CULTURA.SUL 155 8OUT2021

Page 1

Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o

OUTUBRO 2021 n.º 155 7.982 EXEMPLARES

www.issuu.com/postaldoalgarve

ARTES VISUAIS

Como Weiwei é ativista político através da arte? SAÚL NEVES DE JESUS Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/artes

N

Imagens de trabalhos produzidos por Ai Weiwei sobre os refugiados

Cartaz da exposição “Rapture”, de Ai Weiwei FOTOS D.R.

o último artigo abordámos o tema da migração e dos refugiados como um dos problemas da atualidade, evidenciando o contributo que alguns artistas têm procurado dar através das obras que produzem, como é o caso do próprio Banksy. Desta vez pretendemos destacar o papel específico do artista chinês Ai Weiwei na defesa desta e doutras causas sociais, como ativista político. Este artista, de 63 anos, eleito como o mais popular do mundo em 2020 pelo “The Art Newspaper”, é considerado um dos artistas mais interventivos e criativos da contemporaneidade, mundialmente reconhecido pelo seu ativismo político e por procurar produzir obras dedicadas a questões sociais e a direitos humanos. Numa das suas instalações, em 2016, usou 14 mil coletes salva-vidas de imigrantes que faziam a travessia do Mediterrâneo, recolhidos na Ilha de Lesbos (Grécia), fazendo uma grande instalação nas colunas da Konzerthaus, em Berlim, tendo por objetivo mobilizar a comunidade internacional contra o crime de tráfico de seres humanos na Mar Egeu. A instalação incluiu também um barco de borracha, igual ao usado pelos refugiados para chegar à Europa. Também em 2016, numa das suas obras mais conhecidas, intitulada “Law of the Journey (Prototype C)”, apresenta um barco insuflável de 16 metros de comprimento cheio de figuras humanas insufláveis, fazendo alusão à crise global de refugiados. A cor negra usada no barco e nas figuras insufláveis representa a tragédia, enquanto o tamanho da obra representa a grande dimensão do problema. Todo o trabalho de Ai Weiwei é de ativismo político, em particular como crítica ao regime de Xi Jinping. Por exemplo, através de “Snake Ceiling” (2009), uma

grande instalação em forma de serpente constituída por centenas de mochilas de crianças, em memória aos estudantes mortos no terremoto de Sichuan, em 2008. E foi precisamente em 2009 que foi detido pelas autoridades chinesas e agredido, seguindo-se em 2010 o encerramento do blogue que mantinha há quatro anos e onde criticava o Partido Comunista Chinês, bem como a demolição do seu estúdio por supostas questões burocráticas. Em 2011, voltou a ser preso e arriscava 13 anos de cadeia. Passou 81 dias na cadeia por subversão e saiu após pagar uma multa de mais de dois milhões de euros, através de donativos de fãs. Durante quatro anos teve o seu passaporte confiscado. Quando o devolveram, em 2015, mudou-se para a Alemanha, nunca mais tendo voltado à China, com receio que lhe confisquem o passaporte. Nos últimos tempos tem vivido no Alentejo e o seu trabalho está a ser apresentado pela primeira vez em Portugal, com a exposição “Rapture”, a decorrer na Cordoaria Nacional, em Lisboa, até 28 de novembro. Com curadoria do brasileiro Marcello Dantas, esta exposição apresenta alguns dos trabalhos mais icónicos do artista, tal como “Law of the Journey (Prototype C)” e “Snake Ceiling”, assim como obras originais produzidas em Portugal, com materiais tipicamente portugueses, como a cortiça, incluindo trabalhos com azulejos e cerâmica. A exposição pretende mostrar Ai Weiwei como um artista que é também “um arqueólogo de métodos e práticas que foram sendo perdidas na história dos lugares”, como seja o artesanato, aplicando-as à arte contemporânea. Assim, quando preparou a exposição, o artista pôde contactar com materiais e artesãos portugueses, dando uma nova leitura às técnicas usadas, com um sentido de arte contemporânea. O cartaz desta exposição mostra-nos Ai Weiwei a olhar-nos fixamente e abrindo mais os olhos com a ajuda das mãos, como que a provocar-nos para estarmos atentos e não virarmos as costas ao que acontece à nossa volta, procurando combater a apatia e a indiferença

aos problemas sociais do mundo em que vivemos. Para Ai Weiwei, a sua arte é precisamente o protesto, a voz política. Conforme refere no livro “Weiwei-ismos”, editado a propósito desta exposição, “A liberdade de expressão implica que o mundo não esteja definido. Só faz sentido quando se permite que as pessoas possam ver o mundo à sua maneira (...) Quero que as pessoas vejam o seu próprio poder”. Mas salienta ainda o seguinte: “As minhas mensagens são temporárias e não devem ser a nossa condição permanente. E, tal como o vento, hão-de passar. Outro vento há-de vir.” Desta forma, as criações artísticas devem ser contextualizadas e entendidas na época em que são produzidas, pois a arte acompanha o desenvolvimento da sociedade, sendo uma expressão desta, mas a atitude de ativismo político através da arte visual pode estar sempre presente, podendo a produção artística ser um instrumento para promover a sensibilização e a consciencialização relativamente a questões sociais, ambientais e outras, que vão ocorrendo ao longo da história da humanidade.

Ficha técnica Direção: GORDA, Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Responsáveis pelas secções: • Artes Visuais: Saúl Neves de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Filosofia Dia-a-dia: Maria João Neves • Fios De História: Ramiro Santos • Letras e Literatura: Paulo Serra • Marca D'Água: Maria Luísa Francisco e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve FB: https://www.facebook.com/ Cultura.Sulpostaldoalgarve


16

CULTURA.SUL

Postal, 8 de outubro de 2021

FOTOS D.R.

Diretor do Grupo de Teatro Lethes, Emílio Campos Coroa

“Orçamento para a cultura é uma pequena migalha e as autarquias não ajudam” • Falta de apoios ao teatro e à cultura • Pandemia penalizou atividade • Continuamos à espera da sede social prometida pela autarquia • A crítica social de Eça de Queirós vai subir ao palco proximamente

ENTREVISTA RS Agora que começa a subir o pano de uma pandemia que dura há cerca de ano e meio, que balanço é possível fazer no que respeita às actividades culturais e ao teatro em particular? Em que medida o Grupo de Teatro Lethes foi afetado?

