estar em paz com os outros. E isto deve acontecer sempre e não apenas em determinados momentos, como seja a quadra natalícia. Procurando salientar esta ideia, produzimos a obra “Espírito de Natal” (2021), em que inserimos uma frase adaptada de John Calvin Coolidge (30º Presidente dos EUA): “O Natal não é um momento, nem uma estação; é, sim, um estado de espírito. Cultivar a paz e a boa vontade, ter gratidão em abundância, isso, sim, é ter o verdadeiro espírito de Natal!” Desejo que este espírito esteja presente em todos(as) durante este período de Natal e que se prolongue no tempo de cada um(uma), com saúde e alegria!


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ESPAÇO AGECAL

Educação patrimonial exemplar - CIIP Cacela JORGE QUEIROZ Sociólogo, sócio da AGECAL

“Está desse lado do verão onde manhã cedo passam barcos, cercada pela cal. Das dunas desertas tem a perfeição, dos pombos o rumor, da luz a difícil transparência e o rigor”. Eugénio de Andrade

A

s aldeias de Cacela Velha, Santa Rita e o interior da freguesia de Cacela, foram e ainda são santuários do património natural e cultural do Algarve, com paisagens deslumbrantes. O túmulo megalítico a cerca de um quilómetro da aldeia de Santa Rita, representa um dos testemunhos da Pré-História melhor conservados na região sul, datado de cerca de 5 mil anos. Cacela Velha e o seu entorno integram o ecossistema da Ria Formosa,

valioso pela variedade de espécies de fauna e flora, com um passado muçulmano ligado às actividades agro-marítimas, um porto natural com ligações ao Mediterrâneo. A aldeia de Santa Rita é (foi?) conhecida pelas «curas de Santa Rita», para lá peregrinavam em Maio centenas de pessoas, dirigiam-se à fonte, o local onde segundo a lenda a imagem da Santa terá aparecido. Era uma zona de fornos de cal e de pão, de alfarrobeiras, figueiras, amendoeiras, para além das espécies endógenas que habitam as ribeiras e a ria, e dão sabores à cozinha. Agricultores, pastores, vendedores ambulantes e de lenhas, artesãos de utensílios domésticos e costureiras, vivem hoje de reformas, mas continuam a manter a horta e as árvores, colhendo os legumes, figos, alfarrobas e azeitonas, para a família. Vivências ricas de conhecimentos práticos que serão necessários nos tempos que se avizinham. O aparecimento em 2005 do Centro de Investigação e Informação

do Património de Cacela - CIIP instalado na escola primária de Santa Rita augurava resultados, trazia confiança num trabalho de preservação ambiental e patrimonial de médio e longo prazo. Consciente e correcta foi a iniciativa do Município de Vila Real de Santo António, que da investigação arqueológica criou a oportunidade de, com a comunidade, desenvolver um projecto de preservação dos valores sociais. Emergiu também uma jovem equipa com conhecimentos, criatividade, capacidade de trabalho e invulgar dedicação à causa do património colectivo. As expectativas dos que acompanham de perto a vida cultural do Algarve não foram defraudadas. Quem analise com atenção o trabalho realizado pelo CIIP Cacela, sobretudo no âmbito da educação patrimonial, não terá dúvidas, é exemplar. Ao longo do ano decorrem actividades culturais, exposições, percursos de interpretação do património

natural e cultural, os “Passos Contados”, oficinas, … No Verão as «Noites d’Encanto», «Noites da Moura Encantada» em Cacela remetem para heranças do al-Andalus e a identidade do local. Na aldeia nasceu, no século X, o poeta Ibn Darraj al-Qastalli, presente na toponímia. Sustentabilidade, criatividade e solidariedade orientam os mercadinhos da Primavera, Verão, Outono e Natal, estimulando artesanato tradicional e novas criações, há neles produtos locais e em segunda mão, velharias, animação de rua, a iniciativa conta com a colaboração da ADRIP. Em 2017, o CIIP Cacela e a população de Santa Rita recuperaram a tradição dos Maios na aldeia, também o «Pão por Deus» no período de finados. Em Dezembro arma-se o presépio, o «altarinho» algarvio com as searinhas, laranjas e outros frutos, votos de pão e de prosperidade. O projecto «À descoberta das 4 cidades», desenvolve-se com as escolas e os Municípios do Fundão, Marinha Grande, Montemor-o-Novo e Vila

Real de Santo António. Para além de edições de livros e do “Tomilho”, não pode ser esquecido o esforço e valia pedagógica do ”Jardim Representativo da Flora Algarvia” iniciativa da moradora de Cacela, Teresa Patrício. Ordenamento e gestão do território com sobreposição de objectivos parcelares e contraditórios, originou um modelo de “desenvolvimento” regional na dependência da monocultura do turismo e do imobiliário, à qual se somou a agricultura intensiva de frutos tropicais feita em zonas de alto valor ambiental e paisagístico. Nestas condições será possível preservar e valorizar patrimónios com muitos séculos, como recomendam a UNESCO e as convenções internacionais? O CIIP Cacela tem cumprido, merece reconhecimento do Algarve e do País como exemplo de trabalho competente e consistente, feito com escassos meios e com excelentes resultados.

* O autor não escreve segundo o acordo ortográfico

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MARCA D'ÁGUA

Biblioterapia: da leitura à transformação do leitor apresentem a “receita poética”.» O mundo dos livros é fascinante, através deles viajamos, aprendemos, crescemos intelectualmente, ganhamos paz de espírito ou inquietação e tornamo-nos outras pessoas. Ler na natureza pode ser tranquilizante e ser for junto às árvores, essas que são as mães dos livros e que podemos abraçar … então sentimo-nos em casa, porque as árvores foram “o primeiro lar da nossa espécie” onde os livros nasceram. Talvez por isso sejam “o mais antigo recipiente das nossas palavras escritas.” Muito haveria para escrever, como o espaço não permite, ficam então duas sugestões:

MARIA LUÍSA FRANCISCO Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa luisa.algarve@gmail.com

O

uso da leitura com fins terapêuticos é antigo e muitos registos atestam essa utilização. No antigo Egipto, o Faraó Rammsés II mandou colocar no frontispício da sua biblioteca “Remédios para a alma” (Alves, 1982). As bibliotecas egípcias ficavam localizadas em templos designados de “casas de vida” como sendo locais de conhecimento e espiritualidade (Montet, 1989). O povo grego também associava os livros ao tratamento médico e espiritual. Os gregos chamavam biblion ao livro, em memória da cidade fenícia de Biblos, famosa pela exportação de papiros. É considerada a cidade mais antiga do mundo (Vallejo, 2020). Li estas interessantes referências num livro que me tem estado a fazer viajar no tempo, e que versa sobre a invenção do livro na Antiguidade e o nascer da sede de leitura, intitulado O Infinito num Junco. A sua autora, Irene Vallejo, tem uma mestria a escrever, um sentido de humor e uma envolvência que há muito não encontrava num livro. Ao ler este livro aprendi muito e fiquei a saber que afinal já estive na cidade mais antiga do mundo. Nas placas, ao sair de Beirute, aparecia escrito em árabe “Jbeil 38 km”, só ao chegar à cidade é que aparece escrito Byblos. Como diz a autora, a designação desta cidade deu origem ao nome da grande obra, a Bíblia. Na Idade Média o acto de ler para curar, era usado durante as intervenções cirúrgicas, para ajudar a aliviar o sofrimento dos doentes. Consta que na Biblioteca da Abadia

A autora do artigo em Biblos, antiga cidade fenícia que deve o seu nome à exportação de papiros

de Saint Gall (uma das bibliotecas monásticas mais antigas do mundo) encontrava-se a inscrição: “Tesouros dos remédios da alma”.

“Ler é o melhor remédio” e as funções da biblioterapia Em 1812 o Dr. Benjamin Rush recomenda pela primeira vez a leitura como apoio da psicoterapia. Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-18) surgem bibliotecas nos hospitais de campanha e em 1941 o termo “Biblioterapia” integra pela primeira vez um dicionário médico ilustrado. Só em 1949 o conceito de biblioterapia começou a ganhar forma tal como é entendido hoje. Foi com a tese de doutoramento da professora e bibliotecária americana Caroline Shrodes, intitulada Bibliotherapy: a theoretical and clinical-experimental study, que o mundo académico passou a prestar mais atenção ao tema. C. Shrodes defendia então que a literatura tinha a capacidade de desencadear uma resposta afectiva que podia ser canalizada para

o crescimento psicológico, social e emocional do leitor, sendo isso conseguido, por exemplo, através da identificação com as personagens dos livros e as situações por elas vividas. A biblioterapia é cada vez mais usada em todo o mundo. Existe em Lisboa, no LX Factory, um espaço onde é possível ter consultas de biblioterapia, onde incluem remédios literários para o corpo e para a alma! Vão assim surgindo novas profissões como biblioterapeuta e reading coach. Em Faro existe um novo projecto da Biblioteca Municipal, em parceria com a Administração Regional de Saúde do Algarve (ARS), que pretende distribuir “receitas poéticas”, inclusive com a aparência de uma prescrição médica, recomendando ao utente a toma de poemas da autoria de diversos autores. Este projecto com o nome ler é o melhor remédio, conforme refere o Portal do Município de Faro insere-se «numa estratégia integrada de promoção do livro, da leitura e das literacias, integrada no Plano Municipal de Leitura de Faro».

FOTOS D.R.

1. Pensar qual foi o livro que mais marcou a vossa vida e se foi de algum modo terapêutico! 2. Oferecer livros neste Natal!

A bibliografia e a recomendação Excelente iniciativa para melhorar de livros, que são verdadeiros o estado de alma dos utentes através tesouros literários, não cabem da leitura de poesia, diria até que, aqui pelo que coloquei na página para além de biblioterapia, é tamde Facebook: bém poeticoterapia! Retiros Literários Cito essa informação «A posologia – o silêncio e a palavra. das receitas indica que se deve “ler um poema de 12 em 12 horas” e, consoante o caso, a receita poderá contribuir “para melhorar o humor”, “para começar bem o dia”, “para combater a dor emocional” ou até “para ler a um amigo”. É t a mb é m autorizada e O mundo dos livros é fascinante, através deles aconselhada a visita à Bibliotornamo-nos outras pessoas teca Municipal de Faro, que terá um livro para * A autora não escreve segundo oferecer a todos os cidadãos que o acordo ortográfico PUB.


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FILOSOFIA DIA-A-DIA

Na “experiência do pequeno Albert”, levada a cabo em 1920, Watson foi bem sucedido ao condicionar o comportamento de um bebé de 11 meses introduzindo-lhe uma fobia FOTO D.R.