Creio que não é exagero afirmar o reflexo extremamente nefasto da pandemia na sociedade em geral e em todas as manifestações culturais e artísticas no País, quaisquer que se considerem, desde as artes de palco como o teatro, a música, o bailado, às artes circenses. Naturalmente, aqueles que fazem da arte a sua profissão, foram fortemente penalizados e, na nossa opinião, deveriam beneficiar do máximo suporte financeiro possível, como garante da sua subsistência, porque a arte, nas suas formas diversas, é um património insubstituível na sanidade mental das gentes. No que ao Grupo de Teatro Lethes respeita, veio suspender o trabalho que tínhamos em cena, no salão do Club Farense, gentilmente cedido por aquela distinguida coletividade; tratava-se de “A Relíquia” de Eça de Queirós, cujo último espectáculo ocorreu em 7 de fevereiro de ECC

2020, mas que está disponível para visualização na íntegra no youtube site maisalgarve - para aqueles que não tiveram oportunidade de ver em tempo real. Claro que foi um contratempo, pois tínhamos enviado e-mails a muitas das autarquias do Algarve para propor a apresentação do espectáculo, não tendo recebido qualquer resposta, o que demonstra o impacto da pandemia na nossa atividade. Mas, como é evidente, sendo o Grupo de Teatro Lethes um grupo de teatro amador, não há qualquer prejuízo financeiro.

No tempo que durou a pandemia, as atividades culturais de um modo geral receberam alguns apoios do estado ou das autarquias. E o vosso grupo? RS

Parece-me que a fatia do Orçamento de Estado destinada à Cultura é sempre uma pequena migalha, em comparação com os investimentos que são feitos noutras áreas, nomeadamente o desporto. Não contesto a importância do desporto na vida de cada um e na sociedade em geral, mas julgo que há uma grande desproporção de verbas e mesmo no desporto, as diferenças entre as diversas modalidades são muito consideráveis. ECC

Penso que, apesar do esforço suplementar implementado pelo governo, os artistas profissionais, quer de teatro, quer do cinema, da música sinfónica, da ópera, do bailado, do circo, passaram e ainda passam por graves dificuldades económicas, o que é lamentável. Nós, felizmente, não solicitámos qualquer subsídio para qualquer evento e, como tal, não temos de justificar onde está a verba atribuída. Aliás, em meu entender, os responsáveis autárquicos pensam sempre que as associações culturais e mesmo as desportivas vão “pedir” alguma coisa, entre elas financiamentos; pois eu penso que as associações vão dar, oferecer os seus préstimos para o enriquecimento cultural e formação desportiva às populações de vários escalões etários dos seus concelhos e, antes pelo contrário, são as autarquias que devem satisfazer a curiosidade das populações acerca do que fizeram ao dinheiro dos contribuintes e quais são os planos futuros, a curto, médio e longo espaço temporal. O Grupo de Teatro Lethes não tem pedido subsídio regular à Câmara de Faro, porque ao longo dos seus provectos 64 anos de idade, tem conseguido constituir património suficiente para as suas produções, mas pergunta à Câmara de Faro quando será cum-

prida a promessa feita desde 1986 e repetida várias vezes e em público, da construção da sua sede social, a qual viria colmatar uma lacuna importante essencial ao trabalho diário. Esse sim, seria um subsídio, que me parece devido. ainda mais, a uma coletividade de utilidade pública sem fins lucrativos, já agraciada por 2 vezes com a medalha de Ouro da Cidade e que dispunha, por lei, de um subsídio regular anual para a sua atividade, subsídio que foi suspenso, como a outras coletividades, pela câmara presidida, se a memória me não atraiçoa, pelo Sr. Engº Macário Correia.

Os profissionais da cultura foram fortemente penalizados e deveriam beneficiar do máximo suporte financeiro possível, porque a arte, nas suas formas diversas, é um património insubstituível

Julgo saber que esta pausa na representação teatral, abriu espaço para a organização de novas produções e o grupo de Teatro Lethes não esteve propriamente parado. Ou esteve? RS

Na verdade, esta tara genética, esta inquietude permanente, leva a que estejamos sempre a pensar no que vamos fazer a seguir, contra ventos e marés e enquanto houver capacidades física e intelectual para continuar, sem nos tornarmos ridículos; por isso, analisamos texto atrás de texto, estudamos alternativas, possibilidades, espaços físicos, excluindo dos planos o que nos não parecer exequível, por incapacidade técnica ou humana ou por manifesto desinteresse do ponto de vista de crítica social, beleza estética, atualidade ou diversão. De facto, temos passado este tempo a trabalhar em particular em dois projetos, sendo um deles uma dramaturgia construída com base em obras de outros autores sobre os múltiplos aspetos da vida e de várias das obras de Eça de Queirós, cujo texto está estabelecido, mas que poderá ainda vir a sofrer algumas alterações, o que iremos averiguar a breve trecho e também noutro projeto, que tem mais de vinte anos, mas que está em evolução constante, que é a elaboração de um livro com o registo de toda a atividade do ECC


CULTURA.SUL

Postal, 8 de outubro de 2021

Grupo, desde o primeiro espetáculo e até ao mais recente, que será ilustrado com fotografias, programas, cartazes, desenhos de cenários, críticas, enfim, com a reprodução de muito do espólio existente, para que no futuro, quem quiser debruçar-se com seriedade sobre a história do teatro em Faro, disponha de uma fonte fidedigna de informação no que respeita a um dos Grupos de Teatro Amador mais antigos do País, sem ter que se conformar com a informação errónea de algumas fontes, que dão o Grupo como “falecido” ou “desaparecido em combate”.

Pergunta-se à Câmara de Faro quando será cumprida a promessa feita desde 1986 e repetida várias vezes, da construção da sua sede social RS Sei que o grupo vai iniciar o ensaio de uma nova peça. Pode levantar a ponta do véu? Qual o tema central?

A nova peça a que se refere é, provavelmente, a dramaturgia que referi acima, mas não podemos afirmar ainda, neste momento, ser garantido que avance, embora tenha sido pensada, escrita para os recursos humanos que o Grupo dispõe. Para “subir à cena” há ainda um longo caminho a percorrer, sendo que um importante problema a resolver é onde será a cena? ECC

compromissos, não podemos saber se há disponibilidade para uma data concreta por parte de todos os amadores envolvidos no espectáculo, a seis ou mais meses de distância. E também não podemos aceitar que em todos os documentos de divulgação produzidos para o espetáculo tenha que constar “uma produção Acta – A Companhia de Teatro do Algarve”. Para o Grupo de Teatro Lethes, isso representa um ligeiro acréscimo de dificuldades, mas devo lembrar que antes do Teatro Lethes ter reaberto ao público em 1972, a actividade do Grupo ficou marcada por espectáculos de grande beleza estética ao ar livre. Já depois de termos saído do Lethes, concretizámos alguns, tais como “O Render dos Heróis”, de José Cardoso Pires, na Alameda João de Deus ou “Felizmente há Luar”, de Luís de Sttau Monteiro, em Cacela Velha. O maior problema que enfrentamos é a renovação do quadro de amadores, porque o mais notável fator que tem permitido a sobrevivência do grupo, é um excelente naipe de amadores muito experientes, alguns acompanham o grupo desde os primeiros espectáculos, o que merece especial relevo, sendo que os mais novos têm 20 anos de teatro, salvo raras excepções. Importa pois assegurar a sucessão e fazer o registo histórico do que foi realizado; É, portanto errónea, para não dizer maliciosa, a ideia que o grupo morreu com os seus fundadores. O Grupo foi criado, dinamizado e dirigido com a sabedoria e a genialidade de Emílio Campos Coroa, Maria Amélia Campos Coroa e José de Campos Coroa, que souberam rodear-se de grandes e talentosos amadores. Tanto Emílio como Maria Amélia como José de Campos Coroa estão sempre presentes, ainda hoje,

se vivem; posso assegurar-vos que essa intensidade continua a existir. O que acontece é que há menor visibilidade, porque existem outros grupos e mais actividades culturais, às vezes com sobreposição de datas e horas e o Grupo não dispõe de uma máquina de marketing para divulgação da sua atividade. Precisamos, portanto, de jovens, amantes de teatro, precisamos da generosidade, vitalidade e combatividade da juventude, apoiada pela experiência e conhecimento dos mais velhos para que o Grupo possa continuar. RS O Grupo de Teatro Lethes é provavelmente o grupo mais antigo do Algarve. Como se garante a sobrevivência de um

grupo de teatro ao longo de tantos anos? Esta é uma questão pertinente: como se garante a sobrevivência? Garante-se com a comunhão de objetivos, relegando o que nos separa individualmente para segundo plano, centrando-nos no que nos une: o amor ao teatro, a catarse que cada um de nós faz num espaço comum e partilhado, a defesa intransigente da independência de objectivos político-partidários, uma verdadeira, profunda e grande amizade entre todos, o respeito de cada um por todos e de todos por cada um e um pano de fundo onde assentam valores humanistas essenciais: liberdade, democracia, igualdade, justiça e beleza. ECC

O grupo sem fins lucrativos, já agraciado por 2 vezes com a medalha de Ouro da Cidade, dispunha, por lei, de um subsídio regular anual que foi suspenso, pela Câmara Municipal no tempo da Macário Correia

Um palco cheio de aplausos mas vazio de apoios públicos

É O Grupo ocupou instalações no Teatro Lethes, por convite da Direção da Cruz Vermelha de Faro àquela época, desde 1972 e até 1986, ano em que foi ordenada a saída pela Srª delegada regional do Ministério da Cultura. Estivemos no Lethes apenas 13 anos; hoje é necessário saber em outubro, quais os dias do ano seguinte em que necessitaremos da sala para apresentação de espectáculos, o que é quase uma “Missão Impossível”, porque num grupo amador como o nosso, habituado desde sempre a respeitar

no Grupo de Teatro. Mas o grupo já conta com mais anos de sobrevivência após a morte física de Emílio Campos Coroa, do que os 28 anos em que esteve sob a sua direcção. O que deve querer dizer que transmitiram saberes, valores a todos os que os acompanharam e que mantêm o Grupo a funcionar com grande amor ao teatro e um grande espírito de missão, de solidariedade, respeito e amizade entre todos. Poderão contrapor que a importância das coisas não reside no tempo que duram, mas na intensidade com que

um dos grupos de teatro amador mais antigos do país. Fundado em Outubro de 1957, como secção de teatro do Círculo Cultural do Algarve, tem andado quase sempre com a casa às costas. Em 1972, a convite da Cruz Vermelha Portuguesa, vai instalar-se no Teatro Lethes, tomando nessa época o seu nome atual. Em 1986, por ordem da delegada regional da Secretaria de Estado da Cultura, - que não devia entender a representação teatral como uma forma de expressão cultural - é expulso do Teatro Lethes. Desde 1989, por cedência da Câmara Municipal de Faro,

instala-se num pequeno armazém de vão de escada, ou nem tanto, sem espaço nem dignidade, apenas com capacidade para acomodar o seu património e proceder a ensaios de leitura. E, no entanto, o Grupo de Teatro Lethes, mantém-se teimosamente vivo, graças à persistência e amor ao teatro de todos os elementos que o compõem e o integraram ao longo destes 64 anos de atividade e do seu diretor, que contra ventos e marés, vão sustentando e mantendo vivo o espírito e o legado do seu fundador, Emílio Campos Coroa. O seu pr i mei ro espetácu lo ocorreu a 23 de maio de 1958, com a peça “Quando a Verdade Mente”, de Costa Ferreira. O

17

mais recente, foi “A Relíquia” de Eça de Queirós. Pelo meio fica um total de 535 espetáculos que envolveram 468 atores. Muitos deles prosseguiram depois as suas carreiras como profissionais das grandes companhias de teatro portuguesas. Pelo seu passado e respeito pelo seu contributo para a cultura teatral do Algarve e do país, espera-se que um dia o Grupo de Teatro Lethes venha a receber das entidades da cultura e do poder autárquico, - já que Lisboa fica muito longe - os aplausos feitos dos apoios que lhe têm faltado. Palmas, senhores, para o Grupo de Teatro Lethes e para o seu diretor, Emílio Campos Coroa.