A perda da consciência MARIA JOÃO NEVES PH.D Consultora Filosófica

N

o artigo publicado no mês passado intitulado “A mente - o grande tabu” mostrou-se como evoluiu a problemática do conhecimento no mundo ocidental. Hoje vamos aprofundar o tema tentando perceber as implicações da erradicação da consciência do conhecimento científico. William James (1842-1910) considerado o “pai da psicologia americana”, de temperamento artístico e curioso, obteve uma formação muito ecléctica: trabalhou no atelier do pintor naturalista William Morris Hunt, estudou ciências e teologia. Em 1865 integrou

a “Expedição Thayer” ao Brasil tendo permanecido durante 8 meses entre o Rio de Janeiro e a Amazónia. James acabou por se formar em medicina em Harvard, mas nunca exerceu, tendo sido ele a introduzir os primeiros cursos de psicologia científica nesta universidade. Durante 12 anos trabalhou afincadamente no livro Princípios de Psicologia que finalmente viu a luz em 1890. William James defendia que introspecção devia ser a principal forma de investigar a mente, método que definiu do seguinte modo: consiste em “olhar para dentro das nossas próprias mentes e relatar o que lá descobrimos”. O capítulo mais famoso deste livro versa sobre o “fluxo da consciência”, conceito inovador, por si introduzido. Considera que a

consciência é uma corrente, e não uma sucessão de ideias. As suas águas misturam-se de tal forma que, por vezes, a nossa consciência individual é “mergulhada” ou “tingida” nas águas da consciência ou pensamento que a rodeiam. Por outro lado, tal como o caudal de um rio ou das ondas do mar, a nossa consciência tem um ritmo: experimenta transições e lugares de descanso, há “voos e pousos”. Por exemplo: descansamos quando nos lembramos de um nome de que estávamos à procura; partimos novamente quando ouvimos o choro do nosso bebé que acaba de acordar. A investigação de William James continua a evoluir. Em 1912 publica o livro de ensaios Empirismo Radical estabelecendo que unicamente aquilo

que é extraído da experiência é passível de ser discutido filosoficamente. Verifica, porém, que as relações entre coisas são tão directamente experimentadas quanto as coisas que entre si se relacionam; facto em virtude do qual as relações devem ser, elas mesmas, consideradas partes da experiência. Por aqui se percebe que é impossível erradicar a atenção aos processos mentais se se quer verdadeiramente conhecer alguma coisa. A psicologia estava ainda a dar os seus primeiros passos, o seu método era ainda um work in progress, mas eis que surge John Watson (1878-1958) na universidade de Chicago a dizer o seguinte: a psicologia deve descartar todas as referências à consciência, à introspecção, aos estados mentais subjectivos, emoções, desejos e assim por diante. William James tinha falecido há apenas um ano, e John Watson foi como se tivesse espetado uma estaca no seu coração! A partir de 1913 o behaviorismo ou, em português, a Psicologia Comportamental, na esteira de Watson, tomou a dianteira. Esta teoria e método de investigação psicológica vai beber à tradição da psicologia animal, a autores como Pavlov ou Thorndyke. Examina o comportamento humano e dos animais no que respeita a “factos objectivos”, isto é, estímulos e reacções que carecem de qualquer recurso à introspecção. Consideram que a psicologia não se deve preocupar com estados ou eventos mentais, ou com a construção de relatos de comportamento de processamento de informações internas. Afirmam que referência aos estados mentais, como as crenças ou desejos de um animal — mesmo que este animal seja o homem! — nada acrescenta ao que a psicologia pode e deve entender sobre as fontes do comportamento. Os estados mentais são entidades privadas, a ciência quer-se pública. Portanto, os estados mentais não se constituem em objectos adequados ao estudo empírico. Watson, naquela que ficou conhecida como “a experiência do pequeno Albert” levada a cabo em 1920, foi bem sucedido ao condicionar o comportamento de um bebé de 11 meses introduzindo-lhe uma fobia. Para minha perplexidade, este modo de, como direi, “fazer psicologia científica”,

obteve cada vez mais adeptos. Em 1953 B.F. Skinner afirma que uma vez que os fenómenos mentais carecem de qualidades físicas, eles não têm existência alguma. — Pergunto-me se existirá algo mais ofensivo! — No seu livro Beyond Freedom and Dignity (Para além da Liberdade e da Dignidade) publicado em 1971, Skinner, professor em Harvard, rejeita que as pessoas possam criar livre ou criativamente os seus próprios ambientes. Postula que “é de uma análise experimental do comportamento humano que se devem retirar as funções anteriormente atribuídas a uma pessoa livre ou autónoma, e transferi-las uma a uma para o ambiente de controle”. Grosso modo, poderíamos sintetizar as teses dos psicólogos comportamentais da seguinte forma: não temos, ou é irrelevante considerar a existência do intelecto, pois os processos mentais ou fenómenos mentais que experimentamos internamente não existem ou não são passíveis de um estudo científico por não serem físicos. Daqui decorre também o seguinte: o que sentimos não importa, o que experimentamos, não importa. Se tivermos a ousadia de achar que possuímos uma mente e que sabemos algo acerca dela não estamos a ser científicos. Que tem a filosofia contemporânea a dizer sobre tudo isto? O filósofo americano Daniel Dennet (1942-) é um dos mais influentes dos dias de hoje. Em 1992 publicou o livro Consciousness Explained (Consciência explicada) e a obra entrou para o grupo dos 10 melhores livros do ano, de acordo com o New York Times. Neste livro Dennet afirma, nada mais nada menos, que os estados interiores de consciência não existem! Descreve o ser humano como um conjunto de cerca de cem trilhões de células, cada uma das quais é um mecanismo irracional, um micro-robô amplamente autónomo. Os qualia, também não existem! — Tradicionalmente entende-se por qualia as características intrínsecas, privadas e inefáveis da experiência, por exemplo: a vermelhidão da cor vermelha, o doce de uma fruta, o doloroso da dor. Quer isto dizer que as cores que vemos, os sons que ouvimos, as dores e os prazeres do corpo, as nossas emoções, os nos-

sos sentimentos e os nossos pensamentos — esperanças, medos, ideias, alegrias e tristezas — todos os aspectos da nossa vida mental que só são acessíveis através da introspecção, não existem! Em pleno séc. XXI, o materialismo científico e o comportamentalismo continuam a dominar o paradigma científico. Parece que nos lançaram um feitiço e nos colocaram nas trevas. Devemos deitar fora a nossa razão, desconfiar do que pensamos, mais ainda do que sentimos e simplesmente seguir ordens! Se o leitor acha que eu estou a exagerar verifique por si próprio: Todos os dias entram pelas nossas casas a dentro os noticiários que, em todos os canais, seguem o mesmo alinhamento: o pivot conta-nos a notícia; seguidamente mostra-se-nos a notícia com uma peça sobre a mesma em que os intervenientes fazem e/ou dizem aquilo que o pivot já contou antes; pouco depois um comentador explica-nos aquilo que o pivot contou e os intervenientes fizeram/ disseram. Este ruminar de explicações só se percebe se partirmos do princípio que o espectador é acéfalo! Tristemente, aceitamos esta condição de mentecaptos e desentendemo-nos dos assuntos da nossa vida pública — vejam-se os níveis de abstenção que se registam quando seria fundamental exercermos o nosso direito cívico! Deixámos a nossa vida por cabeças alheias nas quais não confiamos, quiçá porque acabámos por acreditar que não sabemos usar a nossa. Deixámos também o planeta ao cuidado de outros numa atitude cega e irresponsável como se nós próprios não o habitássemos. O fracasso da COP 26 bem no-lo demonstra! O Café Filosófico que mantenho mensalmente há 5 anos é uma irreverência, nele está todo o meu empenho em contribuir para mudar este estado de coisas. Nunca a canção de Fernando Lopes Graça foi tão urgente e necessária: “ACORDAI!”. Café Filosófico dia 10 de Dezembro no Clube de Tavira / Ass. Ria Inquieta

Inscrições: filosofiamjn@gmail.com * A autora não escreve segundo o acordo ortográfico


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FIOS DE HISTÓRIA

1755

Epicentro no mar RAMIRO SANTOS Jornalista ramirojsantos@gmail.com

O

padre Gabriel Malagrida não encontrou nada melhor para descrever o que tinha acabado de acontecer em Lisboa: “Nem o diabo inventaria uma maneira mais certa de nos levar à perdição”. Quis ele dizer para si, que o terramoto só podia ter sido obra de outra ordem e natureza. Para um homem crente e de boa fé como ele, o seu Deus misericordioso não iria tão longe no castigo divino, nem tão pouco permitiria ao demónio tamanhos poderes, em imaginação e crueldade, para aquela desgraça ter acontecido. Para o jesuíta, que se haveria de revelar mais tarde um místico com visões do céu e do inferno, o diabo não terá passado por ali e tudo afinal não representara senão um violento fenómeno geofísico nunca visto. Mas por ter dito o que disse, foi julgado por heresia e levado ao cadafalso pela inquisição politicamente controlada pelo absolutismo do Marquês de Pombal, num ajuste de contas com os seguidores dos Távoras que perseguiu até à morte. Este caso do missionário não deixou de indignar a Europa do iluminismo: depois do terror, seguiu-se o despotismo à solta, disse-o chocado o filósofo e romancista francês Voltaire, que não sendo suspeito de partilhar as ideias de Roma nem dos jesuítas, se mostrou crítico relativamente à atuação discricionária do ministro português. E transportou o caso para a sua obra Cândido, onde desafia diretamente a existência de Deus, pois que se ele existisse não poderia ter tolerado tamanha tragédia e sofrimento. Também Imannuel Kant escreveu sobre o assunto, trazendo da esfera do sobrenatural para o domínio da ordem natural das coisas a explicação do fenómeno. De forma

imperativa e categórica, Kant, como Malagrida e Voltaire, “tentou mostrar que, ao invés de procurar no desastre significados ocultos”, deviam buscar-se, mais na física do que na metafísica, as respostas para explicar o inferno na terra. E se o mundo ficou horrorizado com a morte e destruição do sismo e do dilúvio em Lisboa, mais os incêndios que lhes seguiram, muito ficou por conhecer da extensão do fenómeno que se propagou em ondas de choque de norte a sul pelos dois lados do atlântico. Não é possível determinar ainda hoje com rigor o número de vítimas, e discute-se também onde se localizou o seu epicentro. Mas domina a ideia que ocorreu no mar, a cerca de 120 milhas náuticas a sudoeste do Cabo de S. Vicente. À parte as explicações técnico-científicas, muito do que se conhece do sismo e do maremoto no Algarve - a par de Lisboa e Setúbal as regiões mais afetadas -, foi o levantamento das paróquias em inquéritos pedidos pelo marquês de Pombal para apurar o número de mortos e os danos registados em cada local. “Pelas 9h30 da manhã do 1º de Novembro, estando o dia claro e sereno como de estio e vento de noroeste, ouviu-se um grande trovão surdo; logo passado 3 ou 4 minutos principiou a tremer a terra com espantosa violência; o mar recolheu-se em parte mais de 20 braças (45 metros), deixando as praias em seco e arremetendo imediatamente para a terra com tremendo ímpeto, que entrou por ela dentro mais de uma légua, sobrepujando as mais altas rochas, tornando a retrair-se e romper por três vezes dentro de poucos minutos, (...) e deixando quase arrasadas todas as povoações marítimas” – este é apenas um dos relatos no Algarve, sobre como tudo começou e se repetiu até 20 de agosto do ano seguinte “com poucos dias de interpolação e quase sempre de noite”. Em Vila do Bispo “só uma casa ficou em pé” e em Sagres “o mar recolheu coisa de uma légua deixando em seco as enseadas em que ancoram