RS


18

CULTURA.SUL

Postal, 8 de outubro de 2021

FILOSOFIA DIA-A-DIA

Na sua genialidade Pessoa oferece-nos um caleidoscópio de modos de ser FOTO

D.R.

Pensar Pessoa MARIA JOÃO NEVES PH.D Consultora Filosófica

Q

ue tem a dizer Pessoa — poeta pensador por excelência — sobre o pensamento? Sem pretender uma amostra exaustiva deste autor tão profícuo, proponho que atendam comigo a esta fuga a 5 vozes — work in progress — que continuará a compor-se oralmente durante o Café Filosófico deste mês. Comecemos pelo mestre: Alberto Caeiro tem uma vida muito curta, falece aos 26 anos de idade, e estudou apenas até à quarta classe. Contudo, é ele o mestre de Ricardo Reis, formado em medicina, de Álvaro de Campos, engenheiro naval, e do próprio Fernando Pessoa ortónimo. Caeiro encarna a ingenuidade de uma criança que vive no encantamento das sensações imediatas, predominantemente visuais, acolhendo a cada instante o que a natureza oferece. Eis um excerto do seu poema O Guardador de Rebanhos: “Creio no Mundo como num malmequer,/ Porque o vejo. Mas não penso nele/ Porque pensar é não compreender.../ O Mundo não se fez para pensarmos nele/ (Pensar é estar doente dos olhos)” Pensar aparece aqui como uma actividade doen-

tia, uma consequência de um mau funcionamento do órgão da visão, sentido eleito no modo de interacção com as coisas. O mundo é para ser visto e não pensado. Só a visão reifica, o pensamento tergiversa. Ricardo Reis, primeiro discípulo, reitera o seu mestre Alberto Caeiro, como podemos comprovar pela seguinte estrofe: “Para quê complicar inutilmente,/ Pensando, o que impensado existe?/ Nascem Ervas sem razão dada —/ Para elas olhos, não razões, tenhamos/ Como através de um rio as contemplemos.” Álvaro de Campos, segundo discípulo de Caeiro, escolherá o sentir ou o pensar? Vejamos o que nos diz em Poesias: “Não estou pensando em nada E essa coisa central, que é coisa nenhuma, É-me agradável como o ar da noite, Fresco em contraste com o Verão quente do dia. Não estou pensando em nada, e que bom! Pensar em nada É ter a alma própria e inteira. Pensar em nada É viver intimamente O fluxo e o refluxo da vida... Não estou pensando em nada. É como se me tivesse encostado mal. Uma dor nas costas, ou num lado das costas. Háumamargodebocanaminhaalma:

É que, no fim de contas, Não estou pensando em nada, Mas realmente em nada, Em nada...” Durante dois terços do poema Campos parece concordar com Caeiro e Reis: pensar em nada é maravilhoso! O sentimento pode agora ocupar todo o espaço perceptivo. Pensar em nada permite ter “a alma própria e inteira” e “é viver intimamente o fluxo e refluxo da vida”. Porém, o último terço do poema vem dar conta de um desconforto: pensar em nada é um “amargo de boca na alma”, ou um “encostar-se mal” que provoca dores. Na sua complexidade, Álvaro de Campos não parece conseguir ser inteiramente poeta e viver no deleite do sentir. Por outro lado, ao dar-se conta da actividade de pensar em si mesma, sem que seja exercida sobre um objecto em concreto, o mal estar instala-se. O último terço do poema é uma voz dissonante. Fernando Pessoa ortónimo, também discípulo de Caeiro, diz-nos no seu Primeiro Fausto: Não é o vício/ Nem a experiência que desflora a alma:/É só o pensamento. (...)/ Só pensar/ Desflora até ao íntimo do ser./ Este perpétuo analisar de tudo,/ Este buscar duma nudez suprema/Raciocinada coerentemente,/É que tira a inocência verdadeira (...)/ Pensar, pensar e não poder viver! (...)/ O que é perder a inocência toda.../ Não a inocência vã do corpo ao olhar,/ Ou vulgar e banal conhecimento,/Mas a inocência bela do viver;/De sentir (...)”. Pessoa concorda

com Caeiro, Reis, e com os primeiros dois terços da poesia de Campos ao considerar a actividade de pensar inadequada para o acesso ao mundo. A expansão da lucidez atenta contra a vida e aniquila a inocência da alma. O poeta parece retomar aqui o tema da queda do paraíso: precisamente no momento em qua a inocência acaba o pensamento acontece. Em contraponto com as visões expostas por Caeiro, Reis, Pessoa e os primeiros dois terços da poesia de Campos situa-se o semi-heterónimo Bernardo Soares: “Aquilo que, creio, produz em mim o sentimento profundo, em que vivo, de incongruência com os outros, e que a maioria pensa com a sensibilidade e eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar”. Para Soares o pensamento não atenta contra a vida nem contra o sentir, pelo contrário, a actividade de pensar nutre-se do sentimento e só o pensar se constitui em vida verdadeira. A problemática relação entre a vida e o pensamento surge na filosofia desde a sua génese. Já no diálogo Fédon de Platão encontramos um exemplo paradigmático de como vida e pensamento mutuamente se agridem: Sócrates propunha aos homens um caminho de salvação que era simultaneamente uma preparação para a morte. Filósofo era aquele que estava maduro para morrer. Os órgãos dos sentidos aparecem como propicia-