naus de alto bordo; veio depois à terra com tal violência que pela parte norte montou rochas da altura de 60 braças e no leste de 80, deitando dentro da praça muito peixe e grandes pedras”. No convento do Cabo de S. Vicente “ouviu-se um grande trovão surdo e logo a tremer a terra“ e “passados 6 a 7 minutos recolheu-se o mar; (...) pela parte leste em distância de meia légua, o mar na fundura de 8 braças, secou todo inteiramente; e depois cresceu com tanta fúria que igualou a rocha e muralhas da fortaleza de Beliche que terão umas 30 braças de altura dentro da praça”. As cidades, vilas e aldeias do barlavento algarvio foram as mais afetadas, de tal modo, por exemplo, que em Vila Nova de Portimão, diz Silva Lopes, “o rio elevando-se 6 braças (13 metros), arrasou a fortaleza de S. João (...) e descobriu na praia ruínas de uma povoação que não se pode ser examinada porque logo tornou a ficar debaixo de água”. Também em Almádena o mar pôs à vista uma grande povoação não identificada que voltou a cobrir. Em Lagos só ficou de pé uma casa no castelo que é o Palácio dos governadores, tudo o mais ficou destruído. Segundo o prior de S. Sebastião, João Baptista da Costa Coelho, “depois do terramoto, passado um quarto de hora se elevou o mar de tal sorte que parecia tocar as nuvens”. O mar “subiu à altura de 5 braças ficando razante com as muralhas da cidade, entrou pela terra dentro mais de meia légua levando 5 barcos quase à mesma distância”. Em Lagoa “o convento do Carmo que estava feito de novo, se desfez inteiramente, ficando sepultado em suas ruínas o padre Manuel do Nascimento que tinha acabado de confessar uma mulher. Nas adegas os tornos (ruturas) das pipas foram causa de se verem correndo pelas ruas enxurradas de vinho”. O mesmo cenário em Silves que

“ficou reduzida à ultima miséria” e em Albufeira “o mar levou pelos alicerces todas as casas excepto 27. De toda a gente que estava na igreja Matriz quando desabou encontraram a morte 227 pessoas”. Em Aljezur “o rio que ia em meio encher, secou de repente”. E em Quarteira “o mar subiu tantas varas que entrando pelas ribeiras inundou os campos”; morreu muita gente e o padre António Álvares Coelho que estava a dizer missa no altar de Nª Sra do Rosário. O mar saiu de si por cinco vezes correndo sobre os montes em altura de 6 braças (...) chegou até à casa da antiga propriedade do Duque de Loulé, uns três quilómetros da praia”. Boliqueime “foi das terras algarvias que mais sofreu e tanto que sendo primitivamente edificada no sítio de Boliqueime Velho, como esta ficou destruída, passou depois para actual povoação”. E em Loulé, ocorreu o mesmo cenário de destruição e “caiu a cadeia e fugiram todos os presos. O castelo desabou arrastando 200 casas”. Na capital do reino, em Faro, as crónicas relatam que a Sé teve só uma arrombada mas a igreja de S. Pedro e o convento dos Capuchos caíram com violência: “governava as armas o arcebispo D. Frei Lourenço de Sta Maria, o qual salvando-se por entre as ruínas do seu palácio, que veio todo a terra, em camisa de dormir e para dar o exemplo pegou de uma enxada para desentulhar muitos mortos e feridos, administrando

os sacramentos (...) o mar saiu pouco do seu curso ordinário, talvez por se espraiar pela ilha”. Em Olhão, com excepção da ermida de Nª Sra da Soledade não houve praticamente estragos, e em Tavira, segundo Silva Lopes, “sofreu a cidade consideravelmente: a rua nova pequena e ribeira ficaram inabitáveis; o hospital que se estava acabando de reedificar ficou arrasado e o Convento de S. Francisco padeceu muitas ruinas tal como a Ermida de S. João da Corredoura”. A Memória Paroquial refere que de “Cacela outrora formosa e antiga vila (...) hoje apenas existe a antiga igreja”. E em Castro Marim, “a parte fronteira com a Espanha e a do mar ficou rasa; na igreja matriz, antes dos Templários, no mais alto da vila não ficou pedra sobre pedra”. Foi, portanto, generalizada a destruição em todo o Algarve. O sismo com um grau de magnitude calculado entre 8,5 a 9 na escala de Richter ou de X a XI na escala de Mercalli modificada, foi um dos mais mortíferos da história. Mas não era o primeiro nem seria o último com efeitos devastadores. E de tal modo o Algarve está sujeito a estes fenómenos, que o jornal de Lisboa “Imprensa e Lei” depois do sismo de 1856, escreveu na sua edição de 20 de Janeiro: “O reino do Algarve parece estar desamparado da misericórdia divina”. Fontes: “O Megasismo do 1º de novembro de 1755”, F. Luís Pereira de Sousa; outros


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LETRAS & LEITURAS

Viagens ao Outro Lado do Mundo, de Sir David Attenborough

Sir David Attenborough é o naturalista mais famoso do planeta e um excelente contador de histórias FOTO D.R. PAULO SERRA Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