dores da desgraça do humano, pois fazem-no pender para o que é contrário à sua verdadeira natureza: “Na verdade, cada sentimento de prazer ou dor é como pregos que fixassem a alma ao corpo; e assim a agrafam a ele, a enleiam na substância corporal, por tal forma que tudo aquilo que o corpo lhe disser ela toma por verdadeiro.” (Platão, Fédon, 83 d-c). Porém, a verdade é a grande amada dos filósofos, mas não dos poetas! Os poetas amam sobretudo a vida, querem celebrá-la. Por isso os poetas cantam as aparências, louvam-nas, e não desejam separar-se delas através do esforço ascético do pensamento. Apesar da sua origem comum — o êxtase admirativo —, os caminhos do filósofo e do poeta separam-se, permanecendo o poeta ligado às coisas, às realidades que se lhe apresentam, desfrutando da contemplação das mesmas, enquanto o filósofo prefere renunciar a tudo isso, o que supõe um esforço violento. O filósofo, ao dar primazia ao pensamento, sacrifica a contemplação da pluralidade das coisas a que se tem acesso, (mas que continuamente se perdem num devir de nascimento e morte, numa contínua substituição), em busca de unidade e de permanência. Esta renúncia assenta num ascetismo que transforma o espanto primordial em interrogação incessante. O problema, justamente, reside em que a inquisição do intelecto implica o martírio da vida. Logo após o nascimento do mestre — que surge com o poema O Guardador de Rebanhos, escrito de uma assentada — escreve imediatamente, também de seguida, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua. Na carta acima citada esclarece: “foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.” E mais adiante especifica: “pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida”. Quanto a Bernardo Soares, precisa: “É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade”. Talvez o Pessoa poeta não conseguisse renunciar ao Pessoa pensador e vice-versa. Para dar conta destas perspectivas irreconciliáveis foi-lhe necessário criar tantas vidas quantas as possibilidades de se posicionar perante esta questão. Na sua genialidade Pessoa oferece-nos um caleidoscópio de modos de ser. Inscrições para o Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com * A autora não escreve segundo o acordo ortográfico


CULTURA.SUL

Postal, 8 de outubro de 2021

19

FIOS DE HISTÓRIA

BATALHA NAVAL AO LARGO DO CABO DE SÃO VICENTE

O mar era um caldeirão a ferver FOTO D.R.

RAMIRO SANTOS Jornalista ramirojsantos@gmail.com

É

considerada a última batalha exclusivamente travada entre navios de vela em águas portuguesas. E foi decisiva para o desfecho da guerra civil de 1832-1834. Um conflito que opôs os liberais afectos a D. Pedro, regente em nome da Dª Maria II, aos realistas de seu irmão D. Miguel. As duas armadas enfrentaram-se no dia 5 de julho de 1833, ao largo do Cabo de S. Vicente. Mais do que uma guerra entre irmãos, foi um confronto de duas ideias de poder para o Portugal de então: de um lado, os defensores da ordem real absolutista, do outro, os adeptos de uma mudança constitucional conforme os ventos que sopravam da revolução francesa. O domínio da orla costeira era um objetivo estratégico de importância vital para o desfecho da guerra. O poder estabelecido de D. Miguel, determinado a assegurar a manutenção do regime tradicionalista, detinha o domínio dos mares, enquanto as hostes de D. Pedro viam no controlo da faixa atlântica uma plataforma essencial para apoiar as operações em terra das forças liberais. Neste quadro, o governo pedrista decide enviar para as costas do Alentejo e Algarve uma formação naval com o objetivo de ali fazer desembarcar forças militares que permitissem abrir uma nova frente de guerra civil, avançando sobre Lisboa a partir do sul. A reação dos miguelistas não se fez esperar, tendo deslocado para aquela zona a sua melhor esquadra. Sendo esta batalha entre as tropas dos dois irmãos, acabou, de certa maneira, por ser um conflito marítimo entre portugueses e ingleses, dado que eram britânicos os comandantes que lideravam praticamente todos os navios da armada liberal. O esquadrão afecto a D. Pedro, sob o comando do vice-almirante inglês Charles John Napier, alinhou-se em formação de combate na expectativa da reação da armada miguelista, liderada pelo almirante António Aboim. Os absolutistas eram detentores de uma força militar superior, quer em número de navios, quer no que respeita ao seu poder de fogo. Contavam com 372 peças de artilharia contra as 176 bocas de fogo dos vasos de guerra contrários. As duas armadas avistaram-se no dia

3 de Julho, mas só depois de dois dias de manobras deram início às hostilidades. O dia era de sol, uma sexta feira. Súbita calmia do mar e do vento. A armada miguelista hesitou permitindo à esquadra liberal através de um golpe tático inesperado, iniciar uma operação de abordagem e assalto. As hostes de D. Miguel, preparadas para um duelo de artilharia convencional, foram surpreendidas pelo recurso ao combate de proximidade, quase corpo a corpo, adoptado pelos fiéis de D. Pedro, que lograram anular a desvantagem e de poder de fogo que favorecia as partes inimigas. O almirante inglês deixou o relato escrito: “O inimigo conservava-se em linha cerrada, e reservou o seu fogo até nos acharmos bem a tiro de fuzil (...): o momento era crítico, e todos nós o conhecíamos (...) Eu olhei para cima, esperando ver todos os mastros ao vai-vem; mas a flâmula tremulava no topo, e não obstante o mais tremendo fogo que jamais tinha presenciado, que fazia borbulhar o mar que nos rodeava, como um caldeirão a ferver, o fumo tendo-se dissipado, descobriu aos miguelistas assombrados a (nossa) fragata Rainha”.

Aproveitando a confusão do primeiro embate, Napier lançou-se à abordagem do inimigo, tentando o aprisionamento dos seus navios: “A este tempo ainda nós não tínhamos dado um só tiro, (...) o chefe de Divisão Wilkinson e o capitão Carlos Napier, comandando a gente d'abordagem saltaram de cima das âncoras para a amurada da nau (miguelista), e levaram adiante de si aquela parte da guarnição ao longo dos bailéus de bombordo”. E o almirante prossegue a sua descrição: “Eu não tinha tenção de ser um dos da abordagem, tendo bastante que fazer em tomar cuidado na esquadra, porém, o impulso era demasiadamente forte, e achei-me, quase sem saber como, em cima do castelo de prôa da nau, acompanhado de um ou dois oficiais. Ali fiz pausa, até que saltando mais gente dentro do navio, corremos para ré dando um grande: Viva! - e ou passámos pelo meio, ou repelimos pela escotilha grande abaixo, uma partida dos inimigos”. Sem poupar nos pormenores, Napier adiantou: “Neste momento recebi um severo golpe com um pé-de-cabra, cujo dono não escapou a salvo, e o pobre Macdonough, caiu a meu lado trespassado por uma bala

de fuzil; Barreiros, comandante da nau, apresentou-se na minha frente, ferido no rosto, e batendo-se como um tigre. Era um homem valente; eu salvei-lhe a vida. Veio depois o 2.° comandante, e atirou-me uma tão boa cutilada, que não tive coração para lhe fazer mal; também ficou salvo. Barreiros pegou outra vez em armas, e a final foi morto na câmara”. Após estes e outros combates corpo a corpo e disparos à queima roupa, com perdas para ambos os lados, os navios miguelistas começaram a render-se . “Estávamos já senhores da tolda (...) Dentro em poucos minutos tudo estava tranquilo; a última coberta tinha-se rendido, e muitos dos marinheiros portugueses saltaram para cima da tolda para salvar-se, trazendo tiras de lona branca nos braços esquerdos. Outros puderam passar-se para bordo do meu navio. Dei ordem a D. Pedro para tomar posse da nau e dei caça ao Martim de Freitas e ao Vila Flor. A corveta Princesa Real, rendeu-se também. Pouco tempo depois estava eu prolongado com a Nau Rainha (navio Almirante) que se rendeu sem dar um único tiro”. Nas contas de Napier, no respeitante à perda de vidas, a esquadra liberal

“andou por uns noventa mortos e feridos” enquanto os miguelistas perderam “duzentos a trezentos homens”. O desastre foi enorme, e com esta batalha a armada fiel a D. Miguel praticamente desapareceu. Os liberais ficaram com o domínio pleno do mar, o que se veio a revelar fundamental para a sua vitória na guerra menos de um ano depois. Antecipando este confronto marítimo, as tropas liberais chefiadas pelo duque da Terceira, haviam desembarcado a 24 de junho na praia da Alagoa, entre Cacela e Monte Gordo, conquistaram o Algarve, e iniciaram a sua progressão em direcção a Lisboa e à vitória final. Derrotado, D. Miguel viu-se forçado a abdicar a favor de D. Maria II, na Convenção de Evoramonte assinada a 26 de Maio de 1834. Dia do seu 33º aniversário. Partiu num barco inglês, de Sines para o exílio, de onde já não regressou em vida.

Fontes: “A guerra de sucessão em Portugal”, Charles Napier, com trad. de Manoel Codina; “As guerras liberais, Revista da Armada, nº 488”, Moreira Silva; Gravura da Biblioteca Nacional; outras


20

CULTURA.SUL

Postal, 8 de outubro de 2021

MARCA D'ÁGUA

Outono, tempo de perdas e de ganhos MARIA LUÍSA FRANCISCO Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa luisa.algarve@gmail.com

comportamental associada ao Outono, este tempo pode ser aproveitado para amadurecimento e para preparar novos frutos. No meio de tantos acontecimentos é preciso saber gerir a mudança que está a acontecer a vários níveis. As novas regras da Direcção-Geral da Saúde, nomeadamente a menor exigência em relação ao uso de máscara e a aberturas de certos espaços de diversão, trarão mudanças nos comportamentos sociais. Os resultados eleitorais trarão mudanças nas iniciativas de várias autarquias e na vida pessoal de muitos autarcas (tanto na vida dos que ganharam como na dos que perderam). Quem expôs os seus sonhos e não saiu vencedor, que veja neste novo ciclo de quatro anos, até novo momento eleitoral autárquico, uma nova possibilidade. Ver na melhor perspectiva, ou seja, perder uma eleição não é perder a esperança, mas ver como uma

oportunidade de se abrirem outros caminhos, muitas vezes inesperados. Pode não se ser vencedor eleitoral, mas pode ser-se vencedor a nível de crescimento pessoal, pois a vida política é uma escola. Depois há o dilema da oposição, ajudar os que ficaram dando sugestões construtivas ou guardar e melhorar as ideias para quatro anos depois? Pegando no tema do meu anterior artigo em que dei enfoque ao “cooperar em vez de competir” a nível desportivo, penso que se aplica também a nível político. O importante é saber gerir a mudança, porque mudar não é um drama, mas é uma oportunidade, até para quem perde. É crucial haver desenvolvimento e relembrar que o desenvolvimento se não for sustentável não é desenvolvimento. O conceito é bastante amplo e aplica-se a todas as áreas, nomeadamente

FOTO D.R.

N

o rescaldo do Verão chega um Outono cheio de novidades políticas. O Outono traz consigo a sabedoria das escolhas. É hora de decidir, de avançar, de dar novos passos em frente e iniciar novos ciclos. A Natureza tem tanto para nos ensinar. Sabemos bem a importância de libertar velhos padrões e sistemas de crenças que já não nos servem nem nos acrescentam, para que assim, definitivamente nos possamos renovar com uma nova atitude, com uma nova consciência. É urgente aprender a ser e a despir

as carapaças que não são nossas, a largar os pensamentos que não nos pertencem, a libertar sentimentos que nos intoxicam... É urgente aprender com as vivências que temos tido e deixar vir ao de cima o nosso Eu genuíno. É urgente pensar o presente olhando o futuro, na política e na vida. Se prestarmos mais atenção aos detalhes da Natureza, perceberemos que cada estação do ano traz mensagens e convites específicos. No entanto, muitas vezes não conseguimos vislumbrar esses sinais porque insistimos nas nossas perspectivas pré-formatadas. Quando as árvores começam a perder as suas folhas, também devíamos perder velhos hábitos, velhos ressentimentos e ganhar novos polos de esperança, de vontade de (re) construir e de criar um ambiente renovado à nossa volta. Ao contrário de apatia e tristeza

à ecologia, à saúde, ao apoio social, à cultura e à mobilidade inclusiva. Ficam os votos de boas concretizações para as equipas que iniciam os seus mandatos e o incentivo de procurar inspiração na Natureza que se renova entre perdas e ganhos. Este novo trimestre, o último de 2021, com tantas mudanças e expectativas de voltar à vida pré-pandemia, ditará, em muito, o que será 2022. *A autora não escreve segundo o acordo ortográfico

ESPAÇO AGECAL

A casa do sul e as alterações climáticas JORGE QUEIROZ Sociólogo, sócio da AGECAL

"O tempo passado nunca é absolutamente passado e por vezes o presente está mais próximo do passado que do futuro”. Fernand Braudel