V

iagens ao Outro Lado do Mundo, de Sir David Attenborough, publicado pela Temas e Debates, é a apaixonante sequela de Aventuras de Um Jovem Naturalista (2019). No final do ano passado, publicou-se ainda Uma Vida no Nosso Planeta - O meu testemunho e a minha

visão para o futuro, a acompanhar o documentário disponível na Netflix. Viagens ao Outro Lado do Mundo continua o relato do naturalista mais famoso do planeta, com as expedições realizadas a partir do fim da década de 1950 a Madagáscar, à Nova Guiné e às ilhas do Pacífico (nomeadamente Tonga) e, por fim, no outro extremo do mundo, ao Território do Norte da Austrália, em Darwin. Num tempo em que não tínhamos ainda o mundo nas palmas das mãos, os recantos do planeta que David Attenborough nos apresenta eram desconhecidos do

grande público, tendo ele sido um dos pioneiros na desmistificação desses lugares, com os seus documentários na BBC, transportando milhares de telespectadores para essas regiões maravilhosas e distantes do planeta, mostrando uma vida selvagem verdadeiramente notável, culturas distintas e paisagens deslumbrantes. Escreve-nos o autor, nas primeiras linhas da Introdução: «Durante uma década, entre 1954 e 1964, tive todos os anos a imensa sorte de viajar até aos trópicos e fazer filmes sobre história natural. (…) Muitas coisas mudaram, o que não é propriamente uma surpresa. (…) Contudo, deixei os relatos destes lugares e acontecimentos essencialmente tal e qual os escrevi.» (p. 7) Das muitas coisas que mudaram, destaca-se sobretudo como esse papel pioneiro implicava obstáculos descritos neste livro, por vezes hilariantes, a juntar ao sentido de humor característico do autor. Os gravadores de áudio requeriam fita e deixavam de funcionar sob altas temperaturas; as câmaras de televisão eram monstros que requeriam um acolchoamento para que o som não espantasse os animais; o som e a imagem tinham de ser realizados em separado, com um microfone, para depois serem sin-

cronizados; o microfone não podia aparecer na filmagem e havia cabos para ligar os dois equipamentos. E tudo isto tinha de ser feito com destreza e rapidez, antes que o animal se fartasse ou fugisse. Este livro expõe-nos raras e estranhas criaturas, algumas delas capturadas para o Zoo de Londres, que eram então totalmente desconhecidas do grande público e até cientificamente, como o indri, uma subespécie de lémur. Algumas dessas criaturas representam um recuo no tempo de cinquenta milhões de anos em tempo evolucionário. Com fotografias a cores, podemos ler e ver os mais diversos animais: a ave-do-paraíso, cujas penas usadas em toucados exuberantes valiam como moeda de troca; camaleões e lagartos-de-gola peritos em camuflagem e capazes de ensinar algo aos militares; cacos de ovos de aves gigantes, com 3 metros de altura, entretanto extintas, porém eternizadas no mito do roc; e búfalos que foram levados de Timor para a Austrália, para fornecerem carne e leite aos assentamentos militares. Mas aquilo que se evidencia ainda mais do que a vida animal selvagem ao longo destas mais de 400 páginas é o relato antropológico, dando a conhecer comunidades

O avesso da pele, de Jeferson Tenório

Jeferson Tenório é uma das grandes vozes da literatura brasileira contemporânea FOTO CARLOS MACEDO / D.R.

O

avesso da pele, publicado pela Companhia das Letras, é o terceiro romance de Jeferson Tenório, uma nova voz da literatura brasileira, e está a ser adaptado ao cinema. No dia 25 de Novembro, O avesso da pele foi anunciado como vencedor

do Prémio Jabuti na categoria de Romance literário. Numa prosa escorreita e solta, conforme o fluxo de pensamento do narrador, Pedro, a narrativa assume a natureza de uma carta de um filho em jeito de despedida. Nestas linhas um filho procura um reencontro póstumo com um pai que mal conheceu. Os pais separaram-se tinha ele um ano de idade, e o pai sempre foi distante, além de ter o condão de se perder nos seus pensamentos. Nesta história nascida a partir da perda, é mediante o caos dos objectos deixados para trás – fotos, cadernos, papéis, pastas do seu trabalho como professor de língua portuguesa e literatura no ensino público – que o filho intenta dirigirse ao pai, Henrique, ao mesmo tempo que reconstitui a vida deste. É a reorganizar e coligir os retalhos da vida do seu progenitor, morto com cerca de 52 anos, que pode dar forma à sua própria identidade. Só a meio do livro, no capítulo 12, o narrador nos falará um pouco de si próprio, a começar por quando se apaixonou, pouco depois de entrar na faculdade.

Mais perto do final, a narrativa adopta ainda a perspectiva de uma terceira pessoa, determinante para o desfecho. Este é um romance impactante e fracturante sobre identidade e família, analisando a complexidade das relações humanas, como a relação fugaz e pouco pacífica entre pai e mãe. Esta é também, e acima de tudo, uma história de vida marcada pela raça – tema central ao livro tratado de forma discreta (sem incorrer num registo panfletário ou didático). A narrativa lança ainda pistas, subtis, do final trágico que, infelizmente, ressoa a trágica realidade. Pois Henrique vive marcado pela sua condição de homem negro no sul do Brasil – «metade dos seus problemas estava contida na cor da pele» (p. 90) –, que em 1980 passa a viver em Porto Alegre, a cidade «mais racista do país» (p. 81), toda a vida confundido com um bandido, enquanto tenta escrever a sua história de superação, «condição permanente de sobrevivência» (p. 73). Era inclusivamente raro haver professores negros nas escolas do

cujo modo-de-vida nos faz recuar até à Idade da Pedra ao mesmo tempo que o autor encontra afinidades improváveis entre lugares díspares, na forma como se movem os dançarinos em Madagáscar, com movimentos e poses próximos dos bailarinos de Java e Bali, ou nas pinturas rupestres europeias que parecem ter encontrado eco nas pinturas dos aborígenes da Austrália. Por fim, numa zona inóspita do deserto central australiano, conheceremos três desesperançados brancos, homens que fugiram da sociedade, do conforto da civilização, e vivem como eremitas, numa região