E

m muitos lugares encontramos testemunhos de um passado recente, o mundo camponês e marítimo que desaparece alterado nos seus princípios de vida colectiva e valores milenares. Muitos interpretam esse património herdado como atraso ou pobreza, sem entender a sabedoria que guarda, transmitida por gerações que viveram ao longo de séculos no

multifacetado espaço geocultural mediterrânico, da Grande Grécia à Ibéria Atlântica. O mar é, desde os primórdios, elemento central dessa cultura de viagens e comércio, que levou milhões de pessoas a partirem, com o pensamento no regresso à terra e à casa. A base da agricultura foi a escolha das boas sementes, partilhadas com os vizinhos, permitiram combater fomes cíclicas e alimentar as famílias, ter os cereais armazenados junto às casas. Perto destas sempre as hortas e os pomares, os animais domésticos, os poços e fornos comunitários, nas montanhas estavam os rebanhos. Duas produções emergiram com esplendor no mundo mediterrânico: o vinho e o azeite. Grécia e Roma espalharam-nas pelas margens do “grande lago”, usadas para consumo

alimentar, fins simbólico-religiosos, medicinais, sanitários e utilitários. A casa e a mesa foram o centro da aprendizagem e transmissão de valores sociais. Em Portugal a casa é uma das evidencias da diversidade do País, numa síntese Orlando Ribeiro subdividiu o território em duas “civilizações”, do granito a norte e do barro a sul, contudo, no que se refere à habitação, existem diferentes tipologias e características. A casa do Sul é muito mais que uma arquitectura de linhas equilibradas e volumes harmoniosos, é um manancial de sabedoria e soluções para problemas vitais: o sol e os ventos dominantes, amplitudes térmicas e climatização, aproveitamento das águas pluviais, higiene com o uso da cal, alimentos acessíveis para a família alargada. A terra foi o material construtivo

RESTAURANTE O TACHO

Restaurante de estilo familiar Take-Away: Entrega ao domicílio em Tavira

Estrada Nacional 125, Km 134 (junto à GNR) 8800-218 Tavira)

281 324 283

mais utilizado na habitação do sul, sendo obtida no local permitia economias significativas e autonomia nas decisões. Com a terra se construíram alguns dos monumentos mais visitados, que resistiram ao tempo. A arquitectura da terra faz uso das técnicas da “taipa”, com cofragem em madeira e terra compactada, do “adobe” feito de blocos de argila e areia, moldados e secos, do “tabique” que resulta da aplicação de terra sobre madeira e cana. Barato e ecológico… O Algarve é uma região rica na organização dos espaços e nas tipologias construtivas, casas térreas pequenas e de duas águas, habitações enriquecidas com chaminés, platibandas decoradas, terraços para secagem de roupas e alimentos (figos, peixes, polvos, …), “montes” nas zonas serranas aproveitando o

xisto, casas urbanas de maiores dimensões com quatro águas e vários pisos, entre outras. Será possível aproveitar esta sabedoria ancestral para revalorizar a região? Sim, com o estudo da história cultural, reordenamento territorial e estímulos demográficos, investigação aplicada a novos projectos de bairros, de habitações familiares e de espaços públicos, com paisagens preservadas num território vivo, produções ambientalmente adequadas para mercados de proximidade. Contemporaneidade evoluída e culta, respeitadora do Ambiente e da História. Conter as alterações climáticas é também aproveitar o saber incorporado na casa do sul. * O autor não escreve segundo o acordo ortográfico


CULTURA.SUL

Postal, 8 de outubro de 2021

21

LETRAS & LEITURAS

Integrado Marginal, Biografia de José Cardoso Pires, por Bruno Vieira Amaral

Bruno Vieira Amaral dedicou três anos de trabalho à biografia de José Cardoso Pires FOTO MÁRIO SANTOS / CONTRAPONTO / D.R.

PAULO SERRA Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

E

m junho deste ano, foi publicada a biografia de José Cardoso Pires, intitulada Integrado Marginal, publicado pela Contraponto. Resultado de três anos de trabalho do premiado escritor Bruno Vieira Amaral, representa o terceiro volume da coleção de Biografias de Grandes Figuras da Cultura Portuguesa Contemporânea, onde

figuram O Poço e a Estrada – Biografia de Agustina Bessa-Luís, de Isabel Rio Novo (já apresentada no Cultura.Sul). A sinopse do livro dá bem conta de como Cardoso Pires foi visto de formas tão desencontradas: «Notívago, boémio, brigão. Receoso de que a imagem pública lhe ensombrasse os méritos literários. Crítico do marialvismo. Acusado de ser marialva. Bem relacionado. Obcecado com a própria independência. O maior escritor da segunda metade do século XX. Um escritor datado e sem a mesma projeção internacional de um Lobo Antunes ou de um Saramago. Um espírito insubmisso. Um casamento duradouro. A convicção e a crença no próprio trabalho.» Biografia escrita com um certo pendor narrativo, que embala o leitor logo de início, sem, no entanto, romancear, pois o autor da biografia é aqui praticamente invisível, a não ser por uma fina ironia que o denuncia em diversos momentos, com ligeiras notas de humor. Por exemplo, quando o biografado vinga o falecido irmão a propósito de uma

nota inconveniente de um repórter: «Cardoso Pires descobriu quem tinha sido o autor da brincadeira, foi à sua procura e deu-lhe um enxerto de porrada no Chiado (aparentemente, o Chiado era o palco preferencial para espancar jornalistas e críticos).» (p. 132). Ou quando se narra como Cardoso Pires terá feito, «ao melhor estilo marialva, um avanço a uma senhora» (p. 245) que estava acompanhada do marido que, entretanto, foi aterrar em cima do piano da boate. A alusão ao machismo marialva é, naturalmente, um piscar de olhos ao leitor conhecedor de uma das obras de referência de Cardoso Pires: O Delfim. Mas o que fica nítido ao longo da biografia é o modo como Cardoso Pires, apesar do seu círculo de amizades, fugia a essa «espécie de mofo de biblioteca tão característico da s sumidades literá r ia s», preferindo os bares recheados da fauna da Almirante Reis que marcou a sua juventude: «os excluídos, os vadios, as prostitutas, os pequenos criminosos, os mânfios lisboetas que nada sabiam de literatura, mas

que sabiam tudo sobre a vida e a noite» (p. 244). Bruno Vieira Amaral consegue ainda a proeza de desempoeirar a literat ura , como, muito especialmente, de nos fazer sentir a opressão que se viveu durante os 48 anos de ditadura portuguesa; Cardoso Pires foi acompanhado muito de perto pela PIDE e recebe um dos golpes da sua vida ao saber que o informador era um amigo próximo. «O cigarro era a extensão natural dos seus dedos, o fumo a extensão natural dos seus pensamentos. Dizia escrever com o bico do aparo, mas escrevia era com o fumo do cigarro, companheiro fiel das centenas de horas solitárias a arrancar de si páginas e personagens e vozes e palavras, as palavras certas.» (p. 522) Não obstante a voz narrativa, que torna a leitura prazerosa e compulsiva, se manter intacta ao longo de todo o livro, a biografia é rigorosamente documentada, e sempre que possível faz eco das palavras do próprio Cardoso Pires. O livro termina, aliás, com

Líbano, Labirinto, de Alexandra Lucas Coelho

Alexandra Lucas Coelho já recebeu vários prémios de jornalismo e de literatura FOTO RUI GAUDÊNCIO / D.R.