Livro dá a conhecer comunidades cujo modo de vida nos faz recuar até à Idade da Pedra

Romance sobre identidade e família analisa a complexidade das relações humanas

sul, num país profundamente racista onde um anúncio de emprego a pedir alguém com boa aparência significa, afinal, ser branco. O autor nasceu no Rio de Janeiro em 1977. Está radicado em Porto Alegre e é doutorando em Teoria Literária.

onde só os aborígenes conseguem sobreviver, em que agricultores e criadores de gado fracassaram e prospectores morreram na tentativa de extrair minerais. Face a cada animal, face a cada autóctone, perante cada ser vivo, é evidente e digno de admiração o respeito deste jovem Attenborough pela realidade natural que desvenda e as criaturas que encontra. Há até mesmo o justo reconhecimento de que, afinal, é ele o intruso, como acontece nesta belíssima passagem, quando, na sala do seu anfitrião na Nova Guiné, avista um chefe local com o seu gigantesco toucado de penas: «Dei por mim a olhar para ele como quem olha para um espetáculo de circo ou uma atração turística. E, contudo, quando olhei mais para cima, para as montanhas lá atrás, era o campo de ténis, o trator e a chávena de porcelana da qual eu estava a beber que eram os apontamentos discordantes e intrusivos.» (p. 20) Um livro belíssimo, de uma figura mediática incontornável e um excelente contador de histórias, para quem gosta de viajar como os exploradores de outros tempos, sem ter de sair do sofá.


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MAS AFINAL O QUE É ISSO DA CULTURA?

FOTOS D.R.

O Algarve de Costa a Costa

PAULO LARCHER Jurista e escritor

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a crónica anterior(1) fiz saber que decidira aceitar a sugestão do Mestre António Homem Cardoso de fazermos um périplo pelos Algarves - de costa a costa - utilizando exclusivamente o comboio! Parecia fácil, pois a via férrea estende-se de Vila Real de Santo António a Lagos. Este percurso, bem sei, não esgota o Algarve. Para além deste litoral há ainda muito desse Reino misterioso para descobrir. Se bem que não esgote o Algarve este percurso é um começo seguro e também, seguindo-o, ninguém poderá acusar-nos de parcialidade. Deste modo, na preparação desta “longa” travessia, analisei as 30 estações servidas pela linha do Algarve e pareceu-me que poderiam ser bons pontos de vista para revisitar essa comprida Província, desculpem, Região ou, dito à maneira antiga, Reino dos Algarves. Pareceu muito interessante e significativo (quantas vezes a história se constrói através destas singulares coincidências), que poucos dias após o início desta nossa romaria, aqui mesmo em Vila Real de Santo António, onde iniciámos a jornada, Forças Vivas nacionais e locais tenham assinado um milionário contrato para a electrificação e melhoramento da linha ferroviária do Algarve. Ora parabéns! a quem foi capaz de concretizar esta antiga promessa, que já parecia aos algar-

vios mais fantasia que realidade, e votos de que a obra seja executada nos prazos previstos. Com esta esplêndida notícia, a nossa viagem recém-começada adquiria, pois, o tom melancólico das coisas que se extinguem para dar lugar ao futuro. Mas que importa?, ao fim e ao cabo não somos mais que coisas passadas à espera de futuros que ainda não chegaram… Ao contrário do que pensei, o António não me vai acompanhar nesta fase exploratória. “Vai lá primeiro, fazer a repérage”(2), disse-me ele, “depois iremos os dois fotografar os sítios que tiveres escolhido”. Conclusão, fui deitado aos leões, mas não me deixei abater. Em primeiro lugar fui dar uma vista de olhos à minha bibliografia. Nas Crónicas Algarvias(3) descobri o seguinte: o Manuel da Fonseca veio de comboio para o Algarve mas logo o trocou pela camioneta, talvez por uma questão de horários ou outra - que sei eu? - e fez um percurso contra o vento, ou seja, de Sotavento para Barlavento e não o inverso, o que pareceria mais natural (a mim, pelo menos, que sou velejador). Também José Saramago na sua rápida passagem pelo Algarve a iniciou por Vila Real de Santo António e, à semelhança do Fonseca, foi de rabinho tremido, fazendo assim uma desconsideração à ferrovia algarviana. Ora aí é que eu (nós…) vou agir diferentemente. Parto de Vila Real, mas irei de comboio, de estação em estação, de apeadeiro em apeadeiro e só descansarei quando pousar os pés na plataforma firme de Lagos,

cidade das descobertas marítimas e local onde os negros escravizados, por entre as grades e os grilhões, tiveram um primeiro vislumbre da civilização europeia. Tenho expectativas muito positivas desta peregrinação a que nos propomos. Peregrinação, digo bem, pois não é só em direcção a Deus que os passos da fé são justificados, também em relação ao Belo esses passos o são, e a maior ou menor dificuldade em alcançá-lo é o sal dessa abertura ao desconhecido. Confesso-o aqui, com algum acanhamento, que espero muito do olho clínico do António, ou das suas poderosas objectivas fotográficas, que captam não só a forma como também o coração das coisas. E o ser humano é também uma coisa viva, e em relação a ver essas coisas o António é inexcedível. Como o Fonseca há cinquenta anos, eu e o António iremos à procura dos rastos, dos símbolos, dos sinais da humanidade, escondida sob a parafernália da civilização técnica que todos nós, a bem ou a mal, habitamos. Vai custar? Será fatigante? Talvez, mas a demanda nestas matérias de Deus e do Belo, sobretudo se for feita sem esforço, é fatigante ou, fazendo minhas as palavras do Manuel da Fonseca, “Aceitar passivamente a beleza cansa.”(4) Fica então assim decidido: embarco em Vila Real de Santo António e umas horas, dias, semanas, meses depois, desembarco em Lagos. Entre estas duas balizas se situará o meu Algarve. Não será “todo” o Algarve, porque região alguma cabe no bico de nenhuma caneta, mas o Algarve a que eu, muito humildemente, poderei aceder.

A partida Seria pedir demais que se pudesse apanhar o comboio no centro de Vila Real de Santo António, ao que os locais chamam Baixa-Mar? Antigamente o terminus da linha férrea ficava num edifício airoso, junto à alfândega nova e do cais onde acostam os barcos que fazem a travessia para Ayamonte. Agora, porém, é necessário embrenharmo-nos por umas ruas compridas, marginadas por fábricas em ruínas ou armazéns abandonados para nos depararmos com o edifício da estação que nos

contempla tranquilo e sólido ao fundo de uma rua. É uma bonita construção, datada de 1945, de linhas direitas e vagamento déco, um pouco ao arrepio do aspecto mais tradicionalista de outras estações. O traço foi de um grande arquitecto, Cottinelli Telmo. Apesar da elegância da estação, digo para com os meus botões que não deve ser nada fácil a uma família de turistas carregada de malas e embrulhos desembarcar ali. Talvez por isso não desembarquem e seja essa uma das (muitas) razões do crónico congestionamento da “125”. Aguardo na plataforma a chegada do comboio. Sinto pairar no ar uma estranha mistura de urbanidade e ruralidade: cavalos pastam nos terrenos à volta enquanto a roupa seca nos estendais de prédios modernos. A temperatura cálida recorda as férias grandes. Do outro lado dos carris, por trás de uma extensa vedação de arame, uma estrada pouco movimentada ladeia o sapal em direcção a Castro Marim. Em paralelo, uma ciclovia acompanha a estrada. Tudo está mergulhado num pacífico silêncio, mas sobre tudo isso paira um ar de desleixo e indiferença. O comboio aproxima-se devagar, com uma automotora ruidosa e duas carruagens das quais descem trinta e tal pessoas. Metade são estrangeiros com uma certa idade. Dois trazem bicicletas. Embarco. O meu

solitário com meia dúzia de casas. Por entre as árvores, cavalos sacodem as nuvens de moscas enquanto tasquinham a erva rala. Mas o que é isto? espanto-me eu. Um homem que veio até ao largo deitar lixo no contentor informa-me que andar dali até à vila é coisa para uma boa meia hora. Sinto repentinamente o intenso calor do dia e percebo que cometi um erro de planeamento. Não! Não vou andar meia hora para cada lado sob este calor tropical. Vou ficar por aqui, à sombra, mas terei que esperar um tempão pelo próximo comboio. Que seca! Atravesso a linha para o lado do sapal e fico a observar a vida dos flamingos e demais bicharada alada que o povoa. O tempo vai passando. As moscas, muito excitadas com a sua nova vítima, revoluteiam esfomeadas. À falta de cauda, como a dos cavalos, sacudo-as com as mãos. A resiliência é uma qualidade que não deve faltar a um viajante(5), pelo que é com relativa placidez que assisto à entrada ruidosa da automotora na estação de Monte Gordo. Entro. Sento-me junto a uma janela. Próximo destino: Castro Marim. Excelente! Antegozo os seus castelos e fortalezas; as igrejas da Ordem do Templo (desculpem, de Cristo), e a visão da imensidão que separa duas nações em tantas coisas tão parecidas. Apita o comboio, vai partir. Estremece, range. Partiu.

destino é Monte Gordo. Reparo agora que não fiz nenhum comentário sobre a cidade em que embarquei, e tanto que haveria para dizer sobre essa pérola do Despotismo Esclarecido. Tem que ficar para outra crónica. Prometo. Desembarco em Monte Gordo cheio de expectativa de encontrar algo do que Manuel da Fonseca 50 anos atrás descreveu nas suas Crónicas: o novo Casino e os seus arruamentos por terminar; o “cuíco” valente enfrentando os meninos arruaceiros, os velhos ingleses apoiados nas suas bengalas de castão de prata a fugir do vento agreste… mas nada. Para minha surpresa, a estação de Monte Gordo desemboca num largo

(1) Esta crónica vem na sequência das três anteriores pelo que é conveniente conhecê-las. (2) A repérage, palavra adoptada do francês, significa: a) a acção de determinar o lugar de qualquer coisa num espaço; b) a pesquisa dos cenários onde terão lugar as filmagens. (3) É mesmo importante ter lido a última crónica (e até mesmo a penúltima) para compreender melhor estas citações. (4) Manuel da Fonseca, Crónicas Algarvias, Editorial Caminho, 2ª ed., Lisboa, 1986, p. 164 (5) Tomo emprestado o termo “viajante” que José Saramago utiliza na sua Viagem a Portugal, referindo-se a si próprio, termo igualmente utilizado pelo seu émulo, Diego Mesa, na Viagem ao Algarve.

* O autor não escreve segundo o acordo ortográfico


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