Líbano, Labirinto, de Alexandra Lucas Coelho, publicado pela Editorial Caminho em julho deste ano, é uma revisitação da autora a um país que lhe é querido. Quase 500 páginas de texto e 350 fotografias a cores resultam num livro em que se poderia assumir que a autora articula a reportagem e a narrativa de viagens, não fosse este cenário ser particularmente desolador. O livro inclui ainda as 5 reportagens que saíram no Público. Líbano, Labirinto centra-se nos dois grandes acontecimentos recentes que mudaram a vida do país e o deixaram em ebulição: a revolução de 2019, com a derrocada económica, e a explosão de 2020 no Porto de Beirute, uma das maiores explosões não-atómicas de que há registo.

O Líbano é «o terceiro país mais endividado do mundo. Um terço da população está abaixo do nível da pobreza. Um quarto da população é refugiada.» (p. 54) A saúde e o ensino público não funcionam, as quebras de luz são constantes e a falta de água potável exige camiões-cisternas. Entretanto, são alguns responsáveis políticos, corruptos, quem detêm as companhias dos geradores, os camiões-cisternas, os hospitais privados, as universidades privadas, as seguradoras e os bancos. Depois de uma série de despedimentos, com a crise do petróleo, os bancos fechados, as pessoas impedidas de levantar o seu dinheiro, a libra a desvalorizar vertiginosamente, os salários a descer; a «bolha pósGuerra Civil» (p. 55) acaba por levar a uma revolução. Na manhã de 17 de Outubro de 2019 os ânimos deflagram, quando o governo anuncia uma taxa de 6 dólares por mês nas comunicações por WhatsApp. A autora parte numa viagem de 3 dias; está em Beirute justamente quando o governo cai. Corre o dia 4 de Agosto de 2020 quando Beirute é varrida por uma explosão. Estamos em plena pandemia, com a maioria dos

países confinados e os aeroportos fechados, quando a autora decide, num impulso, partir para o Líbano. Essa explosão, que pode ser vista em vídeos difundidos pela internet, é o resultado da irresponsabilidade homicida dos responsáveis políticos que deixaram 2750 toneladas de nitrato de amónio durante quase sete anos no porto de Beirute. Um país que vive permanentemente em guerra, mas que não tinha um plano de contingência para uma catástrofe destas. Uma explosão que lembra a guerra do Líbano e a de países vizinhos, visível numa mancha púrpura de fumo a 60 km de distância. Nesta «conversa que não queremos terminar» (p. 422), num estudo de uma tragédia que é também a da Síria, da Palestina, de um Médio Oriente, Alexandra Lucas Coelho estuda um dos mais pequenos países do mundo com uma memória colectiva imensa (pela comida, pela literatura, pela cultura), onde convivem milhares de anos de paradoxos (p. 423). Biografia de um país, em que um dos maiores feitos é como, não obstante o conhecimento que tem do Líbano, feito de vivência, complementado com leitura, a autora se subsume

A obra é uma revisitação da autora a um país que lhe é querido

numa prosa sucinta, cirúrgica, em que colige um labirinto de vozes e depoimentos, neste retrato cru de um país que vive literalmente em ruínas e que muitos de nós sempre conhecemos em guerra, onde partir é um «perpétuo movimento» (p. 14). A lex a nd ra Luc a s Coel ho publicou romances, não-ficção e literatura infanto-juvenil. Estudou Comunicação na Universidade Nova de Lisboa. Trabalhou dez anos em rádio e vinte anos no jornal Público como repórter, cronista, editora e correspondente. Recebeu vários prémios de jornalismo e de literatura. PS

A biografia é rigorosamente documentada e, sempre que possível, faz eco das palavras do próprio Cardoso Pires

o último sopro de vida de Cardoso Pires. Quaisquer considerações que houvesse a tecer, o biógrafo já as deixou expressas nos momentos próprios, como por exemplo um certo ressentimento – que parece vir do próprio biografado – de que a vida é breve demais para todos os projectos que se deseja passar ao papel, mesmo que não falte na vida o combustível da escrita. Curiosamente, no caso paradigmático de Cardoso Pires, que gostava de reunir toda a informação possível e era obsessivo a reescrever e emendar a sua prosa, o autor sempre rejeitou partir da sua história de vida para fazer literatura: nunca usara «a infância como motor e combustível da escrita» (p. 539), nem escreveu nada ligeiramente passível de ser apontado como autobiográfico. Ironicamente, é ao lançar De Profundis – Valsa Lenta, que se consolida o sucesso do autor. Recebido com uma chuva de prémios e elogios, esse livro é um testemunho profundamente íntimo, escrito na primeira pessoa, do que Cardoso Pires sofreu após um AVC em que (caso raro) até a fala lhe saía ao contrário e começou a falar em latim. Ao retratar o biografado, Bruno Vieira Amaral acompanha ainda o círculo íntimo de Cardoso Pires, dos escritores mais próximos, e os mais avessos. Agustina-Bessa Luís, pasme-se, não é vista a uma luz muito simpática (e várias vezes mencionada por Cardoso Pires nas suas notas escritas como Beça Luís), e é com alguma alegria que descobrimos a amizade de Cardoso Pires com Lídia Jorge. Uma nota final ao livro: não faria mal ter-se incluído uma pequena fotobiografia do autor. A capa e o título assentam que nem uma luva.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.